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Stella do Patrocínio : da internação involuntária à poesia brasileira

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto De Estudos Da Linguagem

ANNA CAROLINA VICENTINI ZACHARIAS

STELLA DO PATROCÍNIO: DA INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA À POESIA BRASILEIRA

CAMPINAS 2020

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STELLA DO PATROCÍNIO: DA INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA À POESIA BRASILEIRA

Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Teoria e História Literária, na

área de Teoria e Crítica

Literária.

Orientadora: PROFA. DRA. DANIELA BIRMAN

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À

VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO

DEFENDIDA POR ANNA CAROLINA

VICENTINI ZACHARIAS, ORIENTADA

PELA PROFA. DRA. DANIELA BIRMAN.

CAMPINAS 2020

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Em memória, com profundo respeito, às mulheres, pretas e pretos, lgbtqia+, pobres, indígenas, sem terra, sem teto e demais sujeitos que, por negligência e terrorismo estatal, não conseguiram viver nem o tempo, nem do modo como gostariam. E também aos familiares, amigos e colegas que ficaram e tiveram de conviver com um luto que não é circunstancial, mas político. Este trabalho é sobre ter esperança de que a morte não seja substância que se procura ou que se torne estratégia proposital, mas um acontecimento que irremediavelmente nos encontra. Por acreditar em um tempo em que os fazeres político-culturais sejam pela vida, em suas múltiplas belezas e possibilidades. Assim, dedico este trabalho a cada uma e um, de todos os tempos e espaços, com anseios semelhantes.

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“Abre o caminho pro mensageiro passar1”. Laroyê e Mojubá. Sem Exu não se faz nada. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo n. 133895/2017-3, pelo financiamento deste trabalho, possibilitando não apenas a minha dedicação exclusiva à pesquisa durante esse período, como as minhas viagens ao Rio de Janeiro para realizar as pesquisas de campo.

À orientadora, Daniela Birman, pela confiança, pelas leituras cuidadosas, pelos direcionamentos que me foram indispensáveis. Eu não saberia dimensionar a minha admiração.

Aos funcionários e funcionárias das bibliotecas do Instituto de Estudos da Linguagem, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e da Faculdade de Educação na UNICAMP, também às funcionárias e funcionários do restaurante universitário da UNICAMP, às e aos terceirizados de limpeza e segurança da UNICAMP, àquelas e àqueles que me auxiliaram em instituições no Rio de Janeiro em busca de informações, como na Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, DETRAN, Ipub, Instituto Municipal de Assistência à Saúde “Juliano Moreira” (em especial à Camila Brasiliense), Arquivos de Microfilmagens da Polícia Federal do Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Delegacias de Polícia. À Secretaria de Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem: Cláudio Pereira Platero, Rosemeire Aparecida de Almeida Marcelino, Miguel Leonel dos Santos e Raiça Fernanda Zocal Fernandez.

Aos professores Mário Augusto Medeiros da Silva, Alfredo Cesar Mello, Daniela Palma, Marcos Piason Natali, Mariana Chaguri, André Barbugiani Goldfeder. À Silvia Beatriz Adoue, ao Alcides Cardoso dos Santos, ao Edmundo Peggion. Ao Teófilo Reis, à Melissa de Oliveira Pereira.

Ao Pai Gilmar TY Oya. Ao Ed Carlos Faria, ao Lucas Honorato, ao Vinícius Rufino. Ao Sidney Aguilar.

Aos sobrinhos de Stella do Patrocínio. Um deles, o que conheci, gostaria de dizer que só preservei sua identidade neste trabalho porque, devido à pandemia, não pude visitá-lo para confirmar se o seu nome poderia ser divulgado. É com muito carinho que publico este trabalho.

À Mônica Ribeiro de Souza e à Carla Guagliardi, interlocutoras de Stella do Patrocínio, mulheres cujos trabalhos não apenas respeitaram a memória de Stella do Patrocínio, mas de outras mulheres do Núcleo Teixeira Brandão durante seus estágios. Guagliardi, pelos registros gravados e Ribeiro de Souza pelas transcrições fieis do falatório. Ambas são pessoas com quem estabeleci contatos profissionais e grande afeto.

A cada uma e um dos demais entrevistados para a realização deste trabalho: Denise Correa, Pedro Silva, Julius Teixeira, Nelly Gutmacher, Ricardo Aquino, Marcio Rolo, Paulo Sergio Duarte.

Aos artistas plásticos com quem estabeleci contato e um cadinho de prosa: Leonardo Lobão, Arlindo de Oliveira, Pedro Mota Mattoso, Luiz Carlos Marques.

Aos familiares: meu pai, Luiz Eduardo Lozano Zacharias, meus irmãos Catherina Vicentini Zacharias, Pedro Adib Vicentini Zacharias, Anna Beatriz Vicentini Zacharias, a sobrinha Helena Zacharias Velludo. Obrigada especialmente a vocês, de quem eu nunca consigo me lembrar sem me

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À minha família que já embarcou noutras viagens, embora eu tenha aprendido com João Nogueira que, quando o espelho é bom, ninguém morreu. Sendo assim, à minha mãe, Fernanda Vicentini Zacharias. Também ao Vô Marciano, Vó Anita, Vó Anna, Tia Ana Lúcia.

Aos amigos, pessoas que renovam minha fé no mundo e também em mim: Juliana Ramos Boldrin (obrigada pela amizade, pelo amor, pelas tantas horas de leitura de meus capítulos e pelas conversas sempre tão enriquecedoras e generosas), Luiz Paulo de Araújo, Joaquim Almeida, Caio Mader, Telma Cristina, Aline Telles, Bruno Silva, Wilton Machado, Flávio Arantes, Pedro Júnior, Alex Vampeta, Mestre Toninho, Karine Henrique, Bárbara Silva, Lívia Navarro, Cristovam Bruno Cavalcanti, Daniel Teixeira, Cícero Moura Nunes, Iuna Tuane Sanches, Camila Macek, Leandro Di Nizo, Ingrid Sayuri Corsi, Karina Werneck, Thiago Nogueira, Fernando Mira, Vinícius Ortiz, Rafael Alberici, Isabella Vido, Beatriz de Araújo, Renan Fernandes, Tilinha Bueno, Juliana Benfica, Beatriz Matos, Janaina Delfino, Murilo Galvão Amâncio da Cruz, Arimatéia, Thiago Cestari, Carla Grigório, Guilherme Boldrin, Sandro Junior, Crislaine de Souza Borges, Ivone Oliveira, Nora Santos Silva. Ao Bahia, ao querido João do Pandeiro.

Ao Dalton Carvalho, Abel Luiz, Paulo Amarante, Pedro Gabriel Delgado, José Alberto de Almeida, Rachel Gouveia Passos, por ouvi-los em diferentes ocasiões e por me ajudarem, assim, a olhar.

À Dona Marina e ao Terreiro Pai Eduardo e Caboclo Irapuã. À Maria Benzedeira. Às linhas de Exus, Pombagiras, Pretos Velhos, Caboclos, Crianças, Baianos, Cangaceiros, Boiadeiros, Ciganos e Marinheiros. Ao Seu Meia-Noite, Vovó Maria Conga, Vó Cambinda, Mariazinha da Praia, Cigana Sete Saias, Jurema Flecheira, Seu Zé do Laço.

Ao Cursinho Popular Amelinha Telles e à Maloca Arte e Cultura. Aos antimanicomiais, aos decoloniais, aos abolicionistas penais.

“Quem cultiva o bem vai colher/ Quando a roda da vida girar/ É preciso aprender a perder/ Pra entender o valor de ganhar”2. Boas colheitas, pessoal! A todos os citados, aos que ainda estão por vir e aos possíveis leitores deste trabalho. Aos que estiveram, estão e estarão.

A Ogum, Ogunhê Patacori Ogum! A Xangô, Kaô Kabiecilê! Às circunstâncias, ao tempo.

Êpa, Babá!

2 DA MATA, André. “Filhos da Mata”. Faixa presente no CD que leva o mesmo nome. 2018. Disponível em:

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Esta dissertação de mestrado em Teoria e História Literária investiga os processos institucionais que mediaram o falatório de Stella do Patrocínio, desde sua primeira internação, em 1962 aos 21 anos no Hospício D. Pedro II, até sua morte, em 1992, na então Colônia Juliano Moreira. Assim denominado pela própria autora, falatório era sua prática de enunciação, gravada por estagiárias de arte e psicologia da Colônia, respectivamente Carla Guagliardi e Mônica Ribeiro de Souza, entre 1986 e 1991. O conteúdo dessas gravações, de caráter intermitente, eram conversas entre Stella do Patrocínio e as estagiárias, suas interlocutoras. Esse material foi editado para a publicação de um livro póstumo, organizado por Viviane Mosé e intitulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2001). Assim, Stella do Patrocínio foi nomeada poeta brasileira e inserida na literatura brasileira. Nesta dissertação, mostro como as gravações dessas conversas se tornaram possíveis pelas mudanças estruturais e organizacionais da Colônia Juliano Moreira, propiciadas pela luta antimanicomial brasileira, nos anos 1980, com prerrogativa de abertura manicomial. Defendo, também neste estudo, nesse contexto, que o livro da escritora deve ser estudado levando em consideração todas as mediações que o atravessam e constituem, desde o trabalho das estagiárias até a sua publicação póstuma por Mosé. A organizadora da obra, como exponho, suprimiu as falas das estagiárias, apresentando apenas as respostas de Do Patrocínio em forma versificada, introduzindo seu falatório na poesia brasileira contemporânea. Neste trabalho, discuto ainda as questões de inclusão, mediação e representação em diferentes espaços institucionais – hospício e literatura – valendo-me de bibliografias que discutem luta antimanicomial, literatura brasileira e debates sociais com a perspectiva pós-colonial. Desse modo, procuro perceber como a inclusão, tanto pela abertura manicomial, quanto pela instituição literária, pode gerar outros operadores de exclusão e diferenciação, tanto discursiva quanto materialmente.

Palavras-chave. Stella do Patrocínio. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Literatura e Política. Luta antimanicomial e arte. Inclusão e Exclusão. Mediação e Representação.

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This master’s thesis on Theory and History of Literature investigates the institutional records that have mediated Stella do Patrocínio’s falatório3, since her first committal, in 1962 with 21 years old in the D. Pedro II Asylum, until her death, in 1992, in the then mental institution Colônia Juliano Moreira. As so-called by the author herself, falatório was her enunciation practice, recorded by the institution’s Arts and Psychology interns, Carla Guagliardi and Mônica Ribeiro de Souza respectively, between 1986 and 1991. The content of these recordings, of intermittent nature, were conversations between Stella do Patrocínio and the interns, her interlocutors. This material was edited for a posthumous book, organized by Viviane Mosé and titled Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2001). Thus, Stella do Patrocínio was named a Brazilian poet and embedded into Brazilian literature. In this dissertation, I draw attention to how these conversations recordings became possible due to structural and organizational changes in Colônia Juliano Moreira, provided by the Brazilian anti-asylum movement, in the 1980’s, with mental institution overture prerogative. I defend, still in this study, in this context, that the writer’s book should be studied taking into consideration all the mediations that go through and constitute it, from the interns’ work to its posthumous publication by Mosé. The work’s organizer, as I display, suppressed the interns’ speaking parts, presenting only cut-out parts of Do Patrocínio’s answers in the form of verses, introducing, therefore, her falatório into contemporary Brazilian poetry. In this paper, I further discuss the issues about inclusion, mediation and representation in different institutional spaces – asylum and literature – resorting to bibliographies that discuss the anti-asylum movement, Brazilian literature and social debates with decolonial perspectives. Thereby, I try to perceive how the inclusion, both through the mental institution overture and literature, can create other operators of exclusion and differentiation, both discursively and materially.

Key Words: Stella do Patrocínio. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Literature and Politics. Anti-asylum movement and art. Inclusion and Exclusion. Mediation and Representation.

3 Falatório: chattering.

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Esta tesis de maestría en Teoría e Historia de la Literatura investiga los procesos institucionales que mediaron el falatorio de Stella do Patrocínio, desde su primera hospitalización, en 1962 a los 21 años en el Hospicio D. Pedro II, hasta su muerte, en 1992, en la entonces Colonia Juliano Moreira. Así denominado por la propia autora, falatorio fue su práctica de enunciación, grabada por pasantes de arte y psicología de la Colonia, respectivamente Carla Guagliardi y Mônica Ribeiro de Souza, entre 1986 y 1991. El contenido de estas grabaciones, de carácter intermitente, eran conversaciones entre Stella do Patrocínio y las pasantes, sus interlocutoras. Ese material fue editado para la publicación de un libro póstumo, organizado por Viviane Mosé y titulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Río de Janeiro: editorial Azougue, 2001). Así, Stella do Patrocínio fue nombrada poeta brasileña e insertada en la literatura brasileña. En esta disertación, muestro cómo las grabaciones de estas conversaciones fueron posibles gracias a los câmbios estructurales y organizativos de la Colonia Juliano Moreira, provocados por la lucha antimanicomial brasileña, en la década de 1980, con la prerrogativa de la apertura de los manicomios. También defiendo, en este estudio, en ese contexto, que el libro de la escritora debe ser estudiado teniendo en cuenta todas las mediaciones que lo atraviesan y lo constituyen, desde el trabajo de los internos hasta su publicación póstuma por Mosé. La organizadora del trabajo, como explico, suprimió las palabras de los pasantes, presentando solo recortes de las respuestas de Do Patrocínio en forma versificada, introduciendo así su discurso en la poesía brasileña contemporánea. En este trabajo, también discuto los temas de inclusión, mediación y representación en diferentes espacios institucionales - hospicio y literatura - a partir de bibliografías que discuten la lucha antimanicomial, la literatura brasileña y los debates sociales com una perspectiva decolonial. De esta manera, busco también entender cómo la inclusión, tanto a través de la apertura de los manicomios como de la institución literaria, puede generar otros operadores de exclusión y diferenciación, tanto discursiva como materialmente.

Palabras clave. Stella do Patrocinio. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Literatura y Política. Lucha antimanicomial y arte. Inclusión y Exclusión. Mediación y Representación.

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Figura 1. Excerto de Stella do Patrocínio, publicado pelo Projeto Amálgamas. Setembro de 2013. ... 16 Figura 2. Capa de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2001). ... 18 Figura 3. Ficha de internação do Centro Psiquiátrico Nacional – Hospital Pedro II. (Fonte: ZARA, 2014). ... 33 Figura 4. Stella do Patrocínio aos 21 anos. Ampliação da foto na Ficha de internação do Centro Psiquiátrico Nacional – Hospital Pedro II, presente no trabalho de ZARA, 2014. (Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias). ... 34 Figura 5. Ficha de internação de Stella do Patrocínio na Colônia Juliano Moreira. (Fonte: ZARA, 2014). ... 36 Figura 6. Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. Entrada pela Estrada Rodrigues Caldas, Jacarepaguá/RJ, 2018. Na inscrição à direita constam os dizeres, em latim: Praxis omnia vincit. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. ... 40 Figura 7. Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira atualmente. Fonte: Prefeitura, Secretaria Municipal de Cultura e Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Legendas editadas para este trabalho. ... 44 Figura 8. Cândido Portinari, ilustração em nanquim para O alienista (Machado de Assis). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, p. 49. ... 45 Figura 9. Charge de Carlos Latuff, 2015. ... 69 Figura 10. Entrada do Polo experimental “Gaia”, Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. ... 82 Figura 11. Espaço interno do Polo experimental “Gaia”, Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. Nessa fotografia, há prioritariamente produções de Arlindo Oliveira da Silva e de Leonardo Lobão. ... 82 Figura 12. Uma das obras do artista Raimundo Camillo, que estão na galeria Christian Berst, em Paris Foto: Divulgação. Fonte: O Globo. ... 83 Figura 13. Raimundo Camillo. Fonte: Galeria Christian Berst. ... 85 Figura 14. Antônio Pedro Bragança, sem data, sem título. Museu Bispo do Rosário. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias... 87 Figura 15. Antônio Pedro Bragança, sem nome, 1960. Museu Bispo do Rosário. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. ... 89 Figura 16. Leonardo Lobão, sem título, sem data. Museu Bispo do Rosário. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. ... 90 Figura 17. Bispo do Rosário vestindo seu manto. Foto: Walter Firmo. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural. ... 91 Figura 18. Bispo do Rosário em sua "cama-nave" ou “cama Romeu e Julieta”. Fonte: BORGES, 2010, p. 99 apud HIDALGO, 1996, p. 82. ... 92 Figura 19. Cela-forte do Pavilhão 10 do Núcleo Ulisses Viana. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. ... 93 Figura 20. Entrada do Núcleo Teixeira Brandão, CJM, Jacarepaguá/RJ, 2018. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. ... 96 Figura 21. Praça do Núcleo Teixeira Brandão, CJM, Jacarepaguá/RJ, 2018. Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias. ... 97 Figura 22. Stella do Patrocínio. Registro realizado durante o Projeto de Livre Criação Artística. Fonte: Biblioteca “Stela do Patrocínio” – IMASJM. ... 105

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... 109 Figura 25. Página do caderno de desenhos de Stella do Patrocínio, entregue por Ribeiro de Souza em 20 de jan. de 1990. Fonte: acervo de Mônica Ribeiro de Souza. ... 120 Figura 26. Capa de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, feita pela artista plástica Carla Guagliardi. ... 128 Figura 27. Cronologia. In: Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (MOSÉ, 2001, pp. 79-80). ... 132 Figura 28. Paciente do Núcleo Teixeira Brandão em entrevista para o documentário “Stultifera Navis” (1987). ... 146 Figura 29. Capa da primeira edição de Quarto de despejo, de autoria de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960 por Audálio Dantas via editora Francisco Alves. ... 156 Figura 30. As escritoras Clarice Lispector e Carolina de Jesus durante o lançamento do livro de Lispector. (Foto: Acervo de divulgação/ Editora Rocco). ... 158 Figura 31. Reportagem “Carolina, vítima ou louca?” 01/12/1976. Folha de São Paulo. ... 160 Figura 32. Registro de óbito de Stella do Patrocínio. Fonte: Family Search. Óbitos (Sucursal Jacarepaguá) vol. 160 (pag. 100) - 166 e 2/1 - 2/10 (pág. 70) (Jul.) 1992 - (Jul.) 1993. ... 178 Figura 33. Stella do Patrocínio, s/d, Rio de Janeiro. Fonte: acervo pessoal de seu sobrinho... 181 Figura 34. Certidão de nascimento de Germiniano do Patrocínio, irmão de Stella. Disponível em: SIAN, Arquivo Nacional. Livros de Nascimento. Base de dados: N4.FMA.LTN.109/f.044. ... 184 Figura 35. Certidão de nascimento de Olívia do Patrocínio, irmã de Stella. Disponível em: SIAN, Arquivo Nacional. Livros de Nascimento. Base de dados: N4.FMA.LTN.137/f.089. ... 185 Figura 36. Certidão de nascimento de Carlos Chagas do Patrocínio, irmão de Stella. Disponível em: SIAN, Arquivo Nacional. Livros de Nascimento. Base de dados: N3.IRJ.LTN.099/f.029. ... 186 Figura 37. Certidão de nascimento de Antonio do Patrocínio, irmão de Stella. Disponível em: SIAN, Arquivo Nacional. Livros de Nascimento. Base de dados: 65.FSC.LTN.096/f.173. ... 187 Figura 38. Registro de óbito de Antônio do Patrocínio, irmão de Stella, aos sete meses de idade. Fonte: Family Search. ... 189 Figura 39. Certidão de óbito de Guilhermina Francisca Xavier, avó materna de Stella, aos 03/10/1948. Fonte: base de dados do Family Search: Óbitos vol. F20-F30 (pag. 200) 1947 - (Nov.) 1950. ... 193 Figura 40. Stella do Patrocínio e Zilda Francisca do Patrocínio, s/d. Colônia Juliano Moreira. Fonte: acervo pessoal de seu sobrinho. ... 195 Figura 41. Stella do Patrocínio, s/d. Colônia Juliano Moreira. Fonte: acervo pessoal de seu sobrinho. ... 196

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APA: American Psychiatric Association ABP: Associação Brasileira de Psiquiatria CAPS: Centro de Atenção Psicossocial CID: Código Internacional de Doenças CJM: Colônia Juliano Moreira

CNRC Centro Nacional de Referência Cultural CPPII: Centro Psiquiátrico Pedro II

CRAS: Centro de Referência de Assistência Social CRIS: Centro de Integração Social

DINSAN: Divisão Nacional de Saúde Mental

DSM: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders FUNABEM: Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor

IMSJM: Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira INEPAC: Instituto Estadual de Patrimônio Cultural

MS: Ministério da Saúde

MTSM: Movimento de trabalhadores em Saúde Mental NTB: Núcleo Teixeira Brandão

OMS: Organização Mundial de Saúde

SAME: Seção de Arquivo Médico e Estatístico SIAN: Sistema de Informações do Arquivo Nacional SUS: Sistema Único de Saúde

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INTRODUÇÃO ... 16

PARTE I ... 30

1. “NINGUÉM QUER SER COADJUVANTE DE NINGUÉM”: LUTA ANTIMANICOMIAL E REFORMAS DA COLÔNIA ... 31

1.1. Colônia Juliano Moreira: o “fim de linha” dos pacientes “irrecuperáveis” torna-se palco da reforma psiquiátrica brasileira --- 36

1.2. Os “Grupos de Escuta”, canais de comunicação criados para horizontalizar as relações entre pacientes e funcionários --- 50

1.3. Os “Grupos de Trabalho” e os “Sensos”, questionários sociais e clínicos visando a ressocialização de pacientes --- 55

1.4. Contribuições de Stella do Patrocínio e usuários de saúde para discussões sobre raça, gênero e classe na luta antimanicomial brasileira --- 71

2. “QUEM VENCE O BELO É O BELO”: REFLEXÕES SOBRE O LUGAR DA LOUCURA NAS CONCEPÇÕES ARTÍSTICAS ... 81

2.1. Arte produzida na Colônia Juliano Moreira --- 81

2.2. O falatório, o Projeto de Livre Criação Artística e uma nova forma de mediação--- 95

2.3. Mônica Ribeiro de Souza, a busca por informações sobre Do Patrocínio e a produção de VERSOS, REVERSOS, PENSAMENTOS e algo mais... (1991)--- 113

PARTE II... 124

3. “PODE PARAR COM ESSA IDEIA DE REPRESENTAÇÃO”: VIVIANE MOSÉ E A PUBLICAÇÃO DE REINO DOS BICHOS E DOS ANIMAIS É O MEU NOME (2001) ... 124

3.1. Aproximações entre as instituições manicomial e literária --- 125

3.2. Alguma dissonância entre Reino dos bichos e dos animais é o meu nome e a luta antimanicomial brasileira --- 139

3.3. Breves aproximações entre Do Patrocínio e De Jesus / Mosé e Dantas --- 151

4. “QUEM VENCE O NORMAL É OUTRO NORMAL”: FORTUNA CRÍTICA DE STELLA DO PATROCÍNIO ... 162

4.1. Recepções acadêmicas --- 165

5. “O AVESSO DO MESMO LUGAR”: NOVOS DADOS E INFORMAÇÕES SOBRE STELLA DO PATROCÍNIO ... 177

5.1. Resultados de campo --- 179

À GUISA DE CONCLUSÃO... 197

BIBLIOGRAFIA ... 201

LISTA DE ANEXOS ... 211

ANEXO 1. TEIXEIRA, Julius Martins. “Museu Nise da Silveira”. Colina Opinião, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17 nov. 1997. --- 211

ANEXO 2. Capa e Introdução do Relatório de Conclusão de Estágio de Mônica Ribeiro de Souza para o levantamento biográfico das artistas do Museu do Paço Imperial --- 212

ANEXO 3. Primeiras páginas de VERSOS, REVERSOS, PENSAMENTOS e algo mais..., de Mônica Ribeiro de Souza --- 215

ANEXO 4. “A veia poética da interna Stella do Patrocínio”. Matéria de jornal sem assinatura, sem data, recortada por Mônica Ribeiro de Souza. Rio de Janeiro, 1º de ago. de 1991. --- 220

ANEXO 5. Caderno de desenho de Stella do Patrocínio, entregue por Mônica Ribeiro de Souza em 20 de jan. de 1991. --- 221 ANEXO 6. Comparação entre Reino dos bichos e dos animais é o meu nome e os materiais de

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Municipal de Saúde (SMS – Rio de Janeiro) --- 349 Anexo 8. Parecer consubstanciado (Aprovação) do Comitê de ética em pesquisa – Ciências Humanas e Sociais – UNICAMP --- 356

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INTRODUÇÃO

Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo têm o mesmo valor que a benzedeira do bairro.

– Criolo4

Esta dissertação de mestrado debruça-se sobre vida e obra de Stella do Patrocínio, mulher negra que teve a vida atravessada inteiramente por internações manicomiais, de tal modo que chegou a declarar estar cumprindo prisão perpétua em um presídio de mulheres. Hoje, ela é considerada poeta, mas até que sua publicação póstuma fosse lançada pelo mercado editorial, uma série de acontecimentos mediou sua existência e construiu narrativas a seu respeito. É sobre essas trajetórias e narrativas que este trabalho discorre, colocando como foco os movimentos institucionais que marcaram sua existência, e constituindo-os como objeto de estudo para explicar de que modo a construção da personagem Stella se consolidou na criação da figura de uma poeta. Assim, o trabalho não trata sobre Stella no sentido de tentar definir uma identidade, mas por que foi inserida na instituição literária, como isso se deu e quais os efeitos dessa publicação.

Como este trabalho reflete trajetórias, opto, então, por iniciar esta introdução contando de que forma o meu percurso como pesquisadora de Stella do Patrocínio se consolidou, e por quais motivos e critérios fui formulando uma metodologia específica para lidar com a história de alguém cuja vida foi atravessada por internações manicomiais e construções narrativas. Meu primeiro contato com a poeta foi propiciado por um amigo, também colega de curso, que atuava em um Projeto de divulgação literária pela internet. Estávamos fazendo graduação em Letras na UNESP – campus Araraquara/SP, quando o Thiago Cestari publicou um trecho do falatório de Stella do Patrocínio:

Figura 1. Excerto de Stella do Patrocínio, publicado

pelo Projeto Amálgamas. Setembro de 2013.

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Logo que me deparei com essa publicação, procurei por “Stela”5 do Patrocínio nos dispositivos de pesquisa da internet. Vi seu rosto e o rosto de mais algumas mulheres associadas a ela por diferentes motivos. Por exemplo: Georgette Fadel, atriz branca, e Estamira, que morou em um aterro sanitário por mais de duas décadas no Rio de Janeiro, ganhando destaque devido ao lançamento de um filme sobre sua vida. Claro que achei aquilo sem pé nem cabeça. Eram associações que não faziam sentido, e então encontrei um link para adquirir o PDF do livro que reunia aqueles versos, intitulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Naquele momento descobri que Stella do Patrocínio não era a autora da obra, mas do seu conteúdo. O livro havia sido transcrito, selecionado e organizado por Viviane Mosé, constituindo um lançamento póstumo. Ele está esgotado em todas as livrarias. É possível, contudo, encontrá-lo à venda na Estante Virtual6, por R$ 230,00.

Ao abrir o documento em PDF, meu primeiro arroubo foi responder à pergunta “quem é essa autora?”. Minha curiosidade não era teórica, naquele momento, mas partia exclusivamente de minha bisbilhotice como leitora de textos literários, principalmente de poesia. No entanto, quando li a apresentação de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, escrita por Viviane Mosé, percebi que as informações sobre Stella do Patrocínio eram bastante lacunares e, por vezes, até controversas. A própria Viviane Mosé chega a declarar que quase nada se sabe a seu respeito. No livro, uma única fotografia expunha metade de seu rosto, logo na capa, empunhando uma lata de alumínio para que a fala ecoasse. O seu nome também vem pela metade:

5 O nome de Stella do Patrocínio é grafado, majoritariamente, com apenas um “l”, mas durante minha pesquisa de campo,

cuja trajetória narro ao longo deste trabalho, confirmei a grafia do seu nome, com dois “l”, através da consulta de seu R.G, no Detran/RJ.

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Figura 2. Capa de Reino dos bichos e dos animais é o

meu nome (Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2001).

“Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”, em vermelho, ocupa o espaço central da capa. Bichos e animais, um título. A foto é de uma mulher negra. Uma série de questionamentos ocuparam e buscaram preencher aqueles espaços e lacunas de informação, à medida que eu lia a obra e, sincronicamente, procurava outras fontes de informação a respeito da autora.

A data de nascimento, aquela de morte e sua filiação constituíam os únicos dados informados sobre sua vida, de fato. Os outros elementos relativos à sua identidade, que incluíam a compreensão de Stella como poeta, estavam diretamente associados à sua condição de internação – desde seus 21 anos, em 1962, até sua morte, em 1992 – ou eram formulados a partir de aspectos de diferenciação – sobre seu corpo ou sobre seu discurso. Ambos estetizados. Por exemplo: ao mesmo tempo que Mosé informa o leitor de Stella que ela já não tinha “nenhum dente na boca” aos 45 anos, a filósofa também diz que a autora se portava como uma rainha, pintando suas mãos e seu rosto de branco e se enrolando em um cobertor, como se o fizesse de manto. O “porte de rainha”, tornando-a figura notável, junto às declarações de Mosé sobre o destaque do seu falatório, em comparação à fala dos outros pacientes manicomiais, acabam por funcionar conjuntamente para a apresentação de uma

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interna que, no momento da publicação de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, foi nomeada poeta.

Desse modo, percebi que a construção da figura de Stella do Patrocínio, como poeta, alinhava-se à ideia de que ela era um sujeito psiquiatrizado, uma paciente manicomial, com diagnóstico de “esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas”. Sem contar que a nomeação de Stella do Patrocínio como poeta foi realizada depois de sua morte, aos 51 anos, no hospital psiquiátrico de Jacarepaguá/RJ.

Eu estava diante de um livro que nasceu sem a agência de sua autora. Mas não somente: o conteúdo do livro foi transcrito de gravações, em áudio, das enunciações de Do Patrocínio, por iniciativa de estagiárias que atuaram no hospício. Não era Stella quem empunhava o gravador, como o faz com a lata de alumínio expressa na capa, mas suas interlocutoras, das quais tratarei neste trabalho. As gravações têm caráter de conversa, entre Stella e essas mulheres, nos anos 1980 e início de 1990. Na ocasião, Do Patrocínio estava institucionalizada há mais de 25 anos. Ou seja, aquele texto tinha partido, na realidade, de uma outra materialidade, a oralidade, e a dinâmica das conversas, a fluidez dos temas – ou a ausência de fluidez – não são captadas pelo texto escrito e pela organização de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome.

Stella do Patrocínio não se sentava em uma cadeira diante de alguma mesa, com papel e caneta ou máquina de datilografar, com a finalidade de produzir poesia ou qualquer outro gênero literário. Stella nem mesmo gozava de liberdade para transitar pelas ruas e praias do Rio de Janeiro, não saía com amigos, não tinha uma rotina – ainda que cansativa – de trabalho, não frequentava saraus literários ou eventos sobre arte. Stella não teve uma biblioteca em casa. Stella viveu 30 anos sem ter casa. Nem convívio com a família. O que foi destinado involuntariamente a Stella foi o aprisionamento manicomial, o diagnóstico de “esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas”, os psicotrópicos, por algumas décadas também os eletrochoques, os quartos cheios de outras mulheres psiquiatrizadas, a maioria negra, como ela, e também pobre, vivendo há décadas em confinamento e sem privacidade ou sequer direito a visitas íntimas. Morreu como indigente e sem direito a túmulo ou gaveta no cemitério para o qual seu corpo foi destinado, em Inhaúma. Não há restos mortais. Se “todo camburão tem um pouco de navio negreiro7”, é certo que todo manicômio tem um pouco de cativeiro.

Diante de tanta diferença material entre Stella e o que habitualmente visualizamos nas

7 O RAPPA. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. In: “Navio negreiro”, Warner Music Brazil Ltda., 1994.

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vidas e rotinas de escritores, como, então, foram pensadas as disposições em versos? As introduções temáticas eram ou não realizadas autonomamente pela poeta? Poderia ser o caso de serem mediadas pelas interlocutoras? Alguma resposta há no livro, no capítulo intitulado “Stela por Stela”, que encerra a obra. Ali, notei outro fato um tanto incomum quando pensamos em autoria de poesia ou de textos de outros gêneros, sejam eles literários, críticos, teóricos ou afins. Sim, eram esquemas de conversa, mas que em muito me fez recordar de entrevistas jornalísticas. Não se tratou exatamente de Stella se autorreferenciar ou ter autonomia discursiva. Deixo um exemplo sequencial retirado diretamente do livro e respeitando sua formatação:

Você passa muito mal aqui?

Passo mal porque eu tomo constantemente injeções

Injeções para homem e o líquido desce

Quem é que te dá essas injeções?

O invisível polícia secreta o sem cor

E pra que servem essas injeções?

Pra forçar a ser doente mental

No dia que você parar essas injeções você fica curada?

Fico completamente curada se eu não tomar remédio

Não tomar injeção não tomar eletrochoque Eu não fico carregada de veneno

Envenenada

Você toma eletrochoque?

Eu tomei no pronto socorro do Rio de Janeiro e continuo tomando aqui

E quem dá eletrochoque aqui?

Os que trabalham com a falange falanginha falangeta

Os que trabalham com a voz ativa média e reflexiva

Refletindo bem no que está falando

O que você estudou, Stela?

Estudei em livro Linguagens

Comment allez vous?

Como você está? thank you very much O tanque da vera tá cheio de mate Ça va bien, a Sra. vai bem? (MOSÉ, 2001, pp. 149-150).

Viviane Mosé optou por transcrever as perguntas endereçadas a Do Patrocínio com grifo, ao passo que as respostas de Stella não estão realçadas. O capítulo “Stela por Stela” é o único que mostra as intermediações de sua interlocutora, estabelecendo uma sequência de questionamentos sobre a vida daquela que, dentro do manicômio, era paciente, não funcionária. Uma hierarquia estruturalmente estabelecida regia as temáticas e o andamento das conversas, ainda que não

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intencionalmente8. A troca abrupta de tema também. “O que você estudou, Stela?” é um exemplo da cisão temática expressa na citação. A interlocutora de Stella do Patrocínio nas gravações de áudio era Carla Guagliardi, quem teve a ideia de carregar um gravador consigo porque viu, naquela enunciação, um valor, uma beleza incomum. E acabou que Guagliardi não apenas aparece como interlocutora de Stella, como também, muitas vezes, nos leva a pensar em uma produção realizada em coautoria.

Entretanto, os prontuários médicos, o livro, a fortuna crítica e inclusive os dados fornecidos por Stella do Patrocínio durante as primeiras conversas gravadas quase nada refletem a respeito dessa vida pessoal anterior à internação, ou mesmo aquela contemporânea das gravações, no sentido da tessitura de uma biografia. Quem demonstrou tentar encontrar parentes vivos de Stella e levantar dados biográficos foi outra estagiária, em 1991, mas de psicologia. Mônica Ribeiro de Souza também foi figura importante para a consolidação do livro de poemas, pois foi a primeira pessoa a transcrever o falatório de Stella em formato versificado, e a primeira pessoa que buscou preencher as lacunas da biografia da interna, tentando localizar seus parentes vivos, sem sucesso.

Ademais, a maioria dos trabalhos a seu respeito utiliza um recurso que parece pretender suprir a carência dos dados: a introdução de elementos secundários, como o fato de Stella do Patrocínio gostar de óculos escuros, coca-cola, maço de cigarros, leite condensado, caixas de fósforos ou ainda o de ter tido a perna amputada, pouco antes de morrer, devido à hiperglicemia grave. Mas quem, afinal, foi Stella do Patrocínio?

De fato, só em 2016 – ocasião em que deveria fazer pesquisa acadêmica para obter o título de bacharel em Letras na UNESP – comecei a pesquisar Stella do Patrocínio e sua obra póstuma, intitulada Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2001). Ao conversar com o Prof. Dr. Alcides Cardoso dos Santos, à época o professor que escolhi para me orientar na monografia, meu primeiro intuito era comparar Stella do Patrocínio com outra paciente manicomial que se inseriu no nosso mercado editorial como escritora brasileira. Era Maura Lopes Cançado, natural de Minas Gerais, formada em jornalismo, branca, de família abastada economicamente, descendente de senhores de escravizados. Maura e Stella podem ter algo em comum se pensarmos que ambas estavam em situação de internação manicomial nos anos 1960 no Rio de Janeiro e que são recebidas pela crítica como escritoras brasileiras. Entretanto, entre elas há tantas diferenças que não seria possível pontuar no espaço desta introdução: são distanciadas racialmente, pela classe, pelo tipo de internação que tiveram – Maura internou-se voluntariamente,

8 Aliás, este trabalho não reflete intencionalidades, mas efeitos. Muitas personagens envolvidas nessa trama que produziu

Stella do Patrocínio como a conhecemos nutriram carinho em seus contatos com a autora e ainda recordam-se dela com admiração.

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chegando a escrever em Hospício é Deus9: “Ninguém entendeu esta internação a não ser eu mesma:

necessitava desesperadamente de amor e proteção… o sanatório parecia-me romântico e belo. Havia um certo mistério que me atraía.” (CANÇADO, 1991, p. 47). Distantes, ainda, do que herdaram de um passado escravocrata e do modo como enxergam o manicômio. Cito um trecho do falatório que revela a óptica de Stella do Patrocínio sobre a internação e o hospício:

Eu estava com saúde Adoeci

Eu não ia adoecer sozinha não Mas eu estava com saúde Estava com muita saúde Me adoeceram

Me internaram no hospital E me deixaram internada

E agora eu vivo no hospital como doente O hospital parece uma casa

O hospital é um hospital (MOSÉ, 2001, p. 51).

Ao ler a fortuna crítica de Stella do Patrocínio, percebi que havia estudos comparativos entre ela e Cançado. Porém, devido ao curto tempo em que deveria concluir a escrita, vi-me diante de um impasse e decidi afunilar meu tema de pesquisa, centrando a monografia no estudo do Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Sem ainda fazer nenhuma pesquisa de campo ou me aprofundar nas questões que já haviam surgido, sobre as quais me referi ainda há pouco, produzi um artigo como monografia, intitulado “Stela do Patrocínio: mulher, negra e louca10”. Porém, alguns meses depois de receber a avaliação da banca, e só nesse momento, percebi que as lacunas, as controvérsias e alguma essencialização perigosa nos atributos “mulher”, “negra” e “louca” estavam presentes no meu trabalho de conclusão de curso. Não apenas nele, mas em muitos artigos, dissertações e teses a respeito de Stella do Patrocínio e de sua obra. Se, por um lado, as categorias que formulavam sua identidade são, de fato, essas, por outro, elas não dão conta de responder à pergunta “quem?”.

Nesse contexto, comecei a pensar nos efeitos materiais daquelas narrativas e perspectivas epistemológicas. Obviamente, não sem ajuda de aparatos teóricos e de amigos e colegas de pesquisa e militância política – ainda que isso não apareça de maneira muito evidente ao longo deste trabalho, devo informá-lo nesta introdução. Pensar a experiência, os campos do visível e do invisível, as

9 CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. São Paulo: Círculo do Livro S.A, 1991.

10 Esse trabalho não foi enviado para publicação na biblioteca da UNESP, de modo que não se encontra disponível para

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disputas discursivas e as diferentes perspectivas de debates sociais e políticos me foi imprescindível, não apenas para que eu lidasse com meu trabalho de outra maneira, mas para que eu pudesse, de fato, refletir a respeito dos processos pelos quais a autora passou até que recebesse essa denominação: “louca”. E então, sim, perceber como “negra”, “mulher”, e ainda “pobre” influenciaram a trajetória de Stella do Patrocínio em um contexto racista, sexista e classista. Isto desde a internação involuntária, aos 21 anos, até a sua inserção no mercado editorial como poeta brasileira e a constituição de sua recepção crítica. Essas categorias citadas também estão – como defendo nesta dissertação – diretamente associadas às narrativas que construíram a personagem da poeta Stella, e talvez tudo o que ela e essa personagem tenham, realmente, em comum, seja o fato de ambas serem mulheres, negras, pobres, com diagnóstico de esquizofrenia – desde os 21 anos até a morte, aos 51 anos, em 1992 – e de terem produzido o falatório.

Foi então no mestrado que decidi fazer uma pesquisa de campo, sob a orientação da Profa. Dra. Daniela Birman, agora na UNICAMP, em 2017. Depois de cumprir as disciplinas obrigatórias, iniciei, em 2018, o percurso em busca de explicações daquelas perguntas, com a ajuda dos poucos elementos que o livro, Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, me forneciam como possibilidades de busca. Mosé escreveu, nos Agradecimentos, o nome de profissionais que conviveram com Stella do Patrocínio:

[...] a Carla Guagliardi, Neli Gutmacher e Mônica Ribeiro de Souza, que conheceram e reconheceram Stela, produzindo a interlocução que culminou neste livro. A Denise Correa, pessoa que, além de muitos outros trabalhos significativos na área de saúde mental, produziu estes encontros. A Pedro Silva, médico que acompanhou Stela até seus últimos momentos. A Julius Teixeira, psiquiatra do IMSJM, que brigou muito por este livro. Ao músico e artista plástico Cabelo, que me levou até Carla Guagliardi [...] E a Ricardo Aquino, diretor do Museu Bispo do Rosário, que levou este processo à sua conclusão. (MOSÉ, 2001, s/p).

As pessoas citadas nos Agradecimentos foram as interlocutoras que gravaram o falatório de Stella do Patrocínio (Carla Guagliardi e Mônica Ribeiro de Souza), a psicóloga que dirigia o Núcleo Teixeira Brandão (Denise Correa), os médicos psiquiatras que trabalharam nesse Núcleo com Stella (Pedro Silva, Julius Teixeira). Eles poderiam me fornecer informações a respeito dela, do ambiente manicomial e dos parâmetros utilizados tanto em seu diagnóstico quanto no tratamento psiquiátrico. Outro caminho que percorri foi o do próprio discurso de Stella do Patrocínio, registrado inicialmente em áudio por Carla Guagliardi, de 1986 a 1988, quando era estagiária de artes no manicômio. Carla foi a primeira pessoa com quem estabeleci contato para a realização desta pesquisa, e logo nos primeiros encontros eu solicitei as suas gravações. Com a possibilidade de ouvir Stella do

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Patrocínio em formato .mp3, junto às outras informações colhidas nas entrevistas com aqueles profissionais cujos nomes estavam nos Agradecimentos, pude encontrar, finalmente, um dos sobrinhos11 de Stella do Patrocínio.

Ou seja, pensando naqueles problemas que eu mesma havia reificado na escrita da monografia, percebi que deveria alterar minhas perspectivas metodológicas, teórico-práticas e teóricas. Desse modo, não mais queria responder à pergunta “quem”, pois aquela ficou retida na curiosidade de uma leitora que havia acabado de descobrir um fragmento literário impactante. Depois dos resultados aqui obtidos, seria desonestidade, como pesquisadora, tentar responder à pergunta quem foi Stella, pois o que foi feito a seu respeito nos estudos literários foi, até agora,

[...] um exercício de história da memória; memória aqui entendida como fenômeno coletivo cuja consolidação e perpetuação não deriva automaticamente da existência e permanência de uma “comunidade afetiva”, mas da participação ativa de atores sociais que – através de estratégias, suportes e construções narrativas variadas – intervêm no processo de constituição e formalização das recordações. (SCHMIDT, 2009, p. 156)12.

Devido aos impasses ocasionados pelos mais de 20 anos desde sua morte e a absoluta fragilidade dos elementos que constituem as narrativas a seu respeito, tive de tentar entender a construção dessas narrativas. As perguntas que esforcei-me para responder, então, foram mais ou menos desdobramentos de “como” essa personagem de Stella do Patrocínio foi se constituindo. Nesse contexto, busquei entender: (1) o ambiente manicomial, os parâmetros de diagnósticos e de internação e o contexto sócio-político das gravações, que só puderam ocorrer devido a transformações institucionais impulsionadas pela Luta Antimanicomial, nos anos 1980; (2) os motivos pelos quais essa fala foi gravada; (3) como Viviane Mosé conheceu o falatório de Stella do Patrocínio e por que optou por publicá-lo como poesia; (4) quais foram os critérios éticos, estéticos, literários e políticos empregados pela fortuna crítica de Stella do Patrocínio para considerá-la ou não uma poeta.

Ao procurar responder a estas questões, levantei e examinei o seguinte material: (1) o prontuário médico-clínico de Stella do Patrocínio (prontuário n. 00694), disponível nos arquivos do atual Instituto Municipal de Assistência à Saúde “Juliano Moreira”; (2) entrevistas com os profissionais de arte e de saúde que atuaram e/ou atuam no Núcleo Teixeira Brandão, onde Stella do Patrocínio passou 26 dos 51 anos de sua vida13; (3) a conversa com um dos sobrinhos da autora; (4)

11 Mantenho sua identidade em sigilo por razões éticas.

12 SCHMIDT, Benito Bisso; GOMES, Ângela (orgs.). Memórias e narrativas autobiográficas. Rio de Janeiro: Editora

FGV; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

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o falatório de Stella do Patrocínio, por meio da escuta do que consegui recuperar das gravações e das suas transcrições; (5) o livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome; (6) jornais da época que trataram da publicação da obra; (7) a recepção acadêmico-crítica sobre a autora.

Antes de apresentar os temas tratados em cada capítulo da dissertação, considero importante destacar um ponto crucial deste estudo: eu não apenas defendo, mas busco mostrar ao longo do trabalho, como o discurso de Stella do Patrocínio contrasta com aquele impresso nas folhas dos arquivos médicos, e como esse discurso clínico reaparece não apenas na apresentação e escolhas de edição do livro, mas nos argumentos e na construção da imagem da autora apresentados na fortuna crítica.

Desse modo, busco expor como o discurso de Stella do Patrocínio foi inserido na poesia brasileira sem uma leitura e uma escuta rigorosa da autora. Pois, se o subalterno não pode falar, como conclui Spivak14, não é por uma mudez, mas pela ausência de escuta. Não me proponho aqui, contudo, a recuperar o que seria a fala original de Stella, seu sentido verdadeiro, mas inverter o foco do meu estudo, dirigido sobretudo aos movimentos e discursos institucionais da literatura e do manicômio.

Faço com que o meu trabalho seja uma investigação que evidencia as narrativas construídas a respeito de Stella, dirigindo perguntas a esses discursos com base nas argumentações, reflexões e informações fornecidas por Stella em seu falatório sobre sua internação e sobre sua prática de enunciação, valendo-me dos materiais levantados, ou seja, aquilo que foi gravado e transcrito pelas estagiárias. Segundo Joan Scott15,

Tornar visível a experiência de um grupo diferente expõe a existência de mecanismos repressivos, mas não sua lógica ou seus funcionamentos internos; sabemos que a diferença existe, mas não a entendemos como constituída em relação mútua. Por isso precisamos nos referir aos processos históricos que, através do discurso, posicionam sujeitos e apresentam suas experiências. Não são indivíduos

que têm experiência, mas sim os sujeitos que são constituídos pela experiência. Experiência nesta definição torna-se, então, não a origem de nossa explanação, não a evidência legitimadora (porque vista ou sentida) que fundamente o que é conhecido, mas sim o que procuramos explicar, sobre o que o conhecimento é apresentado. Pensar sobre a experiência desse modo é historicizá-la, bem como historicizar as identidades que ela produz. Esse tipo de historicização representa

uma resposta aos muitos historiadores contemporâneos que argumentaram que uma “experiência” desproblematizada é fundamento de suas práticas; é uma historicização que implica exame crítico de todas as categorias explicativas tomadas normalmente como óbvias. (SCOTT, 1998, p. 304 [grifos meus]).

para a CJM. Sendo assim, a autora ficou 26 dos 30 anos de internação na CJM.

14 SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Minas Gerais: editora UFMG, 2010.

15 SCOTT, Joan. A invisibilidade da experiência. Tradução: Lúcia Haddad; Revisão Técnica: Marina Maluf. Proj.

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Apesar de inverter o foco do estudo, tenho ciência de que eu também estou envolvida na trama que tece ou desfia narrativas a respeito de Stella do Patrocínio. Sei que me é impossível escapar de ser mais uma a contar a história de Stella, mesmo com os cuidados aqui expressos. Pois, vasculhar as produções discursivas sobre ela também é, grosso modo, averiguar como esse sujeito foi formulado, reiterando, propondo desconstruções ou reconstruções. Dessa forma, eu também me insiro no campo de disputas e batalhas narrativas, tal como o descreve Anne McClintok:

[...] um texto é um evento em disputa. Ler é uma prática dinâmica que se dá no tempo e assume a forma de uma relação entre o texto e as lealdades de classe, raça, gênero de diferentes leitores; suas diferentes histórias educacionais, culturais e pessoais; e suas diferentes expectativas e hábitos de pensamento. Textos literários são eventos históricos, que diferem de outros eventos na medida em que são organizados de acordo com critérios estéticos e outros. Cada texto é desse modo uma situação em

andamento. (MCCLINTOCK, 2010, pp. 442-443).

Mas vamos à estrutura da dissertação. Organizei o trabalho da seguinte maneira: A “Parte I” reúne uma série de elementos relativos à internação de Stella e às condições que propiciaram a gravação do seu falatório, muito antes da publicação do livro organizado por Viviane Mosé. Ela é composta pelos capítulos 1 e 2.

No capítulo 1, “‘Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém’: luta antimanicomial e reformas da Colônia”, discorro sobre o ambiente manicomial e as principais medidas que propiciaram a gravação do falatório de Stella do Patrocínio, consolidadas pela Colônia Juliano Moreira em acordo com o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial brasileira, em meados dos anos 1980. As três principais medidas foram: formação de Grupos de Escuta, de Grupos de Trabalho e o Senso. Nesse capítulo, indico ainda que a luta antimanicomial esteve, desde o começo, preocupada em alinhar-se a outros movimentos sociais, como os de raça, gênero e classe, preocupação expressa desde o primeiro documento escrito com a finalidade de fechar os manicômios, a Carta de Bauru. Essa aspiração – a de discutir a loucura e os parâmetros de diagnósticos e de internação considerando categorias como as de raça e classe – não teria obtido grande êxito nas aplicações regimentais e nas medidas da CJM das quais trato.

O capítulo 2 “‘Quem vence o belo é o belo’: reflexões sobre o lugar da loucura nas concepções artísticas” tem como principal objeto a arte produzida na Colônia Juliano Moreira. Nele utilizo fotografias registradas por mim durante as visitas não apenas ao Museu Bispo do Rosário, mas também ao Ateliê Gaia, montado para a produção artística de pacientes e ex-pacientes dentro do espaço da CJM. Nesse capítulo, apresento produções artísticas de autoria de “sujeitos

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psiquiatrizados” para mostrar como o embate entre o discurso de Stella sobre si mesma e sua condição de internação e o discurso clínico não pertence à esfera pessoal, mas trata-se de um problema coletivo. O desalinhamento epistêmico entre instituição e institucionalizados é frequente e produz efeitos que merecem ser discutidos. É também nesse capítulo que passo a tratar mais diretamente do falatório, ao narrar e refletir sobre a gravação desses áudios e as suas condições de possibilidade. Inicialmente, o falatório foi gravado pela estagiária em artes plásticas Carla Guagliardi, entre 1986 e 1988, trabalho que foi retomado nos anos 1990 por outra estagiária, agora em psicologia: Mônica Ribeiro de Souza. Esta última foi a primeira pessoa a transcrever o falatório de Stella do Patrocínio e a transpô-lo em formato versificado, chegando a constituir um livro de poemas datilografado, material entregue à instituição psiquiátrica, como relatório final de estágio.

A “Parte II” trata da publicação do livro e da fortuna crítica de Stella do Patrocínio (Capítulos 3 e 4) e do levantamento de informações que realizei durante o trabalho de campo (Capítulo 5). Importante ressaltar que, se os primeiros capítulos abordam uma série de acontecimentos e discursos que se desenrolaram durante a vida de Stella, a segunda parte da dissertação reúne representações, narrativas e críticas posteriores à sua morte.

No capítulo 3, “‘Pode parar com essa ideia de representação’: Viviane Mosé e a publicação de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001)”, examino a edição e organização do livro de poesia, por Viviane Mosé e Azougue editorial em 2001. Nele, eu indago se a escassez de informações a respeito de Stella do Patrocínio foi um dos motivos pelos quais a filósofa recorreu aos prontuários médicos para explicar a vida da autora. Desse modo, reflito como a inserção de Stella do Patrocínio na instituição literária brasileira pode ter carregado problemas do próprio manicômio, inclusive aqueles de ausência de discussões identitárias16. Nesse sentido, discordo da afirmação da filósofa de que o discurso de Stella extrapolou os muros da instituição. Na realidade, esse discurso ainda está diretamente associado à psiquiatrização da personagem Stella do Patrocínio.

O capítulo 4, “Quem vence o normal é outro normal: fortuna crítica de Stella do Patrocínio” trata da recepção acadêmica da autora. Percebemos, nesse capítulo, que há a criação de diversos sujeitos Stella e que eles não dialogam com a maneira como a autora se representa. Por isso, argumentamos que a recepção crítica de Stella do Patrocínio acaba por negar o seu poder de autorrepresentação – ora porque a recepção crítica entende sua enunciação como mero delírio que

16 Aqui, refiro-me novamente às demandas identitárias de movimentos de raça, gênero e classe, percebendo que a

demarcação de identidade é, antes, uma estratégia política. Assim, valho-me do conceito de Michel Serres citado por Marcio Goldman, em Segmentaridades e Movimentos Negros nas eleições de Ilhéus (MANA 7(2):57-93, 2001), que pontua que “as ‘identidades’ são sempre o resultado do empobrecimento de um número infinito de “pertencimentos” (a uma família, a um gênero, a um país…) a que todos estamos submetidos”. (SERRES apud GOLDMAN, 2001, p. 57).

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nada comunica, ora porque o falatório não é entendido, de fato, como uma fonte de informação sobre ela.

O último, capítulo 5, “O avesso do mesmo lugar”: novos dados e informações sobre Stella do Patrocínio” insere os resultados de parte do meu trabalho de campo, que também consistiu em levantar informações sobre Do Patrocínio. Assim, documentos, fotografias e informações fornecidas por um de seus sobrinhos compõem o capítulo, que visa expandir as informações sobre ela, principalmente sobre o período anterior à sua internação manicomial – o que, infelizmente, pouco pôde ser feito.

Todos os capítulos defendem a relevância de manicômios e instituições artísticas refletirem sobre as categorias de raça, gênero e classe para pensar a internação involuntária de Stella do Patrocínio e a produção do seu falatório nas conversas com as estagiárias da Colônia.

Estou tratando diretamente de um espaço de enclausuramento da diferença, não apenas no sentido de pensar a internação permanente e fechada de Stella mas, no limite, na instituição artístico-literária que, ao inseri-la no mercado editorial brasileiro sem dar visibilidade às reflexões realizadas pela própria autora do falatório, escamoteiam algo essencial: as pessoas institucionalizadas apresentam um discurso que pode ser entendido como um contraponto ou mesmo uma negação àquelas narrativas que descrevem o hospício como um espaço de “morte do ‘eu’” ou de “despersonalização” (conceitos discutidos por Erving Goffman)17. Na realidade, há um tipo majoritário que recebe diagnósticos psiquiátricos. Há um tipo majoritário que recebeu eletrochoques até os anos 1990 como prática de punição, controle e castigo. Há um tipo predominante que perdeu os registros de suas histórias e seus laços familiares. E tudo isso está diretamente associado aos processos históricos brasileiros.

Desse modo, eu volto o olhar não às pessoas institucionalizadas, mas às instituições manicomiais e literárias, em uma tentativa de perceber que os tais muros dos asilos seguem uma continuidade de outros muros e fendas sociais, políticas e estruturais e são também geradores de outros espaços que confinam.

Esses muros não são apenas um espaço que nos priva de conviver com a loucura e com toda a carga que ela carrega, mas – e principalmente – proíbe os pacientes que estão cercados por eles, e que são privados não somente de serem vistos, mas de enxergar:

O muro é muito bonito para quem passa do lado de fora. É bem feito, bem arrumado. Mas para quem está aqui dentro é horrível. O muro não devia ser assim, deveria ter

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algumas aberturas. Este muro serve para fechar a nossa vista para o lado de fora. Nós nunca podemos ser considerados gente com um muro deste tapando nossa visão. (Octávio Ignácio, sem data. Inscrição exposta no Museu de Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro/RJ).

E não podemos perder de vista que esses muros ainda existem, tanto fisicamente, quanto simbolicamente. Seja na concepção do falatório de Stella do Patrocínio, do que foi e tem sido a reforma psiquiátrica, e inclusive de nossas maneiras de significações do falatório e de sua produção postumamente denominada poética. Por isso, é urgente que saibamos reconhecer que “Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo têm o mesmo valor que a benzedeira do bairro”. Estamos falando de patrimônios culturais, de produções e trabalhos que nos asseguram que, no limite, nossas histórias serão contadas por mais de um ponto de vista, e com variadas concepções estéticas, éticas, humanas – e inclusive outros parâmetros de valoração. Não apenas para que a nossa diversidade cultural seja, de fato, assegurada – mas, como veremos a partir de agora, porque alguns discursos e produções artísticas desafiam nossa noção sobre o que é uma obra de arte e inclusive sobre nossas percepções éticas, sociais, políticas, epistêmicas e estéticas.

Afinal, só poderemos afirmar nossa diversidade cultural quando, de fato, estivermos atentos e empenhados em não reproduzir ou mesmo alterar padrões de exclusão, marginalização e silenciamento de nossos artistas e intelectuais.

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PARTE I

A woman from the audience asks: “Why are there so few women on this panel? Why are there so few women in this whole week's program? Why were there so few women among the Beat writers?” and [Gregory] Corso, suddenly utterly serious, leans forward and says: "There were women, they were there, I knew them, their families put them in institutions, they were given electric shock. In the '50s if you were male you could be a rebel, but if you were female your families had you locked up. There were cases, I knew them, someday someone will write about them”. – from Stephen Scobie's account of the Naropa Institute tribute to Ginsberg, July 1994.18

18 Uma mulher da plateia pergunta: 'Por que há tão poucas mulheres nesse painel? Por que há tão poucas mulheres em

todo o programa desta semana? Por que havia tão poucas mulheres entre os escritores beat? e [Gregory] Corso, repentinamente sério, se inclina para frente e diz: ‘Havia mulheres, elas estavam lá, eu as conhecia, suas famílias as colocavam em instituições, elas recebiam eletrochoque. Nos anos 1950, se você fosse homem, poderia ser um rebelde, mas se você fosse mulher, suas famílias a teriam aprisionado. Houve casos, eu os conheci, algum dia alguém escreverá sobre eles’ - do relato de Stephen Scobie sobre a homenagem do Instituto Naropa a Ginsberg, julho de 1994. [Tradução minha].

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1. “NINGUÉM QUER SER COADJUVANTE DE NINGUÉM”19: LUTA ANTIMANICOMIAL E REFORMAS DA COLÔNIA

O conhecimento do outro me marca. – Veena Das20

Stella do Patrocínio nasceu no Rio de Janeiro em 09 de janeiro de 1941. Filha de Zilda Francisca do Patrocínio e Manoel do Patrocínio, era irmã caçula de Germiniano, Olívia, Carlos Chagas e Antônio, e irmã mais velha de Ruth do Patrocínio. Seus avós maternos eram Emiliano Francisco Xavier e Guilhermina Francisca Xavier. Os paternos, José do Patrocínio e Sebastiana Maria de Jesus, já eram falecidos na ocasião de seu nascimento21. Foi também no Rio de Janeiro que ela cresceu e trabalhou. De acordo com os arquivos médicos do IMAS Juliano Moreira22, seu último emprego foi como doméstica em uma casa localizada na Urca e, aos 21 anos, quando residia no apartamento dos fundos de um prédio de três andares em Botafogo, foi internada involuntariamente no Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII) pela polícia civil, enquanto caminhava na Rua Voluntários da Pátria. Segundo ela, o local era bem próximo à Praia de Botafogo: “Eu vim parar aqui porque me trouxeram do Pronto Socorro do Rio de Janeiro, praia de Botafogo pra cá, enviada agarrada de repente andando na rua” (Conversa entre Stella do Patrocínio e Carla Guagliardi, gravada pela artista plástica durante o Projeto Oficina de Livre Criação artística. Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro, 1986-1988. Acervo da artista).

Esse Centro Psiquiátrico está localizado no Engenho de Dentro, na zona norte do Rio de Janeiro. Inaugurado em 1911 para superar o problema de superlotação do Hospício Nacional de Alienados (HNA) da Praia Vermelha/RJ, “abrigou a primeira colônia agrícola destinada às alienadas remetidas do antigo HNA. Durante as primeiras décadas, funcionou então como parte da rede de Assistência aos Alienados, que tinha o hospício da Praia Vermelha como instituição central”23. Entretanto, o HNA – conhecido como Hospício D. Pedro II –, foi desativado na década de 1940, e o

19 Racionais MC’s, “Da ponte pra cá”, faixa presente no álbum intitulado “Nada como um dia após o outro dia”, 2002. 20 DAS, Veena. Life and words: violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press,

2006.

21 Essas informações foram confirmadas ao longo deste trabalho, e serão apresentadas de modo mais pormenorizado no

Capítulo 5, “O avesso do mesmo lugar”: novos dados e informações sobre Stella do Patrocínio.

22 Instituto Municipal de Assistência à Saúde (IMAS) Juliano Moreira. Jacarepaguá/RJ. Prontuário número 00694. 23 GOVERNO FEDERAL. “Base de dados História e Loucura”. Disponível em:

<http://historiaeloucura.gov.br/index.php/instituto-municipal-de-assistencia-saude-nise-da-silveira>. Acesso em: 10 jan. 2020.

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Centro Psiquiátrico Pedro II recebeu os seus pacientes (homens e mulheres), funcionários e acervos, tornando-se o principal centro psiquiátrico da cidade do Rio de Janeiro.

Foi no Engenho de Dentro que Do Patrocínio recebeu seu primeiro diagnóstico, tornando-se, de modo involuntário, um “sujeito psiquiatrizado24”, ou “doente mental”, classificação que a acompanha ainda hoje, 27 anos após a sua morte.

O diagnóstico foi assinado pelo Dr. O. Falleiros, 16 dias após a sua internação. De acordo com a ficha de admissão do CPPII, ela teria, pois, “esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas”. Esta ficha constitui a única fonte documental localizada que prova que Do Patrocínio foi institucionalizada25 nesse período. O documento indica ainda que o “internante” foi o 4º Distrito Policial, que a encaminhou a um pronto socorro psiquiátrico para, em seguida, ser transferida para a internação de longa permanência no CPPII:

24 Tomo esse termo emprestado do médico psiquiatra Paulo Amarante, ativista da luta antimanicomial no Rio de Janeiro.

AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.

25 Ao acessar os arquivos médicos de Stella do Patrocínio, reunidos no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano

Moreira (Jacarepaguá/RJ), percebi que, em uma das fichas de enfermagem, há uma anotação a punho que registra que alguns arquivos foram extraviados. A anotação em questão não chega a comunicar quais documentações são essas, mas a única fonte de registro do CPPII, anexada aos arquivos médicos do IMAS Juliano Moreira, é, de fato, essa ficha. Os outros documentos já são referentes à segunda internação, na Colônia de Jacarepaguá.

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Figura 4. Stella do Patrocínio aos 21 anos. Ampliação da foto na Ficha de internação do Centro Psiquiátrico

Nacional – Hospital Pedro II, presente no trabalho de ZARA, 2014. (Fonte: acervo de Anna Carolina Vicentini Zacharias).

Stella do Patrocínio esteve nessa instituição até a data de sua transferência, em 3 de março de 1966, para a então Colônia Juliano Moreira (CJM), mais especificamente no Núcleo (feminino) Teixeira Brandão (NTB).

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artes plásticas e literatura. Isso porque, após a sua morte, a filósofa Viviane Mosé publicou um livro de poesias intitulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001), baseado em áudios deixados por Do Patrocínio. Ela era gravada em conversas com duas estagiárias do Núcleo Teixeira Brandão, em dois momentos distintos: Carla Guagliardi, estagiária de artes plásticas no período entre 1986 e 1988 – contratada para participar de um projeto de criação artística do qual tratarei adiante; e Mônica Ribeiro de Souza, de 1990 a 1991, estagiária voluntária de psicologia.

Segundo expusemos na introdução, discutiremos, neste capítulo, as práticas e ações que propiciaram essas gravações. Buscaremos, pois, analisar as transformações institucionais que possibilitaram a chegada dessas estagiárias na Colônia, transformações estas que devem ser entendidas como associadas diretamente à reforma psiquiátrica brasileira.

Entendemos, nesse contexto, que antes de examinarmos o percurso de Stella e do seu falatório, é preciso apresentar as suas diferentes etapas, que incluem até mesmo a sua descrição como poeta pela estagiária Carla Guagliardi, antes mesmo que existisse o projeto de publicação das suas gravações. Esta atribuição, no entanto, não foi uma iniciativa de Stella:

[...] Fala uma poesia pra gente

Também não. Não tenho mais lembrança de poesia mais nenhuma

Faz uma poesia pra mim

Eu não tenho mais lembrança de poesia

Mas tudo o que você fala é poesia, Stella

É só história que eu tô contando, anedota (Conversa entre Stella do Patrocínio e

Carla Guagliardi, gravada pela artista plástica durante o Projeto Oficina de Livre Criação artística. Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro, 1986-1988. Acervo da artista).26

Começaremos a apresentação dessas etapas com a discussão da instituição asilar que recebeu Stella do Patrocínio para a sua internação permanente, a Colônia Juliano Moreira, que foi palco de mudanças estruturais e administrativas, provenientes do Movimento de Luta Antimanicomial brasileira nos anos 1980. No próximo tópico, discutiremos brevemente a consolidação da Colônia como um manicômio que abrigava internos considerados “irrecuperáveis” e quais foram as demandas da Luta Antimanicomial que propiciaram a abertura da CJM para receber as profissionais que, por iniciativa pessoal, gravaram o falatório de uma paciente, Stella do Patrocínio.

26 Optei por diferenciar as falas de Stella e de suas interlocutoras ao longo de todo o trabalho: as falas transcritas em

itálico são enunciações de Stella do Patrocínio. Todas as transcrições diretas dos áudios são exclusivamente de conversas entre Carla Guagliardi e a autora. No caso do material produzido por Mônica Ribeiro de Souza, essa diferenciação não é necessária, uma vez que as gravações foram perdidas e Mônica Ribeiro de Souza não dispõe de transcrições de suas enunciações, apenas das respostas de Stella do Patrocínio em formato versificado, de modo muito semelhante ao livro de Viviane Mosé.

Referências

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