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As significações do herói : três representações de Tiradentes no cinema nacional

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

BENEDITO APARECIDO CRUZ

AS SIGNIFICAÇÕES DO HEROI: TRÊS REPRESENTAÇÕES DE TIRADENTES NO CINEMA NACIONAL

CAMPINAS 2017

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AS SIGNIFICAÇÕES DO HEROI: TRÊS REPRESENTAÇÕES DE TIRADENTES NO CINEMA NACIONAL

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Multimeios.

ORIENTADOR: PROF. DR. ERNESTO GIOVANNI BOCCARA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO BENEDITO APARECIDO CRUZ, E ORIENTADO PELO PROF. DR. ERNESTO GIOVANNI BOCCARA.

CAMPINAS 2017

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BENEDITO APARECIDO CRUZ

ORIENTADOR: ERNESTO GIOVANNI BOCCARA

MEMBROS:

1. PROF. DR. ERNESTO GIOVANNI BOCCARA 2. PROFA. DRA. NANCY DE PALMA MORETTI 3. PROF. DR. FÁBIO NAURAS AKHRAS

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

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À minha esposa Maria Alice, a principal responsável por este trabalho existir.

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Ao meu orientador, Ernesto Giovanni Boccara, pela sua vasta competência intelectual, pela assistência nas diversas etapas da pesquisa e principalmente pela sua amizade;

Aos professores doutores Fábio Nauras Akhras e Nancy de Palma Moretti, pela participação na banca de qualificação e pelas importantes sugestões e críticas encaminhadas;

Aos professores doutores Ignacio Del Valle Dávila, Marcius Freire e Nuno César de Abreu (in memoriam), por me apresentarem os estudos do cinema nacional, da Nova História, da relação cinema-História e pelo incentivo a continuar nesse tema;

A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para que eu chegasse até aqui;

Ao meus pais, dona Conceição (in memoriam) e seu Osmar (in memoriam), por sempre terem acreditado em mim;

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A proposta desta dissertação é analisar o cinema de reconstituição histórica no Brasil em diferentes períodos da história recente do país, desde o período da ditadura militar (década de 1960) até o momento atual (década de 2010). A dissertação pretende observar de que maneira o filme ficcional com temática histórica procurou construir uma memória coletiva sobre um determinado passado histórico e de como essa construção foi influenciada pelo momento histórico da produção do mesmo. Para esse fim, serão analisados três filmes - Tiradentes, o Mártir da Independência (1976), de Geraldo Vietri, Tiradentes (1999), de Oswaldo Caldeira, e Joaquim (2017), de Marcelo Gomes que contam a história de Joaquim José da Silva Xavier.

Palavras-chave: pesquisa histórica; cinema brasileiro; filmes históricos; Tiradentes

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The purpose of this research is to analyze the historical representation in Brazilian cinema from the period of the military dictatorship (1960s) to nowadays (decade of 2010). The research intends to observe how the fictional film with historical theme sought to build a collective memory about a certain historical past and how this construction was influenced by the historical moment of its production. Three films will be analyzed - Tiradentes, o Mártir da Independência (1976), directed by Geraldo Vietri, Tiradentes (1999), directed by Oswaldo Caldeira, and Joaquim (2017), directed by Marcelo Gomes, all of them telling the story of Joaquim José da Silva Xavier.

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Figura 1 – “Encouraçado Potemkin”...21

Figura 2 – “O Terceiro Homem”...21

Figura 3 – Cartaz de “Tchapaïev”...23

Figura 4 – Flora Foge De Gus...28

Figura 5 – A Ku Klux Klan salva a cidade... 29

Figura 6 – “Encouraçado Potemkin”...32

Figura 7 – Cartaz do filme “Sinhá Moça”...36

Figura 8 – Cartazes de Os Inconfidentes, Xica da Silva e Como Era Gostoso meu Francês...37

Figura 9 – Cena de Quilombo...38

Figura 10 – Cena de Carlota Joaquina...39

Figura 11 – Cena de Tiradentes (1917) ...45

Figura 12 – Litografia de Décio Villares...50

Figura 13 – “Martírio de Tiradentes”, de Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, óleo sobre tela ...51

Figura 14 – “Tiradentes Esquartejado”, de Pedro Américo, óleo sobre tela...52

Figura 15 – “A leitura da sentença”, de Eduardo Sá, óleo sobre tela...53

Figura 16 – “Resposta de Tiradentes à comutação da pena de morte dos inconfidentes”, de Leopoldo de Farias, óleo sobre tela...54

Figura 17 – Painel Tiradentes (detalhe), de Cândido Portinari, 1949, Memorial da América Latina...54

Figura 18 – Menino Tiradentes solta passarinhos...55

Figura 19 – Tiradentes criança se revolta contra a escravidão...56

Figura 20 – Tiradentes na recepção ao Visconde de Barbacena...56

Figura 21 – A leitura da constituição americana...58

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Figura 24 – O bordel...62

Figura 25 – O batizado...63

Figura 26 – Final do filme...64

Figura 27 – Cartaz de Joaquim...65

Figura 28 – Joaquim perseguindo contrabandistas...67

Figura 29 – Joaquim e comitiva no “sertão proibido” procurando ouro...68

Figura 30 – A canção do índio e do negro...68

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Introdução ... 12

1.Cinema e História, História e Cinema ... 15

1.1. Pensando as relações entre cinema e história ... 15

1.2 O conceito de documento/monumento e o cinema histórico ... 17

1.3 Marc Ferro e o cinema-história ... 19

2. A imagem cinematográfica ... 25

2.1. A representação do real ... 25

2.2 A montagem ... 26

2.2.1 A escola americana ... 27

2.2.3 A escola russa ... 31

3. História e Cinema no Brasil ... 35

3.1 O gênero histórico no Brasil ... 35

3.2 A Estética do Filme Histórico Brasileiro ... 41

4. Representações Cinematográficas da Inconfidência Mineira ... 45

4.1 A construção da imagem do Tiradentes ... 46

4.2 Tiradentes no cinema: O Mártir da Independência (1977), de Geraldo Vietri... ... 55

4.3 Tiradentes no cinema: Tiradentes (1999), de Oswaldo Caldeira ... 59

4.4 Tiradentes no cinema: Joaquim (2017) de Marcelo Gomes ... 66

5. Considerações Finais ... 72

Referências ... 76

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I

NTRODUÇÃO

[...] Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde em lugar mais público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregado em postes pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Cebolas, aonde o Réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e a Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável Réu [...] (Autos de Devassa da Inconfidência Mineira)

“Cinema e História” tornou-se, nos últimos tempos, sinônimo de campo de estudos inovador nas ciências sociais e humanas. Um campo de estudos talvez mais comentado e aceito como relevante do que pensado na sua complexidade e nos seus desafios enquanto espaço de reflexão necessariamente interdisciplinar. A designação “Cinema e História” nos remete ao livro de título homônimo de Marc Ferro (FERRO, 1992), historiador francês cujos trabalhos alcançaram notoriedade e fizeram escola não só na França, mas também em outros países, como o Brasil. Com isso, a associação desse campo de estudos à figura de Marc Ferro torna-se ainda mais imediata, embora outros filósofos e historiadores tenham tratado desse assunto. Entre outros podemos citar Robert Rosenstone (ROSENSTONE, 2006), Gilles Deleuze (DELEUZE, 1983), Siegfried Kracauer ((KRACAUER, 1960) e Pierre Sorlin (SORLIN, 1980)

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A proposta desta dissertação é analisar o filme de reconstituição histórica1 ou

simplesmente filme histórico no Brasil em três diferentes períodos da História recente do país: o período da ditadura militar (década de 1970), a consolidação da democracia e a retomada da produção cinematográfica nacional (década de 1990/2000) e a atualidade. O recorte a ser utilizado para essa pesquisa é a produção brasileira de filmes de reconstituição histórica que exploraram a temática da Inconfidência Mineira no período de 1970 a 2017. A dissertação observará de que maneira o filme ficcional com temática histórica procurou construir uma memória coletiva sobre um determinado passado histórico e de como essa construção foi influenciada pelo momento histórico da produção do mesmo. Para esse fim, serão analisados três filmes - Tiradentes, o Mártir da Independência (1976), de Geraldo Vietri, que conta uma história do Tiradentes desde a infância até a morte na forca, Tiradentes (1999), de Oswaldo Caldeira, que foca no desenrolar da Inconfidência ou Conjuração Mineira e Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, este último contando uma possível história do alferes Joaquim José da Silva Xavier antes dos acontecimentos retratados pelo filme de Oswaldo Caldeira. Essas três obras foram produzidas em contextos onde diferentes realidades faziam parte da sociedade brasileira. No primeiro, tinha-se a euforia gerada pelo milagre econômico, mas também a repressão política presente em um Estado autoritário. No segundo, a expectativa da retomada das produções brasileiras em um contexto democrático e livre para experimentações, porém em um período político de desânimo e descrença nas instituições, apresentando o Brasil como país inviável. No período de produção do terceiro filme, tem-se um país indeciso entre que caminho tomar e perplexo diante de uma permanente crise das instituições democráticas, de fluxos e contra fluxos políticos, traições e delações.

Durante o mesmo período (da década de 1960 à década de 2010) a visão dos historiadores e a consequente produção historiográfica acadêmica sobre o tema da Inconfidência Mineira sofreu importantes e radicais alterações. Antes da metade da década de 60, os textos têm em comum a preocupação com a construção de uma versão para a Inconfidência Mineira na qual se acentua o caráter nacionalista e patriótico. Fazendo uma leitura hoje considerada superficial dos Autos de Devassa, esses autores empenham-se na busca da "verdade" histórica, sobre o papel desempenhado por seus protagonistas e, sobretudo, que reforce a legitimidade da Inconfidência Mineira como movimento precursor

1 Os “filmes de reconstituição histórica” serão entendidos aqui como aqueles filmes que buscam

representar ou estetizar eventos ou processos históricos conhecidos, e que incluem entre outras as categorias dos ‘filmes épicos’ e também dos filmes históricos que apresentam uma versão romanceada de eventos ou vidas de personagens históricos.

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da Independência e de Tiradentes como seu mártir e herói máximo da nação (FONSECA, 2002). Já na década de 1970, Kenneth Maxwell, em seu A devassa da devassa (MAXWELL, 1978) verticalizou a análise aprofundando-se na documentação mais conhecida sobre a Inconfidência, articulando-a a outras fontes, propondo uma abordagem inovadora e mais complexa do movimento, sem negligenciar os indivíduos que dele participaram, estabelecendo o centro de sua análise nas relações sociais estabelecidas entre os grupos atuantes no movimento. Essa obra tornou-se uma referência fundamental nos estudos sobre a Inconfidência a partir da década de 70. Como trabalhos posteriores que tratam sobre o tema pode-se citar História do Brasil (FAUSTO, 1994), Sociedade e História do Brasil (VILLA e MACHADO NETO, 1999) e 1789 (DORIA, 2014).

O trabalho é dividido em seis capítulos. No primeiro capítulo serão exploradas as ideias de Jean Baudrillard, André Bazin e Siegfried Kracauer sobre a representação do real no cinema e as ideias de Marc Ferro sobre as intersecções entre História e cinema e as representações da História no cinema. O segundo capítulo fará um percurso entre as ideias de Flusser, Bazin e Deleuze sobre as técnicas de estruturação e de montagem do cinema para que o filme atinja uma verossimilhança que o aproxime de uma descrição do real. Será apresentada principalmente a teorização por Deleuze das escolas americana e soviética de montagem. O terceiro capítulo faz uma retrospectiva geral do desenvolvimento do filme histórico no Brasil, desde o início do século XX até o período atual, apresentando as obras mais significativas e sua relação com a época de produção. A estética naturalista, predominante em filmes de caráter histórico, será apresentada e descrita, com base no estudo desenvolvido no capítulo dois. No capítulo quatro serão apresentados três filmes históricos ou ficcionais que exploram a vida de Tiradentes e que são objeto desta dissertação. Tentar-se-á relacionar esses três filmes ao contexto histórico de produção dos mesmos e como ambos dialogam com a época em que foram realizados.

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1.C

INEMA E

H

ISTÓRIA

,

H

ISTÓRIA E

C

INEMA

1.1.

P

ENSANDO AS RELAÇÕES ENTRE CINEMA E HISTÓRIA

Nos primeiros anos após a invenção do cinema pelos irmãos Lumière, a produção de imagens em movimento que pudessem ser exibidas posteriormente despertou a curiosidade de muitos. No entanto, dificilmente se poderia imaginar que o recém-criado cinema pudesse vir a ser tão discutido pelos historiadores, não somente em relação à história do próprio cinema, mas principalmente pela importância que o mesmo viria a ter para a própria História. Tal é essa importância que se criou a expressão “Cinema-História”.

Estudos sobre a relação entre Cinema e História não são, contudo, tão recentes como podem parecer à primeira vista. Pelo contrário, nasceram com o próprio cinema, no final do século XIX. Nessa época, pessoas ligadas à produção de filmes reconheciam não só o fato de a História estar sendo registrada por esse novo meio, mas também o caráter educativo nele contido, o que as levou a pensar na importância da preservação desses materiais. Escreve Kornis (1992, p. 240):

O primeiro trabalho de que se tem notícia relativo ao valor do filme como documento histórico data de 1898, foi escrito pelo câmera polonês Boleslas Matuszewski e se intitula "Une nouvelle source de l'histoire: création d'uo dépõt

de cinematographie historique". Integrante da equipe dos inventores do

cinema, os Irmãos Lumière, Matuszewski defendia o valor da imagem cinematográfica, que era por ele entendida corno testemunho ocular verídico e infalível, capaz de controlar a tradição oral. Para ele, "o cinematógrafo não dá talvez a história integral, mas pelo menos o que ele fornece é incontestável e de uma verdade absoluta". Sustentando o argumento de que a fotografia animada era autêntica, exata e precisa, Matuszewski pretendia criar um "depósito de cinematografia histórica" a ser organizado a partir da seleção dos eventos importantes da vida pública e nacional considerados de interesse histórico. Ele julgava que o evento filmado era mais verdadeiro que a fotografia, na medida em que esta última admitia retoques. Deve-se observar, contudo, que Matuszewski atribuía esse valor ao filme documentário que, aliás, era a produção dominante na época.

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Assim, o fato de o chamado “primeiro cinema” consistir exclusivamente numa sucessão descontínua de registros visuais não impediu que, desde os seus primórdios, o cinema fosse pensado enquanto fonte de conhecimento da História. Sem desenvolverem uma história com começo, meio e fim, esses filmes exibiam povos e territórios longínquos e acontecimentos variados, tornando-se ainda instrumentos de investigação científica e atração nas feiras universais que celebravam as novidades técnicas. Derivado de formas populares de cultura, como o circo e a pantomima, o cinema dos primeiros tempos se firmava na tradição de um espetáculo popular, de grande vitalidade no século XIX. A partir da década de 1910, o cinema multiplicou seus recursos de representação e o êxito de sua produção industrial trouxe consigo filmes voltados para a reconstrução do passado histórico e concebidos no padrão do chamado cinema narrativo. Por outro lado, as vanguardas artísticas europeias experimentavam novas formas de fazer cinema. Na Rússia, em particular, foram produzidos filmes sobre a História do país cuja concepção estética se inseria no contexto das transformações políticas e sociais que tomavam conta da sociedade em sua fase pós-revolucionária2. O cinema demonstrava, assim, um poder não só de registrar o presente, mas

também de contar a História segundo diferentes formas.

Embora mesmo nesses primeiros tempos o cinema se encontraria diversas vezes com a História, seja em filmes retratando episódios históricos, seja em documentários – já em 1895, Felix Règnault filmou e exibiu, na Exposição Etnográfica da África Ocidental, aquele que foi o primeiro documentário cinematográfico (FREIRE e PENAFRIA, 2007) –, foi apenas na segunda metade do século XX que se começou a tratar mais seriamente do tema. A publicação, em 1947, do livro De Caligari a Hitler (KRACAUER, 1988), do jornalista alemão e teórico do cinema Siegfried Kracauer, trouxe uma percepção distinta das relações entre Cinema e História. Ao trabalhar sobre o cinema alemão a partir dos anos 1910, o autor argumentava que o cinema expressionista refletia os anseios da sociedade alemã da década de 1920, prenunciando a ascensão do nazismo. Kracauer estabelecia uma relação direta entre o filme e o meio que o produzira. Acreditava ainda que este se distinguia das artes tradicionais por ser fiel à realidade de uma época: como a fotografia era sua matéria-prima, o cinema era o único instrumento capaz de registrar a realidade sem deformá-la. Kracauer relacionava a tarefa do historiador à do fotógrafo, considerando que ambos deviam examinar meticulosamente os detalhes e os fatos objetivos. Um pioneiro em estabelecer relação entre

2 Conforme será visto na discussão sobre as escolas americana e russa de montagem

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filmes e períodos históricos, sua obra principal foi Theory of film: the redemption of physical reality (KRACAUER, 1960). Nessa obra, o autor analisa exaustivamente as potencialidades do cinema como meio de reprodução da realidade, sistematizando uma concepção realista do cinema. Embora se possa inicialmente verificar que as ideias de Kracauer se aproximam das ideias de outro importante pensador do cinema, André Bazin, há algumas diferenças entre esses pensares.

Para Bazin (2014), o cinema é guiado pelo realismo:

[...] podemos considerar que o cinema tendeu continuamente para o realismo. Entendamos, grosso modo, que ele quer dar ao espectador uma ilusão tão perfeita quanto possível da realidade, compatível com as exigências lógicas da narrativa cinematográfica e com os limites atuais da técnica. (BAZIN, 2014, pp. 291)

Seu pensamento é de que o cinema se trata de um prolongamento da realidade, ou seja, não importa a verossimilhança do filme com a realidade, mas sim de que o cinema funcione como uma adição à essa realidade. Sua noção de “realismo ontológico” trata de um cinema que mostra mais a essência dessa realidade do que a representa. Já para Kracauer, a relação entre cinema e realidade é de outra ordem. Para Kracauer, o cinema registra nada mais que os aspectos já vistos pelo espectador para que, assim, revele aquilo que não é compreensível imediatamente. Em outras palavras, as ideias de Bazin destacam a capacidade do cinema de participar da vida existente, agindo com e sobre o mundo. A concepção de Kracauer é que o cinema é apreendido como um suporte, onde o mundo é reproduzido e documentado, ou seja, permitindo-se analisar os acontecimentos. Segundo Robert Stam,

Teóricos como André Bazin e Siegfried Kracauer transformaram o realismo supostamente intrínseco da câmera no fundamento de uma estética democrática e igualitária. Os meios mecânicos de reprodução fotográfica, para esses teóricos, garantiam a objetividade essencial do cinema. (STAM, 2003, p. 93)

1.2

O

CONCEITO DE DOCUMENTO

/

MONUMENTO E O CINEMA HISTÓRICO

Foi a partir da década de 1960 que as questões de ordem metodológica sobre a relação entre cinema e História passaram a ser discutidas no campo historiográfico, em função, sobretudo, da ampliação do significado do termo “documento”, graças aos trabalhos

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da chamada “Escola dos Annales”3, que nessa década iniciou um movimento que viria a se

chamar de “Nova História”4. O debate, que teve lugar no campo da reflexão da História nas

décadas de 1960 e 1970, ressaltou exatamente a importância da diversificação das fontes a serem utilizadas na pesquisa histórica, até então fortemente baseada na descoberta e análise de documentos. Assim, tomou-se como princípio que a memória coletiva e sua contrapartida formal, a História, originam-se de dois tipos de materiais: o documento, material escolhido pelo historiador para fazer sua ciência e o monumento, objeto físico ou virtual do passado que foge à escolha do cientista por ser consagrado sociologicamente pelo conhecimento coletivo. “O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos” (LE GOFF, 1990, p. 486). Essa separação entre documento e monumento foi problematizada no século XX tanto pela Escola dos Analles quanto por outros grupos de historiadores. Novos entendimentos passaram a apontar o quanto um documento pode também ser um monumento, desde que utilizado dessa forma pelos poderes dominantes (LE GOFF, 1990, p. 545). Assim, Le Goff conclui:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto documento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. [...] O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro — voluntária ou involuntariamente — determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo. É preciso começar por demonstrar, demolir esta montagem (a do monumento), desestruturar esta construção e analisar as

3 O desenvolvimento desse novo pensamento histórico é descrito em “A Escola dos Annales”

(BURKE, 2010)

4 Vários autores desenvolveram e compatibilizaram essas ideias, em paralelo com a Escola dos

Annales, como Jean Baudrillard e Paulo Virilio. Para Baudrillard (BAUDRILLARD, 1991) vivemos em uma era constituída por simulações e novas formas de cultura, tecnologia e, até mesmo, de organização social. No entender de Baudrillard a realidade deixou de existir. O que vivemos hoje é a representação da realidade, difundida, na sociedade pós-moderna, pelos meios de informação de massa. Porém a história é o nosso referencial que, muitas vezes, se encontra perdido. O cinema, para o autor, é um dos agentes que assume o papel de reorganizar essa história. Nesse processo, o cinema (meio) tem a função de mediar, através dos laços criados entre o passado e o presente, ou até mesmo entre o presente e o futuro. Paul Virilio (VIRILIO, 2005), por sua vez, soube relacionar história, cinema e visibilidade de maneira particular, ao descrever como eram utilizadas, de forma estratégica, as técnicas cinematográficas ao longo das duas grandes guerras mundiais.

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condições de produção dos documentos-monumentos. (LE GOFF, 1990, p. 545)

Da argumentação de Le Goff, chega-se a que, se todo documento pode ser monumentalizado pela História a serviço de alguma classe ou de algum poder, o monumento pode sofrer o processo inverso, ou seja, pode ser desconstruído, desmascarando seu discurso ao revelar as camadas de documentais que o constituíram. Marcos Napolitano ressalta que “ao contrário de uma separação rígida e estatutária entre documento e monumento, trata-se de operações culturais e intelectuais que, a um só tempo, monumentalizam ou desmontam as representações cristalizadas do passado” (NAPOLITANO, 2007, p. 66). O cinema é um campo propício para esse tipo de operação de memória, dado o caráter de espetáculo dessa arte. Segundo Napolitano, “arte e técnica se encontram no cinema de maneira estrutural, abrindo um campo de possibilidades sem limite a operações de monumentalização do passado, acessível a grandes plateias e, por isso mesmo, objeto de interesses econômicos e políticos diversos” (NAPOLITANO, 2007, p. 67). Todo filme pode ser tomado como documento histórico da época que o produziu. Como foi visto anteriormente, todo filme é uma representação do real e, como representação, pode ser manipulada pelos seus autores, produtores ou financiadores.

Portanto, há uma característica fundamental em filmes históricos, que é a monumentalização e/ou a desmonumentalização de monumentos históricos, através de um diálogo travado entre obra cinematográfica, memória social e historiografia. Assim, serão vistas neste texto as duas operações: a monumentalização de Tiradentes no filme de Vetri e a desmonumentalização do mesmo nos filmes de Caldeira e de Gomes.

1.3 M

ARC

F

ERRO E O CINEMA

-

HISTÓRIA

A partir da década de 70, o debate sobre essa relação História-Cinema recebeu a atenção de outros estudiosos, com o destaque para a obra do historiador Marc Ferro. Quando Ferro se decide pelo estudo do cinema como fonte historiográfica, ele já era um pesquisador respeitado e conhecido por suas obras sobre a História da Revolução Russa. É importante notar que, com esse objeto de pesquisa, Ferro já possuía enormes dificuldades para o acesso a documentos necessários ao seu trabalho. Evitando a censura às fontes escritas, Ferro se concentra em fontes audiovisuais. Ferro começou a trabalhar com filmes

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russos dos anos 1920, procurando unir sua experiência como consultor e realizador de filmes a leituras de escritos sobre o cinema russo. Seu primeiro texto nos Annales intitulou-se “Société du XX siècle et histoire cinématographique” (1968). Nesse trabalho, segundo Kornis (KORNIS, 2008), referia-se ao culto excessivo do documento escrito e alertava que, para analisar a época contemporânea, existiam documentos de um novo tipo e com uma nova linguagem que traziam uma nova dimensão ao conhecimento do passado. Ferro advertia para o desprezo das pessoas cultas do início do século pelo cinematógrafo, limitado a uma atração de feira, e o privilégio dado pelos historiadores, naquele momento, a um conjunto de outras fontes, como artigos de leis, tratados de comércio, declarações ministeriais, ordens operacionais e discursos. Os filmes dão a Ferro a possibilidade de penetrar em dados que de outra forma seriam inacessíveis. Ele escreve em Cinema e História (FERRO, 1992):

A imagem, o caráter artístico e ficcional do cinema, dificultam o controle das instituições (estado, partidos, políticos, sindicatos, etc.) sobre seu conteúdo. Dificultam sobretudo o controle por burocratas acostumados a ver no som, não na imagem, o verdadeiro perigo. O controle político incide sobre o som, sobre o que os personagens dizem, enquanto a censura moral é que corta o que o filme mostra. (FERRO, 1988, p. 85)

Nessa obra, o autor demonstra, através da análise de dois filmes, “O Encouraçado Potemkin” (1925) (Figura 1) e “O Terceiro Homem” (1949) (Figura 2), a utilização do cinema pela classe dominante a fim de conservar o status quo, da mesma forma que os diferentes governos se valem do mesmo instrumento com o intuito de veicular suas ideias e propostas. Ferro afirma:

Desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na História com filmes, documentários ou de ficção, que, desde a sua origem, sob a aparência da representação, doutrinam e glorificam. Na Inglaterra mostram essencialmente a rainha, seu império, sua frota; na França, preferiram filmar as criações da burguesia ascendente: um trem, uma exposição, as instituições republicanas. (FERRO, 1992, p. 13)

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Figura 1 – “Encouraçado Potemkin”

Fonte: www.imdb.com

Figura 2 – “O Terceiro Homem”

Fonte: www.imdb.com

Ferro vê, então, o cinema como a transmissão de valores de uma determinada sociedade, com o intuito de legitimá-la junto a seu público. Essa legitimação pode ser ainda mais explícita e mais facilmente conseguida através da utilização de fatos históricos. Na verdade, o chamado filme histórico teria por função vincular ao presente um fato ocorrido no passado de uma determinada sociedade. Sob esse ponto de vista, um filme histórico diria mais sobre o presente do que sobre o passado que deseja retratar. Dessa maneira, é necessário analisar aspectos do momento de produção do filme, a conjuntura histórica, social e política no momento específico de realização da produção, a fim de compreender quais aspectos da situação do presente estão representados no produto final.

O pesquisador deve, assim, segundo Ferro, valorizar o cinema como sendo um documento válido para discutir a História, tanto aquela retratada na tela quanto a que está por trás da produção de um determinado filme. Ao se utilizar o filme como objeto de estudo, é essencial salientar o fato de que esse é uma produção coletiva envolvendo um sem-número

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de pessoas (diretores, produtores, atores e responsáveis pelo estúdio no qual está sendo realizado o filme), que possuem suas expectativas particulares. O filme é produzido para alguém, para um determinado público e está classificado de acordo com um determinado gênero5. O verdadeiro real histórico dos filmes é o momento em que os mesmos são feitos

e não o descrito pelas imagens projetadas. A imagem construída sobre o passado ilustra e documenta esse período, mas é, também, uma possibilidade de interpretação, de conhecimento e de transcrição de um tempo (presente) sobre o outro (passado).

Ferro não se detém, em suas obras, em definir uma metodologia de análise fílmica para compreender as dimensões históricas dos filmes analisados. Os exemplos que expõe em seus trabalhos é que descrevem a maneira como trabalhou. Em seus trabalhos, o filme não é tomado como obra de arte, mas sim como um produto, um objeto, um documento. Ferro explica que um filme

Não vale apenas pelo que testemunha, mas pela abordagem sócio-histórica que o autoriza [...] É preciso aplicar esses métodos a cada substância do filme (imagens, imagens sonoras, imagens sem sonorização), às relações entre os componentes dessas substâncias; analisar nos filmes o roteiro, a cenografia, a escrita fílmica, as relações do filme com aquilo que não é o filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime político. Pode-se esperar assim compreender não somente a obra, mas também a realidade que ela figura. (FERRO, 1992, p. 104)

5 Os filmes da categoria “filmes históricos” podem enquadrar-se nos mais diferentes gêneros, como

comédia (por exemplo: “Carlota Joaquina”), drama (“Olga”), aventura (“O Caçador de Esmeraldas”) e romance (“Independência ou Morte”). Dessa forma, é interessante também verificar de que maneira os elementos históricos são apresentados nos diferentes gêneros de filme, procurando avaliar os possíveis motivos para a opção por essa forma narrativa.

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Figura 3 – “Tchapaïev”

Fonte: www.imdb.com

Em “Cinema e História” (FERRO, 1992), um dos filmes analisados é “Tchapaïev” (1934), de Serguei Vassiliev (figura 3). Nessa análise, Ferro demonstra claramente seu método de análise. Inicialmente, Ferro mostra o conteúdo explícito do filme: a organização do Exército Vermelho no final da década de 10 contra a desorganização do Exército Branco. Fica clara a ideologia stalinista. O que Ferro chama de “visível” é captado a partir de uma descrição do filme, feita em 1934, comparada a uma análise feita a partir das sequências principais do filme. Assim, Ferro compara a descrição do filme feito em 1934 sobre uma ação passada em 1919. Compara o momento referido (1919) com o momento vivido (1934), particularmente destacando o fato de que, embora se fale o tempo todo sobre o Exército Vermelho, Trotsky não é citado uma única vez.

A partir daí Ferro se detém ao não-visível do filme, analisando-o plano a plano. Ferro percebe que varia pouco: à utilização de planos gerais mostrando a multidão correspondem primeiros planos mostrando um ou dois atores. Há muitas sequências com apenas dois personagens, que mostram rivalidades, dominação e desprezo, mas que evoluem sempre para amizade, igualdade e obediência à hierarquia. Para Ferro:

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No nível implícito, os sistemas de relação entre os indivíduos se situam e evoluem no plano do funcionamento da família e não da luta de classes, que é apresentada apenas no quadro geral da guerra contra os Brancos[...]. No nível implícito se observa uma identificação coerente com o sistema de valores dos Brancos: recuperação pelo sangue e sacrifício, disciplina do exército, representação de ordens, legitimidade do saber institucionalizado, glorificação da família patriarcal e legítima obediência ao poder central [...] que é uma das características da época stalinista. (FERRO, 1992, p. 157)

Assim, se observa que, embora na aparência essa obra glorifique os valores revolucionários e a luta contra os reacionários, na realidade o tratamento dado aos personagens e conflitos não é revolucionário e destaca valores muito mais próximos daqueles que os personagens parecem combater. Dessa forma é possível perceber um discurso invisível do filme através da observação de seus elementos fílmicos que, comparado à lógica interna do filme, traz dele uma nova visão: de fato estamos vendo um filme que, tratando de um acontecimento de 1919, na realidade fala mais sobre a realidade de 1934.

(25)

2.

A

IMAGEM CINEMATOGRÁFICA

2.1.

A

REPRESENTAÇÃO DO REAL

O cinema existe porque, em última análise, um dispositivo mecânico ou eletrônico captou fragmentos da realidade e os transformou em uma sequência de fotografias em uma película fotossensível ou uma sequência de frames registrados por um “olho” eletrônico e gravados em uma mídia digital. Em ambos os casos, projetado em uma velocidade previamente calculada, o material captado em fragmentos converte-se em um filme: pedaços de realidade organizados segundo uma ordem temporal e espacial. O caráter fragmentário do cinema é projetado a uma velocidade que o olho e cérebro aceitam como imagem real em movimento. Note-se que existe apenas uma impressão de continuidade: esta impressão só é real porque o aparelho projetor determinou essa percepção do que é real. André Bazin escreve que “pela primeira vez, nada se interpõe entre o objeto inicial e sua representação, a não ser outro objeto. ” (BAZIN, 2014, p. 22). Do mesmo modo, o filósofo Vilém Flusser argumenta em seu livro “Filosofia da Caixa Preta”6:

O mundo representado parece ser a causa das imagens técnicas e elas próprias parecem ser o último efeito de complexa cadeia causal que parte do mundo. O mundo a ser representado reflete raios que vão sendo fixados sobre superfícies sensíveis, graças a processos óticos, químicos e mecânicos, assim surgindo a imagem. Aparentemente, pois, imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por cadeia ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ser símbolo e não precisar de deciframento. Quem vê imagem técnica parece ver seu significado, embora indiretamente. (FLUSSER, 1985, p. 9)

Essa possibilidade de reproduzir com fidelidade o real, sem a intervenção humana, ao contrário da pintura, dependente completamente da visão artística do pintor, dá à imagem técnica um poder de credibilidade e naturalidade jamais visto. Os espectadores são obrigados a acreditar na existência e na presença do objeto filmado. Ainda mais, “pela primeira vez, a imagem das coisas é também a da sua duração” (BAZIN, 2014, p. 24). A capacidade do cinema em reproduzir a realidade gera a credibilidade e naturalização do

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filme. Os mecanismos de criação da narrativa cinematográfica tratam principalmente de ocultar suas técnicas: a construção da narrativa e a fragmentação das imagens7.

Da fragmentação das imagens decorre o princípio da montagem cinematográfica: dois momentos diferentes, duas tomadas diferentes são unidas de modo a criar uma continuidade que não existiu na confecção do filme. A produção do filme não necessariamente segue a ordem do roteiro: as cenas ou planos são gravadas na ordem que melhor convém à produção do filme. O filme é feito por partes. O material produzido de forma desordenada será finalmente organizado na montagem, processo no qual efetivamente se cria o filme. A forma natural de percepção do espectador é reproduzida apenas nessa fase, permitindo assim que os sentidos do mesmo compreendam (de forma artificial) que essas imagens correspondem a uma realidade de fato. Além da montagem, o próprio som do filme muitas vezes não é gravado de forma simultânea sendo necessária sua mixagem em um estágio posterior à montagem. Esses mecanismos foram criados para que o filme se tornasse cada vez mais semelhante ao real mas, na verdade, o afastam da realidade e aumentam sua qualidade de espetáculo.

2.2 A

MONTAGEM

Bazin define a montagem como sendo a criação de um sentido que as imagens não contêm de forma objetiva, mas que procede diretamente de sua relação. Essa colagem de imagens é imperceptível para o espectador, pois o que vê na tela é feito para funcionar como uma extensão construída para ser semelhante ao que seus olhos estão acostumados a ver na realidade.

Há quatro escolas ou tendências de técnicas de montagem: a escola orgânica americana, a escola dialética soviética, a escola quantitativa francesa do pós-guerra e a escola intensiva do expressionismo alemão. Caracterizaremos a escola orgânica americana e a escola dialética soviética, as quais decorrem diretamente de concepções históricas e narrativas.

7 Ismail Xavier (XAVIER, 1977) resume a união definida por Bazin entre a realidade da imagem,

que deve ser respeitada pelo cineasta como fonte de acesso ao mundo, e a manipulação cinematográfica, que deve ser utilizada para melhor respeitar essa realidade: “há um ilusionismo legítimo que constitui a base para o verdadeiro realismo”; “tal mundo íntegro e intocável que se projeta na tela, construído à imagem do real, é um mundo de representação, imaginário”.

(27)

2.2.1A ESCOLA AMERICANA

Para Deleuze (1983), a escola americana de montagem se iniciou com D. W. Griffith, nos anos 10. Segundo Deleuze, nesse tipo de montagem a ideia é criar um tipo de organismo através da estruturação das imagens. Sob esse ponto de vista deleuziano, o real é algo orgânico que orienta a montagem e imprime unidade ao filme.

“A composição das imagens-movimento, Griffith a concebeu como uma organização, um organismo, uma grande unidade orgânica. Foi esta a sua descoberta. O organismo é primeiramente uma unidade no diverso, isto é, um conjunto de partes diferenciadas: há os homens e as mulheres, os ricos e os pobres, a cidade e o campo, o Norte e o Sul, os interiores e os exteriores, etc.” (DELEUZE, 1983, p. 39)

Deleuze chama de Montagem Alternada Paralela aquela em que a imagem de uma parte sucede a imagem de outra parte, de acordo com um ritmo ditado pelo diretor. A Montagem Alternada Paralela permite alargar o discurso do filme, trazendo para a ação a possibilidade de abordar vários espaços e tempos simultaneamente, jogando com flashbacks misturados ao tempo presente e adiantando o futuro ao espectador de forma que este conheça, de antemão, algum fato que um personagem da trama ainda desconheça. Pode também funcionar de forma explicativa, mostrando e reafirmando de forma pedagógica uma relação de causa e efeito entre um elemento orgânico do filme e sua oposição divergente. A relação na montagem paralela é, quase sempre, binária (bom/mau, rico/pobre, bonito/feio).

Um exemplo desse tipo de montagem é em uma cena de “O Nascimento de uma Nação”, de D. W. Griffith. Nesta cena ocorre uma perseguição da pequena Flora Cameron pelo negro Gus. Imediatamente antes desta cena, há um plano geral, mostrando um conflito de rua na cidade: os negros saem às ruas e querem tomar o poder. No plano seguinte, vemos a menina fugindo de seu perseguidor. A câmera a mostra inicialmente em plano médio, depois em primeiro plano, acentuando seu rosto de desespero (Figura 4). O negro Gus corre atrás da menina. A conclusão é óbvia: haverá uma dupla violação, a da menina e a da cidade, ambas protagonizadas por negros. A montagem paralela reforça o significado das cenas, mostrando que a ameaça individual e a coletiva são as mesmas. A menina consegue a salvação através da morte, atirando-se de um precipício, mas a cidade é salva graças ao aparecimento da Ku Klux Klan.

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Figura 4 – Flora Foge De Gus

Fonte: DVD “O Nascimento de uma nação” (Fox Film)

Além da montagem alternada paralela, esta cena também mostra outra característica da escola orgânica americana: a inserção do primeiro plano. O primeiro plano “confere ao conjunto objetivo uma subjetividade que o iguala ou até supera, como [...] os primeiros planos aterrorizados da jovem perseguida pelo negro ...” (DELEUZE, 1983, p. 39). A pequena Flora sai sozinha pelo campo e, a partir desse momento, os planos começam a se fechar, o perigo aumenta, a atenção se volta completamente para ela. O primeiro plano acentua seus sentimentos, o medo do perseguidor e sua solidão diante do perigo que se aproxima. Os planos acentuam a relação causa-efeito e a trazem para o plano afetivo.

A terceira figura da montagem, montagem concorrente ou montagem convergente, “faz alternarem os momentos de duas ações que vão se encontrar. E quanto mais as ações convergem, quanto mais a junção se aproxima, mais rápida é a alternância (montagem acelerada). ” (DELEUZE, 1983, p. 40). Assim, os diferentes planos mostram ações que opõem personagens bons e maus. Mas há também diferentes cenas onde ações de mesma natureza são convergentes: Flora corre em desespero fugindo do negro, na cena seguinte seu irmão corre com o cavalo na direção da câmera e na cena posterior o grupo de cavaleiros mascarados também vem em socorro dos brancos ameaçados

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Figura 5 – A Ku Klux Klan salva a cidade

Fonte: DVD “O Nascimento de uma nação” (Fox Film)

As ações convergentes tendem para um mesmo fim, chegando a tempo no lugar do duelo para inverter seu desfecho, salvar a inocência ou reconstituir a unidade comprometida, como a galopada dos cavaleiros que vêm socorrer os cidadãos (Figura 5). O clima da ação se dá quando o duelo entre as forças em oposição restabelece a ordem e o organismo ameaçado.

São estas as três formas de montagem ou de alternância rítmica: a alternância das partes diferenciadas, a das dimensões relativas, a das ações convergentes. Trata-se de uma poderosa representação orgânica que impele, assim, o conjunto e suas partes. O cinema americano vai tirar dela a sua forma mais sólida: da situação de conjunto a situação restabelecida ou transformada, por intermédio de um duelo, de uma convergência de ações. A montagem americana é orgânico-ativa. É errôneo acusá-la de se ter submetido a narração — ao contrário, é a narratividade que decorre desta concepção da montagem. (DELEUZE, 1983, p. 40)

Griffith, para Deleuze, teria inventado a montagem cinematográfica ao criar o que ele chama de imagem-ação. Esse tipo de imagem influenciaria por mais de cinquenta anos a produção cinematográfica dominante. Essa estrutura usada por Griffith foi responsável pela consolidação do mecanismo de representação clássico que caracteriza o cinema dramático narrativo. Diante desse tipo de estrutura, o espectador se vê diante do que melhor soube

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aproximar a crença na realidade do cinema com o meio de realizá-lo com tramas que tem como assunto a História. Griffith trabalharia principalmente com a temática histórica, produzindo grandes filmes onde procura reconstituir e reinterpretar a História8. Quando o

cinema precisa se impor como algo capaz de contar histórias ele conta a História para se legitimar, pois mostrando a História que o cinema pode comprovar a sua capacidade de mostrar/reconstituir o real: os primeiros grandes filmes foram históricos, como Cabíria (1914), de Pastrone e O Assassinato do Conde de Guize (1908), de Le Bargy e Calmettes.

É com Griffith que a montagem e o enquadramento colocam no cinema o ponto de vista do diretor a partir da lente da câmera, como se fosse o olho do narrador. Este fica, ao mesmo tempo, oculto tanto por um mecanismo técnico quanto pela impressão da realidade perpassada pela exibição da realidade, procurando dar verossimilhança ao que é exibido, mas ao mesmo tempo escondendo do expectador a existência de um fio condutor da história. Segundo Ismail Xavier:

Entre 1908 e 1913, Griffith redefiniu o papel do diretor de cinema como coordenador de fotógrafo, atores/atrizes e montagem. Em termos de linguagem, consolidou a figura do narrador, mão invisível que, através da organização das imagens, expões um ponto de vista, modula a emoção, argumenta, coloca o espectador na condição de “observador ideal dos fatos. (XAVIER, 1984, p. 49)

A impressão do real é outro elemento técnico que reafirma a crença na realidade do cinema: filmar não é apenas reter a realidade daquele instante. Os próprios artifícios da linguagem garantem que aquilo que é filmado apareça ao espectador como sendo a própria realidade ou uma extensão da mesma. Os cortes e a junção dos enquadramentos sucessivos diferentes (como na montagem paralela) aparecem aos olhos do espectador como sendo de uma continuidade natural. Assim, o que se vê na tela parece natural, mas é resultado de uma manipulação rigorosa. O ponto de vista do diretor também é oculto por essa continuidade, essa relação de causa e efeito aparentemente natural.

Em O Nascimento de Uma Nação a impressão de realidade é reforçada pela exposição de documentos históricos, inseridos no filme através de uma reconstituição de cenas originais. São quatro os momentos em que são inseridas no filme essas reconstituições: Lincoln chamando os voluntários para a guerra, a rendição do Sul, pelo

8 Outros filmes históricos de D.W. Griffith são Intolerância (1916), América (1924) e Abraham Lincoln (1930).

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General Lee, o assassinato de Lincoln e a Assembleia da Maioria Negra. As cenas de batalha são baseadas em quadros conhecidos do público. As reproduções desses acontecimentos conferem ao filme uma aura de “verdade”, o filme se torna uma peça de convencimento, uma reescrita, portanto, da História. Griffith se esforça em querer explicar e rever a História a partir de uma reconstituição reforçada pela inserção de documentos. O cinema, então, torna-se um lugar de redescoberta, desvendamento e reinvenção da História9.

Os filmes de Griffith são parte importante no surgimento da linguagem cinematográfica e só assim foram pelo fato de que, ao mesmo tempo em que um aparato técnico possível surgia, surgia também a necessidade de mostrar o mundo de uma certa forma. Desse modo, a montagem de Griffith cria, tanto na paralela quanto na convergente, relações causais onde, graças a essa concepção dita orgânica das imagens, os conflitos tendem a se dissipar através de uma ação onde o bom vence e o ruim perde. Cada um dos elementos dessa linguagem contribui para criar a verdade histórica: da unidade do país ameaçada até o restabelecimento dessa unidade, o filme se movimenta na direção de se estabelecer uma ordem que organiza o todo do filme, apresentando e explicando o lado bom e o lado ruim, os vilões e os heróis. Há um sentido na história que tende para um equilíbrio e, por maiores os problemas encontrados e os obstáculos vencidos, eles são necessários, pois só assim os verdadeiros heróis aparecem. O “happy-ending” é a conclusão natural do filme e elemento importantíssimo na linguagem desenvolvida por Griffith. Esses processos narrativos se mantem até hoje, sem grandes alterações.

2.2.3A ESCOLA RUSSA

Usando dos mesmos mecanismos que a escola americana, mas a partir de referenciais opostos, a Escola Dialética Russa10 introduz no cinema a montagem dialética.

Ao contrário do pensamento americano, os russos colocam o real sob suspeita e a crença não está nesse real como na escola americana, mas na câmera como reveladora do real. Em outras palavras, como a mediadora entre o real e o filme. O real como dado não existe, dado que a ideologia procura encobri-lo. A função da montagem passa a ser uma maneira

9 Um cineasta contemporâneo com o mesmo objetivo de provar uma tese através de um filme,

usado como peça de convencimento, é Oliver Stone em seu JFK (1991).

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de articular o real, fazendo com que o espectador veja o que se esconde por trás da ideologia. Onde para os americanos o cinema é uma extensão da realidade, para os russos este é um instrumento de revelação11. Sua montagem não é naturalista, procurando unir imagens que

se opõem e que se explicam. Se no cinema americano a sucessão de planos e sequencias deve se adaptar ao olhar do espectador, a escola russa procura o contrário: a montagem deve levar o espectador a pensar e descobrir o que há a mais do que aquilo que foi mostrado. Por exemplo, em seu filme A Greve (1924), Eisenstein fundia, na montagem, os rostos dos diversos agentes da polícia e dos espiões da burguesia a imagens de animais, principalmente cães e macacos. Um burguês é mostrado fumando charutos e, a seguir, o filme corta abruptamente para um porco chafurdando na lama.

Figura 6 – “Encouraçado Potemkin”

Fonte: DVD Continental Home Video

O exemplo clássico da escola russa é o filme “O Encouraçado Potemkin” de 1925, (Figura 6), dirigido por Eisenstein. Foi realizado por Eisenstein com o apoio dos líderes da Revolução Socialista e com o propósito de comemorar os 20 anos dos levantes de 1905 na Rússia czarista. O filme inicia retratando a revolta dos marinheiros do encouraçado Príncipe Potemkin Tavritcheski, representando o proletariado, cansados de serem maltratados pelos oficiais, representando a classe opressora. Em uma sequência importante, comida estragada é servida aos marinheiros. Alguns se recusam, e os oficiais ordenam sua execução. Sob muita tensão, os marinheiros são alinhados para o fuzilamento. Neste instante, um dos

11 Para Marc Ferro (FERRO, 1988) essa tendência vem do fato de que o Estado Soviético, que encomendava

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marinheiros se dirige aos guardas, gritando: "Irmãos! Vocês sabem contra quem disparam?" e, em seguida pede que decidam de que lado estão. Os guardas baixam suas armas e inicia-se um motim no navio. Uma outra inicia-sequência de quatro minutos retrata a chacina nas escadarias da cidade de Odessa, perpetrada pelo exército czarista. A sequência do carrinho de bebê desgovernado pelos degraus abaixo influenciou cineastas ao longo de todo o século XX. Nesse filme, o diretor desenvolveu um estilo de montagem que ele chamou de “patético’, a criação de oposições através de planos que vão de um oposto a outro, da tristeza à raiva, do conformismo à revolta.

Outro filme exemplar da montagem dialética é Outubro (1927), do mesmo Eisenstein. Em uma das sequências, relógios marcam a hora local de diversas capitais do mundo até o momento em que acontece a Revolução, quando os ponteiros de todos eles começam a girar rapidamente até alcançarem o horário russo. Ou seja, a Revolução de 1917 deveria influenciar o resto do mundo e desencadear a revolução comunista em nível mundial. Em outra sequência, o Governo Provisório isola bairros das classes populares, suspendendo pontes movediças e, assim, derrubando pessoas nas águas do rio. Aparece, então, a figura de um cavalo, morto, de longas crinas, pendurado no espaço que se abre na ponte, até cair na água, assim como aparecem revolucionários derrubados, sendo um deles com longos cabelos que escorrem no vão da ponte enquanto o corpo humano cai, num paralelo com a crina daquele animal. No final dessa sequência, aparece uma escultura egípcia antiga, evocando poder e autoridade. No entanto, o filme faz o espectador entender que são poder e autoridade do passado. Trata-se de tema recorrente no filme – a crítica de imagens mais ou menos sagradas.

Do mesmo modo, o patético não implica apenas uma mudança no conteúdo da imagem, mas também a sua forma. Com efeito, a imagem deve mudar de potência, passar a uma potência superior. É o que Eisenstein chama de "mudança absoluta de dimensão", para opô-la às mudanças apenas relativas de Griffith. Entenda-se por mudança absoluta que o salto qualitativo é tanto formal quanto material. A inserção do primeiro plano, em Eisenstein, marcará precisamente tal salto formal, uma mudança absoluta, isto é, uma elevação da imagem ao quadrado: em relação a Griffith, trata-se de uma função inteiramente nova do primeiro plano. (DELEUZE, 1983, p. 45)

A montagem dialética é um tipo de narrativa essencialmente visual que se adapta perfeitamente ao cinema mudo. A mensagem que essa montagem deve transmitir deve ser pensada, descoberta pelo espectador e não apenas a visão do que realmente aconteceu. A

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montagem dialética se concentra em destruir a aparência das coisas e reconstituí-la de uma forma nova. A oposição de planos cria um novo sentido, sentido este que se cria na consciência do espectador e a montagem é o elemento principal desta construção.

A montagem americana, portanto, pretende ser a extensão de uma realidade, onde o olhar da câmera nada mais faz que espelhar esse real. A escola russa duvida do real, por ver nesse real a ideologia e a construção de classe, fazendo em seu cinema uma manipulação desse ideal ideologizado e mostrando, nas relações que se estabelecem as imagens e no que o espectador constrói em sua mente, a realidade. Em Griffith, a formação de um significado se dá pelo sucessivo acréscimo de informações que se fornece ao espectador enquanto que, em Eisenstein, isso se dá por mostrar oposições e choques, deixando o espectador confuso. Em Eisenstein, a ideia de reconstituição histórica não existe, pois a verdade é uma ilusão produzida pelos poderosos: o cinema deve ser um exercício de interpretação histórica que leve a uma real compreensão do real. Assim, as formas de narração cinematográfica são totalmente comprometidas com os objetivos que se pretende tirar delas. Em outras palavras, não há concepção artística que seja desconectada de sua concepção política.

Eisenstein substitui a montagem paralela de Griffith por uma montagem de oposições; a montagem convergente ou concorrente pela montagem de saltos qualitativos ("montagem por saltos"). Todas as espécies de novos aspectos da montagem a ela se aliam, ou melhor, dela decorrem, numa grande criação não só de operações práticas como de conceitos teóricos: nova concepção do primeiro plano, nova concepção da montagem acelerada, montagem vertical, montagem de atrações, montagem intelectual ou de consciência... (DELEUZE, 1983, p. 46)

Comparando as duas construções, uma delas pretende ser a extensão do real enquanto a outra (por duvidar do real) tenta mostrar a “realidade” não nas imagens, mas nas relações que essas imagens têm entre si e no que o espectador constrói em sua mente.

Além da montagem, outros elementos devem ser observados: o argumento, o roteiro, o figurino, a música, o enquadramento da câmera, o desenvolvimento dos planos, etc. Cada um desses procedimentos e características cria um sentido ao mostrar personagens ou ações. Mas será nos enquadramentos, nos cortes, nos movimentos da câmera que o sentido “não visível”, a qual Marc Ferro dá principal importância, como visto no Capítulo 1, irá se formar.

(35)

3.

H

ISTÓRIA E

C

INEMA NO

B

RASIL

3.1 O

GÊNERO HISTÓRICO NO

B

RASIL

A presença de temas históricos no cinema brasileiro é quase tão antiga como o cinema de ficção. Já em 1909, a empresa “Photo-Cinematographia Brasileira” produzia Dona Inês de Castro, seguida de A Restauração de Portugal em 1640 e A República Portuguesa. Mas, como se pode constatar pelo título, o que chamou a atenção do cineasta foi a História de Portugal (BERNARDET e RAMOS, 1994, p. 11). Segundo Bernadet e Ramos, Paulo Emílio Salles Gomes dizia que, no início do século, os cineastas brasileiros não consideravam a História do Brasil suficientemente digna para se tornar assunto de filmes: só a História da antiga metrópole tinha validade. Os filmes históricos aparecem com mais força a partir de 1917, onde são encontrados títulos como: O Grito do Ipiranga, Heróis Brasileiros na Guerra do Paraguai, Tiradentes ou O Mártir da Liberdade (GOMES, 1996). O curioso é que estes filmes não foram produzidos por brasileiros, mas sim por imigrantes italianos, que trataram temas históricos tentando se entrosar na cultura de seu novo país12.

Entre as décadas de 1910 e 1970 do século XX, o cinema brasileiro não teve nenhum outro grande momento de intensa produção de filmes históricos, embora o gênero se manifestasse esporadicamente. Uma tentativa de retomada da produção de filmes históricos, ainda segundo Gomes (1996), se daria apenas na década de 1950, com o lançamento de Sinhá Moça (1953) do cineasta Tom Payne13. O entanto, filmes históricos são de produção

cara e o cinema nacional daquele período não tinha possibilidades econômicas para obras desse tipo. O Cinema Novo, movimento que transformou o cinema brasileiro nos anos 1960, não se voltou sistematicamente para o gênero histórico, excetuando-se Ganga Zumba (1963) de Cacá Diegues14.

12 Todos esses filmes desapareceram completamente, restando apenas anúncios dos mesmos em

jornais da época ou apenas algumas fotos soltas. Pode-se supor, dado o pensamento da época, que os filmes tinham tom grandioso e patriótico, exaltando os grandes vultos da história e os grandes acontecimentos produzidos por eles.

13 Tom Payne era argentino e diretor de diversos filmes para a Companhia Cinematográfica Vera

Cruz. Sinhá Moça teve boa carreira internacional, ganhando prêmios em Veneza, Berlim, Punta del Este e Havana (FABRIS, 2007).

14 A rigor, nem Ganga Zumba nem Sinhá Moça são filmes históricos, uma vez que baseados em

livros ficcionais. No entanto, Ganga Zumba retrata uma parte (romantizada) da vida de um personagem histórico.

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Figura 7 – Cartaz do filme “Sinhá Moça”

Fonte: Cinemateca Brasileira

A partir da década de 1970, o Ministério da Educação tomou a iniciativa e aconselhou os cineastas a se voltarem para o filme histórico, manifestando explicitamente o seu desejo propondo temas: FEB, CAN, Borba Gato, Anhanguera, Paes Leme, Oswaldo Cruz, Santos Dumont, Delmiro Gouveia, Duque de Caxias, Marechal Rondon (DUBOIS, 2016, p. 260).

Em 1972 seria lançado o filme Independência ou Morte, de Carlos Coimbra que, embora produzido com financiamento privado, seguia as diretrizes governamentais com tal rigor que a crítica intelectual não hesitou em acusa-lo de ser encomendado pela ditadura15.

O filme foi grande sucesso de público, ensejando a produção de novos filmes do gênero, como O Caçador de Esmeraldas (1979), de Osvaldo de Oliveira, Os Inconfidentes (1972),

15 Do material publicitário do filme consta o seguinte telegrama: “Acabo de ver o filme Independência ou

Morte e desejo registrar a excelente impressão que me causou PT Está de parabéns toda a equipe diretor VG atores VG produtores e técnicos pelo trabalho realizado que mostra o quanto pode fazer o cinema brasileiro inspirado nos caminhos de nossa história PT Este filme abre amplo e claro horizonte para o tratamento cinematográfico de temas que emocionam e educam VG comovem e informam as nossas plateias PT Adequação na interpretação VG cuidadoso na técnica VG sério na linguagem VG digno nas intenções e sobretudo muito brasileiro Independência ou Morte responde à nossa confiança no cinema nacional PT Emilio G. Médici Presidente da República.”

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de Joaquim Pedro de Andrade, Batalha de Guararapes (1978) de Paulo Thiago, Anchieta José do Brasil (1977) de Paulo José Sarraceni e Tiradentes, o Mártir da Independência (1976), de Geraldo Vietri16. Curiosamente, os remanescentes do Cinema Novo – e, portanto,

opositores ao regime militar – foram os responsáveis pela maioria dos filmes históricos da década, como Os herdeiros (Carlos Diegues, 1969), Os deuses e os mortos (Ruy Guerra, 1970), Pindorama (Arnaldo Jabor, 1971), Coronel Delmiro Gouveia (Geraldo Sarno, 1977), o já citado Os inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972), Como era gostoso meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971) e Xica da Silva (Carlos Diegues, 1976) (Figura 7).

Figura 8 – Cartazes de Os Inconfidentes, Xica da Silva e Como Era Gostoso meu Francês

Fonte: Cinemateca Brasileira

É notável nesses filmes a preocupação em desconstruir o discurso monumentalista oficial, assumindo na tela características históricas ausentes neste, como a herança indígena, negra e popular. Rebeldes por natureza, esses cineastas criaram produções denunciadoras e, por vezes, anárquicas e contestadoras.

Os anos 1980 foram pouco prolixos em filmes históricos, seja pela política adotada pela Embrafilme no período, seja pela crise econômica, que aumentou os custos de produção, seja pelo momento político de fim de ditadura e início de redemocratização do país. Segundo José Carlos Avellar (AVELLAR, 1991), “trata-se de dizer adeus ao país mesmo e ao cinema tal como ele vinha sendo feito no país até aquele momento”. Avellar ressalta que os realizadores na década de 80 estavam

16 A exceção de Os Inconfidentes, que teve premiada carreira em festivais internacionais, as outras

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[...] preocupados mais com a técnica de filmar do que com a expressão de uma qualquer coisa sentida aqui e aqui mesmo. Mas sem dúvida o que predominou em nosso cinema foram as experiências de encenação aqui entendida como um exercício meio acadêmico, como a sofisticação da forma, como técnica mais ou menos desligada do que se pretende dizer, como fórmula para ser aplicada com rigor profissional, como dublagem bem-feita. (AVELLAR, 1991, p. 3)

Figura 9 – Cena de Quilombo

Fonte: www.mubi.com

Sendo assim, a produção da primeira metade dos anos 80 se concentrou em filmes mais sofisticados quanto à forma, tentando de certa maneira fugir dos estereótipos fixados pelo cinema dos anos 60 e 70. Ainda assim se pode encontrar alguns filmes do gênero, como O País dos tenentes (1987) de João Batista de Andrade, Quilombo (1984) de Cacá Diegues (figura 8) e Chico Rei (1985) de Walter Lima Jr.17

17 O período se caracterizou também pela produção de diversos documentários de teor histórico,

como Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980), de Silvio Tendler, Jango (1984) também de

Sílvio Tendler, Guerra do Brasil (1987), de Sylvio Back e Jânio a 24 Quadros (1981) de Luís Alberto Pereira.

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Figura 10 – Cena de Carlota Joaquina

Fonte: www.wikicommons.org

Após a crise no final dos anos 80 e início dos anos 90, o chamado “cinema da retomada” foi marcado pela produção de vários filmes históricos. Não causa surpresa esse reaparecimento do filme histórico a partir do momento no qual o cinema nacional começou a se recuperar de sua grande crise e não deixa de ser significativo que o filme considerado como primeiro sinal claro da retomada seja Carlota Joaquina, princesa do Brasil, de Carla Camurati (1995). Depois de Carlota Joaquina (figura 9), vários foram os filmes mostrando interesse pela História do Brasil, como Lamarca (1994) e Guerra de Canudos (1997) de Sérgio Rezende, O que é isso, Companheiro (1995) de Bruno Barreto, Hans Staden (1999) de Luiz Alberto Pereira, Caramuru: a invenção do Brasil (2001) de Guel Arraes, A Paixão de Jacobina (2002) de Fábio Barreto e Desmundo (2002) de Alain Fresnot . O que se vê nessas produções não são histórias de amor ou melodramas nos moldes considerados por Doris Sommer (SOMMER, 2004), mas personagens apaixonados por suas batalhas contra o sistema e obstinados pela construção de sociedades utópicas e, também, vencidos, derrotados pelo sistema ou pela sociedade contra a qual se insurgiram. Mitos que se monumentalizam para que, quase imediatamente, serem vencidos, desconstruídos, desmonumentalizados. Segundo Miriam de Souza Rossini,

A crescente falência dos organismos tradicionais de representação política (partidos, sindicatos, etc.) [no final dos anos 80 e início dos anos 90] reforça as

Referências

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