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A criminalização do aborto no Brasil e o impacto sobre direitos constitucionais da mulher

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Academic year: 2021

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CAMPUS CAICÓ

DEPARTAMENTO DE DIREITO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL E O IMPACTO SOBRE DIREITOS CONSTITUCIONAIS DA MULHER

ISADORA MEDEIROS ARAÚJO

CAICÓ/RN 2019

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A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL E O IMPACTO SOBRE DIREITOS CONSTITUCIONAIS DA MULHER

Monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CERES - Caicó, como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em Direito.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Oswaldo Pereira de Lima Junior

CAICÓ/RN 2019

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Araújo, Isadora Medeiros.

A criminalização do aborto no Brasil e o impacto sobre direitos constitucionais da mulher / Isadora Medeiros Araújo. - Caicó, 2019.

51f.

Monografia (Bacharel em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó.

Departamento de Direito.

Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Pereira de Lima Junior. 1. Princípios constitucionais estabelecidos - Monografia. 2. Direitos da mulher - Monografia. 3. Aborto - Monografia. 4. Descriminalização do aborto. I. Lima Junior, Oswaldo Pereira de. II. Título.

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A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL E O IMPACTO SOBRE DIREITOS CONSTITUCIONAIS DA MULHER

Monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CERES - Caicó, como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovado em: ___/___/____

BANCA EXAMINADORA

____________________________________

Prof. Dr. Oswaldo Pereira de Lima Junior

Orientador

____________________________________

Prof. Dr. Carlos Francisco do Nascimento

Examinador

_____________________________________

Prof. M. Dimitre Braga Soares de Carvalho

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Dedico este trabalho a todas as mulheres que lutam dia após dia pelo seu lugar no mundo.

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Agradeço primeiro a Deus, por ter me guiado por toda esta jornada.

Aos meus pais, em especial minha mãe, por todos os esforços e renúncias para que eu conseguisse, enfim, concluir minha graduação.

Ao meu Orientador, Prof. Dr. Oswaldo Pereira de Lima Junior, pelo enorme auxílio na elaboração deste trabalho.

A toda minha família e meus amigos, por todo o apoio e por sempre acreditarem em mim, muitas vezes até mais do que eu.

Enfim, meu muito obrigada a todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para meu engrandecimento pessoal e acadêmico.

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Só é verdadeiramente digno da liberdade, bem como da vida, aquele que se empenha em conquistá-la.

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No Brasil, a interrupção voluntária da gravidez é proibida, salvo em casos excepcionais. Contudo, sabe-se que o abortamento é uma prática corriqueira e secular, presente na vida de milhares de mulheres de todas raças e classes econômicas. Assim sendo, o presente trabalho tem como objetivo ponderar argumentos em defesa à descriminalização do aborto, analisando as nuances do feto e os impactos que a criminalização traz para as gestantes e para o Estado. Ademais, visa explanar a deficiência do Estado quanto à realização dos abortos previstos em lei e à falta de investimento em políticas de prevenção. Por fim, é feita uma relação do crime de aborto à luz de direitos fundamentais e princípios constitucionais. Para tanto, a metodologia utilizada se pautou pela técnica qualitativa de levantamento bibliográfico e análise crítica por meio do método hipotético-dedutivo. Constatou-se, que não há prejuízo ao feto até a 18ª semana de gestação, pois, do ponto de vista neurológico, não possui o córtex cerebral plenamente desenvolvido, logo, não é capaz de sentir dor, ou até a 20ª semana, sob a ótica moral, tendo em vista que até esse tempo de gestação pode não ser considerado pessoa. Apurou-se que a criminalização da conduta não impede que as mulheres abortem, dessa forma, a prática abortiva clandestina traz desmedidas consequências para a vida e a saúde das mulheres, capazes de as levar a morte. Nesse sentido, as implicações decorrentes de abortos induzidos geram custos sociais e econômicos para o Estado, pois as mulheres necessitam de assistência médica após a indução do aborto inseguro. Verificou-se que o Estado não está preparado sequer para realização dos abortos garantidos por lei, uma vez que os hospitais credenciados para os realizar não possuem informações coerentes com as normas definidas pelo Ministério da Saúde, bem como, não há investimento pelo governo para prevenir gravidezes não planejadas e consequentes abortamentos provocados, através de políticas de educação sexual, planejamento familiar e disseminação de métodos contraceptivos de longa duração. Ao fim, certificou-se que a criminalização do aborto não se coaduna com direitos fundamentais como o direito à vida da mulher, à saúde, à igualdade, à liberdade, à privacidade e à autonomia, bem como vai contra princípios constitucionais como o princípio da laicidade do Estado e da proporcionalidade. Por estes motivos, entende-se não ser cabível permanecer criminalizado o ato de abortar.

Palavras-chave: Interrupção voluntária da gravidez. Aborto. Descriminalização do

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In Brazil, voluntary termination of pregnancy is prohibited, except in exceptional cases. However, abortion is known to be a common and secular practice, present in the lives of thousands of women of all races and economic classes. Therefore, this paper aims to weigh arguments in defense of decriminalization of abortion, analyzing the nuances of the fetus and the impacts that criminalization brings to pregnant women and the state. In addition, it aims to explain the deficiency of the State regarding the performance of abortions provided for by law and the lack of investment in prevention policies. Finally, a relationship of abortion crime is made in light of fundamental rights and constitutional principles. Therefore, the methodology used was guided by the qualitative technique of bibliographic survey and critical analysis through the hypothetical-deductive method. It was found that there is no harm to the fetus until the 18th week of gestation because, from a neurological point of view, it does not have a fully developed cerebral cortex, so it is not able to feel pain, or until the 20th week, under the moral perspective, considering that even this time of gestation may not be considered a person. It has been found that the criminalization of conduct does not prevent women from aborting, thus the illegal abortion practice has unreasonable consequences for the life and health of women, capable of leading them to death. In this sense, the implications of induced abortions generate social and economic costs for the state, as women need medical assistance after induction of unsafe abortion. It was found that the state is not prepared to perform abortions guaranteed by law, since hospitals accredited to perform them do not have information consistent with the standards set by the Ministry of Health, and there is no investment by the government to prevent unplanned pregnancies and consequent miscarriages through sex education policies, family planning and the spread of long-term contraceptive methods. In the end, it has been ensured that the criminalization of abortion is not consistent with fundamental rights such as women's right to life, health, equality, freedom, privacy and autonomy, as well as going against constitutional principles such as the principle of secularity of the State and proportionality. For these reasons, it is not considered appropriate to remain abortion as a crime.

Keywords: Voluntary termination of pregnancy. Abortion. Decriminalization of

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ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental DIU – Dispositivo Intrauterino

DNA – Ácido Desoxirribonucleico

IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas PSOL – Partido Socialismo e Liberdade

STF – Superior Tribunal Federal SUS – Sistema Único de Saúde

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2 ANÁLISE INICIAL SOBRE O ABORTO... 13

2.1 NOÇÕES PRELIMINARES... 13

2.2 BIOLOGIA, VIDA E SER HUMANO... 14

2.3 O STATUS MORAL DO FETO... 16

2.4 O FETO COMO SUJEITO DE DIREITOS... 17

3 O ABORTO NO BRASIL... 20

3.1 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO... 20

3.2 CONTRARIEDADES DA NORMA E POSIÇÕES DÍSPARES... 23

3.3 CASOS DE ABORTAMENTO NO BRASIL... 25

4 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO E A INFRAÇÃO A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DIREITOS FUNDAMENTAIS DA MULHER... 33

4.1 DO DIREITO À VIDA... 33

4.2 DO DIREITO À SAÚDE DA GESTANTE... 34

4.3 DO DIREITO À LIBERDADE, À PRIVACIDADE E À AUTONOMIA... 36

4.4 DO DIREITO À IGUALDADE... 37

4.5 DO PRINCÍPIO DA LAICIDADE DO ESTADO...39

4.6 DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE... 40

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 42

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1 INTRODUÇÃO

O aborto é um tema causador de grandes discussões em todo o mundo, provoca paixões, eis que envolve o bem jurídico primordialmente tutelado pelo Estado – a vida humana.

No Brasil, a interrupção voluntária da gravidez é, em regra, proibida, admitindo-se a prática, excepcionalmente, se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, se a gravidez resulta de estupro ou caso se constate que o feto é anencéfalo. Entretanto, sabe-se que o abortamento é uma prática corriqueira e secular, presente na vida de milhares de mulheres de todas raças e classes econômicas. Por este motivo, faz-se o questionamento: a criminalização da conduta realmente cumpre o seu papel de evitar que as mulheres abortem?

Conforme a Pesquisa Nacional do Aborto, publicada em 2016, estima-se que 503 milhões de mulheres realizaram a prática do aborto no ano de 2015 no Brasil (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017, p. 655). Contudo, em virtude da subnotificação motivada pela reprovação do ato, o Ministério da Saúde estima que o número de abortos provocados anualmente é o dobro, perfazendo um total entre 950 mil a 1,2 milhões (COLLUCI; FARIA, 2018).

A clandestinidade da prática abortiva traz consequências graves para a vida e saúde das mulheres, especialmente para as que pertencem a camadas menos favorecidas da sociedade. Desta feita, a temática ocasiona uma polarização entre aqueles que são contra a prática, denominados pró-vida, visando proteção ao Ser em desenvolvimento no útero materno, e aqueles que são a favor, os chamados pró-escolha, os quais defendem prevalecer a tutela aos direitos femininos.

Conforme a Constituição Federal de 1988, o Estado tem o dever de garantir a inviolabilidade da vida, a saúde e o bem-estar da população brasileira. Entretanto, pelo Estado ser omisso diante das implicações que a criminalização do aborto causa, bem como por tratar o tema como uma situação jurídica, e não como uma questão de saúde pública, questiona-se se a norma criminalizada se coaduna com princípios constitucionais e direitos fundamentais consagrados pela nossa Carta Magna.

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Assim sendo, justifica-se a elaboração deste trabalho por tratar-se de um tema de enorme relevância que não corresponde mais à realidade de 1940, quando o aborto foi inserido no Código Penal Brasileiro, época em que o patriarcado prevalecia e a luta em prol dos direitos femininos davam os seus primeiros passos. A vista disso, é essencial que se discuta as inferências que problemática acerca do aborto traz, para que se impeça de sujeitar tantas mulheres à morte, negando-as o direito à autonomia, à liberdade e ao controle de suas próprias decisões.

A metodologia empregada nessa pesquisa reproduz a técnica de levantamento bibliográfico e a análise crítica da problematização exposta, utilizando o método hipotético-dedutivo.

O presente trabalho tem como objetivo geral analisar argumentos em defesa à descriminalização do aborto no Brasil.

Especificamente, objetiva discutir as nuances do feto, para buscar definir até que ponto a conduta abortiva pode ou não o prejudicar; elucidar os impactos que a tipificação da conduta traz para a saúde e a vida das mulheres, bem como para o Estado; explanar sobre a deficiência do Estado no tratamento do aborto legal e na falta de políticas públicas para evitar gravidezes não planejadas; correlacionar a norma criminalizada com princípios e direitos constitucionais.

Do ponto de vista estrutural, o presente estudo compõe-se de três capítulos.

No primeiro capítulo foi feita inicialmente uma análise sobre o aborto, apontando o seu conceito e classificações. Após, passou-se a analisar as particularidades do Ser em desenvolvimento, o nascituro, apresentando aspectos sob a ótica biológica, filosófica-moral, instrumental e, por fim, jurídica, para buscar definir o momento no qual o feto passa a ser considerado pessoa e, portanto, sujeito de direitos.

No segundo capítulo focou-se na situação jurídica do aborto no Brasil, especificando o histórico da legislação e trazendo à baila contrariedades da norma e posições distintas à tipificação da conduta. Em seguida, evidenciou-se os casos de abortamento no país, analisando as consequências decorrentes de abortos inseguros à vida e à saúde da mulher, bem como ao Estado. Em seguida, foram feitas considerações relativas à pouca efetividade do Estado em realizar os abortos

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permitidos por lei e em promover políticas públicas para evitar o número de gestações indesejadas no país e, consequentemente, a interrupção voluntária da gravidez. Nesse sentido, mostrou-se o impacto que a falta de informação causa na realidade das mulheres.

Por fim, no terceiro capítulo tratou-se de relacionar a criminalização da conduta abortiva à luz de direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde da gestante, à igualdade, à liberdade, à privacidade e à autonomia reprodutiva da mulher. Bem como, cuidou-se de ver o aborto sob a ótica de princípios constitucionais, como o princípio da laicidade do Estado e o princípio da proporcionalidade.

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2 ANÁLISE INICIAL SOBRE O ABORTO

2.1 NOÇÕES PRELIMINARES

O aborto, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, consiste na interrupção da gestação até as 22 (vinte e duas) semanas, quando o feto pesa, aproximadamente, 500 (quinhentos) gramas. É, portanto, a retirada do feto ou embrião, antes que possa se tornar vital fora do útero.

Em uma análise clínica, é possível destacar alguns critérios estabelecidos para definição do abortamento: a) a idade gestacional: considera-se aborto precoce o ocorrido antes da 12ª semana e aborto tardio entre a 12ª e 20ª semana; b) o peso fetal: é aborto quando o feto pesa menos que 500 gramas, considera-se imaturo o feto que pesa entre 500 e 999 gramas, e prematuro, o que pesa entre 1000 e 2500 gramas; c) forma: o aborto pode ser espontâneo, no qual não existe condição precipitante para ensejá-lo, ou induzido, nos casos em que a gravidez é interrompida por conduta da gestante ou de terceiros; e d) quadro clínico: podendo o aborto ser apenas ameaça, ou considerado inevitável, incompleto, completo ou retido/frustrado. (SALOMÃO, 1994, p. 363).

Do ponto de vista bioético, a classificação do aborto divide-se em quatro tipos (COSTA; OSELKA; GARRAFA, 1998, p. 124):

a) Interrupção eugênica da gestação (IEG): casos de aborto ocorridos devido a valores racistas, sexistas, étnicos etc., ou seja, devido a práticas eugênicas, como, por exemplo, os praticados pela medicina nazista, período em que mulheres foram obrigadas a interromper a gravidez por serem judias, ciganas ou negras.

b) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): casos de aborto nos quais a gestação traz riscos de vida à gestante.

c) Interrupção seletiva da gestação (ISG): casos de aborto em que se constatam anomalias no feto, como é o exemplo da anencefalia.

d) Interrupção voluntária da gestação (IVG): casos de aborto ocorridos levando em consideração a vontade própria da gestante ou do casal, que não desejam levar a gravidez adiante, seja em situação de estupro ou não.

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Observa-se que pela visão dos bioeticistas, todas as definições, com exceção da IEG, tomam como base o desejo da gestante em manter ou não a gravidez. Porém, o nosso ordenamento jurídico parece não seguir o mesmo entendimento, uma vez que, ao contrário, põe a autonomia da mulher e sua liberdade de agir em segundo plano.

Conforme Lima Júnior e Hogemann (2018, p. 149), a Constituição Federal determina a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais do direito. Porém, não expressa o que é uma pessoa ou um ser humano ou, ainda, o que é um indivíduo humano. Portanto, faz-se mister delinear quando se inicia a individualidade do ser humano para se compreender até que ponto esse conceito pode influenciar nos direitos fundamentais da gestante e, também, do Ser em desenvolvimento.

2.2 BIOLOGIA, VIDA E SER HUMANO

Preliminarmente, para compreender as nuances do nascituro, necessário se faz destacar a diferença existente entre os termos “ser humano” e “pessoa”. Por ser humano, entende-se um ser biológico, pertencente a uma determinada espécie – daí se falar que o ser humano é um indivíduo da espécie humana. Por outro lado, o conceito de “pessoa” veste-se de valor moral e refere-se à figura metafísica do ser humano (SINGER, 1993).

Pode-se dizer que um Ser pertence a determinada espécie quando se comprova, através de estudo nos cromossomos das células desses organismos, que pertence a um dado genus biológico. No caso dos seres humanos, em uma dimensão biológica, entende-se não haver dúvida que o embrião, após fecundado, é um ser humano, ou um “Ser da espécie humana” (SINGER, 1993, p. 62).

O Ser concebido, mas que se encontra, ainda, no ventre materno denomina-se nascituro. Logo, é aquele que denomina-se cria a partir da união dos gametas feminino e masculino, formando o zigoto. A partir daí, inicia-se o processo de mitose, no qual o zigoto se dividirá em duas células, quatro, oito, até atingir cem, quando formará o blastocisto. Isto tudo ocorre antes da chamada nidação, instante em que o óvulo

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fecundado implanta-se na parede do útero, ou seja, nos primeiros cinco dias após a fecundação (LIMA JÚNIOR, HOGEMANN, 2018, p. 156).

Conforme Lima Júnior e Hogemann (2018, p. 156),

[...] entre o sexto e o décimo segundo dias acontecerá a implantação do blastocisto na parede do útero da mulher (nidação), ocasionando a evolução do blastocisto em um embrião humano propriamente dito, algo que deverá se finalizar por volta do 14º dia. A partir desse ponto, tem início o processo de gastrulação, estabelecem-se os três folhetos germinativos no embrião (ectoderma, mesoderma e endoderma), acontecendo, ainda, a formação da linha primitiva embrionária.

Entre a terceira e oitava semana ocorre a chamada organogênese, na qual o embrião começa a ser formado, chegando à oitava semana com seus órgãos e sistemas já estabelecidos e passando ao período fetal (9ª semana até o nascimento) para desenvolvê-los gradualmente (LIMA JÚNIOR, HOGEMANN, 2018, p. 157).

Assim sendo, para o aspecto biológico, é o momento em que surge, em teoria, a individualidade do ser, a qual está “relacionada ao instante em que ocorre a nova unidade da espécie, assim às características que fazem desse novo ser um ente individual. É dividida, pois, ainda sob o ângulo dos conhecimentos técnicos da biologia, em uma questão temporal e outra substancial” (LIMA JÚNIOR, HOGEMANN, 2018, p. 158).

No entanto, no ponto de vista temporal, sabe-se que não é possível precisar o instante no qual houve a concepção. Do mesmo modo, o critério substancial revela-se insuficiente, por exemplo, no que diz respeito ao que a ciência denomina quimerismo, através do qual o indivíduo é capaz de possuir diferentes sequências de Ácido Desoxirribonucleico (DNA) em seu corpo, como acontece com os hermafroditas e os gêmeos siameses (LIMA JÚNIOR, 2017, p. 44).

Neste diapasão, chega-se à conclusão que um mero sequenciamento de DNA não é capaz, por si só, de determinar a individualidade biológica de um ser, tendo em vista a gama de situações que podem vir a ocorrer se houver variações genéticas na formação do Ser em desenvolvimento. Por fim, entende-se que a fusão de dois gametas e divisão de um emaranhado de células pode gerar um ser humano, mas não uma pessoa, um conceito que vai além das premissas puramente biológicas.

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2.3 O STATUS MORAL DO FETO

Apesar de ser popularmente sinônimo de "ser humano", por "pessoa" entende-se o ser autoconsciente e racional, capaz de traçar seus desejos e determinar seu próprio futuro. Por este motivo, a pessoa possui um valor especial em sociedade, considerado maior do que aquele dado ao ser meramente senciente – aquele que possui capacidade de sentir –, que é o nascituro, o qual contém um valor moral atribuído principalmente por crenças da doutrina cristã arreigadas na sociedade (SINGER, 1993).

Desde a filosofia grega busca-se definir o momento no qual o indivíduo passa a ter status moral de pessoa. A partir de então, diversos filósofos e autores procuram, com pensamentos e acepções muito diferentes, uma melhor interpretação e sentido para a expressão. No entanto, por tratar-se de um conceito metafísico, é muito trabalhoso, talvez impossível, chegar a um ponto convergente.

A exemplo, Aristóteles defende que o status moral da pessoa está diretamente relacionado à sua vida em sociedade, ou seja, quando passa a desenvolver-se e incluir-se na coletividade, sendo, portanto, um animal político. Assim, na polis grega escravos e mulheres não eram considerados cidadãos, não estavam inseridos, portanto, no universo da moralidade, assim como as crianças e os nascituros, que somente poderiam vir a adquiri-la após seu crescimento e inserção social (LIMA JÚNIOR, 2017, p. 69).

Na perspectiva kantiana, outro exemplo deveras importante, pois reacende conceito de dignidade até hoje usado, a chamada moral deontológica fundamenta-se em três particularidades: razão, vontade e liberdade. O homem, como agente determinador de suas próprias vontades, conforme sua racionalidade, vivencia a verdadeira liberdade. Para Kant, “a única vida que possui dignidade é a humana, pois apenas o Homem possui vontade racional e, assim, é livre para condicionar seus atos além da simples resposta sensitiva” (LIMA JÚNIOR, 2013, p. 354).

Tal dignidade, teorizada por Kant, relaciona-se aos desejos próprios do indivíduo, o qual, em razão da capacidade racional e liberdade, é o agente garantidor das suas próprias leis que ele mesmo determina.

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Poderiam ser citados outros exemplos, mas o esforço seria vão ante a multitude de teorias ontológicas que procuram explicar a dimensão metafísica da pessoa. Essa profusão de ideias serve para mostrar que o conceito de pessoa se vivifica na ontologia do ser, mas não fica apenas nele. Precisa de mais, é um conceito composto, ou, como referencia Lima Júnior (2017), um conceito complexo. Vê-se, portanto, que, como o entendimento biológico, o filosófico também se torna insuficiente para explicar a pessoalidade do nascituro, tendo em vista que cria uma distância entre a chamada “pessoa de fato” (dimensão biológica) e “pessoa de direito” (dimensão filosófico-moral), por não conceder valor moral ao ser senciente.

Entra-se, desta feita, ao conceito instrumental do nascituro, através do qual se considera o sentido

[...] filosófico-moral, de vez que o processo de pessoalização deverá envolver a graduação fática, marcada pelo desenvolvimento temporal e fisiológico (pré-embrião, embrião e feto), e também a aculturação valorativa, igualmente temporal, mas com viés marcadamente metafísico. (LIMA JÚNIOR, 2017, p. 102).

Nesta linha de pensamento, crê-se que a pessoalidade do nascituro está condicionada ao valor social que a sua própria genitora confere a ele, sendo abalizado como pessoa em potência. Entretanto, enquanto pré-embrião, possivelmente incapaz de ser constatado pela mãe, não é plausível considerá-lo como tal, sendo possível individualizá-lo somente a partir da aceitação materna, ou seja, quando presumivelmente já será embrião.

Do contrário, em não havendo reconhecimento materno ou familiar, ao atingir o estágio fetal, após a vigésima semana de gestação, o próprio nascituro insere-se no universo da pessoalidade. Após inserido, de uma forma ou de outra, não mais se exclui desse estado, sendo, definitivamente, um Ser pessoalizado, isto é, um Ser com status moral de pessoa (LIMA JÚNIOR, 2017, p. 195).

2.4 O FETO COMO SUJEITO DE DIREITOS

A Constituição Federal de 1988, no art. 1º, inciso III, destaca como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana. O termo “pessoa humana” utilizado pelo constituinte polemiza a discussão sobre o

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aborto pelo motivo de não se referir pontualmente ao “ser humano”, ou seja, ao ser da espécie humana que se forma a partir da fusão dos gametas feminino e masculino, mas sim aos aspectos morais que tornam o Ser em desenvolvimento, pessoa.

Destarte, deduz-se que há proteção jurídica constitucional à vida, mas de modo especial somente após o nascituro adquirir pessoalidade, a qual, consoante explicitado alhures, se dará após o acolhimento materno e/ou familiar, ou, na falta destes, após a vigésima semana de gestação, quando o indivíduo adquirirá o status moral de pessoa em potencial (potencialidade ativa e pessoal de desenvolver, por si, pessoa).

Por outro lado, o Código Civil de 2002, em seu artigo 2º, cuidou de expressar que: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei

põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Isto é provocado, em uma

visão ampla, não apenas por questões jurídicas ou sociais, mas também em razão da grande força que religião exerce na sociedade brasileira e, em especial, em face do conservadorismo da Igreja Católica, que protege “a dignidade inviolável de cada pessoa humana, desde o momento da concepção até o seu último suspiro” (PICHEL, 2017). Sabe-se que, nos países onde há maior abrangência do catolicismo, existem leis mais restritas a respeito do aborto.

No Direito Brasileiro existem algumas teorias que buscam justificar a situação jurídica do nascituro: a Teoria Concepcionista, a Teoria da Personalidade Condicional e a Teoria Natalista.

Para a Teoria Concepcionista, defendida por autores como Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, o nascituro possui personalidade jurídica desde a concepção, quando adquire todos os direitos inatos ao ser humano (TARTUCE, 2015, p. 78). Porém, como já mencionado supra, não há como determinar com exatidão o instante no qual ocorre a concepção e, por conseguinte, inicia-se a vida, tornando esta teoria defasada pelo Direito Civil contemporâneo, apesar de bastante admitida por alguns autores.

Segundo a Teoria da Personalidade Condicional, o nascituro possui, sim, certos direitos, porém, sua obtenção se dará por meio de uma condição suspensiva,

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que é justamente o nascimento com vida.1 Esta teoria leva em consideração,

principalmente, direitos patrimoniais, mas também se revela em direitos extrapatrimoniais como o direito à vida. No entanto, esse direito se implementará definitivamente somente após nascida a criança. A teoria é defendida pelos doutrinadores Washington de Barros Monteiro, Miguel Maria de Serpa Lopes e Arnaldo Rizzardo (TARTUCE, 2015, p. 78).

Já a Teoria Natalista parte de uma interpretação literal e simplificada da lei, o nascituro não é considerado pessoa, mas, sim, um Ser com expectativa de direitos, sendo a sua personalidade jurídica adquirida somente após o nascimento com vida. Através dela, nega-se todo e qualquer direito fundamental ao nascituro, como o direito à vida, à investigação de paternidade, ao nome, à imagem e aos alimentos (TARTUCE, 2015, p. 77). Esta teoria tem como adeptos Sílvio Rodrigues, Caio Mário da Silva Pereira e San Tiago Dantas, e é a que prevalece no Direito Civil Brasileiro clássico.

Apesar do caráter civilista, a Teoria Natalista mais se adequa ao conceito de pessoa como agente moral a partir da 20ª semana de gestação, por este tratar-se de uma pessoa em potencial, logo, presume-se ser um Ser com meras expectativas de direito. Nesse sentido, infere-se que, em um ou outro caso, o Ser em desenvolvimento adquirirá personalidade jurídica plena unicamente a partir do parto.

Já no âmbito criminal, o Código Penal, ao tipificar o aborto, utilizou o conceito biológico de que a vida se inicia a partir da fecundação dos gametas feminino e masculino e posterior implantação do óvulo fecundado no útero da mulher. Dessa forma, tratando do tema de maneira generalizada, não cuidou de considerar as particularidades do Ser em desenvolvimento já bastante discutidas até aqui, o que gera uma polarização na sociedade sobre aqueles que defendem a proteção ao feto e os que defendem a proteção à mulher.

1 “[...] conquanto comece do nascimento com vida a personalidade civil do homem, a lei põe a salvo,

desde a concepção, os direitos do nascituro (arts. 353, 357, parágrafo único, 372, 377, 458, 462, 1718), que permanecem em estado potencial. Se nascer com vida adquire personalidade, mas se tal não ocorrer nenhum direito terá." (DINIZ, 2002, p. 123).

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3 O ABORTO NO BRASIL

3.1 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO

Inicialmente, o aborto passou a ser considerado crime a partir de 1830, no Código Criminal do Império, o qual tipificava não a conduta da gestante, mas a conduta praticada por terceiro, com ou sem o consentimento daquela. Percebe-se, portanto, que o bem jurídico tutelado era a segurança da gestante, e não o feto. Além disso, era punível também o fornecimento de medicamentos abortivos, ainda que não atingissem o fim desejado, como se pode verificar nos artigos 199 e 200 do Código (BRASIL, 1830), os quais são transcritos:

Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos. Se este crime for commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas - dobradas.

Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique. Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos. Se este crime for commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes. Penas - dobradas. (textos originais)

Em 1890, o Código Penal da República tratou de criminalizar, pela primeira vez, o aborto praticado pela própria gestante, que até então era permitido. Contudo, trouxe uma diminuição de pena em caso de autoabortamento “para ocultar a desonra própria” (BRASIL, 1890). Cabe ressaltar que o Código fazia distinção entre o aborto em que havia a expulsão ou não do feto, cominando pena mais grave àquele.

Ademais, o Código Penal da República continuou a tipificar o aborto provocado por terceiros, especificando também a conduta praticada por médicos e parteiras legalmente habilitados para a prática da medicina, imputando-lhes penas mais severas: além da prisão, a privação do exercício da profissão. Essas penas, da mesma forma, se impingiam aos médicos e parteiras caso sobreviesse a morte da gestante em virtude da provocação do aborto, ainda que legal ou necessário. Tais

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apontamentos estão previstos nos artigos 300, 301 e 302 do Código Penal da República de 1980.2

Anos mais tarde, em 1940, com o advento do Código Penal, o aborto foi inserido em sua parte especial, no Capítulo I dos “Crimes contra a vida”, do Título I dos “Crimes contra a pessoa”, tipificado nos artigos 124 a 128. Os artigos cominam penas para a gestante pela prática provocada por ela mesma ou com seu consentimento (de 1 a 3 anos), bem como para terceiro, pela prática provocada com o consentimento da gestante (1 a 4 anos) ou sem consentimento desta (3 a 10 anos).

Na forma qualificada, se, em consequência do aborto provocado por terceiro ou dos meios adotados por este para realizá-lo, sobrevier lesão corporal de natureza grave para a gestante, as penas podem ser aumentadas de um terço. Já se sobrevier a morte, por qualquer destas causas, as penas serão duplicadas (BRASIL, 1940).

O artigo 128 prevê as hipóteses de aborto legais: a) o aborto necessário, sem o qual não há outro meio de salvar a vida da gestante; e b) o aborto sentimental, se a gravidez resulta de estupro. Importa salientar que o caput do artigo faz menção à prática de tais abortos legais exclusivamente pelo médico (BRASIL, 1940).

No entanto, conforme Cunha (2016, p. 104-105), sendo o aborto necessário praticado por pessoa diversa do médico, ou mesmo pela própria gestante, com o intuito de salvar sua própria vida, apesar de ser fato típico, estariam acobertados pela descriminante do estado de necessidade. Já o caso do aborto sentimental, por

2 Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção: No primeiro caso: - pena

de prisão cellular por dous a seis anos. No segundo caso: - pena de prisão cellular por seis mezes a um anno. § 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos meios empregados para provocal-o, seguir-se a morte da mulher: Pena - de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos. § 2º Si o abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercicio da medicina: Pena - a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação.

Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante: Pena - de prissão cellular por um a cinco annos. Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria.

Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou aborto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia: Pena - de prisão cellular por dous mezes a dousannos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação. (textos originais)

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não haver perigo de vida iminente à gestante, será considerado crime caso a conduta abortiva seja realizada por pessoa sem habilitação legal. Porém, se praticado pela própria gestante, dependendo das circunstâncias, pode se configurar hipótese de inexibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade).

Há, ainda, uma terceira possibilidade de aborto legal, inserida no ordenamento jurídico através de decisão do Superior Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54. Através desta o STF declarou inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo configura-se tipificada nos artigos 124 a 127 do Código Penal.

Isto porque, a anencefalia se constitui em uma anomalia congênita que consiste na “malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária” (FRANCO, 2011). Dessa forma, durante a gestação não se verifica os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral do feto, porém, pela possibilidade de conservar resíduos do tronco encefálico, aquele pode vir a apresentar algumas funções vitais, como respiração, batimentos cardíacos e deglutição.

Entretanto, por tratar-se de uma patologia letal, o feto anencéfalo possui uma expectativa de vida muito baixa, de forma que em sua maioria, quando não ocorre a morte intrauterina, o bebê sobrevive poucas horas após o parto ou vem a óbito em alguns dias. Um estudo realizado por pesquisadores do estado do Pernambuco (AMORIM et al., 2006), mostrou que, em casos de fetos com má formação congênita, 20% das gestações ocorrerão abortamento espontâneo. Dos 80% restantes que nascerão, vivos ou mortos, somente 3% a 5% permanecerão vivos.

Por esta razão, na decisão do STF, foram levados em consideração, além da inviabilidade de vida extrauterina dos fetos anencéfalos, também valores fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a saúde da mãe, a liberdade, a autonomia da manifestação da vontade e a legalidade. Subtende-se que a morte do filho após o seu nascimento geraria muito mais sofrimento para a mãe, afetando sua saúde psicológica.

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3.2. CONTRARIEDADES DA NORMA E POSIÇÕES DÍSPARES

A legalidade acerca do aborto em caso de anencefalia leva à discussão do ponto de vista neurológico do feto, em razão da doutrina de Peter Singer (1993, p. 112) defender que até as 18 semanas de gestação, o córtex cerebral do nascituro ainda não está suficientemente desenvolvido, de modo que este, nesta circunstância, é incapaz de sentir dor. Por este motivo, sente-se que até este ponto não seria possível criminalizar a conduta do aborto, devido a) ao feto não possuir consciência; e b) não estar apto para viver fora do útero, assim como os fetos anencéfalos na grande maioria dos casos.

Analisando ambos os casos, nota-se que não se faz necessário distingui-los, tendo em vista que, ainda que o feto pudesse vir a adquirir condições neurais após as 18 semanas de gestação, até tal momento o seu abortamento não geraria nenhum dano a ele. Do mesmo modo, nesta situação, poderiam se levar em conta os mesmos valores fundamentais evidenciados pela decisão do STF quanto aos fetos anencéfalos – a dignidade da pessoa humana, a saúde da mãe, a liberdade, a autonomia da manifestação da vontade e a legalidade –, em razão do Ser em desenvolvimento ainda não possuir senciência, tampouco ter status moral de pessoa, conforme ponderado no capítulo anterior.

Nesta mesma linha de pensamento, no ano de 2016, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, em seu voto no Habeas Corpus nº 124.306, entendeu ser inconstitucional os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto até pelo menos o terceiro trimestre de gravidez, que é quando “o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno” (BRASIL, 2017). A decisão da Primeira Turma foi tomada com base no voto de Roberto Barroso e fora concedido habeas corpus a médicos e funcionários de uma clínica clandestina que haviam sido presos em flagrante, denunciados por realizar abortos ilegais no Rio de Janeiro.

Para Barroso (BRASIL, 2017), a criminalização do aborto até o terceiro trimestre de gestação é incompatível com direitos fundamentais da mulher. Além

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disso, ressalta que não há criminalização da interrupção da gravidez em países desenvolvidos, como Alemanha, Bélgica, França, Uruguai e México.

Ainda, tratando-se da perspectiva neurológica, a Lei nº 9.434/97, em seu artigo 3º, expressa que a retirada de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano para fins de transplante, deverá ser procedida após a cessação da atividade encefálica. Desta feita, entende-se que não havendo cérebro em funcionamento, não existe vida consciente, portanto, não haveria de se considerar crime a retirada de um Ser que não possui plena atividade vital.

Desde 1970, o Movimento Feminista brasileiro, possivelmente influenciado pelos movimentos ocorridos nos Estados Unidos e Europa, busca desconstruir a conduta criminalizada do aborto a fim de que as mulheres tenham liberdade sobre os seus próprios corpos e possam decidir quando e se querem, efetivamente, exercer a maternidade.

Após participar da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2004, o governo brasileiro concedeu ao Movimento Feminista o direito de propor revisões à legislação acerca do aborto, bem como a defender sua prática. Em vista disso, nas Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro foi lançada uma proposta para exprimir a posição do movimento frente a descriminalização e legalização do aborto, a qual se observa na

[...] garantia do aborto por decisão da mulher até a 12ª semana de gestação; excepcionalmente até 20 semanas em casos de violência sexual; ou em qualquer tempo em casos de risco de vida, grave risco à saúde da mulher ou de má formações fetais incompatíveis com a vida, a ser realizado por profissional legalmente habilitado, nos estabelecimentos de saúde das redes pública e privada (FEIX, 2005, p. 6).

Em 08 de março de 2017, foi apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) a ADPF nº 442, que defende a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação. Na ADPF, alega-se que penalizar a prática consiste em desrespeitar princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade, a proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante, a saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos (decorrentes dos direitos à liberdade e igualdade).

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Em 2018, o STF passou a promover audiências públicas para tratar do assunto, trazendo ao debate manifestações pró-escolha e pró-vida, a fim de ponderar a decisão. Entretanto, o processo ainda se encontra pendente de julgamento até os dias atuais, inclusive, sem data para ser sentenciado.

Nesse sentir, não obstante haja incontáveis controvérsias acerca da criminalização do aborto, o Código Penal mostra-se engessado, sustentando um argumento tradicionalista e patriarcal, o qual impõe o controle do Estado diante do corpo da mulher e não a concede liberdade para realizar suas escolhas sobre o seu próprio futuro. Assim sendo, por não sopesar o tempo de gestação e o momento em que o Ser concebido passa a ser realmente um bem jurídico a ser tutelado, equivoca-se ao criminalizar a interrupção voluntária da gravidez desde o seu início.

Conforme Barroso (BRASIL, 2017), a criminalização do aborto fere os “direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade psíquica e física, e à saúde da mulher, com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto desproporcional sobre as mulheres mais pobres”. Ademais, penalizar as mulheres que desejam interromper a gravidez causa custos para o Estado, tanto sociais como econômicos, uma vez que ao se submeterem a procedimentos inseguros as mulheres geram lesões em seus corpos e, não raro, suas mortes.

3.3 CASOS DE ABORTAMENTO NO BRASIL

Apesar de criminalizada a conduta de abortar, é incontestável que esta é uma prática recorrente e presente na vida das mulheres do Brasil e do mundo. Desde as civilizações mais remotas, as mulheres fazem usos de técnicas para cessar gravidezes indesejadas. Por exemplo, com a utilização de ervas e chás abortivos ou, ainda, expondo suas vidas e saúde em risco, com o emprego de objetos perfurocortantes para atingir o fim pretendido.

Fica claro que para se submeter a tais procedimentos, a mulher em questão, muito provavelmente, não possui um padrão de vida elevado e nem detém condições financeiras para arcar com os custos de um aborto clandestino em clínicas particulares – considerado seguro, ainda que ilegal. Nesta perspectiva,

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compreende-se que a prática do aborto independe da classe social. As mulheres praticam independentemente da proibição legal, mas a sua restrição atinge com mais gravidade a vida de mulheres pobres, negras e menos instruídas, que necessitam recorrer ao abortamento inseguro para realizar o objetivo desejado.

A Pesquisa Nacional sobre Aborto, realizada em 2016, através de entrevistas com 2.002 mulheres da área urbana, evidenciou que aos 40 anos de idade, 1 a cada 5 mulheres já fez ao menos um aborto, número que atinge, aproximadamente, 4,7 milhões de mulheres, sendo 503 mil somente no ano de 2015 (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017, p. 655).

Segundo o estudo, a prática é mais frequente entre mulheres com menor escolaridade, sendo o índice de 22% entre aquelas que estudaram até a 4ª série, e de 11% para quem tem nível superior, mesmo incompleto. No que se refere à renda, o percentual é de 16% entre as brasileiras com renda familiar de até 1 salário mínimo, e de 8% nas famílias com renda superior a 5 salários mínimos.

Quanto ao fator racial, as mulheres indígenas, negras, pardas e amarelas mostram indicadores entre 24% e 13%, enquanto as brancas perfazem um percentual menor que aquelas, no total de 9%. É curioso perceber, ainda, que dentre as entrevistadas, 13% se declararam católicas, e 10% evangélicas ou protestantes.

Segundo Diniz, Medeiros e Madeiro (2017, p. 654), o método utilizado na aludida pesquisa trata-se de uma técnica de urna, através da qual as mulheres podem responder os questionários e depositá-los em uma urna fechada, a fim de que os entrevistadores não tomem conhecimento das respostas. Portanto, isto se dá para que haja maior verossimilhança dos fatos e se consiga chegar a um resultado mais próximo da realidade das práticas de aborto no país.

Entrementes, entendemos que os números podem vir a ser muito mais alarmantes, tendo em vista a quantidade de mulheres que abortam e permanecem no anonimato. Essa subnotificação ocorre, primeiramente, por medo do judiciário, em razão da conduta criminalizada. Secundariamente, por receio de represália pela sociedade, uma vez que o tema ainda é tratado como tabu no país e as pessoas que realizam a prática são vistas com preconceito.

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De acordo com um levantamento feito pela Folha de São Paulo (COLLUCI; FARIA, 2018), o Ministério da Saúde estima que são realizados, na verdade, de 950 mil a 1,2 milhões de abortos por ano no Brasil, e que, em 10 anos, aconteceram em torno de 9,5 milhões a 12 milhões de abortos provocados. O aborto inseguro gera complicações à saúde das mulheres. Conforme Souza (2018, p. 26), as complicações mais graves em decorrência do abortamento abrangem infecção no trato pélvico-genital, hemorragia, insuficiência renal, choque séptico e embolia.

Nesta perspectiva, o número excessivo de abortamentos inseguros e suas complicações gera custos elevados para o Estado, os quais poderiam ser evitados se a prática fosse descriminalizada e as mulheres pudessem realizá-los de maneira segura, de forma a não arriscar sua própria vida. Segundo o Ministério da Saúde (COLUCCI; FARIA, 2018), entre 2008 e 2017 foram gastos R$ 486 milhões de reais com internações para tratar complicações de aborto, em sua maioria provocado, perfazendo um percentual de 75%, ao passo que 2,1 milhões de mulheres foram internadas em decorrência disso.

Através de uma pesquisa realizada pelo Instituto do Coração, da Universidade de São Paulo, com base em dados do Ministério da Saúde, foram analisados mais de 32 milhões de procedimentos que exigem internação do paciente entre os anos de 1995 e 2007. As curetagens pós aborto, a qual consiste em uma raspagem interna para retirada de restos de aborto incompleto do útero, lideram o ranking com 3,1 milhões de registros, dentre 1.568 tipos de procedimentos avaliados (GLOBO.COM, 2010).

Apesar de o número incluir curetagens após a ocorrência tanto de abortos espontâneos como de abortos provocados, acredita-se que a maioria daquelas decorre de abortos inseguros, haja vista que, em geral, o aborto espontâneo expulsa o feto do útero em sua completude e, na maior parte dos casos, não exige internação da mulher.

Ocorre que, muitas vezes, as gestantes resistem em procurar apoio médico após realizarem o aborto inseguro. Isso por temerem serem criminalizadas pelo ato que, ao contrário do que se julga, jamais será uma decisão fácil de ser tomada pela mulher. Em virtude disso, o atraso da intervenção médica pode vir a gerar complicações mais graves, como o óbito da gestante.

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O Ministério da Saúde, em um projeto que estudou o tema do aborto no Brasil por 20 anos (BRASIL, 2009, p. 31), declarou que nos anos 1990, o aborto provocado estava entre a terceira e a quarta causa de mortalidade materna no país, com uma estimativa de 76 mortes a cada 100.000 mulheres. Até os anos 2000, percebeu-se redução do número de casos, a qual foi relacionada ao início da comercialização do medicamento Misoprostol em farmácias e posterior difusão deste como método abortivo. Após sua proibição, houve aumento das complicações infecciosas e hemorrágicas decorrentes do aborto em quase 50%. Hoje, o Ministério da Saúde estima que tenham ocorrido cerca de 2.000 mortes por abortamento inseguro nos últimos 10 anos (SOUZA, 2018, p. 28).

Não obstante tenha modificado a conjuntura do aborto induzido no Brasil, o Misoprostol não exterminou todos os riscos possíveis de serem causados pelo aborto inseguro. Por ser um medicamento proibido e com circulação restrita no país, o acesso não é fácil e, em virtude do caráter rentável, o mercado ilegal passou a realizar a venda de produtos adulterados. Ademais, para que seja eficaz e não provoque riscos a vida e saúde da gestante, se faz necessário se atentar à dose indicada e ao tempo de gestação, bem como à imediata assistência hospitalar para finalizar o procedimento (BRASIL, 2009, p. 32).

No entanto, como mencionado alhures, existe uma resistência por parte das mulheres em buscar assistência médica após praticar o aborto, muito pelo receio de serem denunciadas. Conforme o Ministério da Saúde (BRASIL, 2009, p. 33), através de um levantamento realizado com 11 mulheres processadas judicialmente por aborto nos anos 2000, comprovou-se que quase a metade delas foi denunciada durante a fase de hospitalização pelos profissionais de saúde que as atenderam. Isto fere o dever de sigilo profissional inerente aos profissionais desta área e causa insegurança às mulheres que necessitam dos cuidados médicos após praticarem o aborto inseguro.

Impende ressaltar que apesar de o Misoprostol ter facilitado a prática do aborto para quem deseja realizá-lo por conta própria, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2009, p. 33) entende que, por ser desconhecida a forma como o medicamento é comercializado e circulado no Brasil, estima-se que este segue caminho do tráfico de drogas ilícitas e de anabolizantes. Assim sendo, o uso do Misoprostol aproxima as mulheres e suas famílias do tráfico ou comércio ilegal para

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que se possa adquiri-lo, situação que as insere, de qualquer forma, no universo da criminalidade.

Outro fator a ser observado é que mesmo o aborto legal, garantido pelo Estado, não se mostra absolutamente efetivo. De acordo com Cerqueira e Coelho (2014, p. 17), em uma nota técnica sobre os casos de estupro no Brasil em 2011, publicada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), entre as mulheres adultas que foram vítimas de estupro e dos quais resultaram gravidez, apenas 19,3% delas realizaram o aborto previsto por lei. Este percentual diminui quando se tratam de vítimas crianças ou adolescentes: apenas 5,6% e 5,0%, respectivamente, realizaram o aborto.

O procedimento realizado em menores de idade só é permitido com o consentimento do seu representante legal, conforme previsto no art. 128, inciso II, do Código Penal3. Considerando o elevado número de casos de estupro de crianças

e adolescentes praticados dentro do ambiente familiar – por pais, padrastos, avôs e/ou tios –, pode ser por este motivo explicada a ínfima taxa de aborto realizado em decorrência de estupro nesta faixa etária. Mas o Estado não pode deixar estes menores desassistidos.

É imperioso destacar que, por vezes, mesmo em casos de abortos legais, existe a recusa do procedimento por profissionais de saúde, alegando questões morais ou religiosas. Conforme o Ministério da Saúde, em norma técnica sobre Atenção Humanizada ao Abortamento (BRASIL, 2011, p. 21), essas atitudes, denominadas “objeção de consciência”, não podem ser utilizadas como justificativa para a não realização do procedimento, seja em caso de aborto permitido ou de atendimento de complicações decorrentes do aborto inseguro. O Estado tem o dever de manter profissionais aptos para realizar todos os tipos de abortamento nos hospitais, e, em caso de recusa, o profissional deve ser imediatamente substituído por outro.

Entretanto, na realidade não é o que se vê. Um relatório feito pela Organização Britânica de Direitos Humanos denominada Artigo 19, que atua em nove países do mundo sobre temas referentes à informação e liberdade de

3 Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

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expressão, promoveu uma pesquisa telefônica para os 176 hospitais públicos cadastrados para realizar aborto legal no Brasil, disponíveis na plataforma MAPA ABORTO LEGAL4. Dentre estes, apenas 43%, correspondentes a 76 hospitais,

confirmaram efetuar a interrupção da gravidez nos casos legais, enquanto 65 deles afirmaram não oferecer o serviço e 35 não responderam (19, 2019, p. 22).

Ainda, a pesquisa (ARTIGO 19, 2019, p. 26) mostrou que há uma inconsistência entre os hospitais com relação à idade gestacional máxima para realizar o abortamento. As respostas variaram entre 12, 14, 20 e 22 semanas e qualquer período, mostrando o desconhecimento sobre a norma técnica (BRASIL, 2011, p. 29), definida pelo Ministério da Saúde, a qual esclarece que o procedimento pode ser feito “até a 20ª ou 22ª semana e com produto da concepção pesando menos que 500g”. Não há limite máximo nos casos de risco de vida à gestante e de fetos anencéfalos.

Conforme a pesquisa (ARTIGO 19, 2019, p. 35), a consequência que esta situação pode trazer é que a mulher, mesmo estando amparada por lei, pode ser obrigada a levar a gravidez adiante ou a valer-se de meios inseguros para interrompê-la. Portanto, o fato dos locais onde deveriam acolhê-las para que pudessem realizar o abortamento de forma segura não fornecerem informações fidedignas, conforme as normas do Ministério da Saúde, causam às mulheres uma dupla vulnerabilidade.

Diante disso, nota-se que a informação, ou a falta dela, afeta diretamente a efetivação dos direitos garantidos em lei. Necessário se faz que o governo invista na ampliação de políticas públicas para que não faltem esses esclarecimentos tanto para a população quanto para os órgãos responsáveis, para que, nestas situações, haja o devido acolhimento que as mulheres necessitam.

Em outra ótica, frise-se que a falta de informação também interfere nos casos recorrentes de gestação não planejada, os quais podem decorrer pela ignorância no uso dos métodos, pela falta de acesso a eles, bem como pelas falhas na utilização. Muitas dessas mulheres já possuem outros filhos, e cada nova gestação sem planejamento dificulta a subsistência destas famílias, as quais não possuem o

4 Plataforma criada pelo governo brasileiro para informar à população quais situações de aborto são

permitidas, o que é necessário para realizá-lo e quais hospitais oferecem o serviço. Disponível em: <https://mapaabortolegal.org/>.

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mínimo apoio pelo Estado, que é deficiente em políticas de assistência social à infância e à maternidade.

Nesta linha de pensamento, percebe-se, portanto, que o conservadorismo do Estado ao não disseminar educação sexual nas escolas e não desenvolver políticas públicas voltadas para a saúde sexual e reprodutiva e para a ampliação de métodos contraceptivos faz com que surjam mais casos de gravidezes indesejadas. Assim sendo, se a mulher optar por continuar com a gravidez, faltará o apoio do Estado no que se refere à assistência social. Por outro lado, se a mulher resolver interromper a gestação que não pode ser evitada e não foi planejada, o Estado ameaça encarcerá-la.

Conforme uma pesquisa realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, denominada Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento (LEAL; GAMA, 2014), das 23.940 mil mulheres entrevistadas que engravidaram no Brasil entre fevereiro de 2011 a outubro de 2012, 45% delas não planejaram a gestação, 9% ficaram insatisfeitas e 2,3% relataram ter tentado interrompê-la. Do número total, 4.539 trataram-se de adolescentes, sendo que 71% se autodeclararam pretas ou pardas, 66% afirmaram não desejar a gravidez e 3,4% tentaram interromper.

Dessa forma, faz-se mister reconhecer que há a necessidade de uma política de prevenção, através da qual se comece a difundir informações para a população desde o início das suas vidas sexuais para que, com isso, diminua-se o número de gravidezes não planejadas e, por fim, a quantidade absurda de abortamentos inseguros que matam tantas mulheres no Brasil. Ressalte-se que se tratam de mulheres mais vulneráveis, em sua maior parte negras e pertencentes a camadas sociais menos favorecidas.

Cabe salientar que, além do investimento nas políticas públicas supramencionadas, é imprescindível uma maior disponibilização, pelo Estado, de métodos contraceptivos que não dependem apenas da “memória” de quem os usa. Sim, o Estado garante dispor de contraceptivos como: injetável mensal, injetável trimestral, minipílula, pílula combinada, diafragma, dispositivo intrauterino (DIU) de cobre e camisinha. Porém, na maioria das vezes, há falta deles nos postos de saúde e há dificuldade em se conseguir métodos que sejam mais onerosos, como o próprio

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DIU de cobre (PASSARINHO; FRANCO, 2018). Resumindo-se em disponibilizar camisinhas e pílulas anticoncepcionais, o mau uso e o esquecimento fazem com que surjam mais gravidezes indesejadas.

Por isso, os chamados métodos de longa duração, como, por exemplo, o DIU de cobre, DIU hormonal ou implante hormonal – estes últimos não disponibilizados pelo governo –, por não serem de uso diário, podem evitar uma possível gravidez de forma mais efetiva, além de fazerem efeito por anos. Isto seria eficaz principalmente para mulheres em situação de vulnerabilidade, que já são mães e que o advento de um novo filho prejudicaria a subsistência da família.

No entanto, é imperioso destacar que nenhum método anticoncepcional é infalível. Dessa forma, ainda que a mulher ou o casal tomem o devido cuidado, cada método contém um percentual de falha. Ademais, suas eficácias também podem ser interferidas por fatores externos, como é o caso do antibiótico que interfere o efeito da pílula anticoncepcional – fato que é desconhecido por uma grande parcela da população. Destarte, por estes motivos e pelos tantos outros relatados, a mulher deve ter o direito de decidir se deseja manter uma gestação indesejada que pode vir a interferir em aspectos importantes da sua vida, seja no âmbito profissional, pessoal, familiar, financeiro ou social.

Diante de todo o exposto, necessário que se entenda o aborto como uma questão de saúde pública e jamais como um ato a ser criminalizado. Ainda que haja a tipicidade da conduta, é evidente que este caminho não é o mais efetivo. Está explícito que as mulheres não irão parar de provocar abortos e, consequentemente, morrerem em virtude disso.

Ao contrário, para que haja redução no número alarmante de abortos induzidos e as resultantes complicações e/ou mortes das mulheres, é preciso que, primeiro, veja-se como tema de saúde pública. A partir de então, invista-se em políticas de educação sexual e serviços de planejamento familiar, respeitando princípios assegurados pela Constituição para a vida da mulher, como a saúde, a liberdade, a privacidade, a autonomia reprodutiva e a igualdade.

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4 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO E A INFRAÇÃO A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DIREITOS FUNDAMENTAIS DA MULHER

A Constituição Federal de 1988 não tratou de cuidar do abortamento de maneira expressa. Destarte, ainda que não haja autorização ou proibição do aborto pela nossa Carta Magna, existem alguns princípios constitucionais e direitos fundamentais que norteiam a discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez no país.

4.1 DO DIREITO À VIDA

Do exposto até aqui, analisamos teses biológicas, filosóficas, morais e jurídicas para examinar as nuances da pessoalidade do nascituro e compreender até que ponto a proteção conferida a ele pelo Estado é significativa quando se trata do aborto. Nessa baila, partindo da premissa de que o feto é uma pessoa em potencial e, portanto, não possui personalidade jurídica, mas apenas expectativas de direitos que virá a adquirir somente após o nascimento, não é plausível afirmar que se atribua a ele todos os direitos inerentes a uma pessoa recém-nascida ou adulta, que já possui sua condição jurídica de sujeito de direito concretizada.

Por óbvio, existe proteção constitucional à vida intrauterina, uma vez que se trata de um Ser da espécie humana que, a partir da décima oitava semana de gestação, tem seu córtex cerebral completamente formado – órgão responsável por conferir-lhe capacidade de sentir e de pensar (SINGER, 1993, p. 112); e que, a partir da vigésima semana, pode ser considerado moralmente como pessoa (LIMA JÚNIOR, 2017, p. 195), razões pelas quais merece a tutela estatal. A questão de grande impacto se enverga sobre a modulação dessa proteção, eis que direitos tout court somente poderão ter as pessoas.

Desse modo, é certo que a proteção à vida intrauterina existe, mas não é uniforme durante toda a gravidez, ao passo que aumenta progressivamente porquanto o nascituro se desenvolva e adquira condições vitais de sobreviver fora do útero. Ainda assim, não possui a mesma intensidade, a proteção de uma vida

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intrauterina, comparada à vida do sujeito já nascido. Essa tutela, maior ou menor, se remete também às questões particulares da família do concepto. Por exemplo, parece ser muito mais doloroso para uma família perder um filho já nascido do que perder um feto em gestação, em caso de aborto espontâneo, o que se leva a crer que a vida após o nascimento é muito mais valiosa (SARMENTO, 2005, p. 65).

Para Sarmento (2005, p. 65), essa comparação entre a importância da vida intrauterina e à vida já nascida também pode ser observada no ordenamento jurídico. A sanção atribuída à gestante pela prática do aborto é consideravelmente menor que a pena prevista para o crime de homicídio simples: enquanto aquela é de 1 a 3 anos de detenção, esta é de 6 a 20 anos de reclusão.

No entanto, em razão da prática do aborto ser um tabu na sociedade, tais premissas não são levadas em consideração, de modo que é conferida demasiada proteção à vida do feto pela norma penal, a qual, em verdade, não tem sido eficaz. A criminalização da conduta tem matado milhares de mulheres todos os anos no país, tirado vidas que, pela Constituição Federal, deveriam ser inviolavelmente protegidas pelo Estado5.

Nessa perspectiva, por entender a ineficácia da norma de repressão penal, a qual indubitavelmente não protege nem a vida do nascituro e, tampouco a vida da gestante, compreende-se que se deve dar prioridade à vida da mulher para evitar que mais morram, e garantir a sua existência constitucionalmente inviolável, assegurando principalmente o seu direito à vida e sua autonomia reprodutiva.

4.2 DO DIREITO À SAÚDE DA GESTANTE

Como vimos, a norma repressiva não evita que inúmeras mulheres, especialmente as menos abastadas e instruídas, dia após dia, se submetam a procedimentos inseguros que trazem graves riscos à sua saúde e suas vidas em virtude de serem feitos, muitas vezes, sem mínimas condições de higiene e segurança (SARMENTO, 2005, p. 70).

5 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988).

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Com base no texto constitucional, o direito à saúde está assegurado nos artigos 6º6 e 196 da Carta Magna. Este último consagra que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação

(BRASIL, 1988). É, portanto, um dos direitos fundamentais mais relevantes, tendo em vista ser através dele que se propicia a manutenção de bens jurídicos primordiais, como a integridade física e psíquica da sociedade (SARMENTO, 2005, p. 71).

No entanto, ainda que assegurado constitucionalmente, a falta de disponibilidade dos serviços de saúde é um problema recorrente no Brasil. Esta deficiência pôde ser notada no capítulo anterior. Existe dificuldade de acesso aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) para realizar abortos até mesmo nos casos previstos em lei. Há, também, a negativa de profissionais em realizar os procedimentos, sejam os abortamentos legais ou a finalização após o aborto inseguro, pela chamada “objeção de consciência”, o que representa um direito do médico, mas não pode ser uma desculpa para que o Estado não disponibilize profissionais que possam atender em tais casos.

Assim sendo, vê-se que o direito à saúde, em sua suma importância, não é efetivo no país, em especial para a mulher que aborta. É necessário que haja uma reformulação no sistema de saúde para que a população não fique desassegurada dos direitos e garantias consagrados em leis e na Constituição Federal. A proibição do aborto causa sofrimento e afeta a saúde física e psíquica das mulheres, as quais se sujeitam a automutilação e, muitas vezes, sofrem maus tratos e discriminação pelos próprios profissionais de saúde devido ao ato praticado (MADEIRO; RUFINO, 2017, p. 2775).

Havendo a descriminalização do aborto, em conjunto, deve haver a disponibilização do procedimento pelo Estado para que as mulheres possam realizar abortos por meios adequados e com profissionais capacitados, respeitando seus direitos fundamentais à vida e à saúde. Frise-se que não há que se falar em

6 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,

o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988)

Referências

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