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Badiou e Rancière: associações entre os conceitos de arte

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JORNALISMO

BADIOU E RANCIÈRE:

ASSOCIAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS DE ARTE

RENATA TEDESCHI RONDON DE SOUZA

RIO DE JANEIRO 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JORNALISMO

BADIOU E RANCIÈRE:

ASSOCIAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS DE ARTE

Monografia submetida à Banca de Graduação como requisito para obtenção do diploma de Comunicação Social / Jornalismo.

RENATA TEDESCHI RONDON DE SOUZA

Orientador: Prof. Dr. Fernando Antonio Soares Fragozo

RIO DE JANEIRO 2017/2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

TERMO DE APROVAÇÃO

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, avalia a Monografia Badiou e

Rancière: associações entre os conceitos de arte, elaborada por Renata Tedeschi Rondon

de Souza.

Monografia examinada:

Rio de Janeiro, no dia .../.../...

Comissão Examinadora:

Orientador: Prof. Fernando Antonio Soares Fragozo

Doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação Departamento de Expressão e Linguagens - UFRJ

Prof. Marcio Tavares d’Amaral

Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Paris - Sorbonne Sciences Humaines Departamento de Fundamentos da Comunicação - UFRJ

Profa. Leila Salim Leal

Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação Departamento de Comunicação - UFRJ

RIO DE JANEIRO 2017

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FICHA CATALOGRÁFICA

TEDESCHI, Renata.

Badiou e Rancière: associações entre os conceitos de arte. Rio de Janeiro, 2017.

Monografia (Graduação em Comunicação Social / Jornalismo) - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Escola de Comunicação - ECO.

Orientador: Fernando Antonio Soares Fragozo

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TEDESCHI, Renata. Badiou e Rancière: associações entre os conceitos de arte. Orientador: Fernando Antonio Soares Fragozo. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO. Monografia

em Jornalismo.

Resumo

Este trabalho se propõe a analisar os diferentes conceitos sobre o que seria arte propostos por dois filósofos franceses: Alain Badiou e Jacques Rancière. Duas obras de arte, uma peça teatral e um filme, são o pontapé para o início da discussão, pois trazem em seu próprio conteúdo questões relacionadas ao significado de arte. Nesse sentido, num primeiro momento, são analisadas as abordagens de cada autor. Explicita-se, primeiramente, os três esquemas pensados por Badiou, a saber: esquema didático, esquema romântico e esquema clássico. Em seguida, há a explanação dos regimes propostos por Rancière, que são os seguintes: regime ético, regime representativo e regime estético. Outros autores são igualmente referenciados, bem como Platão, Heidegger, Aristóteles, Benjamin, Kant, Schiller, uma vez que ambos os filósofos franceses fazem citações de alguns de seus importantes conceitos para a construção de suas ideias. Em seguida, faz-se uma associação dos conceitos levantados pelos dois autores. A partir desses entrelaçamentos de ideias, observa-se que há tanto divergências quanto convergências entre os pensamentos dos autores em questão.

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TEDESCHI, Renata. Badiou e Rancière: associações entre os conceitos de arte. Orientador: Fernando Antonio Soares Fragozo. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO. Monografia

em Jornalismo.

Abstract

This work proposes to analyze the different concepts about what art would be proposed by two French philosophers: Alain Badiou and Jacques Rancière. Two works of art, a play and a movie, are the kick-off for the beginning of the discussion, because they bring in their own content issues related to the meaning of art. Therefore, at first, the approaches of each author are analyzed. Firstly, the three schemes designed by Badiou are explained: a didactic scheme, a romantic scheme and a classical scheme. Next, there is the explanation of the regimes proposed by Rancière, which are the following: ethical regime, representative regime and aesthetic regime. Other authors are also referenced, as well as Plato, Heidegger, Aristotle, Benjamin, Kant, Schiller, since both French philosophers cite some of their important concepts for the construction of their ideas. Then, an association of the concepts raised by the two authors is made. From these interlacings of ideas, it is observed that there are both divergences and convergences between the thoughts of the authors in question.

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Agradecimentos

Primeiramente, fora, Temer! Em segundo lugar, gostaria de agradecer aos meus guias espirituais, sempre com uma intuição ao pé do ouvido e indicando possibilidades de caminhos a seguir. Que eu possa sempre estar atenta a eles.

Agradeço aos meus pais, que me possibilitaram chegar à minha terceira faculdade, a segunda que concluo. Aos meus irmãos e à minha família por toda paciência e apoio de sempre.

Ao meu bem, Vitor, o grande amor dessa vida (quiçá de outras), que me abre sempre a mente, troca constantemente comigo e me levou para assistir à peça de teatro que foi o pontapé para o surgimento dessa monografia.

Agradeço imensamente ao Fragozo, esse professor que se tornou um amigo e hoje me orienta nessa empreitada. Gratidão pelas trocas, dentro e fora da sala de aula, e por comprar minhas loucas ideias!

Aos amigos queridos, os de longa caminhada e os recém descobertos, sobretudo os do curso de Direção Teatral, que me apresentaram um outro mundo, no qual me descubro cada vez mais.

Ao universo, por me colocar diante das possibilidades; a mim mesma, pelas escolhas que fiz e que me trouxeram até aqui.

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Sumário

1. Introdução

2. Arte segundo Badiou: análise dos três esquemas

2.1 Esquema Didático 2.2 Esquema Romântico 2.3 Esquema Clássico

3. Arte segundo Rancière: análise dos três regimes

3.1 Regime Ético

3.2 Regime Representativo 3.3 Regime Estético

4. Associações entre os conceitos de arte de Badiou e Rancière

4.1 Convergências e Divergências

5. Considerações Finais 6. Referências Bibliográficas

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1. Introdução

O que se entende por arte? Como se pode discutir um assunto tão intenso, múltiplo, versátil, mutante, intrigante, diverso, antigo e intrincado como este? Será que existe um entendimento único sobre a arte capaz de responder a todas as perguntas? Existe uma universalidade, algo em comum presente em todos os conceitos pensados? O presente trabalho tenta entender tal questionamento, sem, contudo, buscar respostas definitivas, mas possíveis compreensões sobre o mesmo assunto e, consequentemente, trazer à tona convergências e divergências entre as ideias e os autores aqui expostos. Como referências, há dois textos que servem de base para o estudo: “Pequeno Manual de Inestética”, de Alain Badiou, e “A Partilha do Sensível”, de Jacques Ranciére, em que cada autor expõe sua própria compreensão e percepção do que seria arte.

Antes, no entanto, é preciso expor o que leva ao questionamento central do tema: o que se entende por arte. Além das estimulantes Duas obras de arte são o pontapé inicial para o pensamento começar a se desenrolar: um filme e uma peça de teatro. O primeiro se trata de “O Mestre da Vida” (Local Color, 2006, EUA, 107 min), de George Gallo, enquanto que o segundo se refere a “O Escândalo Philippe Dussaert” (Teatro Maison de France, 2016, 80 min), direção de Fernando Philbert. Fazem-se necessárias breves sinopses sobre cada um, a fim de elucidar e situar como se dá a relação de arte nessas duas obras, a começar pelo filme.

O jovem John Talia Jr. (interpretado por Trevor Morgan) é um aprendiz de pintor e tem o desejo de se tornar um grande artista. Talentoso e dono de um temperamento único, o rapaz de 18 anos decide seguir seu interesse pela arte e ingressa na escola de artes, o que desaponta seu pai, John Talia Sr. (Ray Liotta). O pintor russo Nicholi Seroff (Armin Mueller-Stahl), que é pouco conhecido do público em geral, mas dono de um grande prestígio no meio artístico, é o grande foco de admiração de John. Para a surpresa do jovem estudante, Seroff está vivendo em Nova York, o que motiva John a bater na porta do artista e pedir para ser seu aprendiz. No entanto, o velho pintor não só desistiu da arte, como também da vida e apenas deseja ficar em paz e sozinho. Mas, numa mudança brusca e após intensa persistência de John, Seroff decide convidar o rapaz para passar uma temporada em sua casa. Juntos, mestre e pupilo dão um ao outro um precioso presente: o

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2 estudante aprende a ver o mundo através dos olhos do talentoso mestre e o mestre volta a ver a vida através dos olhos da leve juventude.

É importante ressaltar a seguinte informação: o filme é baseado numa história real. Na história do próprio diretor e roteirista, George Gallo. Nos anos 70, o futuro cineasta de apenas 18 anos também encontrou no grande pintor russo, George Cherepov, um mestre, para a arte e para a vida. A obra audiovisual foi escolhida, pois aborda justamente a discussão que o trabalho se propõe: o que é arte. Em diversos momentos do filme é observada uma crítica, uma opinião formada sobre arte e, principalmente, acerca da arte contemporânea, sobre o que seria arte afinal, se ela ainda existe, se o que se faz atualmente pode ser considerado arte. Na maior parte do filme, a arte contemporânea não é considerada arte. E todo esse pano de fundo é trazido à tona no presente estudo para discuti-lo e debater seus conceitos.

No que se refere à peça de teatro, esta se trata de um monólogo com o ator Marcos Caruso. A peça esteve em cartaz no Teatro Maison de France e o texto original é do francês Jacques Mougenot; a direção ficou por conta de Fernando Philbert. A obra traz um debate sobre a arte contemporânea através do seu único personagem (Caruso): um conferencista que divide com o público a investigação do escândalo envolvendo o pintor francês Philippe Dussaert. Na história, as obras do pintor, após sua morte, vão a leilão custando uma fortuna, o que coloca o Estado em uma delicada relação com o dinheiro público e desperta a seguinte avaliação: seriam as obras de Dussaert, de fato, consideradas arte? A partir desse questionamento acerca do assunto, o autor fala do fazer teatro, do ser ator, dos escândalos e das mentiras nossas de cada dia, mas, sobretudo, da arte, do fazer arte, do que pode ser considerado arte. As colocações sobre arte e suas concepções debatidas ao longo da peça instigaram pensamentos e, aliados aos questionamentos engendrados pelo filme, repercutiram e reverberaram ideias. Ideias que geraram o tema do atual trabalho.

Retornando agora aos conceitos sobre arte, o cineasta russo Dziga Vertov possui instigante citação: “Um filme é sempre um filme”. Haverá sempre uma intenção por trás da narrativa, independentemente de sua plataforma, de sua linguagem? Para além do objeto audiovisual e da peça teatral em si, abordando a arte e a criação de forma geral, o que pode caracterizar uma obra artística? Seu caráter de intenção por trás da criação? Ainda que muitos artistas afirmem que suas obras não têm intenção, a própria afirmação em si de sua

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3 ausência enfatiza uma intenção de não haver intenção. Parece contraditório, a princípio, mas, abordando o texto de Badiou, será melhor explicado como isso se dá.

O presente trabalho objetiva relacionar os diferentes conceitos de arte propostos por cada um dos autores, Badiou e Rancière. Dessa forma, o trabalho é estruturado em três capítulos. A partir da leitura de duas obras, cada qual de um autor, é possível levantar a análise do pensamento de cada filósofo. Tanto Badiou, quanto Rancière pensaram em três “esquemas” para discutir seus entendimentos sobre o conceito de arte.

No primeiro capítulo, Badiou e suas ideias são abordados. Em “Pequeno manual de inestética”, o autor levanta três esquemas que pensam a arte em termos ontológicos, isto é, de acordo com a presença ou ausência de verdade (ou até de suas múltiplas possibilidades). São eles: o esquema didático, em que relaciona a maior parte de suas ideias aos pensamentos de Platão e ao seu entendimento da periculosidade da arte na sociedade através da “enganação” (referenciando o que é discutido em “A República”); o esquema romântico, no qual faz referência ao conceito de obra de arte de Heidegger (em “A origem da obra de arte”); e o esquema clássico, em que faz citações do pensamento de Aristóteles sobre o caráter terapêutico da arte (em “Poética”).

O segundo capítulo se debruça sobre as ideias de Rancière, o qual, por sua vez, propõe três regimes de identificação da arte, a saber: o regime ético, o regime representativo e o regime estético. Primeiramente, é necessário diferenciar um regime de identificação de um regime da arte. Em seguida, diferencia-se o regime de identificação proposto por Rancière e o esquema discutido por Badiou. Rancière parte do entendimento de que o regime se baseia em três pés: pensamento, ação (ou modo de fazer) e sensibilidade. Este nó, termo usado pelo próprio autor, é o ponto central do regime e o constitui. O regime, no entanto, propõe entender e desfazer esse nó; dessa forma, começa-se a mudar a produção artística, depois muda-começa-se a vivência e surge um novo pensamento. O regime é, por si só, uma vivência, segundo o autor. A vivência, no entanto, é individual, particular, idiossincrática, já que o ser humano é diferente entre si e tem sensibilidades diversas, enquanto que o regime tem um caráter mais histórico, o que, evidentemente, influencia a vivência de cada um.

Os esquemas os quais discute Badiou, por outro lado, são propostos em termos ontológicos, isto é, relacionados à questão da verdade, sua presença ou ausência (ou a sua multiplicidade). Ou seja, de forma geral, o esquema didático postula que não há verdade na

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4 arte, pois a mesma se vale da ilusão e é, portanto, perigosa (referência a Platão e à questão da verossimilhança); enquanto que, no esquema romântico, verdades são reveladas “na” e “pela” arte, já que esta instaura a verdade de uma determinada comunidade, num determinado tempo e espaço (citação de Heidegger e seu entendimento da origem da obra de arte); e, por último, no esquema clássico, a arte não é local de verdade e, sim, local de sensações, catarses, experiências, possui caráter terapêutico ao invés de perigoso (como pensava Platão) e, nesse sentido, Badiou faz referência a Aristóteles, pela questão da verossimilhança, que gera identificação e provoca, por fim, a catarse no espectador.

No derradeiro capítulo, objetiva-se estabelecer e traçar possíveis associações entres os diferentes conceitos de cada autor sobre o que entendem acerca de arte. Há convergências e divergências. E, para além de relacionar os dois autores franceses, há uma associação entre outros autores abordados.

Dessa forma, o presente estudo ainda pode ser mais aprofundado, dado que há muitas outras ideias e pensamentos de outros autores sobre o conceito de arte. Portanto, ainda que não esteja totalmente concluído e que possa ser melhor e mais desenvolvido, o trabalho apresenta importantes caminhos e é necessário e fundamental para contribuir com esse campo tão intrigante e imutável quanto o é do estudo sobre a arte.

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2. Arte segundo Badiou: análise dos três esquemas

O conceito de arte é algo mutável, que costuma variar de acordo com contextos sociais, temporais, políticos, culturais. No entanto, a relação de arte e política, arte e beleza e arte e verdade sempre permearam essa discussão. O fio condutor entre todas essas esferas de debate é a filosofia. E é a partir da filosofia que foi escolhida a obra de Alain Badiou, “Pequeno Manual de Inestética”, para começar a analisar possíveis entendimentos acerca do que pode ser conceituado como arte. Segundo o escritor francês, a arte pode ser entendida sob a ótica de três esquemas, pensados e discutidos pelo próprio autor, a saber: esquemas didático, romântico e clássico. Antes, no entanto, de entrar na explicação de cada esquema, é necessária uma breve consideração de como Badiou enxerga a relação entre filosofia e arte. Segundo o autor:

[...] filosofia e arte são historicamente acopladas tal qual são, segundo Lacan, o Mestre e a Histérica. [...] a arte já está sempre aqui, dirigindo ao pensador a questão muda e cintilante de sua identidade, enquanto, por sua constante intervenção, por sua metamorfose, ela declara-se decepcionada com tudo o que o filósofo enuncia a seu respeito. (BADIOU, 2002: 11-12)

Ainda de acordo com Badiou e explicando em parte a escolha do título que conferiu ao seu livro, uma breve descrição do que entende pelo conceito de “inestética”:

Por “inestética” entendo uma relação da filosofia com a arte, que, colocando que a arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte. (BADIOU, 2002: 9)

Dessa forma, a arte e a filosofia estão entrelaçadas através da verdade e é essa verdade que permeia o entendimento dos dois primeiros esquemas pensados e propostos pelo filósofo francês. Esses dois primeiros esquemas, o didático e o romântico, lidam com a presença ou a ausência de uma certa verdade no âmbito da arte, cada qual à sua maneira, evidentemente.

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2.1 Esquema Didático

No esquema didático, de acordo com Badiou, não haveria verdade alguma na arte, pois que a mesma trata apenas de uma ilusão, de aparência, o que configura uma simulação, seduzindo assim o espectador que a observa, contempla, interage. Nesse sentido, “[...] a arte é a aparência de uma verdade infundada, não argumentada, de uma verdade esgotada em seu estar-aí” (BADIOU, 2002: 12). Nesse momento, Badiou traz a referência de Platão para sua argumentação. Segundo Platão, a mímesis que há na arte não está relacionada a uma imitação das coisas, mas à imitação do efeito de verdade. Isto é, o caráter imediato da arte está ligado ao fato de que aquela imita o efeito de verdade.

Para Platão, há dois motivos pelos quais a arte é considerada um perigo por ele: o primeiro refere-se à mediação que quebra a quebra com a realidade do mundo, isto é, o perigo do desvio do desvio; o segundo está relacionado ao fato de que a arte leva as pessoas a cometerem atos imorais, amorais e este é o maior perigo, segundo Platão, o perigo ético. De acordo com o filósofo, a imitação é, portanto, má em si, unindo-se ao que há de mau em cada um e produzindo maus efeitos. Logo, a arte distrai as pessoas, levando-as a maus comportamentos, como explicitado abaixo:

SÓCRATES: É a esse reconhecimento que eu pretendia conduzir-vos quando dizia que a pintura e, em geral, toda espécie de imitação, realiza sua obra longe da verdade, que ela se relaciona com um elemento de nós próprios distante da sabedoria, e não se propõe, nesta ligação e nesta amizade, nada de são nem de verdadeiro.

GLAUCO: É exato.

SÓCRATES: Assim, coisa inferior acasalada a um elemento inferior, a imitação não engendrará senão frutos inferiores. (PLATÃO, 2010: 388)

Em que sentido funciona o primeiro perigo, o desvio do desvio? Inicialmente, há que se entender o primeiro desvio. Este refere-se ao desvio racional, o desvio proporcionado pela filosofia. É o desvio do questionamento do que é imediato, o questionamento da realidade do mundo, da vida ao redor. O segundo desvio, por sua vez, é o desvio promovido pela arte. A arte retira esse questionamento inicial (do primeiro desvio) e faz do seu público espectadores passíveis, passíveis àquilo que é imediato, àquilo que é dado, não mais passando a questioná-lo ou racionalizando sobre.

Portanto, a arte é perigosa pois engana. E é através da mímesis que ela o faz, pois é a imitação que seduz o espectador, a imitação da verdade. Platão trabalha a ideia dos

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7 conceitos de essência, cópia e simulacro, para explicar a questão da verdade. Através da rememoração, é possível se lembrar daquilo que já se sabe, aquilo que está na essência, mas foi esquecido. O caminho para se chegar a essas verdades e trazer de volta os conhecimentos à consciência desperta é por meio do questionamento de tudo, a começar por questionar o que é ente (aquilo que é), pois tudo tem uma essência, uma ideia. Esses questionamentos são proporcionados pela filosofia.

No entanto, a essência de algo pode ser copiada, ou seja, aquilo que antes apenas pertencia ao mundo das ideias pode ser materializado no mundo físico. Além disso, a própria cópia pode ser imitada, gerando o que se chama de simulacro. Um exemplo pertinente pode ser o da pintura de uma cama. A essência é a ideia de cama, pertencente ao mundo das ideias; a cópia é a cama materializada no mundo físico, é a cama construída; o simulacro seria a imitação da cama pelo pintor que a pinta. Isto é, o espectador está a três graus da verdade, da ideia de cama, da sua essência, pois está a um grau da imitação da cama, que é a pintura (simulacro), está a um grau da cópia da cama (cama construída no mundo físico) e a um grau da ideia de cama (essência). Logo, referenciando Platão e a questão da mímesis, no esquema didático proposto pelo autor, Badiou argumenta que a arte é definida como o “encanto de uma aparência de verdade” (BADIOU, 2002: 13). Dessa forma, a “arte aceitável deve ser submetida à vigilância filosófica das verdades” (2002: 13). Seguindo tal pensamento, a arte deve ser controlada e vigiada pela filosofia, assim como Platão também afirma. Nesse caso, apenas a filosofia, portanto, deteria o senso crítico, a capacidade de questionar tudo, de questionar o imediato, algo que não existe na maioria das pessoas, já que a arte engana ao mesmo tempo em que agrada, como diria Platão, através da verossimilhança. Dessa forma, a filosofia teria mais os pés no chão, alertando o público leigo para qualquer enganação que a arte possa suscitar.

2.2 Esquema Romântico

O segundo esquema proposto por Badiou, o esquema romântico, dá conta de um entendimento que enxerga uma(s) verdade(s) na arte. É na arte e pela arte que a verdade se dá, surge, torna-se visível, se revela e, por fim, se instaura. Nesse sentido, considerando que há múltiplas possibilidades de verdade, Badiou cita Heidegger, autor cuja obra se relaciona com o esquema debatido pelo escritor francês. Seguindo essa lógica dos dois

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8 autores, a arte não seria uma verdade absoluta, mas uma verdade possível, uma dentre várias outras possibilidades de interpretação, de leitura, de entendimento, de percepção, isto é, de verdades.

A referência de Badiou ao filósofo alemão Heidegger se dá pois o mesmo também aborda o conceito de obra de arte. Para Heidegger, tudo começa a partir do questionamento: o que é ente? Antes, no entanto, é preciso explicitar a diferença entre “ser” e “ente”. O primeiro termo, ser, estaria ligado ao sentido de “através de”, de forma que é através do ser que aparece, que surge o ente. Por outro lado, o conceito de ente, para Heidegger, configura aquilo que é; o ente simplesmente é.

Segundo Heidegger, cada um é muitas possibilidades, de modo que se está em um constante processo, em uma constante transformação. Nesse ponto, é possível fazer uma referência ao conceito de “devir”: “se tornar” ou “vir a ser” se referem a um conceito filosófico que configura as mudanças pelas quais se passa. A origem de tal conceito surgiu na Grécia antiga e foi levantada pelo filósofo Heráclito de Éfeso, cujo pensamento alegava que nada neste mundo é permanente, exceto a mudança e a transformação, diferentemente do que pensava Parmênides. “[...] devir, esse fluxo que é o real, decorre, pois, da passagem de um contrário a outro, razão pela qual se fala do conflito dos contrários teorizado pelo filósofo” (MARTINS, 2007: 65).

De acordo com o entendimento de Heidegger, quando se nasce, se herda toda a cultura do local onde se vive e cada um é constituído por essa herança. Na verdade, para Heidegger, não se trata de herança, mas de verdades e, evidentemente, cada cultura tem as suas próprias verdades. Entretanto, apenas se dá conta disso aquele que se angustia. Em que sentido? Heidegger argumenta que é a partir da angústia de saber que se pode ser várias possibilidades que se pode tomar atitudes e fazer escolhas de forma consciente, sabendo que cada um é várias possibilidades. A arte, para Heidegger, também não é verdade absoluta, mas uma verdade possível, uma dentre várias. Ela, portanto, tem caráter formador dos objetos artísticos, a arte constitui e plasma a realidade (e se reconstitui ela mesma também). Dessa forma, a questão principal do texto de Heidegger se baseia em tentar entender como a arte forma os mundos, como cria as realidades.

Heidegger argumenta que a função da arte é a “coagulação” do sentido de uma comunidade. Como exemplos citados pelo próprio escritor, pode-se pegar o famoso templo grego Partenon, que seria a materialidade, a fisicalidade dessa “coagulação”, assim como

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9 as catedrais da Idade Média. De acordo com o filósofo, o templo grego e as catedrais medievais instauram a verdade daquela época, daquele mundo, lugar, contexto, enquanto grandes obras de arte. Para ele, a arte faz aparecer a verdade, ou seja, é através da obra e na obra em si que se pode perceber a verdade (ao menos, uma das possibilidades de verdade). Os templos mencionados revelam essa verdade, a verdade daquele determinado contexto. Ainda segundo o autor, não mais existem hoje grandes obras de arte como os templos e as catedrais, não existe mais obra-templo, como locais de instauração da verdade e das ideias de uma determinada comunidade num dado espaço e tempo; para o alemão, a Era Medieval com suas catedrais foi o último tempo histórico em que havia grandes obras de arte.

De acordo com o escritor alemão, uma obra só é uma grande obra de arte quando a mesma evoca, irradia as verdades da comunidade em que está inserida (e que também cria a obra e as verdades). Quando uma obra não reflete, não irradia verdade alguma da sua comunidade, a arte entra no âmbito da estética, com seus detalhes apreciáveis, sem ser considerada uma grande obra de arte, apenas um algo estético.

Mas o que seria, para Heidegger, uma obra de arte, então? Para o filósofo alemão, há coisas; dentro dessa categoria, há outras três: os utensílios, as obras e as meras coisas. O homem produz utensílios e cria obras. As meras coisas são tudo aquilo não criado pelo homem, tais como a natureza, os animais, as plantas, as pedras. Segundo Heidegger, os utensílios são produzidos para fins técnicos e funcionais, ao passo que as obras são criadas para fins estéticos - esse seria o entendimento corrente da arte. A obra reúne, traz consigo alguma coisa. Mas o que seria uma coisa? Para Heidegger, questionar-se sobre uma coisa é questionar-se sobre a essência, sobre o que é o ente.

Heidegger, então, propõe três entendimentos para o que seria uma coisa. O primeiro conceito de coisa seria: uma substância com acidentes, isto é, aquilo que está por baixo (sub) da essência, a qual não é visível. O segundo entendimento de coisa está ligado a um conjunto de sensações. E a terceira compreensão do que seria coisa refere-se a um complexo matéria-forma, de modo que a coisa é uma matéria numa determinada forma (HEIDEGGER, 2007: 110). Matéria e forma são os motores para que o ser humano faça e construa coisas úteis, que são os utensílios e os instrumentos.

Heidegger ainda aponta uma característica conferida ao utensílio: a confiabilidade. A essência do instrumento é a sustentação em que se baseia o ser humano, para que se

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10 projete na realidade. De que maneira? A partir do momento em que a coisa atinge as expectativas e a função que se propôs, então há a confiabilidade. Isso é o ser utensílio do utensílio.

Para tentar entender a verdade da obra de arte, Heidegger propôs analisar o quadro de Van Gogh, no qual há um par de sapatos de camponês retratado na pintura (HEIDEGGER, 2007: 7). O caminho feito pelo autor deu-se da seguinte forma: para se entender a verdade da arte, pegou-se uma obra (quadro de Van Gogh); essa obra de arte possui uma coisa, cuja essência o autor tentou descobrir; para isso, tomou-se, em seguida, o utensílio como objeto de análise (no caso, o utensílio corresponde ao par de sapatos do camponês na pintura), o que levou de volta à análise da obra de arte em si, o quadro. Desse desenrolar todo, Heidegger chegou a duas descobertas, a saber, a verdade do utensílio (par de sapatos) e a verdade da obra. A verdade do utensílio foi a confiabilidade do mesmo, característica segundo a qual a coisa atinge as expectativas e a função a que o instrumento é proposto. Em relação à verdade da arte, Heidegger faz a seguinte observação: “[...] a essência da arte seria esta: o pôr-se-em-obra da verdade do ente [...] Então na obra se trata não de uma reprodução do ente isolado e a cada vez diante-da-mão, mas, ao contrário, da reprodução da essência em comum das coisas” (HEIDEGGER, 2007: 22).

Em seguida, o pensador alemão se vale da seguinte argumentação:

Estamos agora perante um resultado notável de nossa reflexão, se é que isso já se pode chamar um resultado. Duas coisas se tornam claras. Em primeiro lugar: o meio de alcançar o modo de coisa na obra, os conceitos de coisa vigentes, não bastam. Em segundo lugar: aquilo que com isso queríamos alcançar como a efetividade mais próxima da obra, a infra-estrutura ao modo de coisa, não pertence dessa maneira à obra. (HEIDEGGER, 2007: 24)

Dessa forma, Heidegger vai em busca da relação da arte com a verdade, não mais da relação da arte com a beleza, com o belo, o que se restringe tão somente à estética. Nesse caso, Heidegger afirma que a verdade da obra de arte, sua essência o “Ser-obra significa: instalar um mundo” (HEIDEGGER, 2007: 30). Isto é, a obra de arte instaura a verdade daquela comunidade, daquele lugar, daquele tempo.

No entanto, para além da questão da verdade da obra de arte, Heidegger argumenta que toda verdade também revela algo ao mesmo tempo que esconde outra coisa.

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Mas o que assim encontra sua identidade na obra de arte deve sobretudo constituir a essência do ser. Combate de desencobrimento e acobertamento não é apenas a verdade da obra, mas sim a de todo ente. Pois verdade como não-encobrimento é sempre esse um-contra-o-outro de desencobrimento e acobertamento. Ambos se co-pertencem necessariamente. (HEIDEGGER, 2007: 77)

Dessa forma, Badiou se vale do conceito de obra de arte discutido por Heidegger para propor o esquema romântico, já que o mesmo postula que é na arte e pela arte que a verdade se instaura e, portanto, há múltiplas possibilidades de verdades.

2.3 Esquema Clássico

Quanto ao derradeiro esquema, o clássico, Badiou alega que o mesmo não se refere à presença ou não da verdade na arte. Tal modelo não é local de verdade nem da não verdade, como nos outros dois esquemas citados (didático e romântico). Este modelo é, sim, local de sensações, de paixões, de catarses, de experiências múltiplas. A arte é aparência, mas, diferentemente de como via Platão, esta tem um caráter terapêutico (e não perigoso, como colocou o pensador discípulo de Sócrates). Dessa forma, o autor francês cita Aristóteles, cuja lógica entende que o que interessa na arte não é a verdade, mas justamente a verossimilhança, a imitação, a mímesis. Para o antigo pensador, no entanto, essa mímesis não é negativa; a verossimilhança está na arte para que o espectador mergulhe na narrativa, para que acredite nela e consiga ter, enfim, a catarse, saindo, portanto, transformado dessa experiência. Contrapondo poesia e história, Aristóteles alega:

O historiador e o poeta não se distinguem por escrever em verso ou prosa; [...] a diferença é que um relata os acontecimentos que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam suceder. E é por esse motivo que a poesia contém mais filosofia e circunspecção do que história; a primeira trata das coisas universais, enquanto a segunda cuida do particular. (ARISTÓTELES, 1999: 47)

Nesse sentido, para Aristóteles, a arte tem o poder de agradar. E o faz através da “enganação”, o que implica dizer, segundo Aristóteles: quanto melhor a “enganação”, mais se agrada, pois melhor é a identificação do espectador com a história narrada. Portanto, para Aristóteles, justamente por não ser local de verdade, a arte engana, mas não é perigosa, como pensou Platão, apenas agrada. A arte, de acordo com o filósofo grego, tinha

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12 caráter terapêutico, na medida em que deslocava o espectador para algo novo, uma vez que este se deixasse mergulhar na verossimilhança e se deixasse atravessar por sensações e experimentasse, então, a catarse. Badiou alega, referenciando o antigo pensador, que tal esquema clássico é sustentado por duas teses, a saber:

a) A arte - como sustenta o esquema didático - é incapaz da verdade, sua essência é mimética, sua ordem, a da aparência. b) Isso não é grave (ao contrário do que acredita Platão). Não é grave, porque o destino da arte não é nem de longe a verdade. É bem certo que a arte não é verdade, mas também não pretende ser, sendo, portanto, inocente. Aristóteles classifica a arte como algo muito diferente do conhecimento [...] A arte tem função terapêutica, e de maneira alguma cognitiva ou reveladora. (BADIOU, 2002: 14)

Disso, Badiou discorre que duas regras da arte podem ser inferidas das teses levantadas: a de que o critério da arte é agradar e a de que esse agradar não se refere à verdade (BADIOU, 2002: 14). Desse modo, “a ‘semelhança’ com o real só é exigida na medida em que envolve o espectador da arte no ‘agradar’, ou seja, em uma identificação, a qual organiza uma transferência e, portanto, uma deposição das paixões” (BADIOU, 2002: 14).

A fim de explicitar melhor as diferenças entres os esquemas por ele pensados e para dar exemplos deles, Badiou, mais adiante em seu texto, faz uma analogia dos esquemas propostos com os três grandes pensamentos vanguardistas do início do século XX (em matéria de pensamento da arte), a saber: o Marxismo, a Psicanálise e a Hermenêutica heideggeriana. O primeiro foi relacionado ao esquema didático, enquanto que o segundo, ao esquema clássico, ao passo que o último, ao esquema romântico. Citando Brecht, Badiou alega que o marxismo seria didático pois “a prova mais segura encontra-se no pensamento original e criativo de Brecht. Para ele, existe uma verdade geral e extrínseca, uma verdade de caráter científico. Essa verdade é o materialismo dialético [...]” (BADIOU, 2002: 16).

Por outro lado, Badiou afirma que a psicanálise seria clássica e aristotélica uma vez que, referenciando Freud e Lacan e seus ensaios acerca do teatro e da poesia, “[...] a arte é pensada como aquilo que organiza apenas o objeto do desejo, o qual é insimbolizável, seja ele subtraído do próprio auge de uma simbolização” (BADIOU, 2002: 18). Finalizando com a analogia do pensamento hermenêutico heideggeriano ao esquema romântico, Badiou justifica tal comparação já que a hermenêutica “expõe um entrelaçamento indiscernível do

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13 dizer do poeta e do pensar do pensador [...] Pode-se dizer que [...] Heidegger exibe a figura do poeta-pensador” (BADIOU, 2002: 17). Isto é:

Mas o que nos importa, e caracteriza o esquema romântico, é que é a

mesma verdade que circula. O retraimento do ser vem à mente no

conjuntamente do poema e de sua interpretação. A interpretação só faz

entregar o poema ao tremor da finitude, em que o pensamento se exercita

em suportar o retraimento do ser como esclarecido. Pensador e poeta, em seu apoio recíproco, encarnam na palavra a abertura de sua clausura. Nisso o poema permanece de fato inigualável. (BADIOU 2002: 17-18)

Em seguida, Badiou cita as vanguardas dos movimentos de arte, como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo. Com isso, o autor alega que as vanguardas, de forma geral, agiram de forma “didático-romântica”. Em que sentido? Antes disso, uma breve recapitulação desses movimentos artísticos, a começar pelo futurismo. Esse movimento surgiu no século XX, em meio ao processo da industrialização e da maquinização. Tais processos, com suas modificações sociais sobretudo em países como Inglaterra, França e Alemanha, mudaram o modo de perceber a realidade, de se estar no mundo. O primeiro manifesto desse movimento foi escrito pelo poeta italiano Filippo Marinetti e publicado no jornal francês Le Figaro, em 1909. Influenciados pelo rápido e violento processo de industrialização, os futuristas criticavam o passado e levantavam a bandeira do progresso e do desenvolvimento a todo custo, incessantemente e de forma exacerbada, de modo que o progresso é o sentido da humanidade, de que esta precisa se modernizar, se aperfeiçoar e progredir, se transformar através da mecanização. Nesse sentido, há uma exaltação da máquina como objeto de arte.

O dadaísmo (ou movimento dadá), por sua vez, é um movimento que surgiu na Suíça, em Zurique, em 1916, pouco antes do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Assim como os futuristas, os dadaístas também traziam críticas ao passado, mas, diferentemente daqueles, não levantavam a bandeira do progresso. Muito pelo contrário, essa ideia de desenvolvimento não mais os contemplava, preferiam o caos e estavam sempre em contradição. Refutavam a arte clássica, mas não propuseram uma nova arte, apenas propunham modos de fazer, como escrever um poema. Em meio ao massacre da guerra mundial que enfrentavam à época, a desilusão é a grande marca dos dadaístas. O surrealismo, que reuniu artistas anteriormente ligados ao dadaísmo, surgiu na década de 1920 e trouxe consigo a liberdade, a imaginação e a falta de seriedade como mote do

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14 movimento artístico. Assim como os futuristas e os dadaístas, repudiavam a arte anterior (a clássica) e propunham novas formas de arte. Os surrealistas levantavam a bandeira da imaginação, imaginação através da loucura, através do sonho, imaginação que, apesar de caótica, faz sentido. Acreditavam na mediação, uma visão romântica de percepção da arte.

Os três movimentos artísticos de vanguarda têm em comum o mal-estar com relação à arte anterior. Além disso, os artistas vanguardistas gostavam do choque, de provocar e provocar com o intuito de fazer o espectador pensar e receber a arte de uma outra forma. A Modernidade também surge com a questão de ruptura, de quebra de paradigmas. O artista dessa época também assume outro status: o de provocador e de quem desconstrói paradigmas.

Segundo Badiou, os movimentos artísticos de vanguarda têm outra coisa em comum: a forma didático-romântica como se comportaram. Para o escritor francês, os movimentos foram didáticos no momento em que propuseram o fim à arte, em dois sentidos. O primeiro sentido seria o fim da arte clássica, fazendo surgir e propondo, assim, outras formas de arte, já que o tempo era outro e o antigo não dava mais conta. O segundo sentido seria em relação ao fim ligado à finalidade, ao objetivo, isto é, dar um motivo à arte, ao fazer arte, uma vez que esta já não se relaciona mais ao “agradar”.

Por outro lado, os movimentos também agiram de forma romântica, na medida em que consideraram que a obra de arte não precisaria de uma explicação, já que a verdade se instauraria automaticamente para o espectador. No entanto, Badiou alega que isso não é possível, pois as vanguardas propunham, sim, uma mediação, uma explicação, a partir do momento em que explicavam o próprio movimento artístico através dos manifestos publicados. Isto é, os próprios vanguardistas se contradiziam, quando alegavam que a arte não deve ser explicada, mas publicavam manifestos explicando seus próprios movimentos.

Nesse sentido, Badiou finaliza essa análise dos movimentos de vanguarda da seguinte forma: “Hoje, as vanguardas desapareceram. A situação global é finalmente a seguinte: saturação dos três esquemas herdados, encerramento de qualquer efeito do único esquema tentado nesse século, que era de fato um esquema sintético, o didático-romantismo” (BADIOU, 2002: 19). Além disso, Badiou argumenta que o modelo clássico se despotencializou, na medida em que a “arte só para agradar” vem perdendo cada vez mais sua potência de “agradar”.

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15 No entanto, na realidade, a “arte só para agradar” é o carro-chefe da atual indústria cultural. Ela vem crescendo tanto no cinema, quanto na televisão. O que Badiou quis dizer com “despotencializou” tem mais a ver com a questão da profundidade e da potência da “arte que agrada”, que se perdeu. Exatamente o que falava Aristóteles: a arte agrada e, quanto mais ela agradar, melhor será a identificação do espectador com a narrativa e, portanto, mais rapidamente este chegará à catarse. Badiou acredita que esse caráter catártico da arte se perdeu em meio ao que é produzido na indústria cultural, se despotencializou, embora ainda seja predominante. Ainda há obras de arte que se excetuam em meio a esse quadro, mas são casos mais raros. Isto é, me termos de indústria cultural, a “arte que agrada” ganhou em quantidade, mas perdeu em qualidade e profundidade.

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3. Arte segundo Rancière: análise dos três regimes

A obra “A Partilha do Sensível” foi escolhida como referência para analisar os conceitos de Rancière uma vez que discorre a respeito da arte e, sobretudo, acerca da estética, como um conceito que funciona tal qual um princípio, princípio este que atravessa tanto a esfera da arte, quanto a da política. Em ambos os campos (arte e política), há a questão da visibilidade e do discurso:

Ou seja, tanto a política quanto a arte determinam recortes no sensível, a partir de um espaço que já pertence a este recorte, orientando a localização dos corpos, os espaços adequados a cada um, os possíveis modos de ser, fazer, ver e dizer, assim como os recortes no tempo de uma comunidade. (RANCIÈRE apud CARNEIRO, 2014: 13-14)

Segundo Rancière, o termo “partilha do sensível” se refere a dar “forma à comunidade”, isto é, o modo como se determina, no sensível, a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas, como participação e separação, ao mesmo tempo, como particular e coletivo, concomitantemente (RANCIÈRE, 2005: 7). Dessa forma:

Ao mesmo tempo em que estabelece esse comum, a partilha define suas partes exclusivas, na medida em que atribui competências e incompetências a indivíduos, assim como suas respectivas atividades, lugares e tempos. Entretanto, a arte e a política, de modo geral, possuem pressupostos diferentes, já que a arte tende a se ocupar da criação e da constituição de mundos sensíveis, enquanto a política tende principalmente a se ocupar da enunciação dos discursos possíveis, de organizar as possibilidades do sensível em função de uma ordem. (CARNEIRO, 2014: 14)

Portanto, a partilha do sensível, pensando primeiramente numa nova forma de entender a relação entre arte e política (isto é, em um sentido mais amplo), possibilitou, engendrou um novo modo de se pensar sobre as teorias e experiências vanguardistas de fusão da arte com a vida, trazendo uma nova reflexão (RANCIÈRE, 2005: 11). E, embora o autor francês afirme que sua proposta não é a de obter um resultado, ele objetiva trazer à tona, assinalar marcos históricos e conceituais. Entender o conceito de Modernidade, inclusive, é uma de suas questões, uma das muitas que levanta ao longo da obra.

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17 Ao fazer menção ao filósofo grego Aristóteles, Rancière alega que, antes do cidadão “tomar parte no fato de governar e ser governado” (ARISTÓTELES apud RANCIÈRE, 2005: 15-16), há uma outra forma de partilha que precede esse tomar parte, a saber, aquela que determina os que tomam parte. Referenciando novamente Aristóteles, Rancière afirma que “o animal falante é um animal político” (ARISTÓTELES apud RANCIÈRE, 2005: 16). De que maneira? Para, Rancière, embora dotados de fala e da capacidade de se expressar, nem todos possuem posição de fala. Há um espaço delimitado para aqueles que podem proferir seus discursos, há determinação de quem tem voz, ainda que todos possam falar. Dessa forma, há uma partilha do local de fala, de quem tem voz para ser ouvida.

Fazendo alusão a um outro pensador grego, Rancière cita Platão. Segundo o filósofo grego, os artesãos não podem participar das coisas comuns porque não têm tempo para se dedicar a outra coisa que não seja seu trabalho. Dessa forma, a partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz. Isto é, ter determinada ocupação define competências ou incompetências para o comum, de ser ou não visível no espaço comum, dotado de uma palavra comum ou não, dotado da possibilidade de ter um discurso ou não (RANCIÈRE, 2005: 16).

Rancière argumenta, portanto, que há na base da política uma estética, mas que não se relaciona com a estetização da política segundo Walter Benjamin (RANCIÈRE, 2005: 16). De acordo com Benjamin:

As massas têm o direito de exigir uma transformação do regime da propriedade; o fascismo quer permitir-lhes que se exprimam, porém conservando o regime. O resultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política. A essa violência que se faz às massas, quando se lhes impõe o culto de um chefe, corresponde a violência sofrida por uma aparelhagem, quando a colocam a serviço dessa religião. Todos os esforços para estetizar a política culminam num só ponto: a guerra. (BENJAMIN, 1969: 13)

Dessa forma, há na política uma "‘estética’ que não tem nada a ver com a ‘estetização da política’ própria à ‘era das massas’ [...] Essa estética não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra de arte” (RANCIÈRE, 2005: 16).

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18 Para Rancière, a presença dessa estética na política pode ser compreendida como um sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir (RANCIÈRE, 2005: 16). Isto é:

É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. É a partir dessa estética primeira que se pode colocar a questão das "práticas estéticas", no sentido em que entendemos, isto é, como formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que " fazem" no que diz respeito ao comum. As práticas artísticas são "maneiras de fazer" que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade. (RANCIÈRE, 2005: 16-17)

Nesse sentido, Rancière alega que tais formas estão comprometidas com um determinado regime de política, um “regime de indeterminação das identidades, de deslegitimação das posições de palavra, de desregulação das partilhas do espaço e do tempo. Esse regime estético da política é propriamente a democracia, o regime das assembleias de artesãos, das leis escritas intangíveis e da instituição teatral” (RANCIÈRE, 2005: 18).

Rancière faz referência a Kant quando fala sobre “o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir” (RANCIÈRE, 2005: 16).

Considerando que a partilha do sensível determina competências e incompetências, ela também atua no recorte dos tempos e dos espaços, de tal modo que há definição de prioridades “a partir da distinção entre o que é preciso ver e o que pode ser invisível” (CARNEIRO, 2014: 14). Logo:

Nesse sentido, ela define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. Assim como o ato político é um gesto que dá a ver, que mostra e evidencia algo, produzindo discurso sobre esse algo, o ato artístico, evidentemente, também o faz, na medida em que produz lugares privilegiados de visibilidade, ação e discurso, atuando a partir deles, enaltecendo ou censurando as experiências do mundo sensível e produzindo outras formas de senti-las. (CARNEIRO, 2014: 14-15)

Dessa forma, Rancière alega que, em cada época, a arte é identificada de forma que as possibilidades de atuação política são delimitadas. E não só a atuação, como a reação a

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19 isso, os efeitos gerados pela ação política em uma determinada comunidade. Na esfera da arte, os nomes e as funções a ela atribuídos configuram modos de se “utilizar e organizar os espaços, os tempos e as atividades de uma comunidade, ou seja, a própria vida social” (CARNEIRO, 2014: 15).

Assim, como seu conterrâneo Badiou, Ranciére também se vale de três conceituações suas sobre o que seria arte. No seu caso, o escritor francês fala a respeito de três regimes de identificação da arte (e, não, de três “regimes da arte”, conceito que determinaria uma “ontologia da arte”), isto é, do objeto artístico, a saber: regimes ético, representativo e estético. Os três regimes são pensados de acordo com uma dada ordem cronológica (ainda que de forma confusa, mas que será discutida e problematizada mais adiante) da história da humanidade.

Antes de entrar na diferenciação dos três regimes de identificação por Rancière, faz-se necessário uma breve explanação acerca da distinção entre os recortes de cada autor: entre os regimes de identificação e o que poderia ser chamado de “regimes da arte”. E nisso Rancière também se distingue de Badiou, ao tratar de regimes de identificação, ao invés de propor esquemas, como o fez Badiou. Os esquemas são pensados em termos ontológicos, isto é, o autor pensou em recortes de acordo com a presença ou a ausência da verdade (ou até com suas múltiplas possibilidades de existência), como foi abordado anteriormente, inclusive referenciando outros autores, como Platão, Heidegger e Aristóteles, cada qual relacionado a um determinado esquema e a uma determinada concepção da verdade na arte e na obra de arte.

Rancière, por outro lado, valeu-se dos regimes de identificação. De acordo com o filósofo e segundo tais regimes, a “[...] arte existe apenas na medida em que é enquadrada por regimes de identificação que nos permitem conferir especificidade em suas práticas e associá-las a diferentes modos de percepção e afecto e a diferentes padrões de inteligibilidade” (RANCIÈRE, 2011: 3). Dessa forma:

Fundar o edifício da arte significa definir um certo regime de identificação da arte, isto é, uma relação específica entre práticas, formas de visibilidade e modos de inteligibilidade que permitem identificar seus produtos como pertencentes à arte ou a uma arte. A mesma estátua da mesma deusa pode ser ou não arte, ou sê-lo diferentemente conforme o regime de identificação segundo o qual é apreendida. (RANCIÈRE, 2010: 11)

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20 Com isso, Rancière alega que a arte se baseia neste tripé, que são os três regimes propostos pelo filósofo, e nos recortes políticos provocados pelo entendimento do que é arte e suas práticas.

Mas o que seria um regime propriamente dito? Para Rancière, um regime se baseia em três pés: pensamento, ação (ou modo de fazer) e sensibilidade. Este nó, termo usado pelo próprio autor, é o ponto central do regime e o constitui. O regime, no entanto, propõe entender e desfazer esse nó; dessa forma, começa-se a mudar a produção artística, depois muda-se a vivência e surge um novo pensamento. O que reconfigurará esse nó, fazendo surgir um outro regime.

O regime é, por si só, uma vivência, segundo o autor. A vivência, no entanto, é individual, particular, idiossincrática, já que o ser humano é diferente entre si e tem sensibilidades diversas, enquanto que o regime tem um caráter mais histórico, o que, evidentemente, influencia a vivência de cada um. Logo, para Rancière, o potencial de vivência humana é atravessado por diversas questões e fatores, como contextos históricos, sociais e dos próprios regimes de identificação da arte propostos e discutidos pelo pensador francês. Nesse sentido, após explicitar o conceito de regime e identificar as diferenças de recortes e abordagens acerca da arte entre Badiou e Rancière, serão analisados cada um dos três regimes de identificação da arte, que são os seguintes: o regime ético, o regime representativo e o regime estético.

3.1 Regime Ético

Em relação ao primeiro esquema, o ético, Ranciére também o denomina de regime ético das imagens, uma vez que “os produtos da prática artística não são considerados arte, mas entendidos como imagens” (RANCIÈRE, 2011: 3). Este pensamento proposto implica duas consequências da apreciação da obra de arte: “[...] em primeiro lugar, são essas imagens fiéis aos seus originais? Seguidamente, que efeito produzem nos modos de ser, no comportamento e na moralidade dos que as contemplam?” (RANCIÈRE, 2011: 3). Isto é:

Nesse regime, não há arte propriamente dita, mas imagens que são julgadas em função de sua verdade intrínseca e de seus efeitos sobre o modo de ser dos indivíduos e da coletividade. Eis por que propus chamar esse regime de indistinção da arte de regime ético das imagens. (RANCIÈRE, 2010: 24)

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21 Rancière alega que este regime está ligado a uma visão platônica de arte. Nesse sentido, postula que o objeto de arte é uma verdade em si, que mantém orgânica a comunidade, organizada a partir dessas verdades (obtidas, segundo Platão, através dos questionamentos filosóficos). Seguindo tal lógica, esses objetos de arte, verdades em si, seriam os hinos aos deuses, as estátuas que representam divindades, objetos divinos de forma geral. Dessa forma, o modo de ser da comunidade, bem como seus hábitos e costumes (ethos), seriam determinados “organicamente”. Organicamente e, não, impostos, já que os modos de ser e o ethos seriam a própria verdade da comunidade. Estas comunidades orgânicas seriam o modelo de uma sociedade “totalizante” e, não, de uma sociedade totalitária. Enquanto que na sociedade totalitária haveria uma imposição desses modos de ser, desse ethos, dessas verdades, a sociedade totalizante seria idealizada numa sociedade orgânica, a qual seria “naturalmente” organizada a partir dessas verdades.

Segundo o citado Platão, não há uma diferenciação do que é arte e do que não é arte. O que existe são artes, de forma geral mesmo, que são as “maneiras de fazer”. E dentro dessas artes de forma geral, as imagens têm papel central, como bem coloca CARNEIRO sobre essa afirmação de Ranciére:

Rancière afirma que, no regime ético, “há um tipo de seres, as imagens, que é objeto de uma dupla questão: quanto à sua origem e, por conseguinte, ao seu teor de verdade; e quanto ao seu destino: os usos que têm e os efeitos que induzem”. As maneiras de fazer são questionadas, neste regime, primeiramente quanto ao fato de produzirem imagens que podem ser cópias do mundo das ideias ou do mundo sensível, das aparências – havendo aqui uma clara superioridade, em Platão, do que provém do mundo das ideias sobre o que pertence ao mundo sensível, o que é aparência. (RANCIÈRE apud CARNEIRO, 2014: 15)

As artes também são questionadas do ponto de vista da sua destinação. Dessa forma, se questiona o modo com que proporcionam determinada “educação aos cidadãos e com que ocupam os espaços e os tempos da cidade. A condenação que a filosofia profere contra os fazedores de mímesis e os sofistas ilustra bem essa questão e evidencia os nomes e funções privilegiados por Platão, assim como seus desdobramentos na tradição ocidental” (CARNEIRO, 2014: 16).

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A questão ética, por ser o critério de questionamento que se aplicava a todas as práticas sociais, impedia que a arte fosse reconhecida como uma atividade singular e privilegiada. Nesse sentido, a polêmica platônica contra os simulacros da pintura, da poesia e do teatro, ou seja, a polêmica contra os conhecimentos e práticas oriundos de simples aparências e sem fins práticos ou especulativos definidos, pertence ao regime ético das artes. (RANCIÈRE apud CARNEIRO, 2014: 17)

Vale mencionar que um exemplo pertinente a esse regime é o contexto da Grécia Antiga, em que a arte era algo apenas divino, apenas ligado aos deuses, nada fugia desse motivo. Segundo Rancière, o regime ético é um reflexo instaurador (na medida em que reflete e determina) da ética, dos hábitos e costumes (ethos) e das verdades de uma determinada organização social num dado tempo e espaço. Dessa forma, como explicitado anteriormente, este regime pode levar a um regime totalizante, se de fato se realizar, se concretizar e deixar de ser apenas um projeto, assim como o vê Rancière: ainda apenas um projeto.

3.2 Regime Representativo

O segundo regime, o representativo, estaria calcado no pensamento aristotélico. De acordo com Rancière, este regime:

[...] isola, entre as múltiplas “artes” - no sentido de “atividades técnicas” -, o domínio particular das artes da imitação, dissociando-as dos ditames éticos sobre a sua verdade e os seus efeitos morais. Em alternativa, este regime submete-se apenas a regras de verossimilitude e de consistência interna [...] Mas esta consistência interna só adquire a sua cogência no seio de uma rede de relações estáveis entre as criações artísticas e a sensibilidade do público. (RANCIÈRE, 2011: 4)

Referenciando agora outro texto do filósofo francês, intitulado “A Estética como política”, Rancière toma como exemplo a estátua grega conhecida como “Juno Ludovisi”. O autor a utiliza justamente para analisar como seria vista esta obra de arte em cada um dos regimes propostos por ele. Ao tratar do segundo regime, o representativo, Rancière afirma que:

A estátua é uma “representação”. Ela é vista através de toda uma grade de convenções expressivas que determina o modo pelo qual uma habilidade de escultor, dando forma à matéria bruta, pode coincidir com uma capacidade

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artística de dar às figuras convenientes as formas de expressão convenientes. Chamo esse regime de identificação de regime representativo das artes. (RANCIÈRE: 2010: 24-25)

Segundo Rancière, neste regime haveria hierarquia entre os objetos de arte constituídos. Esta hierarquia serviria de guia para o julgamento das obras de arte, tanto pela qualidade, quanto pela audiência referente à obra. A questão da verdade que emana da arte se perde e o que fica da relação obra de arte e espectador é a vivência da narrativa, a identificação com a narrativa.

[...] a propósito da lógica representativa. Esta entra numa relação de analogia global com uma hierarquia global das ocupações políticas e sociais: o primado representativo da ação sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição, a hierarquia dos gêneros segundo a dignidade dos seus temas, e o próprio primado da arte da palavra, da palavra em ato, entram em analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade. (RANCIÈRE, 2005: 32)

Esse regime se refere a um regime de transição, de mudança. O que antes considerava tudo como “das artes” (ou seja, as maneiras de fazer), não havendo diferenciação alguma do que era arte e do que não era arte, no regime representativo há até hierarquia. A arte foi alçada a um outro patamar e determinadas atividades foram alçadas ao conceito de arte. O teatro foi uma delas, antes visto como uma atividade perigosa (por Platão), como explicitado abaixo:

Se no regime ético considera-se que o teatro oferece certo perigo a ponto de ele ser desqualificado filosoficamente, no regime representativo sua elevação à categoria de arte e a simultânea regulagem através da função representativa reduzem as possibilidades de a cena teatral alterar as dinâmicas sociais e investir-se da potência mitológica do devir, pois, como ficção, o teatro representa as ações humanas em suas relações de causa e efeito. (RANCIÈRE apud CARNEIRO, 2014: 31)

Rancière também denomina este regime como sendo um regime poético (RANCIÈRE, 2005: 30). O autor fala de uma arte ligada ao par poiesis/mímesis. Mímesis, não no sentido de imitação ou cópia, mas de maneira que se refere a um princípio que isola determinadas artes (no domínio geral das artes, as maneiras de fazer) que executam coisas específicas, ou seja, as imitações. Segundo, o filósofo francês, isto quer dizer que:

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Tais imitações não se enquadram nem na verificação habitual dos produtos das artes por meio de seu uso, nem na legislação da verdade sobre os discursos e as imagens. Nisto consiste a grande operação efetuada pela elaboração aristotélica da mímesis e pelo privilégio dado à ação trágica. É o feito do poema, a fabricação de uma intriga que orquestra ações representando homens agindo, que importa, em detrimento do ser da imagem, cópia interrogada sobre seu modelo. (RANCIÈRE, 2005: 30)

Nesse sentido, por classificar certas artes dentro das artes de forma geral (as maneiras de fazer), tal regime também define maneiras de fazer e apreciar imitações. “Chamo-o representativo, porquanto é a noção de representação ou de mímesis que organiza essas maneiras de fazer, ver e julgar” (RANCIÈRE, 2005: 31).

3.3 Regime Estético

Em relação ao último regime exposto e discutido por Ranciére, o estético, este aborda a relação com a obra de arte, que se daria num jogo imprevisível. Segundo Ranciére e referenciando Schiller, essa nova partilha do sensível é “precisamente [...] que Schiller resume na palavra ‘jogo’ [...] o jogo é a atividade que não tem outro fim além dela mesma, que não se propõe a qualquer tomada de poder efetiva sobre as coisas e sobre as pessoas” (RANCIÈRE, 2010: 25).

Em que sentido? Esse jogo imprevisível se daria na obra de arte tanto em relação ao seu artista, quanto em relação ao seu espectador, quem interage de alguma forma com a obra. Nesse momento, há uma mudança radical do ser humano a partir da relação com a obra de arte. Ranciére acredita que este regime seja capaz de possibilitar mudanças políticas, já que o político, segundo o autor francês, é a própria partilha do sensível, ou seja, de como a comunidade se relaciona, experimenta sensivelmente a obra de arte.

É preciso salientar neste momento que, no contexto do início do século XIX, há mudanças nas narrativas e nos modos de viver, sentir e experimentar a obra de arte, a partir da mudança do século XIX (Modernidade). A mudança que a Modernidade traz consigo é justamente a quebra das hierarquias do regime representativo. Para Rancière, o que ocorre no início do século em questão é o rompimento com essas hierarquias, que se dá pouco a pouco, e engendra o surgimento, então, do regime estético.

O local que reúne todas essas hierarquias, os espaços coletivos, os locais definidos onde se ia para contemplar tudo aquilo que era considerado e definido como arte (o que

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25 não era classificado como tal não entrava nesses espaços delimitados) é o museu. E é justamente nele que ocorrem esses rompimentos. Para Rancière, é no museu onde as obras hierarquizadas (os quadros de nobres, de santos, com imagens de eventos importantes) vão, aos poucos, perder sua importância. Os quadros vãos sendo colocados uns ao lado dos outros, sem destaque, perdendo a diferenciação que os caracterizava e hierarquizava anteriormente. Dessa forma, o museu é um dos fatores que vai iniciar a transição para o novo regime, o regime estético. E é justamente no museu que o jogo puro da arte poderia se dar, destacado de tudo o mais.

Portanto, seguindo a lógica de rompimento da hierarquia e regras do regime representativo, o chamado regime estético da arte resulta:

[...] do colapso dessas regras de correspondência entre temas, formas de representação e modos de expressão. Neste regime, a hierarquia de temas e de gêneros cai por terra. Todos os temas gozam de igual estatuto e podem ser tratados mediante toda e qualquer forma de representação. Esta reviravolta estética é mais ou menos contemporânea da Revolução Francesa [...]. (RANCIÈRE, 2011: 4)

Para exemplificar, o exemplo da estátua de Juno é novamente relembrado. A estátua, se no contexto do regime estético, é analisada da seguinte forma por Rancière:

Ela [a obra de arte, a estátua de Juno] a extrai de sua participação em um

sensorium específico. A propriedade de ser arte se refere aqui não a uma

distinção entre os modos de fazer, mas a uma distinção entre os modos de ser. É isto que quer dizer “estética”: a propriedade de ser arte no regime estético não é mais dada por critérios de perfeição técnica, mas pela inscrição em uma certa forma de apreensão sensível. A estátua é uma “livre aparência”. Ela se opõe, assim, duplamente a seu estatuto representativo: ela não é uma aparência referida a uma realidade que lhe serviria de modelo. Também não é uma forma ativa imposta a uma matéria passiva. Ela é uma forma sensível heterogênea em relação às formas ordinárias da experiência sensível marcadas por essas dualidades. E se dá em uma experiência específica que suspende as conexões ordinárias não só entre aparência e realidade, mas também entre forma e matéria, atividade e passividade, entendimento e sensibilidade. (RANCIÈRE, 2010: 25)

Neste ponto, é necessária uma breve explicação sobre o conceito de política para Rancière, uma vez que menciona tal significado ao longo da sua esquematização dos três regimes citados, ou seja, o autor relaciona arte com política. Para o pensador, a política é a transformação da sociedade a partir da sensibilização que a arte é capaz de proporcionar.

Referências

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