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HISTORIOGRAFIA: (IN) CERTOS DIÁLOGOS. Teoria da História e Historiografia.

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HISTORIOGRAFIA: (in)certos diálogos

Regina Beatriz Guimarães Neto

Em A memória,, a história, o esquecimentona parte em que analisa a 85 história/epistemologia, particularmente no capítulo sobre a "representação

historiadora", Paul Ricoeur afirma categoricamente que entre as principais teses de seu livro encontra-se a que destaca a história como escritura, desde os arquivos aos textos dos historiadores. Itinerário que desenha a produção do conhecimento histórico e capta em seu movimento os diversos teste-munhos acolhidos pelos arquivos, utilizados pelos historiadores na produ-ção da escrita; escrita que se inscreve e ganha vida no mundo dos leitores.

O livro de história se apresenta como resultado de uma soma de tarefas realizadas: a pesquisa nos arquivos, relevando/selecionando documentos pertinentes; a construção de modelos de explicação/compreensão dos even-tos e experiências abordadas; e a obra de produção da escrita. Sem, no entanto, estabelecer um movimento de sucessão hierárquica - há muitos zigue-zagues nesse percurso - , o Evro contém os rastros ou vestígios de um "fazer história". É nesse âmbito que ganha importância a contribuição de Michel de Certeau, sublinhada tantas vezes pelos historiadores, no que se refere ao conjunto de ações designado como "operação historiográfica"2,

relacionando os procedimentos metodológicos ao lugar institucional da produção do discurso e às regras da escrita.

Essa perspectiva permite explorar a produção da escrita da história, de-monstrando que as pesquisas e análises aí desenvolvidas carregam as marcas das experiências das quais os textos são resultados. Os pressupostos teóricos e metodológicos, relativos ao modus opercmdi da historiografia, orientam as tarefas com quaisquer fontes utilizadas, sejam escritas, orais, iconográficas, entre outras. Aliás, o documento escrito deixa de ser a referência dominante

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que justifica o discurso historiográfico, abrindo espaço a uma enorme diver-sidade de fontes e testemunhos. Essa variedade documental passa, cada vez mais, a receber a atenção redobrada dos historiadores, que procuram legiti-má-la segundo as regras estabelecidas no campo da disciplina da história3.

Porém, é necessário chamar a atenção, no âmbito dos debates metodoló-gicos mais atuais, de que não basta conferir importância e significado à fonte documental ligada ao objeto de investigação. Deter-se em seu estudo também implica perceber o que a relaciona às suas condições de possibi-lidade: sejam sociais (onde se produziu e para quem se produziu), sejam técnicas (tais como os códigos, regras e convenções), relacionando-as às práticas culturais e às escolhas interpretativas4. O "documento" não nasce

documento, encontra-se assinalado pelos imperativos dos interesses dos presentes dos passados, no tempo em que foi produzido; e, também, faz parte de um conjunto de escolhas direcionadas pelo nosso presente ao pre-sente daquele passado especialmente visado. Portanto, o documento está imbricado às condições e relações que as sociedades mantêm com o seu passado, conferindo presença a um passado ou aos passados. Antônio Paulo Rezende com "fios delicados" traça as palavras entre os presentes e pas-sados tal qual o artesão:

Não podemos, no entanto, dispensar esse diálogo entre passado e presente. Ele é a base da vida, da narrativa e da constituição de memória. Sem ele, sepultaríamos qualquer reflexão sobre a história. A memória forta-lece a relação entre as experiências e as sensibilidades construídas [...]s

Os historiadores, farejando as "sensibilidades construídas", portanto, preferem falar em "diálogo" entre o presente e o passado, refletindo acerca das implicações deste diálogo:

Fato e documento histórico demonstram nossa visão atual do passado, num diálogo entre a visão contempo-rânea e as fontes pretéritas. Se insistimos na palavra diálogo é porque rejeitamos tanto a Weltanschauung da Escola Metódica do século XIX (que via no do-cumento e no fato uma verdade em si, autossuficiente e reveladora do passado) como certos traços da historio-grafia pós-moderna que relativizaram o documento a ponto de considerá-lo puro exercício de subjetividade

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Com grande acuidade, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior pode dizer, na introdução de seu livro, do tempo da história, do tempo sem ancoragens:

Escrever história é também mediar temporalidades, exercer a atividade de tradução entre naturezas, socie-dades e culturas de tempos distintos. Colocados nesta terceira margem da temporalidade, que é o presente, o historiador tem a tarefa de construir com sua narrativa Uma canoa queposba mediar, fazer se tocar as margens do passado e do futuro. 7

E com a história ao "rés-do-tempo", móvel, "liquefeito" (expressão que Durval Muniz utiliza) que a relevância dada aos mais variados tipos de fontes8 - orais, iconográficas, escritas - com suas especificidades históricas,

valoriza o movimento ou ação dos que professam a arte de pensar acerca das palavras, dos testemunhos e seus rastros no tempo. Os rastros não são evidentes, como indicam as reflexões metodológicas de Carlo Ginzburg5*,

observando a opacidade do mundo e ressaltando os testemunhos involun-tários dos quais nos fala Mare Bloch em seu livro póstumo Apologia da

História ou, o ofício do historiador10. E, neste aspecto, sobressaindo-se o his-toriador leitor de hieróglifos, deve-se assinalar ainda que, para Bloch, a imagem do historiador deve ser captada na oficina, lugar da prática, do exercício metodológico - direcionado pela pesquisa - , "munido de reflexão crítica", sem a qual nunca poderá instituir problemas. Problemas criados com paixão, no universo da imprevisibilidade das ações humanas. Nessa perspectiva, Antônio Montenegro, como historiador sensível aos signos da matéria da história - a vida também procura destituir a verdade de seu império totalizador, quebrando correspondências entre conceitos, palavras e o mundo material/real. Procura situar-se no fio da navalha, desnaturali-zando o jogo tenso da linguagem e da história:

{...] voltamos ao começo desse percurso, ao movimento, à impossibilidade de capturar de forma absoluta os sig-nificados; ou mesmo determiná-los, mediante uma re-lação que se deseja natural entre o dito e o vivido ou o que se imagina real. Rachar as palavras, romper seus liames naturalizados e evidentes com as coisas, com o que se denomina real. A história como o digladiar de sentidos [...]."

Percorrer essas trilhas é considerar as fontes e testemunhos em sua complexidade e enfrentar novos desafios. Assim é que, nas décadas de

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setenta/oitenta, as transformações no campo da disciplina da História não são apenas intensas, mas desestabilizadoras de verdades e procedi-mentos metodológicos, em que fonte documental e discurso passam a receber outro* tratamentcv e reflexões teóricas. Um salto que obriga his-toriadores a se desfazerem da ideia do "passado tal como foi", colado à explicação histórica, prisioneiros da evidência das fontes. Além disso, re-força a ideia de dar seguimento à incorporação/apropriação de novos es-paços temáticos e fontes ao território da história.

Autores como Ginzburg, sobretudo em O queijo e os vermes (1976) e Natalie Zemon Davis, em 0 retorno de Martin Guerre (1982), recusando dados massivos òu métodos estatísticos, questionam e analisam modos de racionalidade social. Ginzburg privilegia as formas de apropriação de tex-tos/livros por pessoas comuns, criticando a reificação da noção de cultura popular, e tanto ele quanto Davis procuram dar vida à maneira como ho-mens e mulheres percebiam e liam/construíam o mundo, mobilizando dis-cursos e práticas culturais. Nessa perspectiva, não apenas a micro-história, em suas diversas vertentes12, mas também vários estudos e investigações no

âmbito da história social e cultural oferecem leituras para a análise das estratégias dos atores, destacando as interações/vinculações e conflitos entre indivíduos, famílias e comunidades. Interações estas que constituem o mun-do social, danmun-do significamun-do à atuação de homens e mulheres em contextos históricos específicos. Por outro lado, no mesmo movimento, apresentam-se assinaladas as determinações que controlam ou limitam as trajetórias sociais e interferem no jogo das ações dos indivíduos e comunidades, contudo, va-lorizando o espaço das negociações políticas e culturais13.

Abrindo ainda mais essa senda, na esfera de outras interpretações histo-riográficas, a década de noventa amplia a crítica às noções globalizadoras, totalizantes, que enfocam as sociedades. São publicados artigos e livros que se propõem a estudar indivíduos, grupos, comunidades específicas, revelando diversas lógicas que se mesclam e/ou convivem entre si em dife-rentes planos e situações. No entanto, estas maneiras práticas de vivenciar e pensar o mundo são mobilizadas segundo diferentes contextos de discur-sos e experiências, quando os indivíduos lançam mão de uma pluralidade de possibilidades. Lógicas estas que podem ser designadas como "estilos de racionalidade"14.

Ao mesmo tempo em que essas abordagens bastante inovadoras, valo-rizando enfoques diferenciados - sobretudo, as ações dos atores sociais e a recusa a projetos de uma história global ocupam cada vez mais espaço no

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campo historiográfico, a importância do estatuto narrativo da história apa-rece sendo amplamente discutida. Não se trata da "história-narrativa" (des-crição que coloca em cena indivíduos e acontecimentos reveladores de uma verdade primeira) ou "retorno da narrativa" (alterando perspectivas de aná-lise "entre acontecimentos e estruturas"). A problematização que estabelece um novo patamar de questionamento é a que reflete sobre o próprio estatuto do conhecimento histórico. A história é pensada como texto, não mais a expressão técnica de um repertório de palavras coerentes, dispostas a cum-prir sua missão empreendendo análises - análises das estruturas - , mas uma escrita tecida com palavras - aquilo que se tece, como para os romanos - , produzindo deslocamentos semânticos, estruturando-se em relato15.0 relato

é tributário "[...] do valor da linguagem literária - que tem como material as palavras e suas relações - diz respeito ao novo, ao inesperado, à mutação, à invenção" [...], como assinala Roberto Machado16.

As abordagens, os procedimentos e as práticas metodológicas frequen-temente indicam opções diversas, considerando a multiplicidade das interpre-tações. E são bem-vindas, ou deveriam ser. Do mesmo modo, a prática da escrita, na construção propriamente narrativa da história, coloca desafios constantes que, muitas vezes, se contradizem/opõem e/ou estabelecem ricos diálogos e tecem histórias, com as quais lemos, discutimos e analisamos as relações entre o presente, o passado e o futuro.

História e Narrativa

A história que nos arrasta para a curiosidade e o conhecimento e -mais uma vez, reportando-me a Mare Bloch - "nos ajuda a viver me-lhor"17 narra e coloca em cena personagens, acontecimentos (irrupções),

paisagens, estruturas, expostas articuladamente pelo movimento do en-redo. Estudar e dar atenção às dimensões retórica e narrativa do discurso da história, é hoje visto como fundamental ao debate n£ste campo de saber. E, nessa perspectiva, deve-se compreender a retórica não como mera sedução ou indução ao erro, mas trabalho da persuasão, constituindo significados e produzindo percepções.

A construção narrativa pode ser vista como o coroamento do ofício do historiador, praticado nas diversas fases de seu trabalho. Nessa trilha, con-sidera-se que a prática historiográfica atual procura romper, por um lado, com as barreiras erigidas pelos critérios de cientificidade que impõem o reinado do documento escrito e oficial; por outro, afasta-se cada vez mais da ideia de que a produção do conhecimento histórico prescinde de uma

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estrutura narrativa18. Reconhecer o importante papel que desempenham as

figuras de linguagem e os procedimentos da narração na produção do tex-to histex-toriográfico, leva-nos a questionar o conhecimentex-to histórico sob no-vas bases e a assinalar a decisiva contribuição de historiadores, desde a década de 1960/1970, como Paul Veyne19. Este autor vincula a

compre-ensão histórica à atividade narrativa e passa a interrogar e desafiar a comu-nidade dos historiadores acerca do estatuto narrativo da história e suas implicações para a produção do conhecimento; entende que o fato de um acontecimento figurar numa trama é o que confere inteligibilidade ao mes-mo e seu estatuto histórico, sem negligenciar a sua especificidade. É muito conhecida a sua asserção: "Um acontecimento histórico não é somente o que acontece, mas o que pode ser narrado"20. Veyne coloca em outro

pa-tamar as grandes querelas debatidas pela historiografia, no século XX, so-bretudo acerca do factual e da história quantitativa. Nesse sentido, prioriza a maneira como os historiadores utilizam e dispõem os resultados de suas pesquisas na composição textual (o tecido narrativo). Mais importa, para ele, é o quê e como este acontecimento pode ser narrado, sejam dados históricos, números, eventos, etc. A narrativa integra acontecimentos diver-sos e dá-lhes significados, trazendo pontos de vista diferenciados, possibi-litando ao historiador elaborar um discurso sobre o passado, presença ou efeito de presença, assinalando que é o presente que elabora o índice acerca dos estudos sobre o passado.

Da mesma forma, o filósofo francês Paul Ricoeur assevera que há trama literária todas as vezes que a história reúne fragmentos múltiplos e confere sentido à diversidade, produzindo efeito de coesão, em que novas signifi-cações são dadas às circunstâncias, objetivos, fins e acasos das ações hu-manas; movimento que exige atenção redobrada diante das figuras retóricas utilizadas e procedimentos narrativos.

A escritura da história compartilha desse movimento de inovação, embora esteja atrelada aos procedimentos investigativos com os documen-tos que os constituem. E a linguagem, a arte da relação entre as palavras - procedimentos narrativos, sobretudo sintáticos - que nos permite pro-duzir deslocamentos nas formas de ver/compreender e dizer o passado, instituindo outras maneiras de ver e dizer os documentos. Ao estabelecer diálogos entre a pesquisa documental e as reflexões teóricas/pesquisa bi-bliográfica no movimento de escritura é que se torna possível construir outras leituras do passado e do presente, fugindo da mesmice, repetições e paráfrases, ou dos meros registros de leituras de documentos. Os

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escri-tores/historiadores passaram a se preocupar com a problemática do

nar-rar, procurando apreender os resultados de suas pesquisas valorizando

n|0 apenas a diversidade das práticas sociais/culturais - relativas a

tem-pos e espaços não homogêneos - , mas também a configuração narrativa do texto, com as relações entre as palavras e os efeitos de sintaxe21. Tal

competência projeta a obra historiográfica em outro plano. Somos nós que conferimos, por meio dos documentos pesquisados - manuscritos, impressos, fontes orais, processos cíveis e crimes, imprensa, boletins, etc. ^ a importância relativa que lhes confere a urdidura da trama da história narrada. Sobretudo, porque os documentos não "dizem" a história, não reconstroem o passado - o passado não pode ser restituído, refeito - , ele é narrado com análises críticas, mediado pelos procedimentos metodoló-gicos - ou por eles controlado - que caracterizam o fazer historiográfico. Nessa perspectiva, Chartier diz que: "[...] à maneira de Marin, (que) cada livro de história representa um fragmento do passado e, ao mesmo tempo, se dá como representação deste fragmento do passado."22 E a

atividade da escrita que - entre a tensão de um passado que se insinua desdobrar-se no relato (uma visão de história universalizante) e o com-bate de um presente que se rebela contra esse domínio - escolherá não só o que importa dizer, mas como dizer, como dar-lhe sentido. O importan-te, talvez, seja pensar que a noção de trama opera como uma "lanterna mágica", iluminando apenas pedaços de mundos; os documentos, como fragmentos selecionados, são muito mais a prova da incompletude do conhecimento humano. O que nos leva a indagar, então, que apenas um recanto do mundo poderá ser iluminado.

Diálogos incertos: entre a história e a literatura ou a arte de contar as histórias.

Orhan.Pamuk, o escritor turco, ganhador do Nobel de literatura de 2006, abre fendas sutis para pensarmos acerca das narrativas literárias, o entrelaçamento dos fios narrativos e seu poder de criação e transforma-ção do mundo pelo discurso poético: "A capacidade de transmitir signifi-cados aos outros"23. Segundo este autor: "Escrever é transformar em

palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma [...] cercado pelas sombras, constrói um mundo novo com as palavras."24. Historiadores como

Mi-chel de Certeau também escrevem acerca do passado - passados - que diz estar "submerso em sombras"; "dos mortos que espreitam os vivos...";

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Mare Bloch elege os "testemunhos involuntários e Ginzburg as "zonas opacas". E Walter Benjamim nas teses da história:

O passado traz um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não che-garam a conhecer? Se é assim, existe um encontro se-creto, marcado entre as geraçõesprescedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.25

O que sabemos, porém, é que estes encontros tomam corpo nos diversos relatos escritos. Segundo Pamuk, "devemos ser capazes de contar as nossas histórias como se fossem as dos outros", ler uma história e associá-la às nos-sas experiências, abrigando o mundo de alguém como se fosse o seu próprio

(desconsiderando o debate que envolve as mais diversas análises entre o sin-gular e o universal). Lembra-nos que o livro - insubstituível leitura - trans-forma os leitores em viajantes, incorporando ou compartilhando os sentidos dados às suas experiências e práticas. E o historiador Roger Chartier, em suas pesquisas e estudos acerca dos processos de leitura no período moderno, desenvolve o conceito de apropriação, importante conceito para o estudo e a compreensão das práticas dos leitores e as imagens que formulam do mundo ao seu redor. Ora, as imagens do mundo criadas no movimento narrativo dependem de sua qualidade poética e retórica.

Pamuk, ao falar da mulher amada da sua personagem, Galip, em O livro

negro encena a misteriosa imagem de Ruya, a cabeça e os cabelos negros,

emergindo das paisagens desenhadas no edredom estendido em sua cama. A mulher-motivo de sua busca frenética e tortuosa - sempre misteriosa - , pelos traçados labirínticos da cidade de Istambul, faz reviver passados e presentes, indissociáveis de inúmeras histórias que contam a cidade. É o fio de Ariadne que nos enreda do começo ao fim do romance, onde visitamos e ouvimos vozes, quer no espaço quer no tempo, que nos convencem e narram acerca de um mundo "submerso em sombras". Há não há uma, mas inúmeras cidades naquela que foi chamada e nunca deixou de ser, Constantinopla: cidades na superfície e nos subterrâneos da memória. São suas histórias de mistérios e dores e lutas e procuras. E, desse movimento, emerge a cidade/cidades e os vários cantos da memória se apresentam, não em uma geografia localizada no mapa, mas em uma cartografia desenhada pelas várias narrativas constitutivas da cidade, com os seus espaços em preto e branco - mosaicos temporais - sempre com as múltiplas histórias.

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As cidades, segundo Pamulc, com seus bairros e ruas estão repletas de sinais que levam a sentidos invisíveis ou secretos. É como se a cidade falasse por meio de uma linguagem particular e universal a cada cidadão; como se contasse, em cada uma das suas linhas, as suas histórias

[...] e assim tal como as palavras, as letras e as ima-gens nos anúncios e sacos plásticos, sacos de papel, objetos também de plástico ou de metal, de jornais, de caixas de embalagem que circulam incessantemente pelas ruas, as coisas que elas (aspalavras) contam são

ainda outros tantos sinais [,..]u

Histórias que não puderam ser contadas. Sinais, indícios entre palavras e letras que são outros tantos indícios que aparecem para ser decifrados, lidos, hieróglifos a serem decifrados, também diria Proust.

Vistas assim, as cidades apresentam superfícies multiformes, ou melhor, segundo a expressão do poeta René Char, "superfícies errantes", das quais emergem linhas ou traços, trajetórias cotidianas, passagens desconhecidas. Para M. de Certeau a cidade é composta por essas passagens mal traçadas, desconhecidas para o olhar racional, panóptico, mas experimentalmente co-nhecidas pelos usuários, que detém um saber prático, vivencial, mas que logo - e muitas vezes - é desqualificado por uma racionalidade urbana (o poder se urbaniza). Sobretudo, quando os trajetos diários dos habitantes desenham e redesenham, o mapa urbano, delineando caminhos, indicando atalhos, expressos, muitas vezes, nas narrativas/percursos da linguagem, como inscrições de lugar. Segundo de Certeau: "Os relatos [...] todo dia, eles atra-vessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjun-to; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços."27. Dessa forma,

de Certeau atrela numa mesma operação relato e percurso.

E Ricoeur, na linha de M. de Certeau, ao falar dos espaços habitados aponta para uma questão central: a noção de inscrição, uma escritura que vai além da fixação de caracteres em algum suporte material. Afirma a importância da inscrição das marcas exteriores para reter o trabalho da memória, como apoio e enlace das vivências. Mas a colocação imperante é a do tempo inscrito nos espaços. O tempo para Ricoeur é o tempo nar-rado, o tempo que faz as experiências ganharem sentido; e a narrativa, a potência da linguagem-criação semântica, que faz o tempo transformar-se em tempo humano; os espaços são esculpidos pelos traços-inscrições das experiências no tempo: é a memória em seu movimento entre lembrar e esquecer que se apoia no tempo e que vive na materialidade do construído:

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"Narrativa e construção operam um mesmo tipo de inscrição, uma na du-ração, a outra na dureza do material."28

Tempo e história se imbricam na narrativa. Para a escrita da história a dimensão poética do discurso realiza a multiplicidade das linhas temporais e espaciais e não deve ser vista contrapondo-se às regras da escrita da his-tória, sobretudo, na construção da trama narrativa:

[...] o discurso poético traz à linguagem aspectos, qua-lidades, valores da realidade, que não têm acesso à lin-guagem diretamente descritiva e que só podem ser ditos em favor do jogo complexo entre a enunciação metafó-rica e a transgressão regrada das significações usuais de nossas palavras.29

Nessa perspectiva construir narrativas acerca dos eventos passados não é copiar, imitar "tal como foi", mas um ato criativo - produtor de efeitos - , que reúne e configura os múltiplos eventos passados na tessitura das tra-mas, levando em conta o diálogo entre as questões propostas e a pesquisa dos documentos no universo dos arquivos ou na construção deles. Os relatos do passado, em última instância, ganham inteligibilidade na arte da exposição, por meio da elaboração textual do enredo, criando vida no território dos mortos.

Assim, a pertinência da afirmação de Chartier quando diz que não apenas os documentos permitem dar "autenticidade" ao texto historio-gráfico (citando R. Barthes, para quem padecemos do ato compulsivo de "autenticar o passado"). Mas o próprio ato narrativo encarrega-se de con-ferir presença ao passado; atualizando o passado no presente, dotando-o de significado, exibindo indícios, pontuando histórias e acontecimentos relacionados a essa presença do passado, tornando-o contemporâneo do presente, segundo Chartier30.

Há um ponto de vista iastaurador dessa "oferta": a pesquisa realizada, com os resultados e críticas que perpassam todo o texto historiográfico, e nos orienta a perceber como tratamos certas questões e as distribuimos. Reside aí uma grande contribuição do trabalho do historiador: o debate da estrutura narrativa - historiográfica - contida na arquitetura do trabalho, na composição dos capítulos dos livros, por exemplo, na forma como estes se interconectam no complexo mapa do texto (tese/dissertação/artigo/li-vro), em que a ordem cronológica é descartada. Como escrever um texto em que a compreensão, que produz novos significados, encontra-se no artifício da escritura, na história contada ao longo de todo o trabalho, na

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composição da história. Ainda lembrando Pamuk, é como se você explicas-se qual a carga (e o que ela contém) de cada navio que você explicas-segue deixando de porto em porto, mas sempre permitindo que o vento também possa nos levar a paragens não previstas31, porque em cada conto/canto/parte do

tex-to podemos ser tex-tomados pelas emoções, misturando-se com destreza aos documentos/relatos, descartando, ainda, o falso debate entre objetivo e subjetivo. Cada parte deve "dizer a que veio", tratando de se mostrar im-prescindível ao trabalho, e não apenas pm "acúmulo", obrigação, etc... A estrutura da organização temática das partes do texto deve, portanto, ser pensada em seu conjunto. Os capítulos se entrecruzam, cada um deles tem uma questão bem definida e articulada com as fontes. E difícil alcançar esta capacidade de exposição narrativa - no sentido em que usa Veyne - em que a trama narrativa é responsável pela montagem da história e a produção de novos significados, em que cada parte segue produzindo efeitos de verda-de. Não basta dizer que, para a historiografia, é preciso indicar o caminho teórico e metodológico que certas afirmações teóricas e metodológicas implicam e conduzem o nosso trabalho. É, antes de mais nada, pensar a produção historiográfica, a encenação narrativa, como um tecido de pa-lavras que fabrica novos significados. Movimento em que as narrativas vão

: adensando o texto, como diz W Benjamin, tecido com os olhos e as mãos

(lembrando as imagens do artesão ou de Penélope à espera de Ulisses). Penso que a prática metodológica da história, tendo à sua frente todo um leque aberto de escolhas, sinalizado por traços que desenham paisa-gens variadas e multicoloridas, dos testemunhos declarativos às narrativas, não possui uma "essência" que abarca a diversidade e a diferença e nem tem o "dom" de dar vozes àqueles que emudeceram ou aos oprimidos da história. Não há "essência", não há "dom" (a não ser que se trate de poesia, em que a arte inventa o dom...) mas há uma prática, há um fazer-história que se joga no combate da arena das memórias em confronto, da lingua-gem narrativa que ilumina e denuncia a desigualdade, entendendo que não há regras neutras, entendendo que as pessoas têm uma linguagem ordi-nária - como nos ensina Wittgenstein - cujos significados só podem ser apreendidos no momento mesmo da ação, em seus usos.

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Notas

'Campinas: Editora da Unicamp, 2006. Obra publicada ém Paris pela Éditions du Seuil em 2000.

2 CERTEAU, Michel de. "A operação historiográfica". In: A escritada história. Rio de

Janeiro, Editora Forens Universitária, 1982,

3 Cf. CERTEAU, Michel de. "A operação historiográfica", in : A escrita da história, op.

cit.; CHARTIER, Roger. El pasado en el presente, Literatura, memoria e historia. In: Historia, Antropologia y fuentes orales (Revista semestral dei seminário de historia oral dei Departamento de Historia Contemporânea de la Universidadde Barcelona, Arxlu Historie de la Ciutatde Barcelona y Universidad de Granada Barcelona).Asociación Historia y Fuente Oral/Arxiu Històric de la Ciutat de Barcelona y Editorial Universidad de Granada, n°. 37, Ano 2007.

4 Ver APPLEBY Joyce, HUNT, Lynny JACOB, Margaret. Telling the truth about history.

New York: W. W.. Norton, 1994.

5 REZENDE,Antonio Paulo,Ruídos do Efêmero: histórias de dentroe de fora. Recife:

Editora da UFPE, 2009.

6 KARNAL, Leandro e TATSCH, Flávia Galli. A memória evanescente. In: PINSKY, Carla

Bassanezi e LUCA, Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, p.13, 2009.

7 História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP:

Edusc, 2007.

8As fontes orais, iconográficas, impressas, entre outras, recebem hoje tratamentos

metodológicos inovadores, atualizados segundo normas amplamente discutidas no campo da produção historiográfica. No caso das fontes orais e imagens visuais não se tem mais a ingenuidade de considerá-las "testemunhos do real", "elos com á realidade", "dar voz aos silenciados", etc., procurando-se ampliar os aportes teóricos que dão amparo às discus-sões e sistematizações dos procedimentos de análise próprios ao seu uso e complexidade,

9 O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007. 10 Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

" História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, p. 44, 2010,

" C f . REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a experiência da microahálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998,

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13 Ver, em especial, os trabalhos de VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do

Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; e REIS, João José. Domingos Sodré. Um Sacerdote Africano. Escravidão, Liberdade e Can-domblé na Bahia do Século XIX. São Paulo. Companhia das Letras, 2008.

14 LLOYD, Geoffrey.Demystifying mentalities. Cambridge University Press, 1990. 15 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo I.Campinas: Papirus, 1994. 16 Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 206. 17 Op. cit, p. 45.

18 Cf. GUIMARÃES NETO, Regina B. In: Montenegro Et. AL. Cultura e sentimento: outras

histórias do Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE; Cuiabá: Ed. Da UFMT, 2008.

19 É bastante conhecido o debate havido entre P. Veyne e Michel de Certeau, quando

este responde às indagações de Veyne com as reflexões desenvolvidas, sobretudo, em seu texto "A operação histórica", publicado na obra em três volumes, em 1974, - Fazer História - organizada por Pierre Nora e Jacques Le Goff. Contudo, isto não impede que possamos valorizar os vários aspectos deste debate no campo epistemológico e traçar contribuições dos dois autores às relações entre historiografia e narrativa, às dissonâncias e, por que não, às ressonâncias.

20 VEYNE, Paul. Como se escreve a história, p. 243.

21 Cf. MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Op. cit.

22 Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre

Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ARTMED Editora, p. 170, 2001.

23 PAMUK, Orhan. A maleta do meu pai. São Paulo: Cia das Letras, p. 67, 2007. 24 Idem, p. 13.

25 "Sobre o conceito de história" In: Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política,

vol, I. São Paulo: Brasiliense, p. 223,1985.

26 O livro negro, op. cit., p, 249. 27 A invenção do cotidiano..., p. 199.

28 A memória, a história, o esquecimento. Op. cit. p. 159. 25 Tempo e Narrativa, Vol. I, op. cit, p. 11.

30 Cf. CHARTIER, Roger. El pasado en el presente. Literatura, memoria e historia. Op. cit. 3 1A maleta do meu pai. Op. cit.

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ESCREVER A HISTÓRIA COM A LITERATURA?

Fazer da literatura uma chave de acesso ao

passado da história?

Sandra Pesavento

• v,. Pensar este mote provocador do debate - Interfaces entre a história e a

literatura - tema de minha particular atenção e trabalho, faz-me remontar

à Aristóteles: é só o homem aquele capaz de transformar a experiência sensorial em imagem mental, dela formulando um conceito, o que implica uma abstração. E, para coroar esta fecunda combinação entre sentir e pen-sar, o homem é capaz de transmitir estes conceitos elaborados, ou seja, estabelecer um processo de aprendizagem, que será retido pela memória e também será capaz de visualizar o fenômeno enunciado em sua ausência. • O complemento desse processo de abstração e codificação do mundo é traduzi-lo em um mundo paralelo de sinais, cuja visão, combinada ou iso-làda, evoca a realidade da qual se fala.

Falar, emitir sons com significado, gravá-los em caracteres socializados dentro de uma comunidade, é uma forma de aprendizagem da vida, de apreensão do real, de uma modalidade de conhecimento do mundo. ; Falar implica oferecer um conteúdo simbólico, para além do sentido no-minativo das palavras que permitem identificação às coisas. Falar, ou melhor, adotar uma linguagem, implica atribuir valores, qualidades, sentimentos, in-tenções, ordens, aceitação ou repúdio às situações, coisas e personagens. Da oralidade à escrita, passando pela imagem, este domínio do pensar - seja o passado, o presente ou o futuro - constrói uma espécie de ficção, que se àpóia no arquivo de memória, do conhecimento individual e social, da lei-tura, de experiência de vida que cada um carrega consigo e herda.

É tal a força dessa construção imaginária de sentido que ela é capaz de substituir-se à realidade, tomando o seu lugar. Por exemplo, diante do que restou na memória daqueles que estavam "lá" nos acontecimentos de 1968

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-como eu, no caso tenho consciência de que, entrevistada em 1998, meu relato levava em conta ogap de trinta anos entre o acontecido e o rememorar. Era a primeira vez que falava ou depunha, como alguém que vivera 68 e que, como professora, pensara o evento. Nesses trinta anos, a vida passou, com suas marcas e suas experiências, eu muito li sobre aquilo que vivi, pois me tornei professora titular de história do Brasil. Eu era alguém que incorporou memórias de outros tantos que lá estiveram e fatos que eu mesma não sabia; sobretudo, esqueci muita coisa, por certo, tal como retive outras tantas, im-portantes para mim, na época e a posteriori no evento. Mesmo que eu tenha continuado a ver José Paulo de Pilia Vares, Flávio Koutzzi, Maria Regina Pilia, e outros tantos, é a imagem deles na época que me vem à mente. Como esquecer a tomada da Faculdade de Filosofia, onde Maria Luiza Martini e eu participamos, indo aos jornais para "explicar" o feito?

O que aconteceu, de fato? Eu reconstruí 68 em minha cabeça, uma "epo-peia" de 68 ficcionalizada que misturava o que vivi e que me lembro com a reflexão que sobre ela fiz ao longo deste tempo que passou. 68 é verdadeiro na minha memória e avaliar aqueles momentos com a racionalidade de hoje seria traí-la, como ponderações do tipo: Mas corno éramos ingênuos... Assim, a

gente achava que ia derrubar o regime e destruir os militares? Nossa!

A chave de interpretação é outra: pensávamos sim senhor, e com legiti-midade! Éramos todos jovens, lindos magros, revolucionários, por que não? Históricos, portanto.

E preciso fazer de 68 uma avaliação do vivido recente, discutir, ler e problematizá-la em seus efeitos. Para tanto, por que não se utilizar da lite-ratura como chave de acesso à história?

Cabe dizer que a "virada" dos anos sessenta teve reflexos profundos na maneira de escrever a história: ali teve início uma crise de paradigmas, racionais, totalizantes, deterministas para a avaliação da realidade. De dentro do marxismo e fora dele, autores começaram, sobretudo desde a Europa, um repensar as determinações objetivas como orientadoras da explicação do real. No Brasil, foi preciso que o processo começasse mais tarde - afinal, não vivíamos uma ditadura? Como escrever história senão dentro do materialismo histórico, se tínhamos os anos de chumbo a des-filarem em nossa frente?

Para isso, foram fundamentais as progressivas e lentas traduções de Gramsci e de Walter Benjamin, a publicação de Foucault e a infiltração, via publicações espanholas, de Thompson. Isso foi só o começo, pois logo a história se revitalizou com novos conceitos, assuntos, temas,

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ob-jetos problematizados à luz de novas questões e com a entrada massiva dos "franceses" e do italiano Ginzburg.

Ousaria dizer que um "vento" de liberdade abateu-se sobre a história, quando se começou a pensar na sua escrita? Creio que sim.

Creio que é também ligado a isso que se abrem as interfaces entre a história e a literatura. Clio se aproxima de Calíope, sem com ela se confun-dir. História e literatura correspondem a narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no espaço, mis que são dotadas de um traço de permanência ancestral: a prática da representação do mundo.

O que nos interessa, é discutir o diálogo da história com a literatura, : como um caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, campo de pesquisa que passou a se desenvolver significativamente no Brasil, a partir ' dos anos 1990 e que tem hoje se revelado uma das temáticas mais promis-; soras em termos de pesquisas e trabalhos publicados. Para enfrentar a apro-: ximação entre essas formas de conhecimento ou discursos sobre o mundo,

é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epistemológicas que diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade verdade/ ficção, ou a suposta oposição real/não-real, ciência ou arte1

Nesta primeira abordagem reflexiva, é o caráter das duas formas de ; apreensão do mundo que se coloca em jogo, face a face, em relações de

aproximação e distanciamento.

Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como refe-f rente, para conrefe-firmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra

versão, ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam. Dito isto, que parece aproximar os discursos, onde está a diferença? Quem trabalha com história cultural sabe que uma das heresias atribuídas a esta abordagem é afirmar que a literatura é igual à história. Essa postura, tal como que opõe inconcilia-• velmente á história e a literatura, só podem ser obtidas a partir da recusa

à estética. A literatura conserva-se como sendo o "sorriso" da sociedade e a história é a razão pura, sem acesso aos sentimentos e às emoções.

Mas a literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao

:: Imaginário das diferentes épocas. No enunciado célebre de Aristóteles,

em sua "Poética", ela é o discurso sobre o que poderia ter acontecido, > ficando a história como a narrativa dos fatos verídicos. Entretanto, o que vemos hoje, nesta nossa contemporaneidade, são historiadores que tra-balham com o imaginário e que discutem não só o uso da literatura como acesso privilegiado ao passado - logo, tomando o não-acontecido para

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recuperar o que aconteceu! - como colocam em pauta a discussão do próprio caráter da história como uma forma de literatura, ou seja, como narrativa portadora de ficção! 2

Tomemos a faceta do não acontecido, elemento perturbante para um historiador que tem como exigência o fato de algo ter ocorrido um dia. Mas, a rigor, de qual acontecido falamos? Se estamos em busca de persona-gens da história, de acontecimentos e datas sobre algo que se deu no pas-sado, sem dúvida a literatura não será a melhor fonte a ser utilizada. Falamos em fonte? A coisa se complica: como a literatura, relato de um poderia ter

sido, pode servir de traço, "rastro" na feliz expressão de Ginzburg, indício,

marca de historicidade, fonte, enfim, para algo que aconteceu?

A sintonia fina de uma época, fornecendo uma leitura do presente da escrita, pode ser encontrada em um Balzac ou em um Machado, sem que nos preocupemos com o fato de Capitu, ou do Tio Goriot e de Eugène de Rastignac, terem existido ou não. Existiram enquanto possibilidades, como perfis que retraçam sensibilidades. Foram reais na "verdade do sim-bólico" que expressam, não no acontecer da vida. São dotados de realida-de porque encarnam realida-defeitos e virturealida-des dos humanos, porque nos falam do absurdo da existência, das misérias e das conquistas gratificantes da vida. Porque falam das coisas para além da moral e das normas, para.além do confessável, por exemplo.

Mas, sem dúvida, dirá alguém, no delineamento de tais personagens e na articulação de tais intrigas, houve um Honoré de Balzac e um Joaquim Maria Machado de Assis, o que não é pouca coisa... Sim, por certo, longe de negar a genialidade dos autores, ressaltamos a existência imprescindível dos narradores de uma trama, que mediatizam o mundo do texto e o do leitor E não esqueçamos, como alerta Paul Ricoeur3, que os fatos narrados

na trama literária, existiram de fato para a voz narrativa!

A rigor, o processo acima descrito para o âmbito da literatura não será o mesmo nos domínios da História? Neste campo temos também um nar-rador - o historiador - que tem também tarefas narrativas a cumprir: ele reúne os dados, seleciona, estabelece conexões e cruzamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta soluções para decifrar a intriga montada e se vale das estratégias de retórica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma versão aproximada o mais possível do real acontecido.

Historiadores também mediatizam mundos, conectando escrita e leitura. Deles também se espera performance exemplar, genial, talvez. Eles também não têm, admitamos, certezas absolutas de chegar lá, na tal temporalidade já escoada, irremediavelmente perdida e não recuperável, do acontecido.

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Na reconfiguração de um tempo - nem passado nem presente, mas tempo histórico reconstruído pela narrativa em face da impossibilidade de repetir a experiência do vivido, os historiadores elaboram versões. Ver-sões plausíveis, possíveis, aproximadas, daquilo que teria se passado um dia. O historiador atinge, pois, a verossimilhança, não a veracidade. Ora, o verossímil não é a verdade, mas algo que com ela se aparenta. O verossímil é o provável, o que poderia ter sido e que é tomado como tal. Passível de aceitação, portanto. /

•> Registramos, com isso, a mudança deliberada do tempo verbal: o

po-deria, o teria sido, com o que a narrativa histórica, representação do

pas-sado, se aproximaria, perigosamente, da definição aristotélica da poesia, pertencente ao campo da ficção. Assim, as versões do acontecido são, de forma incontornável, um poderia- ter sido. A representação do passado feita pelo historiador seria marcada por essa preocupação ou meta: a da

von-tade de chegar lá e não da certeza de oferecer a resposta certa e única para

o enigma do passado.

Assim, a noção proposta por Paul Ricoeur de "representância" vem ao encontro desta propriedade do trabalho do historiador: mais do que construir uma representação, que se coloca no lugar do passado, ele é marcado pela vontade de atingir este passado. Trata-se de uma militância no sentido de atingir o inatingível, ou seja, o que um dia se passou, no tempo físico já escoado.

O segredo semântico de aproximação dos discursos se encerra neste tempo verbal: "teria acontecido". O historiador se aproxima do real passa-do, recuperando com o seu texto que recolhe, cruza e compõe, evidências e provas, na busca da verdade daquilo que foi um dia. Sua tarefa é sempre a de representação daquela temporalidade passada. Ele também constrói uma possibilidade de acontecimento, num tempo em que não esteve presente e que ele reconfigura pela narrativa. Nesta medida, a narrativa histórica mo-biliza os recursos da imaginação, dando a ver e ler uma realidade passada que só pode chegar até o leitor pelo esforço do pensamento.

Poderíamos também acrescentar que o fato histórico é, em si, também criação pelo historiador, mas na base de documentos "reais" que falam daquilo que teria acontecido. Como diz Jauss, não é possível manter ainda uma distinção ingênua e radical entre resfactae e resfictae4, como se fosse

possível chegar, por meio de documentos reais, a uma verdade incontes-tável e, por outro lado, por meio de artifícios, ficar no mundo da fantasia ou pura invenção.

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Mas nos voltemos agora para uma segunda instância de análise, que é a do uso da literatura pela história, sem que com isso estabeleçamos hie-rarquias de valor sobre os modos de dizer o real. Quando nos referimos ao uso da literatura pela história, nos reportamos ao lugar de onde se enuncia o problema e a pergunta que, no caso, é o campo da história.

Sob esta segunda ótica, aí sim, podemos dizer que o diálogo se estabelece a partir de uma hierarquização entre os campos, a partir do lugar onde são colocadas as questões ou problemas. E, nesse caso, a partir desse particular e específico ponto de vista, podemos dizer que, quando a história coloca de-terminadas perguntas, ela se debruça sobre a literatura como fonte.

Nessa medida, um diálogo se estabelece no jogo transdisciplinar e in-terdiscursivo das formas de conhecimento sobre o mundo, onde a história pergunta, e a literatura responde. É preciso ter em conta, contudo, que os discursos literário e histórico são formas diferentes de dizer o real, embora as narrativas histórica e literária guardem, com a realidade, distintos níveis de aproximação.

A recorrência do "uso" de um campo pelo outro é, pois, possível, a partir de uma postura epistemológica que confronta as tais narrativas, aproximando-as num mesmo patamar, mas que leva em conta e reitera a existência de um diferencial. Historiadores trabalham com as tais marcas de historicidade e desejam chegar lá. Logo, freqüentam arquivos e arre-cadam fontes, se valem de um método de análise e pesquisa, na busca de proximidade com o real acontecido, Escritores de literatura não têm este compromisso com o resgate das marcas de veracidade que funcionam como provas de que algo deva ter existido. Mas, em princípio, o texto literário precisa, ele também, ser convincente e articulado, estabelecendo uma coerência e dando impressão de verdade. Escritores de ficção também contextualizam seus personagens, ambientes e acontecimentos para que recebam aval do público leitor.

Mas se a literatura pode ser fonte para a história, uma terceira instância de análise se introduz, que é a da especificidade e riqueza do texto ficcional. Sem dúvida, sabemos do potencial mágico da palavra e da sua força em atribuir sentido ao mundo, O discurso cria a realidade e faz ver o social a partir da linguagem que o designa e o qualifica. Já o texto de ficção literária é enriquecido pela propriedade de ser o campo por excelência da metáfora. Esta figura de linguagem, pela qual se fala de coisas que apontam para outras coisas, é uma forma da interpretação do mundo que se revela cifrada. Mas talvez aí esteja a forma mais desafiadora de expressão das sensibilidades

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dian-:të do real, porque encerra aquelas coisas "não-tangíveis" que passam pela

üohia, pelo humor, pelo desdém, pelo desejo e sonhos, pela utopia, pelos riièdos e angústias, pelas normas e regras, por um lado, e pelas suas infrações, pbr outio. Pelas sensibilidades, enfim! Neste sentido, o texto literário atinge a dimensão da "verdade do simbólico", que se expressa de forma cifrada e metafórica, como uma forma outra de dizer a mesma coisa.

; : A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, por-que lhe dá a ver, de forma por vezes cifrada, as imagens sensíveis do mun-do. A literatura é narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia òü pela prosa romanesca fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto literário apresenta é ò suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu.

I f À literatura cumpre, assim, um efeito multiplicador de possibilidades dê leitura: no caso, o historiador, com o seu capital específico de conheci-mento - divisar sob nova luz o seu objeto de análise, numa temporalidade passada. Nesta dimensão, o texto literário inaugura um plus como possibi-lidade de conhecimento do mundo.

v; O mundo da ficção literária - este mundo verdadeiro da,s coisas de

men-tira5 - dá acesso para nós, historiadores, às sensibilidades e às formas de vèr a realidade de um outro tempo, fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou acontecido no passado e que os historiadores buscam. Isto implicaria não mais buscar o fato em si, o documento en-tendido na sua dimensão tradicional, na sua concretude de "real aconte-cido", mas de resgatar possibilidades verossímeis que expressam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam, o que desejavam.

• ; A verdade da ficção literária não está, pois, em revelar a existência real de personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das ques-tões em jogo numa temporalidade dada. Assim, houve uma troca subs-tantiva, pois, para o historiador que se volta para a literatura, o que conta na leitura do texto não é o seu valor de documento, testemunho de ver-dade ou autenticiver-dade do fato, mas o seu valor de problema. O texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados pela ficção.

ó Mais do que isso, o texto literário é expressão ou sintoma de formas de pensar e agir. Tais fatos narrados não se apresentam como dados

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aconte-eidos, mas como possibilidades, como posturas de comportamento e sen-sibilidade, dotadas de credibilidade e significância.

Nesta última dimensão de análise que pensa a especificidade da litera-tura como fonte, cabe retomar a já mencionada reconfiguração temporal. O conceito, desenvolvido por Ricoeur de maneira exemplar, nos coloca diante da possibilidade de pensar a literatura na relação com a história como um inegável e recorrente testemunho de seu tempo.

Admitimos que a literatura é fonte de si mesma enquanto escrita de uma sensibilidade, enquanto registro, no tempo, das razões e sensibilidades dos homens em um certo momento da história. Dos seus sonhos, medos, angústias, pecados e virtudes, da regra e da contravenção, da ordem e da contramão da vida. A literatura registra a vida. Literatura é, sobretudo, impressão de vida. E, com isto, chegamos a uma das metas mais buscadas nos domínios da História Cultural: capturar a impressão de vida, a energia vital, a enargkeia presente no passado, na raiz da explicação de seus atos e da sua forma de qualificar o mundo. Esses traços podem ser resgatados na narrativa literária, muito mais do que em outro tipo de documento. Como afirma Ginzburg, a poesia- ou literatura - constitui uma realidade que

verda-deira para todos os efeitos, mas não no sentido literal.6

Este belo processo - o da aproximação com a literatura - é um dos que caracteriza as mudanças na história, sem que isso se faça de imediato no BrasiLEle nos permite que no voltemos para uma obra do escritor Érico Veríssimo e a forma como, em seu livro Incidente em Antares, publicado em 1971, faz uma leitura do país na sua época, através da literatura, hoje usado como referência para registro das sensibilidades na história de um outro tempo. Mesmo que aborde o passado do Rio Grande do Sul, seu escopo de análise é o da realidade nacional como um todo. Por outro lado, sua obra mostra como a literatura pós-64, 68 e 70 foi capaz de ler o real para um viés originalíssimo.

Nessa conjuntura dos anos do milagre, a obra de Erico Veríssimo cor-respondeu a um gesto político-literário, através de uma narrativa fantás-tica que situou a trama em uma cidade imaginária, na fronteira do Brasil com a Argentina, Antares.

Ora, a literatura fantástica trabalha não no plano do maravilhoso, enten-dido aqui como o irreal, o fantasioso, o impossível, mas justamente no limiar da realidade com o absolutamente inusitado. O fantástico está anco-rado no cotidiano, no mundo dos acontecimentos reais de cada dia, onde ocorre ou irrompe um fenômeno extraordinário7. Assim, há um lado do

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fantástico que se liga ao realismo; tudo se passa dentro de um mundo conhecido e familiar, que permite tanto os personagens como o leitor reco-nhecerem como sendo o mundo natural em que vivem. Desse escoramen-to no real, o fantástico tira a sua força, pois ele explora justamente a erupção do inusitado dentro do contexto de normalidade. Como assinala Tzvetan Todorov, em um mundo que é bem o nosso\ aquele que nós conhecemossem

diabos, süfides ou vampiros, se produz um acontecimento que não se pode explicar pelas leis deste mundo familiar.8

A partir do acontecimento inusitado, o fantástico passa a apresentar outro traço peculiar: ele trabalha com a incerteza, instalando uma dúvida nos personagens da trama, pois algo da ordem do sobrenatural se instala no mundo natural. Verdadeiro ou falso? Realidade ou ilusão? Para o perso-nagem, a dúvida se apresenta em uma dupla possibilidade: ou tudo não passa de uma ilusão dos sentidos, de um delírio da imaginação, e as leis do mundo permanecem sendo o que sempre foram, ou o acontecimento teve realmente lugar, sendo, portanto "real", mas esta realidade se apresenta regida por leis desconhecidas.9

Na segunda possibilidade, a ocorrência do fantástico se toma ameaça-dora, a produzir o medo, pois implica, para o personagem da narrativa, uma perda do seu universo de referências. Assim, a narrativa fantástica pode mesmo se apresentar como um romance de terror, produzido por esta alteração ou transgressão da ordem natural. O real, que até então se movimentava dentro da normalidade de suas leis, regras, se apresenta como inexplicável, inadmissível e aterrorizante, a provocar uma intensa emoção, desde o personagem até o próprio leitor.

Além disso, o gênero literário do fantástico tende a se revestir de ve-rossimilhança. A deformação da realidade parece verdadeira, ou seja, mostra-se convincente. Nessa medida, o fantástico, que etimologicamen-te deriva do latim fantasticum que, por sua vez, vem do gregophantasein, assume integralmente o seu caráter de "fazer ver em aparência": aquilo que se mostra, que se exibe e acontece, mesmo que extraordinário, é tomada como sendo real.10

O romance de Erico Veríssimo trabalha com essas características apon-tadas como identificadoras do fantástico enquanto gênero. A ancoragem no real, por exemplo, é marcante.

A rigor, o livro se divide em duas partes: uma que recupera a história da cidade entrelaçada com a história do Rio Grande do Sul desde a sua forma-ção. Nesse processo evolutivo, os acontecimentos do passado - índices de

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reconhecimento por parte do leitor de uma história acontecida - são apre-sentados através àz performance de personagens fictícios. Este longo capí-tulo, repleto de vultos conhecidos da história do Rio Grande e de fatos "reais", dá um conteúdo de realismo à trama narrada. O leitor sabe que essa Antares não existe, mas ela poderia encontrar eco e analogia em mui-tas outras cidades do Rio Grande. Igualmente, a trama romanesca se dá pelo entrelaçamento de dois clãs rivais a se disputarem o controle político da cidade: os Vacarianos e os Campolargo.

Como estratégia narrativa de um romance histórico, Veríssimo já ha-via utilizado este recurso na trilogia "O tempo e o vento", romance histó-rico que narrava a saga dos Terra-Cambará na sua disputa com os Amarais pelo controle da também fictícia cidade de Santa Fé. Assim, desde as origens remotas do burgo, se desenrola uma história ficcional que se es-tende até as vésperas do golpe militar de 1964, história balizada pelos acontecimentos políticos e sociais que permitem ao leitor realizar uma retrospectiva do passado remoto e recente, a culminar com a aproxima-ção dos dois líderes dos clãs: o velho líder Tibério Vacariano e a matriarca Quitéria Campolargo são amigos.

A segunda parte do livro - e a mais interessante da obra - tem lugar em dezembro de 1963, quando se dá um acontecimento fantástico, aparente-mente inverossímil e extraordinário, que vem alterar de maneira contun-dente a vida cotidiana da cidade e de seus habitantes. Dentro da onda de manifestações sociais que assola o país e o Rio Grande, naquela conjuntura que assinala a derrocada da democracia populista, ocorre uma greve geral em Antares. Com a paralisação total, os telefones e a luz elétrica são corta-dos, causando apreensão àqueles que vêem nessa ruptura da normalidade da vida um fator de subversão, atentatório à ordem política e social. Os culpados são os comunistas, comentam os próceres da cidade. Em 11 de dezembro, os coveiros da cidade aderem à greve, e cruzam os braços. Não mais enterros nem sepulturas, pois os coveiros, unindo-se aos demais tra-balhadores paralisados, recusam-se a exercer suas funções.

A partir de então, os signos do fantástico e do horror se sucedem. A situação tornase alarmante quando dois dias depois, a 13 de dezembro -uma sexta-feira 13, a assinalar um mau agouro - morrem sete pessoas em Antares, marcando outro apelo numérico cabalístico. Diante da greve geral, os cadáveres ficam insepultos, uma vez que os corpos se revelam indignados com a sua situação causada pela entrada dos coveiros na greve e passam a tomar atitudes; em grupo, sob a chefia de um deles, marcham em direção à

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cidade e se instalam no coreto da praça principal, assegurando que dali fica-riam até que sua exigência fosse atendida. Querem ser enterrados!

Horror geral. Os habitantes se deparam, em pânico, com uma marcha dos mortos-vivos pela cidade, de manhã cedo. Fugas, desmaios, ataques cardíacos, crises de nervos.

• A narrativa do autor atinge aqui mais um elemento recorrente na litera-tura fantástica, com os sete cadáveres ressuscitados, assombrações que não podem ser ditas como vindas de além-túmulo, pois não chegaram a ser enterradas, São, sem dúvida, almas dò outro mundo, pois todos na cidade sabem que estão mortos. Serão, pois, fantasmas, essas aparições ou espec-tros que assombram os vivos, dando a ver a figura dos mortos? Um dado terrível, contudo, se instala à passagem dos mortos-vivos: eles são terri-velmente reais, pois à medida que o tempo passa, sob o sol escaldante do verão de dezembro, eles entram em decomposição, a exalar cheiros e a exibir a decomposição dos corpos, ameaçando a cidade com a sua podri-dão. Estão mortos, e constatam que não respiram, não tem pulso, seus corações não batem. Em compensação, começam a apodrecer.

Assim, eles são perceptíveis aos sentidos dos outros: tato, olfato, visão, audição, revelam um quadro de horror a todos os cidadãos de Antares. Eles falam, andam, manifestam sua determinação, tal como os vivos. Mas guar-dam seu caráter de assombração, pois não produzem sombra, não se refle-tem em imagem nos espelhos e, tomados como alvo de uma fotografia, uma vez instalados no coreto da praça, a foto exibiu um coreto vazio!

Dessa forma, a narrativa do fantástico se escora nos dados da realidade cotidiana, mas de modo a mostrar que as leis naturais foram alteradas, causando pânico entre os próceres da cidade, indecisos sobre como agir e incapazes de demover os grevistas de seu intento de paralisarem a cidade.

Erico Veríssimo conduz sua trama de modo a mesclar a morte e o hor-ror com o humor, em combinação de Thanatos com Eros, própria também do gênero fantástico, como apontam Labbé e Millet11, o trágico e o cômico

se instalam diante da situação inusitada e inexplicável.

Um estranho "jogo da verdade" se instaura na comunidade de mortos, que nada mais temem ou tem a perder. Todos, a rigor, podem expressar o que pensam, pois já estão mortos. A rigor, a estratégia literária de colocar rerdades e lucidez nas palavras dos mortos aproxima-se da figura do louco, íambém usada na literatura para mostrar as verdadeiras motivações dos atos humanos e, inversamente à sua condição, a racionalidade do processo social em curso.

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Como se Antares estivesse a vivenciar seu dia de Juízo Final, as verda-des começam a ser ditas, os pecados apontados, o mau proceder anuncia-do. Biblicamente, pragas começam a se abater sobre a cidade, mascando uma espécie de fim dos tempos.

A incrível disputa se encerra quando os mortos, decepcionados com o comportamento dos vivos, voltam aos seus caixões. A greve acabara, os enterros foram feitos e a cidade festejou, saindo às ruas com os sinos das igrejas a bimbalhar, o fim do pesadelo. Chegou mesmo a soprar um vento forte para os lados da Argentina, levando consigo o mau cheiro que ainda persistia. E, quando desembarcaram em Antares os jornalistas da capital e do centro do país, para constatarem o que havia de verdade no acontecido, a cidade dividiu-se entre os que afirmaram ser tudo pilhéria, sendo mesmo uma iniciativa do prefeito para chamar a atenção sobre Antares, e aqueles, gente do povo, que juravam que o prodigioso acontecimento realmente se dera, mas não queria revelar sua identidade para não sofrer represálias.

Assim, ficando o dito pelo não dito, a trama romanesca do incidente fantástico tem seu fim. Recurso literário do autor para expressar sua crítica social, o fantástico cede lugar ao retorno do cotidiano. Aos incidentes ex-traordinários do final do ano de 1963, seguiu-se o curso ordinário da vida no ano seguinte, que incluiu em março, o golpe militar que instaurou a ditadura no país. Em suprema ironia, o retorno ao real, com suas normas e leis a reger a vida e o funcionamento das instituições, perpetuou o status

quo denunciado pelos mortos em seu breve retorno ao mundo dos vivos.

Ninguém mais lembra, como se o episódio não tivesse acontecido. Mas, ao mesmo tempo, todos estavam lá, todos participaram, todos haviam visto. Entendemos que há um certo ceticismo de Erico Veríssimo com rela-ção ao processo político brasileiro em curso. Afinal, no contraponto da memória ao esquecimento, o tempo pode apagar os incidentes que tendem a mostrar o avesso da ordem. Assim como Antares esqueceu esta emergên-cia do sobrenatural no seu cotidiano, o Brasil dos anos 1970 busca, pelo programa do Milagre Econômico, minimizar seu passado recente.

Este, talvez, seja o maior momento da obra "Incidente em Antares", na qual ela atinge sua análise política mais profunda: se o lembrar, a memória, tem como seu reverso o esquecimento, este é, no caso, uma opção. Por vezes, as pessoas querem necessitam, precisam esquecer. Uma. espécie de pacto se instaura: ninguém viu ou participou, não foi bem assim. Formas de defesa contra o presente, manipulam o vivido no passado até chegar ao não tivesse lugar.

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A rigor, creio que neste livro de Veríssimo sua crítica se faz de forma ciara tanto ao passado quanto ao presente do país. O que cabe destacar é o recurso do autor ao gênero literário do fantástico para, de forma alegó-rica, dizer o real de outra forma, para melhor dizer, tal como uma obra de literatura se vale da incoerência do louco, da inocência da criança ou de animais que falam. Nessa medida, a literatura cumpre aqui o seu papel de falar de um real transfigurado de uma forma mais contundente do que outros textos, de natureza não ficcional. Tal literatura é, sem dúvida, fonte para a história.

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Notas

'Ver, por exemplo, o n° 47 da revista Traverses. "NI vrai ni faux"Traverses, Revue du

Centre Georges Pompidou, Paris, n.47,1989.

2 Só como exemplo, podemos citar a polêmica em torno da obra de Hayden White,

Metahlstória São Paulo: Edit. da Universidade de São Paulo, 1992.

3 Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 3v., 1983/5.

4 Jauss, Hans Robert. L'usage de la fiction en histoire. Le Débat, Paris, Gallimard, n.54,

mars/avril, p. 81, 1989.

5 Expressão por mim utilizada para um artigo que discutir imagens pictóricas e literárias

e o seu uso pela história: Pesavento, Sandra Jatahy. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história. Estudos históricos. Arte e história. Rio de Janeiro, FGV, n° 30, p. 56-75.

'Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Op.cit, p. 55.

7 Labbé, Denis e Millet, Gilbert, Le fantastique.Paris: Ellipses, p. 14, 2000.

"Todorov, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil, p. 29,1970.

5 Ibidem.

10 Labbé, Denis e Millet, Gilbert. Op. cit. p. 3. 11 Labbé, Denis e Millet, Gilbert. Op. cit. p. 13.

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A EMERGÊNCIA DO PRESENTE NA ESCRITA

da história pós-1968

Temístocles Cezar i

Em 1997, Carlos Fico, professor da área de Teoria da História da UFRJ, e especialista na história da historiografia do Brasil contemporâneo, profe-riu uma aula inaugural na UFRGS, com o seguinte subtítulo: "dos male-fícios da historiografia francesa para a historiografia brasileira". À ousadia e provocação correspondia uma crítica,do meu ponto de vista, necessária: a recepção e a conseqüente elevação de certos historiadores franceses, à revelia muitas vezes deles, à categoria de pensadores teórico-metodoló-gicos da história. Fico insistia na necessidade de se incorporar à produção historiográfica brasileira outros teóricos, sobretudo os alemães, segundo ele, mais densos e especializados no campo da reflexão epistemológica sobre a história, que os franceses. Propunha, de certo modo, uma análise sobre o uso das tradições historiográficas.

Alguns anos antes desta conferência, a título de exemplo, em 1993, Astor Diehl publica uma série de textos, oriundos de sua tese de Doutorado, sob a orientação de Jörn Rüsen, um dos principais teóricos da história das últimas décadas, com o objetivo de explorar as matrizes da cultura historiográfica brasileira contemporânea. Não seria mera coincidência que, neste mesmo ano, Margareth Rago, publicava um importante artigo sobre os efeitos e a recepção de Michel Foucault na produção historiográfica nacional de então.1

Penso que a área de teoria da história e de história da historiografia vem, nos últimos anos, recebendo um impulso notável, e eventos como este que realizamos hoje solidificam essa tendência. Ao que tudo indica e, segundo a observação de um atento historiador da história da historio-grafia, François Hartog, a história como disciplina, ou seja, como resul-tado do trabalho do historiador, vive um momento reflexivo. Uma das

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