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Levante dos Pescadores de Santa Bárbara: comentários da estreia da narradora Anna Seghers com base em sua recepção literária

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Academic year: 2021

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Mariana Silva de Campos Almeida

LEVANTE DOS PESCADORES DE SANTA BÁRBARA: COMENTÁRIOS DA ESTREIA DA NARRADORA ANNA SEGHERS COM BASE EM SUA RECEPÇÃO LITERÁRIA

Tese submetida ao Curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, da Universidade Federal de Santa Catarina, para obtenção do grau de Doutora em Estudos da Tradução: Teoria, Crítica e História da Tradução. Orientador: Prof. Dr. Werner Ludger Heidermann.

Florianópolis 2018

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RESUMO

Os comentários à tradução do primeiro livro de Anna Seghers, Levante dos Pescadores de Santa Bárbara, reagem à fortuna crítica sobre a polêmica novela da tendência modernista da Nova Objetividade na Literatura Alemã. Ainda inédita no Brasil, embora premiada e traduzida ao redor do mundo em quase um século de história, Aufstand der Fischer von St. Barbara encerra material estético, ideológico e mítico para compreender o projeto literário da autora sob o lema da “força dos fracos”. Dentro da abordagem sociológica da Tradução (HERMANS, 2007), considerando a perspectiva cognitiva da Estilística e da Narratologia (BOASE-BEIER, 2014), propõe-se ampliar o horizonte dos estudos literários acerca das contribuições e vieses proporcionados pela Literatura traduzida. Apresentadas as motivações e influências artísticas para as inspirações de Seghers, examinam-se os elementos paratextuais das edições originais da narrativa, como suas implicações e desdobramentos para a tradução. Complementa-se o levantamento crítico sobre o percurso da novela com sua repercussão pela tradução. Revelam-se faces mais complexas da autora e sua obra que aquela consolidada na recepção brasileira, de representante da Literatura de Exílio e do Realismo socialista. O estudo dos paratextos de outras obras de Seghers traduzidas para o português e sua referência em periódicos brasileiros relembra a história esquecida. A proposta de tradução da estreia da autora vem revigorar os atributos estilísticos e narratológicos para a compreensão de seu estilo e sua cosmovisão, além da insistência em seu ativismo político.

Palavras-chave: Comentários à tradução literária. Anna Seghers. Sociologia da tradução. Estilística cognitiva. Narratologia cognitiva. Recepção literária.

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ABSTRACT

The commentary on the translation of Anna Seghers' first book, "Levante dos Pescadores de Santa Barbara", reacts to the critical fortune of the controversial novella of the New Objectivity in modern German Literature. Still unpublished in Brazil, although awarded and translated around the world in almost a century of history, Aufstand der Fischer von St. Barbara contains aesthetic, ideological and mythical material to understand the author's literary project under the motto of "the power of the weakness". With a sociological approach to Translation (HERMANS, 2007), and considering the cognitive perspective of Stylistics and Narratology (BOASE-BEIER, 2014), it is proposed to broaden the horizon of Literary studies on the contributions and biases provided by translated Literature. Having presented the motivations and artistic influences for Seghers inspirations, the paratextual elements of the original editions of the narrative, as well as their implications and unfolding for translation, are examined. The repercussion of the novella through its translations complements the critical survey of its course. Facets of Seghers and her literary work, more complex than the one consolidated in Brazil, as an example of Exile Literature and Socialist Realism, are revealed. The paratexts of Brazilian translations and their reference in local journals recall the forgotten history. The translation proposal reinforces the stylistic and narratological attributes for the understanding of the author's style and worldview, besides insisting on her political activism.

Keywords: Commentaries on literary translation. Anna Seghers. Sociology of Translation. Cognitive Stylistics. Cognitive Narratology. Literary Reception.

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ZUSAMMENFASSUNG

Die Kommentare zur ersten Übersetzung ins brasilianische Portugiesisch von Anna Seghers "Levante dos Pescadores de Santa Bárbara" reagieren auf die kritische Rezeption des Werkes und seiner Autorin. Die umstrittene Erzählung gehört zu den bedeutendsten Titel der Neuen Sachlichkeit von der modernen Deutschen Literatur: mit dem Kleist-Preis ausgezeichnet und weltweit übersetzt, sie enthält ästhetisches, ideologisches und mythisches Material, um das Œuvre der Schriftstellerin unter ihrem späteren Motto der "Kraft der Schwachen“ zu analysieren. Mithilfe der Soziologie der literarischen Übersetzung (HERMANS, 2007) und der kognitiven Stilistik und Narratologie (BOASE-BEIER, 2014) werden die Beiträge und Verzerrungen von übersetzter Literatur diskutiert, um den Horizont der literarischen Studien zu erweitern. Paratextuelle Elemente der Originalausgaben und die Wirkung der Novelle durch die Übersetzung erzählen die fast jahrhundertealte Geschichte des Buches. Die Paratexte Seghers Übersetzungen auf Portugiesisch und deren Verweise in brasilianischen Zeitungen verraten die vergessenen Passagen der Dichterin des Exils und des sozialistischen Realismus durch dieses Land. Das jüngste Porträt Seghers bietet sich an, neue Facetten der Autorin und ihrem ersten Werk kennenzulernen: Die künstlerischen Einflüsse auf Seghers literarischen Motiven und empathische Beschreibungen, wie ebenso die mythischen Anregungen orientieren die stilistischen und narratologischen Kommentare. Der Übersetzungsvorschlag will Seghers Stil und Weltanschauung verstehen, jenseits der Insistenz auf ihren politischen Aktivismus. Denn sie schrieb poetisch, um den Schwachen ihre Kraft zu zeigen.

Stichworten: Kommentar zur literarischen Übersetzung. Anna Seghers. Soziologie der literarischen Übersetzung. Kognitive Stilistik. Kognitive Narratologie. Literarische Rezeption.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 13

1.1 CORPUS ... 17

1.2 PERCURSO LITERÁRIO DE ANNA SEGHERS ... 27

1.3 PERGUNTAS DA PESQUISA ... 35

1.4 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ... 37

1.5 APRESENTAÇÃO DO TRABALHO ... 57

2 A GÊNESE DE AUFSTAND DER FISCHER VON ST. BARBARA ... 61

2.1 INSPIRAÇÕES PARA A VISÃO DE MUNDO SEGHERIANA ... 61

2.2 OS PARATEXTOS EDITORIAIS ... .74

2.2.1 O Pseudônimo ... 76

2.2.2.1 Outras alcunhas ... 84

2.2.2 O Título ... 87

2.2.3 O Gênero literário, suas espécies e formas ... 98

3 A RECEPÇÃO SEGHERIANA ... 109

3.1 A RECEPÇÃO ALEMÃ DE AUFSTAND ... 110

3.1.1 Um breve parêntese sobre a questão de gênero da autora ... 118

3.1.2 A repercussão da estreia literária nas fases posteriores da autora ... 123

3.1.3 Um panorama das edições alemãs de Aufstand ... 129

3.1.4 As duas filmagens de Aufstand ... 131

3.2 AS TRADUÇÕES ... 134

3.2.1 Dados editoriais das traduções de Aufstand ... 137

3.2.2 Panorama das traduções do conjunto da obra segheriana1 ... 145

3.3 SEGHERS NO BRASIL ... 147

3.3.1 Paratextos editoriais das traduções de Seghers para o português 154 3.3.1.1 Contos e coletâneas ... 160

3.3.2 Dos periódicos nos acervos brasileiros ... 170

3.3.2.1 Panorama da recepção literária de Seghers no Brasil ... 171

3.3.2.2 A imagem da autora a partiir da Hemeroteca Nacional ... 176

4 QUESTÕES NARRATOLÓGICO-ESTILÍSTICAS CUNHANDO A TRADUÇÃO LEVANTE DOS PESCADORES ... 185

4.1 OS DIÁLOGOS DA OBRA COM SEU ZEITGEIST BRASILEIRO 189 4.2 AS INTERTEXTUALIDADES ... 194

4.2.1 Variações e alusões textuais ... 199

4.2.2 Topônimos e antropônimos ... 205

4.3 AS DESCRIÇÕES ... 214

4.4 OS MOTIVOS DE AUFSTAND ... 227

4.5 O ESTILO NARRATIVO SEGHERIANO ... 245

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 273

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1 INTRODUÇÃO

A pesquisa de base documental resultante na presente tese dá suporte à elaboração de comentários para minha tradução Levante dos Pescadores de Santa Bárbara, com fonte na primeira publicação em livro da escritora alemã Anna Seghers (1900-1983), Der Aufstand der Fischer von St. Barbara (1928). Para a retextualização e sua consequente discussão, buscam-se ferramentas e argumentos na interface dos Estudos da Tradução com a Literatura Comparada, considerando a abordagem sociológica da Tradução e a perspectiva cognitiva da Estilística e da Narratologia. Em outras palavras, através das histórias em torno da obra que lançou Seghers, mapeada nos dados sobre a recepção literária e tradutória da autora e sua obra, pretendo compreender melhor o estilo e a cosmovisão da narradora e, em contraparte, colaborar com novos parâmetros de leitura para seu projeto literário.

Este trabalho nasceu da reflexão sobre a função da Literatura traduzida, iniciado em meu mestrado, já com foco em História e Crítica da Tradução. Ali aprendi a recorrer ao contexto da tradução para compreender as incompatibilidades entre o texto alvo e seu texto fonte; seu momento e espaço históricos determinantes, seus agentes, destacando-se as relações estabelecidas com a história do original, incluindo a história de outras traduções. Observei que o texto alvo era um retrato possível de leituras do texto fonte e seu entorno – e a crença na preservação da nitidez do retrato pretendido, como se a versão do conteúdo e da forma da mensagem independessem de aspectos extratextuais, apenas o obscureceria ainda mais. Os aspectos extratextuais em questão se referiam mais propriamente à subjetividade do tradutor e à polissemia derivada de sons e imagens repercutidas na recepção do original. Esse olhar partiu da abordagem integrada dos Estudos da Tradução (SNELL-HORNBY, 1995). A leitura seminal da moderna História da Tradução auxiliou a conjugação de olhares intra- e extratextuais, assim como o reconhecimento da importância da transdisciplinaridade1 no processo tradutório. Desde então, ao meu ver,

tornou-se imprescindível unir os Estudos da Tradução aos estudos

1 A escolha desse termo se deve à possibilidade da tradução literária expandir as

fronteiras das disciplinas envolvidas; sem restar somente entre a Tradução e a Literatura, ela acrescentaria outros espaços de observação a partir de seu deslocamento. Essa pareceu a melhor maneira de tratar as bases do constructo desenvolvido nesse trabalho, mais especificamente na seção da fundamentação teórica.

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literários quando a Literatura estrangeira é referida – aqui, em particular, a Literatura Alemã traduzida.

A estreia de Anna Seghers oferece a oportunidade de aprofundar e experimentar esse constructo mediante a rica gama de dados paratextuais – principalmente quanto à autoria, peritextos e epitextos, públicos e/ou privados (GENETTE, 2009) – e traduções ao longo de quase um século de história. As vinculações artísticas e políticas da autora da Weltliteratur, as questões primárias de Literatura Comparada, como o distant reading (MORETTI, 2001), e da Teoria dos Polissistemas (EVEN-ZOHAR, 1990), assim como da visão da tradução como manipulação e reescrita (LEFEVÈRE, 1997), inspiraram a primeira proposta do projeto desta pesquisa. Num primeiro estágio, além da tradução do primeiro capítulo da novela, preparei um breve panorama da recepção de Seghers em periódicos paulistas a partir da década de 30 até a atualidade, além do levantamento dos estudos acadêmicos sobre a autora e sua obra no Brasil e no exterior.

À medida que a tradução se configurava e a bibliografia com respeito a outras traduções e à crítica literária era atualizada, a pesquisa passou a se fundamentar na abordagem sociológica da tradução para acompanhar os desenvolvimentos teóricos sobre obras da Literatura Universal, como é o caso de Aufstand2.

Segundo Damrosch (2009), uma obra do cânone literário mundial atua em esferas de relações globais, regionais, nacionais e individuais, que se transformam com o tempo e primariamente, “prosperam na tradução” (DAMROSCH, 2009, p.497)3. Dessa maneira, a tradução é

considerada um sistema social per se:

A tradução importa enquanto prática social e cultural não tanto por proporcionar reproduções de discursos anteriores em outras línguas, mas por negociar e se posicionar perante os valores que transmite (HERMANS, 2014, p. 293).4

2 Neste trabalho, sempre que a novela for citada no contexto da Literatura

Universal, será referida pelo nome original Aufstand. Levante, o título traduzido, refere-se apenas à tradução da novela feita pela autora desta tese.

3 “Thrive in translation” (DAMROSCH, 2009, p. 497).

4 “Translation matters as a social and cultural practice not so much because it

supplies reproductions of anterior discourses in other tongues, but because it negotiates and takes a stance towards the values it transmits” (HERMANS, 2014, p. 293). Todas as traduções acadêmicas das citações deste trabalho são de minha autoria.

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O foco deste trabalho é refletir sobre a projeção na tradução Levante da voz, das visões e dos valores do tradutor (HERMANS, 2014) frente à obra e ao autor com que trabalha. Partindo dessa premissa social para a experimentação do processo de transposição do texto fonte para o texto alvo, buscam-se justificativas das escolhas tradutórias que dialoguem com a recepção da narrativa e com a cosmovisão do autor. No caso dessa tradução, consideram-se especificamente os aspectos da perspectiva narratológica no estilo de Seghers, que prezava acima de tudo a iconicidade de seu texto:

Na maioria das vezes, contamos uma história mais claramente do que a escrevemos. Ao narrar, retomamos o que foi visto e ouvido, enquanto escrevendo, retomamos facilmente o que foi escrito em vez da realidade visível. Por isso, é bom contar a história a um ouvinte imaginário quando queremos escrever (SEGHERS, 1975 b, p. 4).5

Essa questão se aprimora junto à narratologia, pois as pistas sobre os aspectos inerentes ao Realismo de Seghers estariam em passagens que por sua estranheza resistem à tradução e, através dela, tendem a se tornar forçosamente coerentes. Segundo os pesquisadores da área, especialmente o discurso e pensamento indiretos livres (GALLAGHER, 2001; BOASE-BEIER, 2014 a6) e a iconicidade dos espaços narrativos

(DE BLEEKER, 2014) ainda seriam pouco explorados pelos Estudos da Tradução e a Narratologia Cognitiva. As ambiguidades deveriam permanecer e, ao mesmo tempo, significar além do equívoco; tratam-se de possibilidades de leituras que, se observadas atentamente, oferecem um novo olhar ao que passaria despercebido no próprio original (BOASE-BEIER, 2014 b).

Nesta tese, tenho em vista a tradução do estilo do texto e de seu autor para revigorar a fruição de textos literários também fora da

5 “Meistens erzählt man deutlicher, als man schreibt. Knüpft im Erzählen an

Gesehenes und Gehörtes an, während man schreibend leicht an Geschriebenes anknüpft, statt an die sichtbare Wirklichkeit. Deshalb ist es gut, was man schreiben will einem imaginären Zuhörer zu erzählen” (SEGHERS, 1975 b, p. 4).

6 O artigo de Boase-Beier (2014) investiga os efeitos do emprego dos recursos

estilísticos do discurso/pensamento indireto livre na construção da atmosfera em contos de Herta Müller que retratam a opressão e a transgressão de seus personagens.

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academia, de acordo com as observações de Perrone-Moisés (2016) em Mutações da literatura no século XXI. Em sua crítica, a estudiosa vem “assinalar algumas tendências contemporâneas na produção, na crítica e no ensino de literatura” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 0), pois espera, com esse vislumbre, estimular leitores na contínua busca das “iluminações que só as próprias obras literárias podem oferecer” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 0). Em minha opinião, há algo mais a se acrescentar; na divulgação e até mesmo no estudo de obras literárias em tradução, caso se ignore o caráter mediador desta última, a crítica arrisca servir apenas aos estereótipos e estilizações sobre as diferentes histórias da Literatura Mundial, sem necessariamente revelar em profundidade como e por quê são atribuídos valores literários a determinadas obras7.

Para tanto, defende-se a tradução como mais uma ferramenta da prática da crítica literária e da fundamentação de seus parâmetros, como qualquer escrito do gênero.

Embora partam particularmente do contexto alemão, as observações de Schneider (2016) sobre o papel e a função da tradução literária, ao fechar sua apresentação sobre o instrumental essencial na análise estilística de romances clássicos e populares, corroboram minha posição. O acadêmico reforça o fato literário que se desenvolve desde o século XIX: “O romance é um gênero peculiarmente internacional” (SCHNEIDER, 2016, p. 61)8. À medida que o gênero se popularizou

como forma de entretenimento, a tradução se tornou a medida imediata da ressonância e perpetuação de uma obra, potencializada pelo desenvolvimento de novas mídias. Na Alemanha, de acordo com Schneider (2016, p. 61), “por volta de 1850 quase a metade da produção alemã de romances constituía-se de traduções” e “romances transpostos para o alemão exercem um papel extraordinário em nossa lista dos mais vendidos até hoje”9.

7 Essa minha visão advém da leitura sobre as pesquisas mais atuais na interface

da Narratologia e dos Estudos da Tradução, vide o ensaio que abre o caderno dedicado ao tema de Language and Literature (Vol 23 (3) 2014). Disponível em: https://doi-org.ez46.periodicos.capes.gov.br/10.1177/0963947014536504. Acesso em: 14 abr. 2018.

8 “Der Roman ist eine besonders internationale Gattung” (SCHNEIDER, 2016,

p. 61).

9 “Um 1850 soll fast die Hälfte der deutschen Romanproduktion aus

Übersetzungen bestanden haben” e “verdeutschte Romane spielen in unseren Bestsellerlisten bis heute eine herausragende Rolle” (SCHNEIDER, 2016, p. 61).

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Ao lado do aspecto comercial do romance em tradução, Schneider (2016) concorda com Perrone-Moisés (2016) ao destacar que, “do ponto de vista estilístico, comparado com um poema, ensaio ou aforismo, o romance oferece relativamente menos resistência à tradução” (SCHNEIDER, 2016, p.62), dadas as possibilidades parafrásticas oferecidas pela “pela mera extensão do texto”10. Schneider (2016) se

pergunta sobre o peso dos aspectos estilísticos diante do aparato profissionalizante da produção literária mesmo em casos famosos que prezam o contato do autor com seus tradutores, fora do âmbito das pesquisas em Estudos da Tradução.

Espero que o desenvolvimento deste trabalho colabore com o aprimoramento do “pacto translatório” (ALVSTAD, 2016); que a tradução possa colaborar com a história da obra e do autor que representa, preenchendo a expectativa do leitor exigente mediante seu efeito de verossimilhança (BRITTO, 2012).

Pelo momento, aprofunda-se a relevância de conjugar questões tradutórias e literárias ao detalhar as escolhas sobre Seghers e seu primeiro livro para a tese. Também perscruto as relações que a autora e sua primeira obra estabelecem com seu percurso por diferentes lugares e leituras até chegar ao Brasil. Após explicitarem-se as perguntas de pesquisa que servem ao esboço da tese como um todo, segue a fundamentação teórica e a apresentação geral do trabalho.

1.1 CORPUS

A tradução da narrativa que apresenta Anna Seghers tem como fonte a primeira edição de Aufstand der Fischer von St. Barbara (1928). Assinada apenas Seghers, a novela foi laureada com o prêmio Kleist, em seguida ao seu lançamento, pelo fato de ser “um bom livro, em linguagem suscinta e clara, no qual a mais ínfima figura ganha vida” (JAHNN, 1991, p. 746)11. Atrás do pseudônimo e nas entrelinhas de caráter masculino,

acabou por revelar-se a jovem doutora em História da Arte, Netty

10 “Einer Übersetzung in stilistischer Hinsicht relativ wenig Widerstände

entgegensetzen, verglichen etwa mit einem Gedicht, einem Essay oder einem Aphorismus”, “schiere Länge des Textes” (SCHNEIDER, 2016, p.62).

11 “Ein gutes Buch mit knapper und sehr deutlicher Sprache, in dem auch die

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Reiling/Radvanyi, oriunda de família judaica abastada, casada com um imigrante húngaro, comunista, mãe de duas crianças de colo.

Aufstand despontou entre elogios e críticas como um dos ícones literários na Berlim da efervescente República de Weimar. Os camaradas comunistas reclamaram da “vagueza feminina na representação da luta e sua organização”, reconhecendo, “todavia, de maneira geral uma representação extraordinária da miséria social” (FRIEDLÄNDER, 2008, p. 108)12; enquanto para os conservadores, “o coração bate pelos pobres,

o que, entretanto, não melhora a gramática” (SCHIROKAUER, 1991, p. 1062-1063).13 Logo traduzida para outros grandes centros europeus da

época, a obra germinal de Seghers acabou por inspirar o primeiro e único filme do teatrólogo Erwin Piscator, Vosstanie rybakov (1934), ou O Levante dos Pescadores. A passagem mais famosa e comentada da obra é seu prólogo, aqui propositadamente apresentado no original:

Der Aufstand der Fischer von St. Barbara endete mit der verspäteten Ausfahrt zu den Bedingungen der vergangenen vier Jahre. Man kann sagen, daß der Aufstand eigentlich schon zu Ende war, bevor Hull nach Port Sebastian eingeliefert wurde und Andreas auf der Flucht durch die Klippen umkam. Der Präfekt reiste ab, nachdem er in die Hauptstadt berichtet hatte, daß die Ruhe an der Bucht wiederhergestellt sei. St. Barbara sah jetzt wirklich aus, wie es jeden Sommer aussah. Aber längst, nachdem die Soldaten zurückgezogen, die Fischer auf der See waren, saß der Aufstand noch auf dem leeren, weißen, sommerlich kahlen Marktplatz und dachte ruhig an die Seinigen, die er geboren, aufgezogen, gepflegt und behütet hatte für das, was für sie am besten war (SEGHERS, 2008 c, p.3). Segundo o crítico Marcel Reich-Ranicki (2008, p. 129), autor da monografia Die Epik der Anna Seghers (1957), o prólogo da novela não só resumiria o enredo com esmero, como revelaria seu estilo, “como dentro de um embrião dos ideais essenciais e motivos artísticos do

12 “Weibliche Verschwommenheit in der Darstellung des Kampfs und seiner

Organisation”,“im Ganzen aber doch eine hervorragende Darstellung sozialer Not” (FRIEDLÄNDER, 2008, p. 108).

13 “Das Herz schlägt für die Armen, wodurch aber die Grammatik noch nicht

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conjunto da obra da narradora”14. Desse modo, na história da malfadada

insurreição de pescadores de um lugar e tempo míticos, acredita-se gestar o lema da “força dos fracos”, que permearia o conjunto da obra de Seghers.

Portanto, a fim de esclarecer minha postura geral frente ao corpus que traduzo e comento, discorro um pouco mais demoradamente sobre esse trecho tão peculiar a Seghers já neste primeiro momento. Apresenta-se o prólogo agora em duas de suas primeiras e mais referenciadas traduções: para o inglês e para o espanhol, em duas diferentes leituras de sua época. A terceira coluna traz a primeira tradução italiana, também a primeira do pós-guerra. A anglo-americana serviria de referência para outras traduções indiretas, como a chinesa, sendo consultada até hoje por acadêmicos (FEHERVARY, 2004). A espanhola foi o cartão de visitas para a presença de Seghers em plena Guerra Civil alguns anos mais tarde, cunhada pelo punho de Javier Bueno, um dos heróis do conflito. Houve retraduções e hoje elas partilham da história da estreia da autora. Embora difiram em tempo, lugar, motivações e objetivos, os três textos são iniciados com a crônica breve e discretamente retórica (sublinhada) sobre o fim do levante:

The only result of their revolt was that the fishermen of Saint Barbara put out to sea later than usual: the agreement with their employers remained what it had been for the last four years. The revolt was really finished before Hull was turned over to the police in Port Sebastian and before Andreas was killed on his flight in the cliffs. The prefect of police departed after reporting to the capital that peace had once more

La rebelión de los pescadores de Santa Bárbara terminó con la retrasada salida en las condiciones de los

cuatro años

precedentes. Pudiera decirse que la rebelión había tocado de hecho a su fin antes de que Hull fuese enviado a Port Sebastián y de que Andrés pereciera en su huída por los arrecifes. El prefecto se retiró después de haber informado la capital de que en la bahía quedaba restablecido el

La rivolta dei pescatori di Santa Barbara finí con un semplice ritardo nell´embarco, alle stesse condizioni dei quattro anni precedenti. Si può dire che la rivolta vera e propria era già finita, prima che Hull fosse consegnato a Port Sebastian e Andrea, fuggendo, perisse sugli scogli. Il prefetto se ne andò, dopo aver annunziato alla capitale che la calma era stata ristabilita nella baia (Seghers por Bovero:

14 “Wie in einer Keimzelle”: “die wesentlichsten ideelen und künstlerischen

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been restored in the harbor. (Seghers por Goldsmith apud FEHERVARY, 2004, p. 118-119).

orden (Seghers por Bueno: La rebelión de los pescadores, 1933).

La rivolta dei pescatori di Santa Barbara, 1949).

O sempre tão comentado parágrafo inicial se desenvolve na narração poética que cultivaria “o indício da imortalidade da luta pela liberdade e da revolução” (REICH-RANICKI, 2008, p. 131)15. A

descrição da atmosfera de Santa Bárbara e a personificação do levante (sublinhadas) seriam cruciais para ilustrar a força alegórica que serve ao lema segheriano:

And Saint Barbara looked just as it did every summer. But long after the militia had left, long after the fishermen were back at sea, the insurrection hung, brooding, over the

empty white

marketplace which had a deserted, almost bald look in the summer time; here the revolt remained, thinking quietly of its own, of the men it had borne, reared, nursed and protected in preparation for that which was best for them (Seghers por Goldsmith apud FEHERVARY, 2004, p. 118-119).

En verdad, Santa Bárbara tenía el mismo aspecto que en los veranos anteriores. Pero mucho tiempo después de haberse ido los soldados, de haber salido los pescadores al mar, allí en el mercado desierto, blanco y de frescores veraniegos, seguía apostado el levantamiento e pensaba vigilante en los suyos, en los que había parido, alzado, cuidado y protegido para darles lo que les conviniera más (Seghers por Bueno: La rebelión de los pescadores, 1933).

Ora Santa Barbara aveva proprio il suo consueto aspetto estivo. Ma per gran tempo, quando già i soltati erano stati retirati, e i pescatori erano in mare, la rivolta rimase ancora sulla piazza del mercato, bianca e deserta nell´a aridità estiva e pensava silenziosamente aí suoi, che essa aveva generati, allevati, assistiti e protetti per chello che per loro fu il meglio. (Seghers por Bovero: La rivolta dei pescatori di Santa Barbara, 1949).

Observam-se diversos recursos estilísticos em poucas linhas; embora já houvesse repetição nas duas primeiras sentenças, ela ganha destaque especial iniciando a história, seguida de elipses dos verbos

15 “Den Hinweis auf die Unsterblichkeit des Freiheitskampfes und der

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auxiliares. Há a retórica do fim, mas a condensação da passagem do tempo aponta que a memória do evento não se apagou. A personificação do levante invoca uma imagem parental, a incondicionalidade dessa história. Ao longo da narrativa, o narrador empresta seu olhar poético a momentos como esse, que descreve a praça do levante, breve nas palavras e denso de pensamentos.

O estilo e a cosmovisão de Seghers emergem nas primeiras linhas de sua novela, apesar dos diferentes contextos, das diferentes normas literárias e tradutórias e seus efeitos. Quaisquer de suas pistas, nessa rara oportunidade de cotejá-las16, auxiliaram a investigação da expressão das

forças motrizes do projeto da autora para as entrelinhas de minha versão. Abaixo, três momentos de minha leitura do prólogo, em sequência cronológica da esquerda para a direita:

O levante dos pescadores de Santa Bárbara acabava com a saída para o mar, atrasada, sob os termos dos últimos quatro anos. Pode-se dizer que o levante já chegara propriamente a cabo, antes que Hull fosse deportado e Andreas sucumbisse na fuga pelos rochedos. O edil partia, depois de haver relatado à capital que a

calma estaria

restabelecida na baía. Santa Bárbara agora dava realmente ares, ares aqueles de todo verão. Mas por muito tempo, depois dos soldados retornados, dos pescadores estarem no mar, o levante ainda

O levante dos pescadores de Santa Bárbara findou com a saída atrasada para o mar, nas condições dos últimos quatro anos. Pode-se dizer que o levante já chegara de verdade ao fim, antes que Hull fosse deportado para Port Sebastian e Andreas sucumbisse na fuga pelos rochedos. O edil partiu, depois de haver relatado à capital que a

calma estaria

restabelecida na baía. Santa Bárbara agora dava realmente ares que dava todo verão. Mas muito tempo depois dos soldados se retirarem, dos pescadores estarem no mar, o levante ainda

O levante dos pescadores de Santa Bárbara findou com a saída atrasada para o mar nas condições dos últimos quatro anos. Pode-se dizer que o levante já chegara de verdade ao fim antes que Hull fosse deportado para Port Sebastian e Andreas sucumbisse na fuga pelos rochedos. O edil partiu depois de haver relatado à capital que a

calma estaria

restabelecida na baía. Agora, Santa Bárbara pareceu realmente como parecia todo verão. Mas há tempos, depois dos soldados se retirarem, dos pescadores estarem no

16 Apenas os prólogos das primeiras traduções espanhola e italiana puderam ser

consutados, via world-wide-web, assim como trechos da tradução de Goldsmith pela pesquisa de Fehervary (2004).

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se firmava na praça do mercado, vazia, branca, escalvada de verão, e velava calmamente os seus, a quem havia parido, criado, cuidado e guardado, para o que lhes era melhor.

continuava sentado na praça do mercado, vazia, branca, escalvada de verão, pensando com calma nos seus, a quem parira, criara, cuidara e guardara, para o que lhes era melhor.

mar, o levante ainda assentado na praça do mercado, vazia, branca, árida do estio, pensava com calma nos seus, a quem parira, criara, cuidara e guardara, para o que lhes era melhor17.

Com esse esboço sobre as traduções do prólogo, introduzem-se minha interpretação da narrativa e as principais diretrizes para a concretização de sua tradução, revisão e comentários, por meio da observação dos recursos narrativos e estilísticos da escrita de Seghers pela crítica e traduções, como também em outras obras da autora.

Em Seghers, há inúmeros momentos em que se comprova como a Literatura também fala por seus silêncios. O narrador testemunha a história que paira nos ares de Santa Bárbara e a partilha com seus “espectadores”. Os aspectos psicossociais dos protagonistas se atrelam aos momentos marcantes do maior acontecimento coletivo daqueles arredores; seus olhares e pensamentos adentram a narrativa.

Assim como o levante já fora caracterizado parentalmente no prólogo, para Hilzinger (2000, p. 91), ele pode recordar as mães proletárias nas esculturas em bronze de Kollwitz18. De fato, cabe às

17 Todos os trechos de Aufstand der Fischer von St. Barbara traduzidos para o

português são de minha tradução Levante dos Pescadores, com data de publicação não definida. A primeira versão dos dois primeiros capítulos foi revisada na Oficina de Tradução Vice-versa, entre a segunda e décima-primeira edição do evento em Florianópolis, com direção da tradutora Kristina Michahelles e organização da Prof. Dra. Rosvitha Blume da UFSC, também responsável pelo grupo de trabalho em tradução literária local. Os três últimos capítulos foram revisados com o tradutor Marcus Tulius Franco Morais. Eventuais terceiras versões são resultado de discussões por ocasião da qualificação da tese e/ou das próprias reflexões para os comentários da tese. Somente uma versão do trecho em tradução significa que seus exemplos bastaram para os comentários, estando implícitas as reflexões sobre as intermediárias que auxiliaram as decisões narratológicas ou estilístico-tradutórias em destaque neste trabalho.

18 Uma das principais obras da gravurista e escultora alemã Käthe Kollwitz

dialoga com Seghers, trata-se do ciclo Ein Weberaufstand (1893-1897), baseado no drama de Gerhart Hauptmann sobre um levante de tecelões em Breslau (disponível em: http://www.kollwitz.de/Zyklen_Weber1.aspx. Accesso em: 14/05/2018).

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mulheres de Santa Bárbara resistir à fome e ao frio e questionar, em suas curtas aparições, os limites da greve. No epílogo, são elas que descobrem algo de novo nos olhos dos companheiros e filhos, pescadores sobreviventes que embarcam para a próxima pescaria sob as habituais e precárias condições:

Eine Minute lang erkannte sogar jede Frau in den Augen ihres Mannes das Feste, Dunkle vom letzten Winter (SEGHERS, 2008 c, p.81).

Por um minuto, também cada uma daquelas mulheres percebeu nos olhos do marido a firmeza e a escuridão do último inverno.

O algo novo reconhecido nos olhos dos pescadores é a marca de sua história; é o derradeiro exemplo de como as minúcias constroem a narrativa e não se restringem a textos notoriamente poéticos, sendo necessário observá-las com cuidado também na tradução da prosa, para não perder o fio condutor que garante o seu sentido literário.

Em oficinas de escrita, Seghers revelou porque sua novela de enredo simples pode não agradar a quem busque peripécias, mas a quem queira “encontrar pistas nas coisas” (SEGHERS, 1975 b, p. 6)19. Sobre a

criação de textos, a escritora sugere que “em cada espaço que descrevemos haja dois elementos: o diferencial e o unificador” (SEGHERS, 1975 b, p. 7)20. Assim pode-se conhecer o estranho e

também se reconhecer nele. E alerta a partir de um exemplo de seu aprendiz, “a descrição pode ser opticamente boa, mas a partir dela se vê apenas a mulher que um burguês descreve, não se sente como a personagem sentiu” (SEGHERS, 1975 b, p. 6)21. São nas descrições

pormenorizadas que Seghers almeja a participação na história e a aproximação das impressões e vivências dos personagens, tão diferentes e tão próximos – um exercício ético sobre empatia e compaixão contra o mero sentimentalismo.

Em 1965, entrando na última fase de seu projeto, Seghers discorre sobre a então recente antologia de contos, intitulada pelo que considero seu lema:

19 “An Gegenständen Spuren finden” (SEGHERS, 1975 b, p. 6).

20 “In jedem Raum, den wir beschreiben, sind zwei Elemente enthalten: das

Unterschiedliche und das Verbindende” (SEGHERS, 1975 b, p. 7).

21 “Die Beschreibung ist zwar optisch gut, aber aus ihr sieht man nur, wie der

bürgerliche Beschreiber die Frau gesehen, nicht wie sie (eine Rollenperson) sich selbst gefühlt hat” (SEGHERS, 1975 b, p. 6).

(24)

Tratam-se de histórias curtas e longas, e em toda a parte são representadas pessoas que parecem enfraquecidas, e até mesmo insignificantes, mas que em momentos decisivos são capazes de uma grande força. Por isso “A Força dos Fracos”.22

Cabe aos comentários da tradução desenvolver em detalhes textuais como essa definição também pode se referir à novela de estreia. Em sua resenha sobre o ciclo de histórias “A Força dos Fracos”, para o hebdomadário Die Zeit (28/01/1966), o crítico Reich-Ranicki já relaciona as obras da maturidade e dos primórdios por esse lema; se, no primeiro momento, o tom seria esperançoso, ele se tornaria desiludido: “como se deveria compreender essas histórias além de confissão e conselho da autora?”. Reich-Ranicki defende que a voz da velha narradora ainda se faz presente, que sua resposta às questões de seu momento seria “na verdade, uma resposta sutil e modesta, todavia inequívoca. Uma resposta não sem humildade, não sem dignidade”.23

Por isso, o levante seria dos pescadores de Santa Bárbara, não de Hull, personagem aparentemente líder dos pescadores: porque os fracos não seriam ordinários; por serem fracos, só lhes restaria confiar em seu caráter e sua sorte, no forasteiro mensageiro de boas-novas, no augúrio de que a vida e a história do vilarejo de pescadores podem mudar. Hull se apresentaria como um dos heróis exemplares da autora: aventureiros, revolucionários, desterrados, céticos e desiludidos, encarnando as ambiguidades inerentes a qualquer ser humano, todas elas motivos caros a Seghers (HILZINGER, 2000). Seus heróis servem de contraparte à voz principal, a dos fracos, que pode ser a do leitor.

22 “Es sind kurze und lange Geschichten, und überall werden Menschen

dargestellt, die schwächlich, unbedeutend sogar erscheinen, die aber in entscheidenden Momenten zu einer großen Kraft fähig sind. Deshalb ‘die Kraft der Schwachen’”, em conversa com Wolf Littmann por ocasião de uma de suas visitas à Alemanha Ocidental, com transcrição de áudio e vídeo dos arquivos da primeira televisão pública alemã (ARD), disponível em: http://www.planet-schule.de/fileadmin/dam_media/swr/autoren_erzaehlen/pdfdoc/seghers_filmskri pt.pdf. Acesso em: 11 jan. 2018.

23 “Wie sollte man diese Geschichte anders verstehen denn als Bekenntnis und

Mahnung der Erzählerin?”,

“eine zwar unauffällige und bescheidene, doch unmißverständliche Antwort. Eine Antwort nicht ohne Demut. Nicht ohne Würde”. Disponível em: http://www.zeit.de/1966/05/die-anna-seghers-von-heute. Acesso em: 20 abr. 2018.

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A escritora narra, pois acredita no potencial de uma força humana extraordinária, e não apenas na banalidade do mal. Dessa maneira, mesmo se desconhecendo onde e quando o levante sucedeu e quem foram seus protagonistas, ele está prestes a acontecer em qualquer época, em qualquer lugar, quando os heróis assim se reconhecerem e resistirem. Como esclarece a própria autora sobre a intemporalidade de seus contos reunidos A Força dos Fracos (1965):

As histórias se passam em diferentes países e épocas. Porque nenhuma delas se passa em um espaço vazio, provavelmente elas encontrarão respostas para questões colocadas hoje em dia 24.

Já se pode antever com base nesses primeiros trechos e comentários de sua obra, inicial ou madura, que Seghers escreveu sobre os mitos de todos os tempos que voltaram ao século XX. Segue, portanto, uma breve retrospectiva sobre essa época a partir da biobibliografia da autora.

1.2 PERCURSO LITERÁRIO DE ANNA SEGHERS

As fogueiras do preconceito terminarão por se apagar, a visita da Santa Inquisição se encerrará, a criação de Anna Seghers permanecerá no ápice da literatura alemã, impossível escamoteá-la, as trevas da noite não conseguem impedir a afirmação do dia (AMADO, 2012, p. 248)

Embora Aufstand tenha permanecido inédita em português, no exame da recepção de Seghers no Brasil, seja em artigos de caráter crítico-literário ou manuais sobre a Literatura Alemã (ROSENFELD, 1993; CARPEAUX, 1994 e RÖHL, 2006), a novela é sempre citada como o escrito que a consagrou. Levante dos Pescadores de Santa Bárbara viria finalmente apresentar ao leitor lusófono os primórdios de Seghers, reconhecida mundialmente pela obra da Literatura de Exílio: os romances

24 “Die Geschichten spielen in verschiedenen Ländern zu verschiedenen Zeiten.

Da keine von ihnen im hohlen Raum spielt, werden sie wahrscheinlich auf manche Fragen, die auch heute gestellt werden, Antwort finden”, entrevista

disponível em:

http://www.planet-schule.de/fileadmin/dam_media/swr/autoren_erzaehlen/pdfdoc/seghers_filmskri pt.pdf. Acesso em: 20 abr. 2018

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A Sétima Cruz (1942) e Em Trânsito (1944), além do conto autobiográfico “O Passeio das Meninas Mortas” (1946). Também de acordo com Ilse Losa, tradutora portuguesa dos primeiros contos de Seghers em nossa língua, essas obras, juntamente com a novela de estreia, “permanecem vivas, porque pertencem à grande literatura universal” (LOSA, 1997, p. 28).

Muito ativa politicamente quanto às relações literárias teuto-brasileiras, Seghers chegou a visitar nosso país no início da década de 60. Os irmãos Amado foram o principal elo para sua recepção no Brasil, como também para a do escritor Jorge Amado e “seu talento balzaquiano” (SEGHERS, 1975 b, p. 197)25 no antigo bloco soviético26. Foi nessa

década que Seghers se tornou uma celebridade em nossa cena literária, com o lançamento da antologia de contos Histórias Vividas (1961), especialmente empreendida pelo tradutor James Amado. Após o golpe militar, Seghers desapareceria dos periódicos brasileiros e, aos poucos, das livrarias. Restariam notas jornalísticas sobre as apreensões de seus livros pelo DOPS27 e a lembrança de um amor infeliz por um intelectual

de esquerda no conto “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu, dos anos 80: “Foi no que deu ficar trocando livrinho de Camus por Anna Seghers” (ABREU, 1995, p. 207). A autora só voltou a ser publicada e traduzida para o leitor brasileiro com a abertura política; todavia, somente a obra de exílio entre a ficção engajada e os ensaios antifascistas continuou em destaque (ANDRADE, 2015; OLIVEIRA, 2017), investigada principalmente por causa de suas inspirações autobiográficas.

Com o centenário da autora em 2000 e a descoberta de antigos diários e páginas avulsas, a iniciação literária de Seghers, assim como escritos autocensurados de sua maturidade, promoveram novas fontes de pesquisa sobre seu projeto literário. Até então, somente os textos já conhecidos da primeira fase, como Aufstand, haviam sido concebidos em plena liberdade artística e política, pois a autora tentaria conciliar ao longo de sua carreira o diálogo entre a tradição literária alemã em sua expressão e os ideais comunistas regentes em seu tempo. Os “novos” textos, engavetados pelo tempo ou pela necessidade de Seghers de continuar

25 “Seine Balzachafte Begabung” (SEGHERS, 1975 b, p. 197).

26 O artigo de Vejmelka (2014) sobre aspectos interculturais da obra amadiana

comprovam esses dados; disponível em:

http://journals.openedition.org/amerika/4522#ftn7. Acesso em: 09 jan. 2018.

27 Diário Carioca 09/12/1965, p.2. Disponível em:

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escrevendo, obrigam à releitura, ao exame das motivações da artista, que vão muito além daquelas puramente políticas.

No Brasil, o olhar ainda não despertou para os primórdios da autora, mas se estendeu ao epílogo da representante da Literatura de Exílio e do Realismo Socialista, a quem a história não pouparia do ostracismo: sua relação literária e política com a família Amado (EGGENSPERGER, 2009) e a resistência e sagacidade infinitas de seu amor pela ficção nos últimos contos (BOTELHO, 2012). Com temáticas que apontam as intersecções dos textos de Seghers com a Literatura brasileira e os clássicos alemães, ambas as pesquisas dialogam com ou pertencem ao âmbito dos Estudos da Tradução e da Literatura alemã traduzida.

Com o auxílio do estudo de Fehervary (2004) sobre a dimensão mítica em Seghers e a repercussão de seus primeiros escritos no conjunto da obra, vislumbram-se os liames de uma tradição literária fundamentando a amálgama de relações e vivências daquele século de crises, refletidas no estilo da narradora:

Ela preferia o estilo topográfico de Joseph Conrad tecer suas histórias às lucubrações psicológicas sobre arte e cultura de um Thomas Mann. Os estudos de caráter cheios de alma de Dostoiévski à ordem teleológica de classe média do romance de formação, as representações paisagísticas dos pintores holandeses da dinâmica do cotidiano à interioridade quiescente e provinciana da novela alemã do século XIX (FEHERVARY, 2004, p. 1)28.

Desse modo, mesmo a interpretação meramente ideológica se revelaria mais complexa do que se poderia supor pela leitura enviesada resultante da prévia censura stalinista ao romance histórico Os Mortos permanecem jovens (1949), a obra da autora mais editada no Brasil. O percurso literário de Seghers caminha passo a passo com os mais marcantes acontecimentos do século XX na história ocidental e auxilia na

28 “She preferred Joseph Conrad´s topographical style of yarn-spinning to

Thomas Mann´s psychological musings on art and culture, Dostoyevsky´s soulful character studies to the teleological middle-class order of the Bildungsroman, the Dutch landscapes painter´s renderings of the dynamics of everyday life to the quiescent provincial interiority of the nineteenth-century German novella” (FEHERVARY, 2004, p.1).

(28)

reflexão sobre eles; ele carrega e dele partem gerações literárias: “O que seria do século sem ela?” – pergunta Christa Wolf (2000, p. 9) 29. ao fim

de seu prefácio para a biografia em fotos da escritora que tanto admirava. A partir de 1933, com a ascensão de Hitler, a Alemanha de Seghers experiencia o terror de duas ditaduras, a nazista e a comunista. Entre uma e outra, também a devastação e o Holocausto durante a Segunda Guerra, a divisão do país e a Guerra Fria. Por causa da origem judaica e sua filiação ao partido comunista da Alemanha (Kommunistische Partei Deutschlands), Seghers dependeria cada vez mais de suas escolhas, até mesmo para sobreviver. Atrelando o ativismo político antifascista à causa literária, suas publicações na Alemanha foram censuradas, proibidas ou queimadas. A saga kafkaniana de sua fuga dos nazistas até a acolhida no exílio mexicano inspiraria o romance Em Trânsito (1944); com a versão hollywoodiana de seu romance pacifista mais famoso, A Sétima Cruz (1942), Seghers se estabelece na Literatura mundial. Seus consagrados romances e contos do exílio são primeiramente divulgados em traduções que, somente a partir de 1947, após sua volta à Alemanha, seriam lidos no original.

Todavia, os mesmos escritos que haviam projetado Seghers internacionalmente provocariam considerável resistência naquela que outrora fora sua pátria e onde então, em confissão a Lukács, sentia-se como “na era do gelo, tão frio me parece tudo por aqui” (SEGHERS, 2008 b, p. 310)30. As contradições de seu povo estampavam-se nas linhas que

escrevia. A decisão de permanecer em Berlim Oriental levou Seghers à presidência da academia de artes (Akademie der Künste) da antiga República Democrática Alemã (RDA). Mas em “era de extremos”, opiniões dividem-se, quebrantam e terminam por calar-se.

Mais sobre esse silêncio busca entender o germanista Robert Cohen no romance histórico Exil der frechen Frauen (2009), uma ficção que trata das motivações de artistas revolucionárias do século XX além de seus estereótipos. Dentre elas, nas palavras do autor, Anna Seghers “tem de certo modo um papel coadjuvante nada irrelevante”31, com sua

crença inefável na extinta União Soviética.

29 “Was wäre das Jahrhundert ohne sie?” (WOLF, 2000, p. 9).

30 “In die Eiszeit geraten, so kalt kommt mir alles vor” (SEGHERS, 2008 b, p.

310).

31“Spielt eine nicht unwichtige Nebenrolle”, disponível em:

https://sh.rosalux.de/fileadmin/ls_sh/dokumente/publikationen/robert_cohen_int erview_.pdf. Acesso em: 09 jan. 2018.

(29)

Parte desse processo foi partilhado com a audiência brasileira e ainda é revisitado, como mostra a tradução recente para o português da carta aberta de Günter Grass a Seghers (WEYHE, 2009), publicada no dia seguinte à construção do Muro de Berlim32, por ocasião da primeira visita

da escritora ao Brasil33.

A postura de Seghers em prol da construção do Muro de Berlim, que muitos dos jovens escritores chamavam de “muro da vergonha” (Schandmauer) provocou uma acalorada discussão político-literária, iniciada em cartas abertas de escritores dos dois lados do muro, envolvendo a mídia e as editoras alemãs, por vezes rompendo a barreira que se plantava em meio ao país, outras vezes acrescentando a ela ainda mais argamassa e tijolos.

Quando o fôlego de romancista se perde frente a alinhamentos partidários, segundo unânime crítica da Alemanha Ocidental, como sugerem os títulos dos romances Die Entscheidung (1959) e Das Vertrauen (1968) – respectivamente “A Decisão” e “A Confiança” – Seghers se estabelece enfim como contista e novelista. A antologia de contos Die Kraft der Schwachen (1965) inaugura a última fase da autora, explicitando o lema de todo seu projeto literário. As novelas caribenhas Das wirkliche Blau, Eine Geschichte aus Mexiko (1967) e Drei Frauen aus Haiti (1980) vêm revisitar a imaginação e a cosmovisão de Seghers, relembrando as distâncias percorridas, em diálogo com sua estreia literária.

Naquele mesmo prefácio, intitulado “Gesichter der Anna Seghers” (Faces de Anna Seghers), Wolf também relembra a defesa de Seghers por Amado e questiona “ela não podia nascer entre povos mais generosos?” (WOLF, 2000, p. 9)34. O panorama sobre a crítica pesquisada na

Hemeroteca da Biblioteca Nacional aproxima-se de um retrato brasileiro de Seghers, vindo complementar a recepção internacional a partir de

32 O Muro de Berlim começou a ser construído por ordem das autoridades da

RDA e apoio militar dos soviéticos da noite para o dia 13 de agosto de 1961. A cidade seria divida arbitraria e violentamente, segundo as fronteiras estabelecidas pelos Aliados ao tomar a capital alemã ao fim da Segunda Guerra Mundial. Apenas em 9 de novembro de 1989 a barreira seria derrubada diante do clamor pela Reunificação Alemã.

33 O apelo à sexagenária Seghers, de cujo “cálamo” não gostaria de se afastar,

partia de um jovem autor – Günter Grass – que seria questionado, ao fim de sua vida, ao revelar sua participação na juventude hitlerista.

34 “Warum konnte sie nicht unter solchen großzügigeren Völkern zur Welt

(30)

Fehervary (2002). Mais que uma resposta à demanda de Wolf, trata-se da rememoração de passagens da História da Tradução Literária no Brasil.

A quem interesse ou se ocupe da Literatura Alemã, ainda restam em sebos pistas da época em que Seghers era lida e discutida no Brasil; parte desta pesquisa implicou em sua listagem e apreciação. De qualquer maneira, mesmo sendo pouco lida e estudada na academia35, é esta que

ainda a abriga, com destaque para Botelho (2012) que, por meio de seu estudo sobre uma tradução experimental sob orientação do tradutor Azenha Júnior, colabora com o único conto tardio de Seghers em português, “O Encontro de Viagem” (1973) – em um café em Praga, três notáveis da Literatura universal (Hoffmann, Gógol e Kafka) e três tempos distintos se entrecruzam para conversar sobre o ofício do escritor. Na única obra de Seghers ainda publicada no Brasil – Travessia: uma história de amor (1971), traduzida por Daniel Martineschen em 2013, pela Editora UFPR – viaja-se nos mares entre o Brasil e a Alemanha Oriental, onde confluem a narrativa da viagem e a do viajante. As duas contribuições já refletem uma nova abordagem do projeto de Seghers em sua terceira fase, quando a autora retoma os temas existenciais da juventude, porém em uma linguagem mais fluida.

A força dramática também seria outro aspecto relevante da obra da autora já compartilhado em língua portuguesa na década de 80, na montagem do Teatro da Cornucópia para A Missão. Recordações de uma revolução, de Heiner Müller (1929-1995), inspirada, entre outros textos, no conto de Seghers “A Luz sobre a Forca” (1961)36.

35 Antes da presente década, houve a tese de Rodrigues (1978): Santa Joana

segundo Seghers e Brecht, destacando a originalidade e independência criativa do drama brechtiano baseado na peça de Seghers de 1937. Segundo Fehervary (2004), a relação de amizade e parceria entre os dois escritores, iniciada no início dos anos 30 em Berlim, quando juntos contribuíram para a Escola dos Trabalhadores Marxistas (MASCH-Marxistische Arbeiter-Schule), ainda teria muito a ser explorado – o que deveria se considerar também do ponto de vista da Literatura Alemã traduzida no Brasil e da recepção dos dois autores em língua portuguesa. Na década seguinte, a dissertação de Maciel (1988), Anna Seghers: sua obra, sua época sob orientação do germanista e comparatista Wolfgang Bader, seria a única a tratar o projeto da autora em sua primeira fase, de acordo com suas palavras-chaves (Seghers, Anna, 1901-1983 - Crítica e interpretação. Fascismo - Alemanha. Literatura e história – Alemanha. Crítica literária – Alemanha. Alemanha – História – 1918-1933). Infelizmente, não foi possível o acesso direto a essa obra.

36 Ver: https://alpha.sib.uc.pt/?q=content/luz-sobre-forca. Acesso em: 19 jan.

(31)

Segundo Röhl (2006, p. 4), nesse conto acerca de um levante escravo no Caribe por ocasião da Revolução Francesa, “a narrativa, o registro do trabalho de memória, possibilita na visão marxista de Seghers, o resgate do oprimido, dos heróis sem face desprezados pela história oficial”.

Embora o escopo maior no âmbito acadêmico se restrinja à Literatura de Exílio (DORNBUSCH, 2005) e subestime o papel da tradução (ANDRADE, 2015; OLIVEIRA, 2017), o estudo de Röhl (2006) sobre a Literatura da RDA contextualiza e analisa as contribuições de Seghers em sua última fase, resgatando a cosmovisão da autora e seu papel literário em excertos de sua obra que foram ou seriam transpostos aos sistemas literários português e brasileiro, como os já citados “A Luz sobre a Forca” (1984) e “O Encontro de Viagem” (2012).

Entretanto, não são necessárias muitas outras leituras para se aproximar do legado literário da autora. Hermann Hesse, escritor alemão entre os mais lidos em português, resenharia Seghers “entre as mulheres da geração de escritores jovens talvez a figura mais curiosa e imponente” (HESSE, 1975, p. 551)37.

Em outra resenha ainda inédita em português38, de 1937, Benjamin

(2007) dá à autora o epíteto de “cronista dos desempregados”. As palavras do filósofo aproximam-na do personagem principal do famoso ensaio “O Narrador” (BENJAMIN, 1994), publicado em 1936, destacando elogiosamente o estilo oral e icônico da “narradora” em vários momentos:

Ela narra com pausa como alguém que, espera em silêncio pelo ouvinte vocacionado e, para ganhar tempo, algumas vezes detém-se (...) seus esboços se movem o mais próximo das formas das pinturas, que se encontram antes da descoberta da perspectiva (...). Lança-se em formas épicas antigas, à crônica, ao livro de histórias (BENJAMIN, 2007, p. 461-464).39

37 “Unter den Frauen der jungen deutschen Dichtergeneration wohl die

merkwürdigste und imponierendste Erscheinung” (HESSE, 1975, p. 551).

38 Também disponível em:

http://gutenberg.spiegel.de/buch/kritiken-und-rezensionen-1932-1940-2982/47. Acesso em 23 jan. 2018.

39 “Sie erzählt mit Pausen wie einer, der auf die berufenen Hörer im Stillen wartet

und, um Zeit zu gewinnen, manchmal innehält (...) Ihre Schilderungen rücken in nächste Nähe derjenigen Formen der Malerei, die vor der Entdeckung der

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Entre outras proximidades com Benjamin, há a ponderação do filósofo em “O autor como produtor”, na qual ilustram-se os movimentos da dialética de Seghers – “descrever o mundo para transformá-lo”:

A melhor tendência é falsa quando não prescreve a atitude que o escritor deve adotar para concretizar essa tendência. E o escritor só pode prescrever essa atitude em seu próprio trabalho: escrevendo (BENJAMIN, 1994, p. 132).

Essa dialética já se iniciara em debates na “União dos Escritores Revolucionários do Proletariado” (Bund Proletarisch-Revolutionärer Schriftsteller) e em sua revista literária Linkskurve40, sendo registrada na

máxima de um dos primeiros ensaios de Seghers, “Kleiner Bericht aus meiner Werkstatt” (1932) – algo parecido com “Curto relato de minha oficina de escrita” –: “Pois escrevemos não para descrever (o mundo), mas para mudá(-lo) descrevendo(-o)” (SEGHERS, 1975 b, p. 7 - 8)41. A

ideia seria pormenorizada em vários ensaios (ANDRADE, 2015), entre eles um especial sobre as “tarefas da arte” (“Aufgaben der Kunst”, 1944), no qual a autora exilada defende que “a potencial conscientização da realidade pela arte abarca todas as áreas da vida” (SEGHERS, 1975 b, p. 81)42.

Fehervary (2004) também convida ao exame das intertextualidades entre as obras de exílio, como A Sétima Cruz e o ensaio benjaminiano “Sobre o conceito de história” (BENJAMIN, 1994), ao que coroaria a associação do destino do “estranho camarada” (SEGHERS, 2008 b, p. 91,

Perspektive liegen (...)Es drängt zu älteren epischen Formen, zu der Chronik, zum Lesebuch” (BENJAMIN, 2007, p. 461-464).

40 Em 2011, Reinhard Sturm, em artigo sobre a República de Weimar, para a

“Sede Federal para a Formação Política” (Bundeszentrale der politischen Bildung (BPD), credita o primeiro livro de Seghers como uma das “obras de crítica social significativas artisticamente” (“künstlerisch beachtliche sozialkritische Werke”) provenientes dessa associação de escritores radicais de esquerda, uma das mais importantes da época, ligada assim como seu periódico ao Partido Comunista da Alemanha. Disponível em: http://www.bpb.de/izpb/55964/zwischen-festigung-und-gefaehrdung-1924-1929?p=all. Acesso em 28 abr. 2018.

41 “Denn wir schreiben ja nicht, um zu beschreiben, sondern um beschreibend zu

verändern” (SEGHERS, 1975 b, p. 7 - 8).

42 “Die Bewußtbarmachung der Wiklichkeit durch die Kunst umfaßt alle Gebiete

(33)

459)43 com o desaparecimento do personagem poeta Weidel e a

descoberta de sua valise no romance Em Trânsito.

Entre tarefas e renúncias de artista mediante questões de sua época, é em sua referencial correspondência com Lukács (1938-1939) que Seghers discorre sobre o valor do modernismo e da subjetividade nas Artes e na Literatura, levantando questões que reforçam esse novo olhar no colorido de sua obra:

Todas as grandes sínteses são sempre precedidas, quer no artista, quer na sua geração, pela invenção, sondagem e experiências da nova realidade (...). Também o artista mais realista tem, de algum modo, os seus ‘períodos abstratos’; e deve tê-los (LUKÁCS & SEGHERS, 1968, p. 23).

Seghers teria sido a grande guardiã das ideias do mestre e amigo que sempre a influenciaram, mesmo quando ele próprio as rejeitava. Fehervary (2004) dedica todo um capítulo para o exame das influências do jovem Lukács de A Teoria do Romance (1916-1920) sobre Aufstand; a novela de estreia seria uma “tentativa de dar forma épica para o mapa arquetípico e ao locus transcendental da alma buscado por Lukács em seus primeiros escritos teóricos sobre arte e estética” (FEHERVARY, 2004, p. 96)44.

Pelas correspondências literárias o Brasil chega à obra de Seghers, pela repercussão de suas “cartas” para Zélia e Jorge Amado, com trechos traduzidos e publicados em periódicos brasileiros das décadas de 50 e 60 (vide 3.3.2, p. 170). Fortuitamente driblando a censura da RDA (EGGENSPERGER, 2009), Seghers trata de dois grandes modelos de sua formação para compreender seu próprio papel na Literatura; primeiramente sobre o caderno de anotações de Tolstói (1954), discutindo a importância dos clássicos, “como nasceram tais obras, no que reside o seu efeito e como foi obtido”45 (SEGHERS, 1975 b, p. 99). Anos depois,

43 “Quel drôle de type” – “was für ein komischer Kerl” (SEGHERS, 2008 b, p.

91, 459).

44 “Attempt to give epic form to that ‘archetypal map’ and ‘transcendental locus’

of the soul pursued by Georg Lukács in his early theoretical writings on art and aesthetics” (FEHERVARY, 2004, p. 96).

45 Disponível em tradução anônima (ou possivelmente de James Amado) no

jornal fluminense Imprensa Popular (13/03/1955, p. 5: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=108081&pagfis=8422. Acesso em: 30 abr. 2018).

(34)

por ocasião de sua última viagem ao Brasil, em um prólogo para o ensaio sobre Dostoiévski (1962-63), pergunta a Jorge Amado: “Qualquer arte na qual se encontra uma tendência não tem que ser pura para que possa ser chamada de arte?” (SEGHERS, 1975 b, p. 101)46.

Como se vê, arte e política misturam-se desde sempre no projeto literário de Seghers, porque ideais artísticos permanecem em pauta e precisam provocar embates. Como já observara Adorno no ensaio “Engagement” (1965): “A arte não significa aguçar alternativa, e sim, através simplesmente de sua configuração, resistir à roda viva que sempre de novo está a mirar o peito dos homens” (ADORNO, 1991, p. 52). Compreende-se que o conteúdo literário adviria da força da metáfora, da simbolização da realidade; mais sugestões que lições para construir uma realidade ficcional que dê conta do “espírito humano”.

Assim como Netty Reiling/Anna Seghers já observara em sua tese de doutorado, o modo de Rembrandt penetrar com traços e tintas os diferentes carácteres a fim de retratá-los, os velhos e os jovens, os sujos e os cheios de luxo, Seghers também se sensibilizaria para representar “a força dos fracos”. Em seus textos, a sabedoria partiria de seus personagens desvalidos e não lhes seria imposta pela “narradora do proletariado”. Apenas lhe teria faltado espaço em sua época para também defender as ambiguidades inerentes a qualquer obra considerada artística.

Na Feira do Livro de Frankfurt, em 2013, quando o Brasil voltou a ser tema da exposição em um ano de manifestações, o engajamento político da Literatura em questões atuais e sociais dominou discussões entre artistas e convidados de diferentes áreas do conhecimento. O discurso de abertura de Luiz Ruffato47 relembra a proposta de Seghers –

o escritor, para quem escrever é “compromisso”, acredita, por sua experiência, “talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura”, pois “se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade”.

Neste trabalho, buscam-se, portanto, as relações literárias a partir das inspirações para Aufstand, as diferentes reações à novela, a sua repercussão, sua “pervivência” nas releituras mais diversas e em sua interação com o conjunto da obra de Seghers, ou simplesmente seu

46 “Muss nicht jede Kunst, in der eine Tendenz steckt, rein sein, damit sie Kunst

genannt werden darf?” (SEGHERS, 1975 b, p. 101).

47 Disponível em:

http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463. Acesso em: 18 out. 2016.

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silenciamento. A explicitação da história da obra germinal da autora auxiliaria o tradutor em seu papel de mediador - que não é imparcial - na investigação sobre o estilo narrativo da autora. Valendo a pena relembrar a observação da própria Seghers, chamando a responsabilidade à crítica e quiçá, nesse constructo, ao tradutor:

O objeto do crítico ou do ‘mestre’ é o artista e a sua obra de arte, síntese única e peculiar de factores subjetivos, ponto de encontro do movimento que vai do objeto para o sujeito para voltar de novo ao objeto. Caso se apliquem todos estes momentos no método da crítica, será legítimo exigir que penetre melhor do que até aí na totalidade do processo artístico; que insira as obras isoladas na obra de conjunto do escritor em causa; que esteja em condições de reagir imediatamente à arte, mas que seja também capaz de superar o juízo imediato; que avalie a obra de arte e não se limite a catalogá-la, que formule uma crítica e não o esquema de uma crítica (LUKÁCS & SEGHERS, 1968, p. 23-24). A exposição sobre Seghers e Aufstand, assim como sobre o cenário histórico-político e literário por que passaram, buscou mostrar como o recorte proposto dentro dos Estudos da Tradução se conjuga à investigação sobre a mundividência e o estilo da autora, possibilitando o exame de aspectos pouco estudados em narrativas traduzidas (BOASE-BEIER, 2014 a; DE BLEEKER, 2014). Nas palavras de Seghers e nos discursos sobre ela, ressaltam-se a importância do estudo da recepção e da perspectiva narratológica, o dilema artístico-político e a tradição que a artista representa para a releitura brasileira, num espaço que ainda lhe caberia.

Seguem as questões que motivaram a pesquisa, para depois se desenvolverem nas hipóteses de trabalho. Entrelinha-se, portanto, o projeto de tradução de Levante dos Pescadores de Santa Bárbara. 1.3 PERGUNTAS DA PESQUISA

Na organização dos dados preliminares para o projeto, ecoou a pergunta: por que uma obra premiada e reconhecida internacionalmente, contando entre as mais traduzidas de Seghers, mesmo que recomendada pela crítica literária brasileira e lusitana, nunca chegou ao leitor de língua

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portuguesa? Acredita-se que o histórico de ditaduras no Brasil e em Portugal, ao longo do século XX, possa ter determinado fortemente essa ausência. Também não foram encontradas outras traduções ou mesmo referências à essa obra de Seghers advindas de outros países lusófonos; talvez pela submissão colonial e pelas guerras civis, entre outros totalitarismos a que sua independência incipiente expusesse as manifestações literárias engajadas. Todavia, o estudo acerca do percurso de Aufstand observa a dinâmica de sua recepção a partir do lançamento e da repercussão de suas primeiras traduções para corroborar a hipótese de que se trata de uma obra particularmente interessante a seus censores, a fim de apontar como semelhantes coerções podem operar com sucesso para o silêncio de obras e artistas, também por causa da abordagem estereotipada da Literatura, sem fruí-la de verdade.

Ao investigar o papel da premiada obra de estreia de Seghers em seu projeto como um todo, observam-se as tendências e a atualidade de sua leitura e estudo, como os possíveis diálogos que esta pesquisa insere nesse âmbito.

Constatou-se a possibilidade de afirmar que um lema une o conjunto da obra da autora: “A Força dos Fracos” não intitularia apenas a antologia de seus contos da maturidade, mas já inspiraria o prólogo do primeiro livro. Portanto, do ponto de vista literário, busca-se defender esta ideia apontando os elementos estilísticos que possam representar esse lema e que, portanto, precisariam estar refletidos na tradução.

Adentrando mais o campo dos Estudos da Tradução, responde-se sobre a função da tradução no projeto literário da autora e, mais especificamente, de Levante dos Pescadores de Santa Bárbara para a literatura traduzida no Brasil – no caso, a alemã. O estudo da novela e de sua tradução vem matizar o olhar para uma época libertária da literatura e da história da Alemanha, a qual ainda foi pouco explorada por nós pela tradução, apesar dos diálogos com o Brasil da época.

Seghers é considerada representante internacional da Literatura de exílio e antifascista, mas, nesta tese, defende-se que seu projeto pode ser lido de um ponto de vista mais amplo, a partir da discussão do lema da “força dos fracos”. Sob essa nova égide, sua leitura se atualizaria e abriria novas possibilidades de interpretação, inclusive sobre os primórdios da Literatura de Gênero que, por razões óbvias de aprofundamento, não coube ao escopo desta pesquisa. Por princípio, visando o lema do conjunto da obra, reajo a críticas feministas conservadoras, a quem passou despercebida a interpretação da força de seus personagens femininos.

Como se configura o legado de Seghers no Brasil? O que se pode deduzir a partir das pistas encontradas nos projetos tradutórios e leituras

Referências

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