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A Liberdade no "Tratado das Paixões" de Descartes

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Academic year: 2021

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A LIBERDADE NO

TRATADO DAS PAIXÕES

DE DESCARTES

JORDINO MARQUES Departamento de Filosofia Universidade Federal de Goiás Goiânia, GO

jordino@zaz.com.br

Resumo: Neste artigo, procuro desenvolver a noção de liberdade no Tratado das Paixões, mostrando que, em primeiro lugar, temos que tomar, como ponto de partida da reflexão sobre a liberdade, as posições defendidas na Quarta Meditação. A seguir, tomo as perspectivas mecanicistas que privilegiam no cartesianismo a relação entre corpo e alma na qual se coloca o problema do controle das paixões. Palavras-chave: liberdade; paixões; cartesianismo; corpo e alma.

Abstract: In this article I try to develop the concept of freedom in Descartes’ Passions of the Soul showing firstly that we must take as starting point of the reflexion about freedom those positions defended in the Fourth Meditation. Then I analyze the mechanicistic perspectives that accentuate, within cartesianism, the relationship between body and soul, where the problems of the control of the passions are located.

Key-words: freedom; passions; cartesianism; body and soul.

Comecemos por definir as noções que compõem o título do presente trabalho. Em primeiro lugar, queremos percorrer uma parte do itinerário cartesiano sobre a liberdade, para o compormos, depois, com a problemática das paixões e perguntarmos, enfim, em que medida e com que finalidade a liberdade entra no Tratado das Paixões.

Não podemos nunca deixar de ver a liberdade no século XVII como um tema sempre recorrente de diferentes matizes e tonalidades como em Leibiniz, Espinosa e em Descartes. O século XVII traz em seu bojo a reflexão sobre a liberdade como conseqüência do novo modelo de explicação que o racionalismo impôs à reflexão.

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Inicialmente, vamos procurar ver como é que na IV Meditação Descartes coloca o problema da liberdade. No itinerário já percorrido desta obra, Descartes concede um valor demasiadamente grande à inspeção de si mesmo. Através dela, ele chegara ao cogito como primeira verdade, à natureza dos seus pensamentos e àquele pensamento que contém em si mais realidade objetiva do que os outros e que é causa de que ele mesmo pense. Agora, na IV Meditação, depois de se deparar com a hipótese de que Deus seja o causador do erro em meu espírito, Descartes se propõe a se analisar mais de perto (ad me propius accedens) e nessa investigação ele quer saber quais são seus erros, testemunhas de sua imperfeição, e estabelece, de início, que eles advêm de duas causas: do poder de conhecer e do poder de escolher ou livre arbítrio e, conjuntamente da vontade livre (A.T. IX, p. 55). Descartes considera então que pelo entendimento não asseguro nem nego nada, mas apenas concebo (percipio) as idéias das coisas que posso afirmar ou negar, que não há propriamente erro no entendimento e, além disso, se sou privado em meu entendimento de muitas idéias, não é por uma insuficiência do mesmo. E em consonância com a proposta da Terceira Meditação, que afirmava que Deus me concede a faculdade da conhecer, a ele não pode ser imputada nenhuma falha em razão dos meus erros, pois por hábil e engenhoso operário (artifex) que eu mo represente, nem por isso devo pensar que devesse pôr em cada uma de suas obras todas as perfeições que pôde pôr em algumas. Não posso tampouco lastimar de que Deus não me tenha dado um livre arbítrio e uma vontade ampla e perfeita, visto que, com efeito, eu a experimento tão vaga e tão extensa que ela não está encerrada em quaisquer limites (A.T. IX, p. 55).

Essa passagem revela um pouco das intuições de Descartes para caracterizar a liberdade humana. Ele fala de Deus como um operário engenhoso e hábil que coloca em mim suas perfeições. Há um esquema de causação criacionista que se apodera de um modelo bíblico de Deus criador e perfeito que imprime seu selo nas suas criaturas. Há uma gradação entre as criaturas de Deus.

Descartes fala do livre arbítrio e da vontade e afirma que esta última é experimentada de modo vago e extenso a ponto de não conter limites. Aqui se delineia uma clara diferença entre entendimento e vontade, pois o primeiro será limitado, a segunda, ilimitada. É relevante que digamos que a questão da vontade ilimitada é de suma importância para Descartes, porque acoplada a ela está a

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questão da liberdade. A vontade é também importante porque sendo sumamente grande, de modo que eu não concebo em mim outra idéia mais ampla e mais extensa, ela me faz conhecer que eu trago a imagem e semelhança de Deus. Notemos que a linguagem é teológica e bíblica. As palavras do livro sagrado, segundo as quais Deus cria o homem à sua imagem e semelhança, recebem aqui o tratamento tradicional que a teologia escolástica lhes conferira que se inseria em um esquema geral que se pode ler em Tomás de Aquino, que apresenta em sua suma o homem vindo de Deus e retornando a Ele. A vontade, este traço divino não deduzido, somente sugerido pelos argumentos da razão, mas também da palavra bíblica, é argumento decisivo para a colocação da questão da liberdade, pois podemos fazer ou deixar de fazer alguma coisa, afirmar, ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe e fazemos isso sem o recurso à vontade.

Nas Meditações a tensão entre a extensão e a amplidão da vontade em relação ao entendimento, ela escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro (A.T. VII, p. 58).

Se olharmos a perspectiva abordada por Descartes nos Princípios, ele diz que ela é por sua natureza muito extensa. Ele considera que é uma vantagem grande agir por meio da vontade, ou livremente e destaca algo muito importante em seu esquema teórico que privilegia o autômato como modelo explicativo da realidade, em especial, a do corpo humano, quando diz que a ação do autômato não é merecedora de louvor, mas sim a do artífice (A.T. VIII,1 p. 18-19).

Essas considerações são suficientes para prepararmos a discussão sobre a liberdade no Tratado das Paixões. Iniciemos nosso confronto com a análise e a definição de paixão que Descartes apresenta no inicio de sua obra.

Quando Descartes escreve a carta-prefácio dos Princípios e propõe a famosa imagem da árvore, ele está terminando o primeiro esboço do Tratado das Paixões que por se tratar da sua preocupação moral, conterá aquilo que ele chama a principal utilidade da filosofia que se acha nos ramos ou nas extremidades da árvore hipotética cujos frutos estão para ser colhidos na extremidades. Rodis-Lewis mostra no prefácio de sua edição do Tratado das Paixões que Descartes, já em sua primeira obra, o Compendium Musicae dá como finalidade da música de excitar diversas emoções em nós para nosso prazer (A.T. X, p. 215, apud G.

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Rodis-Lewis, Les Passions de l´âme, p. 13). Então, podemos dizer que o pano de fundo da pesquisa de Descartes sobre as paixões está centrado em suas preocupações científicas. A estas deve ser acrescentada a teoria da união da alma e do corpo bem como os caminhos e descaminhos da correspondência com Elisabeth. Se olharmos a estrutura da obra, veremos que ela se divide em três partes. A primeira, que aqui mais no interessa, recebe o título de “Das paixões em geral e ocasionalmente de toda a natureza humana” mostra como o terreno das paixões é o da união entre alma e corpo. Só que para chegar à definição de paixão (art. 27-29), é preciso estudar as funções próprias do corpo (art. 7-16) e aquelas que dependem da alma (art. 17-26). Se perguntarmos pela razão desse tratamento prévio, veremos que tudo está em decorrência da concepção metafísica do cogito que se alia a um corpo. Mas Descartes não deixa de voltar à teoria da glândula pineal como sede da alma (art. 30-34), para mostrar, analisando o medo em suas causas exteriores, suas repercussões psíquicas, suas ocorrências fisiológicos e suas variações de acordo com os temperamentos (art. 35-39) como se chega, finalmente, à influência das paixões sobre a vontade (40). Tendo colocado a questão da vontade, Descartes coloca a questão moral quando se interroga sobre a ação da alma sobre o corpo e suas principais funções (art. 41-45) e estabelece o domínio indireto e progressivo sobre as paixões (art. 45-50).

Não é nosso propósito aqui percorrer todos os caminhos da primeira parte, para chegarmos até ao momento em que Descartes propõe sua definição de paixão, mas temos que acentuar o aspecto de sua obra que insiste sobre o novo modo de abordagem das paixões que é o pretenso aspecto científico de tratá-las en physicien. No entanto, o que mais chama a atenção na evolução da temática das paixões em Descartes é o esquema inicial tentado no Tratado do Homem que apresenta um esboço dos diferentes humores ou inclinações naturais e as paixões a que estes dispõem em função do movimento dos espíritos animais conforme as quatro diferenças no grau de abundância, de tamanho, de agitação e de igualdade respectiva destes espíritos (A.T. XI, p. 166-167). Vemos pois aí que as paixões nascem exclusivamente em razão da relação dos humores. Se considerarmos que o Tratado do Homem é de 1632, quando pouca coisa do sistema está consolidada, podemos ver muito bem que, nem de longe, a liberdade entra em questão. As notas e comentários da edição de G. Rodis-Lewis mostram como

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a correspondência com Elisabeth levou Descartes a refazer completamente esse esquema humoral (op. cit., p. 6). A correspondente de Descartes chega mesmo a perguntar-lhe “como uma alma puramente racional pode perder tudo isso através de alguns vapores que podendo subsistir no corpo e não tendo nada de comum com ele seja desse modo regida por ele” (Elisabeth a Descartes, 20 de junho de 1643, A.T. III, p. 685). O que se pode perceber é que a princesa palatina havia compreendido muito bem a posição de Descartes que, a 21 de maio do mesmo ano, esclarecera à princesa que a união da alma e do corpo é uma noção primitiva “da qual depende toda a força que a alma tem de mover o corpo e o corpo de agir sobre a alma, causando-lhe sentimentos e paixões (A.T. III, p. 665). Aqui já podemos vislumbrar que se há ação da alma sobre o corpo, esta ação implica em vontade e liberdade. Na correspondência trocada entre Descartes e a princesa, ele fala de alteração de humores que conduzem às paixões “para distingui-las daquilo que pertence somente ao espírito” (14 de setembro de 1645, A.T. III, p. 283-284). Mas em sua resposta a princesa expressa seu desejo de ver Descartes definir as paixões para bem conhecê-las (13 de setembro de 1645, A.T. III, p. 289) A 28 de outubro, a princesa volta a insistir em seu desiderato, ainda em bases muito mecânicas, ao pedir para Descartes “descrever como esta agitação particular dos espíritos serve para formar todas as paixões que nós experimentamos, e eu não ousaria vos pedir isso, se eu não soubesse que não deixareis de modo algum obra imperfeita” (28 de outubro de 1645 A.T. III, p. 322).

Podemos dizer, pois, que a insistente solicitação da Princesa Elisabeth levará Descartes a escrever o Trata do das Paixões. Em junho de 1646 em correspondência a Chanut, representante francês na corte da rainha Cristina da Suécia, Descartes diz estar preocupado com questões morais e ter escrito no último inverno (fim de 1645 - início de 1646) “um pequeno tratado da natureza das paixões da alma, sem ter no entanto o plano de publicá-lo e eu estaria disposto agora a escrever outras coisas, se o desgosto que tenho de ver quão poucas pessoas há no mundo que se dignam a ler meus escritos não me fizesse ser negligente” (A.T. III, p. 441).

Há um outro pano de fundo no estudo que Descartes faz das paixões e que se constituirá em um elemento central de sua teoria das paixões no qual podemos inferir a importância do binômio vontade-liberdade. Este pano de

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fundo vem a ser a possibilidade de se construir uma técnica para dominar e conduzir as paixões. Na época do Discurso do Método, parece que Descartes põe tanta esperança na medicina, que ela se apresenta como meio de tornar os homens mais sábios e hábeis por causa da dependência recíproca do espírito e da disposição dos órgãos do corpo (Discurso A.T. VI, p. 62). Nove anos mais tarde, em 15 de junho de 1646, quando termina o Tratado das Paixões, ele reconhece um certo fracasso nessa concepção de medicina, confessando a Chanut que não conseguiu completar suas pesquisas em medicina, mas encontrou os fundamen-tos de sua moral (A.T. IV, p. 62).

Tomemos, pois, passagens significativas da primeira parte do Tratado das Paixões para buscar na argumentação de Descartes a relação da vontade livre com as paixões.

Inicialmente, há que se considerar que Descartes pretende inovar no seu modo de tratamento das paixões, distanciando-se do caminho que os antigos tomaram no assunto, devendo por isso fazer tabula rasa de tudo o que foi falado sobre as paixões. Retomando, no entanto, uma antiga tradição, ele começa dizendo que paixão e ação são correlativos: tudo o que acontece de novo é chamado pelos filósofos uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece e uma ação em relação ao sujeito que faz com que aconteça (art. 1, p. 77). O que chama a atenção nos primeiros parágrafos do texto é sua relação necessária com a problemática da união da alma e do corpo, pois se elas são paixões da alma, acontecem em relação com aquilo que Descartes caracteriza como o que está mais unido a ela, o corpo (art. 2, p. 77). Daí, podemos justificar então o esforço de Descartes no artigo terceiro do Tratado de seguir como regra a distinção daquilo que só existe nos corpos daquilo que só deve ser atribuído à alma (art. 3, p. 78). Do 4º ao 16º artigo, Descartes retoma as explicações mecanicistas, para no artigo 17 colocar uma definição provisória de paixão da alma, na qual se requer por primeiro que só devamos atribuir à nossa alma os seus pensamentos. Aqui, diferentemente da Terceira Meditação, Descartes divide os pensamentos em ações e paixões da alma. Os que chamamos ações são suas vontades, pois experimen-tamos que vêm diretamente da alma e só dependerem dela e os que chamamos paixões são toda espécie de percepções e conhecimentos existentes em nós, porque muitas vezes não é nossa alma que os faz tais como são e porque sempre

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os recebe das coisas por elas representadas (art. 17, p. 84) Percebamos, nos esclarecimentos iniciais desta definição provisória de paixão da alma, que Descartes faz apelo à noção de vontade e isso implica em uma relação muito estreita com a liberdade que aqui nos interessa muito de perto. As vontades são pensamentos que dependem da alma. Nas Terceiras Objeções e Respostas, mais precisamente na 12a. Objeção à quarta Meditação, o objetor Hobbes acusa Descartes de contradição, por considerar que o erro não é algo de real que depende de Deus, mas somente uma falha e que para errar não preciso de uma faculdade especialmente dada por Deus. Acontece que para errar, eu preciso de um entendimento, ou pelo menos de uma imaginação, que são faculdades positivas concedidas por Deus a todos, de modo que a liberdade do arbítrio é nesta posição apenas suposta e não provada. Descartes responde dizendo que o que ele tratou nessa passagem, no concernente à liberdade, fazia referência àquilo que sentimos todos os dias. E mesmo que haja muitos que não podem compreender como nossa liberdade pode subsistir e concordar com a preordenação divina, não há ninguém que “olhando-se somente a si mesmo não ressinta e experimente que a vontade e a liberdade são uma só coisa, ou sobretudo, que não há nenhuma diferença entre o que é voluntário e aquilo que é livre” (AT. IX, p. 148).

E continuando a temática da vontade, Descartes classifica nela dois tipos, um que são as ações da alma que terminam na própria alma, como quando queremos amar a Deus ou considerar nosso pensamento em algo não material e o tipo de ação que termina em nosso corpo (art. 18, p. 84). Os artigos 27 e 28 se dedicam a definir o que sejam paixões da alma. Antes de colocar sua definição, Descartes insiste no fato de que elas diferem de todos os outros seus pensamentos (p. 87) Que é essa diferença senão o que já fora detalhado no artigo 17, quando Descartes mostrava que há pensamentos na alma que não têm somente a alma como origem? Colocada essa primeira pré-condição, vemos que as paixões são “percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que referimos particularmente a ela e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos” (p. 87). Ao explicar essa definição de paixão, Descartes diz que as paixões são percepções porque são pensamentos, sentimentos e emoções da alma. No primeiro caso, elas são pensamentos que não constituem

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ação da alma ou da vontade, no segundo caso, elas são sentimentos porque são recebidas na alma do mesmo modo que os objetos exteriores e, no terceiro caso, elas são emoções porque todas as mudanças que ocorrem na alma são emoções, como também nenhum outro tipo de pensamento abala tanto a alma como o fazem as paixões (art. 28, p. 77-78). Mas no art. 29 Descartes chama a atenção para o fato de que elas são diferentes dos outros sentimentos, quer os refiramos aos objetos exteriores, quer ao nosso corpo. Descartes não deixa de ligar as paixões aos espíritos animais quando diz que elas são causadas, sustentadas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos (p. 88), distinguindo-as assim da vontade. Nessa menção à vontade, já temos uma referência à liberdade.

A análise da primeira parte do Tratado das Paixões revela pontos importantes da moral cartesiana no que diz respeito à liberdade. Depois de ter definido o que seja a paixão da alma, Descartes mostra como a alma está unida ao corpo, como a glândula pineal que se encontra em uma cavidade do cérebro é sua sede principal e no artigo 40 encontramos uma orientação clara de qual seja o efeito das paixões. Elas dispõem a alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos (p. 92), mas, logo a seguir é necessário que Descartes delimite a extensão da atividade da alma em relação ao corpo.

Para nós que entendemos como decisiva a ligação entre vontade e liberdade, vem agora, no artigo 41, uma passagem importante que nos garante o princípio decisivo da teoria cartesiana. Ele inicia o artigo afirmando que a vontade é de tal natureza que não pode ser compelida (p. 92-93), porque as ações ou vontades da alma estão absolutamente em seu poder e só indiretamente o corpo pode modificá-las. Notemos que essa expressão dos pensamentos como aquilo que está absolutamente em nosso poder já se encontra na Terceira Parte do Discurso do Método (A.T. VI, p. 25) e numa correspondência a Mersenne é dito que “se há algo que está absolutamente em nosso poder são os nossos pensamentos, ou seja, aqueles que advêm da vontade e do livre arbítrio” (3 de dezembro de 1640, A.T. III, p. 249) e a um autor desconhecido em março de 1638, bem como à rainha Cristina, a 20 de novembro de 1647, Descartes dirá que só nos resta a vontade da qual podemos dispor livremente (A.T. II, p. 36 e V, p. 83). A ação da alma sobre o corpo consiste somente no fato de, ao querer alguma coisa,

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ocasionar o movimento na glândula pineal da maneira necessária a produzir o efeito necessário que se relaciona com esta vontade (93).

A seguir, Descartes exemplifica a relação da alma com o corpo através da memória, É muito sintomático que, para essa explicação, Descartes diga que a vontade faz com que a glândula se incline para diversos lados, de modo a impelir os espíritos animais para diversos lados do cérebro até achar os traços ou os poros deixados pelos objetos (p. 93-94) Mas no artigo 45, Descartes inicia o tratamento de um aspecto importante na relação alma e corpo em função das paixões. As paixões não podem ser excitadas nem suprimidas pela ação da vontade, pois, do contrário, elas seriam pensamentos puros. Mas elas podem ser excitadas ou suprimidas, atentemos para o advérbio, ‘indiretamente’ pela representação das coisas que estão associadas às paixões que queremos ter e que são contrárias às que queremos rejeitar ((94). Notemos aqui que podemos ter e rejeitar paixões, desde que representemos ou imaginemos coisas. A edição de G. Rodis-Lewis coloca em uma nota ao referido artigo um texto de São Francisco de Sales intitulado Tratado do amor de Deus no qual se diz que não é necessário pedir aos olhos para que não vejam, é preciso diverti-los, se se quer que eles não vejam, para reduzir a vontade ao estado que se deseja (vol. I cap. 2 e 4, apud G. Rodis-Lewis, Descartes, Les Passions de l´ âme, p. 98). Desse modo, adentramos no problema peculiar da teoria cartesiana das paixões que é o adestramento das paixões que Descartes chamará de remédio contra as paixões, porque conforme o artigo 211 elas são todas boas por natureza e não temos nada a evitar a não ser os maus usos ou seus excessos (p 153). Se Descartes, por um lado, concede uma influência indireta sobre as paixões pela ação da alma, por outro, ele indica, no artigo 46, uma razão para que a alma disponha inteiramente de suas paixões. E esta razão são os movimentos corporais que a alma não pode deter a não ser depois que passar seu efeito. Então o que pode fazer a alma enquanto durar uma paixão violenta? Simplesmente “não consentir em seus efeitos e reter muito dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la, se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante” (p. 95). Mais uma vez temos aí a vontade, e por extensão a liberdade, influenciando decisivamente não mais nas

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paixões, mas nos seus efeitos. Talvez valesse a pena aqui remontar ao uso das palavras consentimento e consentir como um eco da terminologia da teologia moral que tradicionalmente colocou o consentimento como uma das condições de pecado. Se isso for verdade, há uma correlação entre a vontade não consentir no pecaminoso que lhe é apresentado e nos efeitos que as paixões desencadeiam. Estamos, pois, no final da primeira parte do Tratado das Paixões que, fundamentalmente, é uma investigação da natureza das paixões. Estamos também enredados na relação direta ou indireta da vontade e da liberdade nelas. No artigo 47, fiel à sua teoria da alma, Descartes menospreza, por assim dizer, o combate que se costuma imaginar entre a parte inferior e superior da alma, porque, afinal, faz parte de sua doutrina que não existem partes da alma conforme a escolástica, influenciada pela antigüidade sempre desenvolveu. Com isso, Descartes faz tabula rasa de toda uma teoria moral que privilegiava a parte racional da alma e a colocava em combate com as partes inferiores e que tanto estimulou os moralistas e religiosos a falarem do combate e da vitória da razão sobre os apetites. Descartes reduz esse pretenso combate tão somente ao movimento da glândula pineal que movimenta espíritos animais de qualidades diferentes com impulsos contrários entre si. Dentre esses impulsos, há alguns que efetuam esforço sobre a vontade, causando as paixões e os movimentos corporais que as acompanham. Então pode acontecer que as paixões e a vontade se defrontem, principalmente quando se verifica, de um lado, o impulso de causar na alma um determinado desejo e, de outro, a rejeição da vontade que o repele e tenta fugir (p. 95). A razão de tudo isso é tão somente o fato de que a vontade não pode excitar diretamente as paixões. Se perguntarmos pela origem, na história da filosofia, desse pretenso combate, veremos que Platão já representava a relação alma e corpo como a de um cocheiro que dirige uma carruagem (Fedro, 248b). O artigo 48 é para nós de suma importância, pois ele vai tomar o argumento do pretenso combate ou da tensão entre vontade e movimentos das paixões, dizendo que pelo sucesso desses combates é que se pode conhecer a força ou a fraqueza das almas. Então os que podem vencer as paixões e sustar os movimentos do corpo que as acompanham têm as almas mais fortes, mas os que levam a vontade ao combate tão somente com as armas que lhes são fornecidas

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por algumas paixões para resistir a algumas outras são as almas mais fracas. Descartes diz que há armas que são próprias para essa ação. Elas são “os juízos determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida” (p. 96). Podemos perceber algo muito sintomático no modo de expressar de Descartes nessa descrição da vontade alma forte. Ele usa a expressão conhecimento do bem e do mal. Qualquer pessoa familiarizada com razões bíblicas, pode ler nas entrelinhas o que o livre arbítrio humano conquistou com o desejo de conhecer o bem e o mal. Descartes prossegue dizendo que as almas fracas são aquelas “cuja vontade que não se decide assim a seguir certos juízos, mas se deixa arrastar continuamente pelas paixões presentes, as quais , sendo muitas vezes contrárias umas às outras, a puxam, ora umas, ora outras, para seu partido e, empregando-o para combater contra si mesma, põem a alma no estado mais deplorável possível” (p. 96). O artigo 49 se inicia com uma constatação de que há poucos homens totalmente irresolutos que só se deixam levar pelas paixões. A maioria tem juízos determinados segundo os quais regula parte de suas ações, mesmo que esses juízos sejam infundados, são melhores dos que os fundados na irresolução.

O último artigo da primeira parte desenvolve a posição de que “não existe alma tão fraca que não possa, sendo bem conduzida, adquirir poder absoluto sobre suas paixões” (p. 96) toma alguns exemplos para mostrar como cada movimento da glândula pineal parece unido por natureza a cada um de nossos pensamentos desde o começo de nossa vida, mas é possível juntá-los a outros por hábito. Dos exemplos usados por Descartes nesse artigo 50, o mais significativo é aquele que mostra o adestramento do cão perdigueiro que, sendo animal, portanto, pura máquina, não deixa de ter todos os movimentos dos espíritos e das glândulas que provocam em nós as paixões. É interessante o modo como Descartes conclui essa primeira parte quando diz que “essas coisas são úteis de saber para encorajar cada um de nós a aprender a observar suas paixões, pois dado que se pode, com um pouco de esforço, mudar os movimentos do cérebro nos amimais desprovidos de razão, é evidente que se pode fazê-lo melhor nos homens, e mesmo aqueles que possuem as almas fracas poderiam adquirir um império absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante

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engenho em domá-las e conduzi-las” (p. 97). Dessa passagem vale a pena observar o pedido para que se observem as paixões. Também é digno de nota que Descartes proponha que se passe do animal que tem a estrutura do autômato para o composto humano. Mas o que jaz aqui subentendido é o fato de que a vontade e a liberdade podem agir indiretamente, deve-se frisar, sobre o movimento causado pelas paixões e Descartes fala ainda de um império absoluto.

Não podemos deixar de considerar aqui um momento do Tratado das Paixões que se revela de grande importância no conjunto do pensamento de Descartes sobre a liberdade. Trata-se da consideração sobre a generosidade. Vamos tomar a carta à Cristina, de 20 de novembro de 1647, porque ela prepara para nós todo o sentido da argumentação que Descartes vai desenvolver. Em um primeiro momento da carta, Descartes diz que, no concernente à alma, o maior bem que ela pode querer é conhecer e querer aquilo que é bom, como o conhecimento está muitas vezes além de nossas forças, só nos resta a vontade da qual podemos dispor absolutamente (A.T. V, p. 83). Colocada essa supremacia da vontade, Descartes dirá que o maior e mais sólido bem de nossa vida é o Soberano Bem. Ele dirá ainda que “a grandeza de um bem a nosso respeito não deve ser medida somente pelo valor da coisa na qual consiste, mas principalmente, pelo meio pelo qual ele se relaciona conosco e que além de o livre arbítrio ser a coisa em si mais nobre que pode existir em nós, de modo que ele nos torne de certo modo semelhantes a Deus e parece nos isentar de estar sujeitos a ele, e que, por conseguinte, seu bom uso é o maior de todos os nossos bens, ele é também aquele que é mais propriamente nosso e que mais nos diz respeito, donde se segue que é somente dele que podem proceder nossos maiores contentamentos” (A.T. V, p. 85). Esta passagem que repete a temática inicial da presente comunicação, mostra a excelência da liberdade para Descartes na fase mais madura de seu pensamento. Com a introdução desse pensamento, que podemos chamar carregado de positividade, Descartes prepara o tema da generosidade através da colocação da temática da auto-estima. A única coisa que pode nos dar a justa razão de nos estimarmos, é “o livre arbítrio e o império que temos sobre as nossas vontades; pois só pelas ações que dependem desse livre arbítrio é que podemos com razão ser louvados ou censurados e ele nos faz de

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alguma maneira semelhantes a Deus, tornando-nos senhores de nós próprios, contanto que não percamos por covardia os direitos que ele nos concede” (art. 52, p. 136). Nesse passo do Tratado das Paixões, podemos ver alguns elementos decisivos do projeto de Descartes. Temos razão em nos estimar a nós próprios por causa do livre arbítrio e do império sobre nossas vontades. Percebamos que se em um primeiro momento (nas Meditações) a vontade era a infinidade das volições que se contrapunha à limitação do entendimento, aqui ela é junto com a liberdade o que nos leva a nos estimarmos, exatamente porque temos, como já vimos em outra parte, semelhança com Deus. Chama a atenção, igualmente, a parte final da citação que aponta para o domínio de nós próprios. Lembremo-nos que a Sexta Parte do Discurso, carregada da preocupação de bem conduzir a razão na ciência, propunha através do bom uso das ciências úteis ao homem o domínio e o senhorio da natureza. Aqui, a perspectiva se restringe, pois se trata de dominarmo-nos a nós mesmos, mas, ao mesmo tempo, há um alargamento do pano de fundo que gera e sustenta essa crença desmedida. Tal pano de fundo é Deus que nos cria, mantém-nos na criação, e, de acordo com o texto acima, concede-nos direitos.

Com isso, o terreno está pronto para a colocação da generosidade que é definida como “o que leva o homem a estimar-se ao mais alto ponto em que pode legitimamente estimar-se” consiste “no fato de conhecer que nada há que verdadeiramente lhe pertença, exceto essa livre disposição de suas vontades, nem por que deva ser louvado ou censurado, senão pelo seu bom ou mau uso, e, em parte, no fato de ele sentir em si próprio uma firme e constante resolução de bem usá-la, isto é, de nunca carecer de vontade para empreender e executar todas as coisas que julgue serem as melhores, o que é seguir, perfeitamente, a virtude” (p. 140).

Podemos ainda dizer que a propósito da generosidade e da sua relação com o livre arbítrio, Descartes estabelecerá um ponto importantíssimo na sua explicação das paixões, ou seja, a transformação da paixão em virtude. No artigo 162, ele dirá que o que denominamos virtudes são hábitos da alma que a dispõem a certos pensamentos e, como tais, só podem ser produzidos pela alma, “mas ocorre muitas vezes que alguns movimentos do espírito os (os pensamentos)

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fortaleçam e, nesse caso são ações da virtude e ao mesmo tempo paixões da alma, assim, embora não haja virtude à qual o bom nascimento pareça contribuir tanto como a que nos leva a nos apreciarmos apenas segundo o nosso justo valor, e ainda que seja fácil crer que todas as almas postas por Deus em nossos corpos, não são igualmente nobres e fortes ... é certo no entanto que a boa formação muito serve para corrigir os defeitos do nascimento, e que, se nos ocuparmos muitas vezes em considerar o que é o livre arbítrio e quão grandes são as vantagens advindas do fato de se ter uma firme resolução de usá-lo bem, assim como, de outro lado quão inúteis e vãos são todos os cuidados que afligem os ambiciosos, podemos excitar em nós a paixão e em seguida adquirir a virtude da generosidade” (p. 140). Uma nota da edição brasileira do Tratado diz que “a paixão da generosidade predispõe à virtude da generosidade, entendida como habitus implantado na alma” (p. 140). Podemos ver aqui como é que Descartes se confronta com uma das questões mais agitadas da filosofia moral da antigüidade. A filosofia de Platão, bem como a de Aristóteles fizeram um considerável esforço em especular sobre a natureza da virtude, mas a nenhum deles ocorreu pensar a virtude como o fortalecimento de pensamentos através dos movimentos dos espíritos. Notemos que da antigüidade ficam ressalvados os aspectos do hábito e da aquisição e de sua época e do mecanicismo, esse espírito geral do século XVII que Descartes assume desde os inícios de sua obra, permanece a idéia de movimento. Mais uma vez, podemos dizer, realiza-se em Descartes uma síntese de dois mundos.

Se quisermos agora encaminharmo-nos para a conclusão de nossa comunicação, podemos ver que nos dois últimos artigos do Tratado das Paixões encontramos algumas indicações para o significado da liberdade na obra, veremos que no artigo 211, Descartes insiste para que estejamos bem preparados para usar os remédios contra as paixões, mas o remédio mais geral que ele apresenta contra a agitação das paixões é “ficar advertido e lembrar-se de que tudo quanto se apresenta à imaginação tende a enganar a alma e a fazer com que as razões empregadas em persuadir o objeto de sua paixão lhe pareçam mais fortes do que são, e as que servem para dissuadir, muito mais fracas” (p. 153). Notemos que Descartes cria aqui algo como um combate entre as razões de persuadir e dissuadir. E quando a persuasão pode sofrer alguma delonga, o melhor é

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distrair-se com outros pensamentos e distrair-se a urgência for grande, deve então a vontade aplicar-se a considerar “e a seguir as razões contrárias àquelas que a paixão representa, ainda que pareçam menos fortes: como quando se é inopinadamente atacado por algum inimigo e a ocasião não permite que se empregue algum tempo em deliberar” (p. 194). No fechamento da obra aqui analisada, Descartes fala de prazeres da alma que ela tem sozinha e de prazeres que ela tem em comum com o corpo. Os primeiros só dependem do pensamento puro, os segundos dependem das paixões. Assim, há homens que nas paixões apreciam as doçuras desta vida e também os que experimentam amargura por não saber empregá-las quando a fortuna é adversa (p. 194). A conclusão do livro, que por coincidência é a conclusão da última obra escrita de Descartes, é sintomática e programática porque ele se reporta à sabedoria que faz “com que a gente se torne de tal forma seu (das paixões) senhor e a manejá-las com tal destreza que os males que causam são muito suportáveis, tirando-se mesmo certa alegria de todos” (p. 194). Ora, tudo isso é resultado da vontade livre e, deste modo, o ideal de se tirar proveito das adversidades recebe aqui a precisão final de um livro que se chama Trata do das Paixões da Alma que pesquisa as paixões e antepõe a seus possíveis males a deliberação da vontade livre e indica também a direção final de toda uma obra que a história da filosofia acolheu como cartesianismo que pode ser lido como ponto de confluência de uma filosofia do sujeito com o espírito racionalista do século XVII.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DESCARTES, R. Correspondance. In: ADAM, C. e TANNERY, P. Oeuvres de Descartes. Paris: Vrin, 1964. (v. III, IV e V.)

————. Meditationes de prima Philosophia In: ADAM, C. e TANNERY, P. Oeuvres de Descartes. Paris: Vrin, 1964. (v. VII.)

————. Principia Philosophiae, In: ADAM, C. e TANNERY, P. Oeuvres de Descartes. Paris: Vrin, 1963. (v. VII(1).)

————. As paixões da alma. In: DESCARTES, R. Discurso do Método e As Paixões da Alma. Trad. de J. Guinsberg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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————. Les Passions de l´Âme. Introdução e notas de G. Rodis-Lewis. Bibliothèque des Textes Philosophiques. Paris: Vrin, 1970.

————. Tratado do Homem. In: MARQUES, J. A Concepção de Homem em Descartes. São Paulo: Loyola, 1993.

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