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RETRATO FALADO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: QUEIXAS E DENÚNCIAS NA DELEGACIA DA MULHER DE MARINGÁ (1987-1996)

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PROGRAMA ASSOCIADO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA/ UEM-UEL MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

CLAUDIA PRIORI

RETRATO FALADO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: QUEIXAS E DENÚNCIAS NA DELEGACIA DA MULHER DE MARINGÁ (1987-1996)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ – UEM

PROGRAMA ASSOCIADO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA/ UEM-UEL MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

CLAUDIA PRIORI

RETRATO FALADO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: QUEIXAS E DENÚNCIAS NA DELEGACIA DA MULHER DE MARINGÁ (1987-1996)

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História Social, junto ao Programa Associado de Pós-Graduação UEM/UEL, na linha de “Fronteiras e Populações”, sob orientação da professora Dra. Hilda Pívaro Stadniky.

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À minha mãe Clementina e ao meu pai Dino pelo apoio à minha formação acadêmica e à carinhosa e freqüente

acolhida quando de meu retorno à casa paterna:,

Às minhas diletas irmãs Maria e Esidinéia que, ainda que de maneira diferente, quer superando os rigores da juventude ou usufruindo de maior liberdade, em momentos mesclados de tristezas e alegrias, souberam amadurecer e tornarem-se fortes e corajosas:

Às milhares de mulheres vítimas de violência e que recorreram à Delegacia da Mulher de Maringá, cujos nomes estão grafados em iniciais neste texto,

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À Dra. Elza da Silva, por disponibilizar o acervo da Delegacia Especializada na Defesa da Mulher, à investigadora Maria da Silva Oliveira e todas as funcionárias pela

presteza e gentileza ao atender-me entre uma denúncia e outra;

Aos docentes do Departamento de História da UEM que me acompanharam desde a graduação, particularmente o Prof. Dr. André Porto Ancona Lopez, pelo incentivo e apoio

ao perceber meu interesse pela pesquisa;

Ao CNPq, pelo subsídio de dois anos de pesquisa com bolsa de Iniciação Científica; À Coordenação do Centro Paranaense de Documentação e Pesquisa (CPDP) que viabilizou a reprodução das fontes do acervo da Delegacia da Mulher de Maringá e do Laboratório de

Pesquisa sobre História Política e Movimentos Sociais (LAPPOM) pela utilização dos recursos técnicos;

Às professoras Dras. Ana Silvia Volpi Scott e Maria de Fátima Salum Moreira, pelas críticas e sugestões formuladas no exame de qualificação;

Ao Angelo, com respeito e admiração, por incentivar-me à produção acadêmica, bem como por ser resoluto em dizer que sucesso e respeito acadêmico se adquire com

dedicação e humildade;

À professora Dra. Hilda Pívaro Stadniky, minha orientadora, pelo incansável apoio, seriedade e disponibilidade ao tratar com tanta paixão e competência o trabalho de orientação desde a graduação, pelas marcas impressas na minha formação, pelo privilégio

dos vários anos de convívio, pelo imenso carinho, amizade, risos e angústias compartilhados durante estes longos anos;

Aos meus amigos de graduação, Iraíldes, Claudinéia, Luciana, Marcelo e Joacy, pelo incentivo na crença de meus sonhos acadêmicos nos momentos maisdifíceis da

jornada;

Às minhas amigas Lígia, Valéria e Marlene, pela convivência ainda nos tempos de república, por compartilharem das minhas angústias e alegrias e brindarem-me com o

silêncio tão caro quando envolta em documentos e na dissertação;

À amiga Andrea, ora tão efusiva, ora tão reservada, presente em todos os momentos da minha vida universitária durante longos sete anos, por compartilhar das

minhas alegrias e tristezas e pela crença inabalável que meus esforços, dedicação e otimismo seriam recompensados;

E por fim, a todas as pessoas que de uma forma ou de outra contribuíram para a realização desta pesquisa, e que por omissão involuntária deixei de mencionar,

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Priori, Cláudia. Retrato falado da violência de gênero: queixas e denúncias na Delegacia da Mulher de Maringá (1987-1996). Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2003.

RESUMO

A violência de gênero, muito mais complexa do que a violência doméstica, faz-se presente em todos os lugares. Carrega uma carga de preconceitos sociais, disputas, discriminação, competições profissionais, herança cultural machista, se revelando sobre o outro através de várias faces: física, moral, psicológica, sexual ou simbólica. Evidencia a luta e resistência dos gêneros na perspectiva de possuir controle sobre o outro, de não permitir que o outro alterne a direção da relação. As relações violentas de gênero vão além das agressões físicas e da fragilização moral e limita a ação feminina ao determinar os espaços que as mulheres podem conquistar. Movimentos feministas e de mulheres lutaram para que o Estado reconhecesse a necessidade da criação de órgãos especializados às vítimas de violência e proporcionasse tratamento legal ao assunto. O olhar mais atento à temática da violência contra as mulheres resultou em uma maior percepção das relações de gênero e culminou com a implantação de delegacias especializadas no Brasil, tornando público esse fenômeno. Nosso objetivo é analisar as relações violentas de gênero via Registros de Ocorrências da Delegacia da Mulher de Maringá, criada em 1986, recuperando o contexto violento e as circunstâncias em que os episódios ocorreram, destacando as falas dos agentes sociais nos Registros, delineando os perfis de vítimas e agressores, bem como resgatando as alegações e motivos que transformaram as relações de gênero em relações violentas. Propomos, para o elenco das queixas registradas na Delegacia da Mulher uma tipificidade norteada pelo Código Penal Brasileiro e Leis das Contravenções Penais, com o propósito de sistematizar a multiplicidade das práticas violentas contra as mulheres. Nossas fontes são, portanto, os registros de Ocorrências, constituídos em 18 livros, e as balizas temporais da pesquisa se situam entre os anos de 1987 e 1996, tendo como marcos o início dos registros formais e o decênio de funcionamento e experiência da Delegacia. Buscamos uma conjugação de dados quantificáveis com as narrativas de mulheres vítimas de violência. Suas denúncias, narrativas descritivas e alegações da violência sofrida estarão impregnando nosso texto, pois os dados numéricos por si não dariam conta de retratar personagens, reconstituir cenários e bastidores e uma verdadeira agenda de violência contra mulheres. Esperamos, com esta pesquisa, contribuir para espanar a poeira de uma temática tão velada pelo medo e insegurança das vítimas e lançar luz sobre um fenômeno que se pretende doméstico, privado, em geral restrito a quatro paredes e ao mais íntimo segredo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 1

CAPÍTULO I - Violência de gênero e a “desnaturalização” da diferença sexual... 13

1. Relações de Gênero, poder e violência: desvendando seus meandros... 14

2. As mulheres na historiografia: contribuição no campo da produção do conhecimento... 27

3. Gênero enquanto categoria de análise: “desnaturalização” da diferença sexual... 33

CAPÍTULO II - A visibilidade social das mulheres e da violência de gênero: a construção de alternativas ou as mulheres por suas próprias mãos... 49

1. Os movimentos reivindicatórios e a emergência das estruturas de apoio às mulheres vítimas de violência... 50

2. Maringá: contexto da colonização e a dinâmica do processo de urbanização... 68

3. Violência de gênero: a retomada do problema no cenário nacional e local... 81

CAPÍTULO III - A vida como ela é: descortinando a violência de gênero... 91

1. Formatando a violência de gênero...:... 92

2. Vítimas e algozes: retrato falado... 112

CAPÍTULO IV – Agenda da violência... 133

1. Cenários e bastidores da violência de gênero... 133

2. Todo dia é dia, toda hora é hora... 154

CONCLUSÃO... 182

BIBLIOGRAFIA... 186

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LISTA DE QUADROS

Quadro n° 1 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e

idade das vítimas: (1987-1996)... 116 Quadro n° 2 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e

ocupação profissional das vítimas: (1987-1996)... 121 Quadro n° 3 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e

local de residência: (1987-1996)... 123 Quadro n° 4 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e

idade dos agressores: (19871996)... 125 Quadro n° 5 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e

ocupação profissional dos agressores: (1987

1996)... 128

LISTA DE TABELAS

Tabela n° 1 - Delegacia da Mulher de Maringá: Tipificidade das queixas registradas

segundo Código Penal Brasileiro (1987

1996)... 95 Tabela n° 2 - Tipificidade das queixas registradas: Delegacia da Mulher de Maringá:

(1987-1996)... 97 Tabela n° 3 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e

vítimas: (1987-1996)... 101 Tabela n° 4 Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas,

por ano: (1987-1996)... 106

LISTA DE FIGURAS

Figura n° 1 – Norte Novo de Maringá (282) e Micro Regiões

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Figura n° 1A - Tipificidade das queixas registradas: Delegacia da Mulher de Maringá: 1987-1996). ... 100 Figura n° 2 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, por queixas: Delegacia da Mulher de Maringá (1987-1996). ... 107 Figura n° 2 A - Distribuição dos Registros de Ocorrências, por tipos de queixas: Delegacia da Mulher de Maringá (1987-1996). ... 107 Figura n° 3 - Relação entre tipos de queixas e estado civil das vítimas: (1987-1996). 119 Figura n° 3 A – Maringá – Mapa do ZoneamentoUrbano... 124 Figura n° 4 - Relação entre tipos de queixas e estado civil dos agressores:

(1987-1996)... 127 Figura n° 5 - Distribuição dos Registros de Ocorrências: queixas e grau de relação entre vítimas e agressores (1987-1996). ... 131 Figura n° 6 - Relação entre tipos de queixas e local de agressão: (1987-1996)... 134

Figura n° 7 – Relação entre tipos de queixas e tempo de união entre vítimas e agressores (1987-1996)... 139 Figura n° 8 - Relação entre tipos de queixas e tempo de união entre vítimas e agressores (1987-1996). ... 140 Figura n° 9 – Relação entre tipos de queixas e prole de mulheres vítimas de violência

(1987-1996). ... 141 Figura n° 10 – Relação entre tipos de queixas e tamanho da prole das vítimas:

(1987-1996). ... 141 Figura n° 11 – Distribuição dos registros de ocorrências, segundo tipos de queixas e freqüência das agressões: (1987-1996). ... 142 Figura n° 12 – Distribuição dos registros de ocorrências, segundo tipos de queixas e testemunhas (1987-1996). ... 150 Figura n° 13 – Relação entre tipos de queixas e denunciantes (1987-1996)... 152 Figura n° 14 - Lesão corporal: Distribuição dos Registros de Ocorrência, segundo alegações de mulheres- (1987-1996). ... 162 Figura n° 15 - Ameaça de morte: Distribuição dos Registros de Ocorrência, segundo alegações de mulheres - (1987-1996). ... 170 Figura n° 16 - Agressão moral: Distribuição dos Registros de Ocorrência, segundo alegações de mulheres - (1987-1996). ... 173 Figura n° 17 - Tentativa de homicídio: Distribuição dos Registros de Ocorrência, segundo alegações de mulheres - (1987-1996)... 175

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Figura n° 18 - Relação entre tipos de queixas e dia da agressão: (1987-1996)... 177

Figura n° 19 - Relação entre tipos de queixas e turno da agressão: (1987-1996)... 178

Figura n° 20 - Relação entre tipos de queixas e mês da agressão: (1987-1996)... 179

Figura n° 21 - Relação entre tipos de queixas e o dia da denúncia: (1987-1996)... 180

Figura n° 22 - Relação entre tipos de queixas e o dia da denúncia: (1987-1996)... 181

LISTA DE QUADROS EM ANEXO Quadro n° 6 - Lesão corporal: Distribuição dos Registros de Ocorrências segundo o dia da denúncia: (1987-1996). ... 206

Quadro n° 7 - Embriaguez: Distribuição de Registros de Ocorrências, segundo grau de relação entre vítima e agressor: (1987-1996). ... 206

Quadro n° 8 - Lesão corporal: Distribuição de Registros de Ocorrências segundo parentesco e grau de relação (1987-1996). ... 207

Quadro n° 9 - Embriaguez: Distribuição dos Registros de Ocorrências segundo e o dia da denúncia: (1987-1996). ... 207

Quadro n° 10 - Lesão corporal: Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo a sazonalidade (1987-1996) ... 208

Quadro n°11 - Embriaguez: Distribuição dos Registros de Ocorrências segundo a sazonalidade (1987-1996). ... 208

LISTA DE TABELAS EM ANEXO Tabela n° 3 A - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e estado civil das vítimas: (1987-1996)... 209

Tabela n° 4A - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas e estado civil dos agressores: (1987-1996)... 209 Tabela n° 5 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas

e grau de relação entre vítimas e agressores: (1987-1996). ...

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Tabela n° 6 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipo de queixa e

local da agressão: (1987-1996). ... 210 Tabela n° 7 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipo de queixa e

tempo de união entre vítimas e agressores: (1987-1996). ... 211 Tabela n° 8 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipo de queixa e

número de filhos: (1987-1996) ... 211 Tabela n° 9 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixa e

freqüência das agressões: (1987-1996). ... 212 Tabela n° 10 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipo de queixa e

testemunhas da violência: (1987-1996). ... 212 Tabela n° 11 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipo de queixa e

denunciantes: (1987-1996). ... 213 Tabela n° 12 - Lesão corporal: Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo

alegações de mulheres (1987-1996) ... 213 Tabela n° 13 - Ameaça de morte: Distribuição dos Registros de Ocorrências,

segundo alegações de mulheres (1987-1996). ... 214 Tabela n° 14 - Agressão moral: Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo

alegações de mulheres (1987-1996). ... 214 Tabela n° 15 – Tentativa de Homicídio Distribuição dos Registros de Ocorrências,

segundo alegações de mulheres: (1987-1996). ... 215 Tabela n° 16 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas

e dia da agressão (1987-1996). ... 215 Tabela n° 17 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas

e turno da agressão (1987-1996) ... 216 Tabela n° 18 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas

e mês da agressão (1987-1996) ... 216 Tabela n° 19 - Distribuição dos Registros de Ocorrências, segundo tipos de queixas

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)

Priori, Claudia

P958r Retrato falado da violência de gênero : queixas e denúncias na Delegacia da Mulher de Maringá (1987-1996) / Claudia Priori. -- Maringá : [s.n.], 2003.

217 f. : il. color., figs. colors., tabs., quadros. Orientador : Profª. Drª. Hilda Pívaro Stadniky. Dissertação (mestrado) - Departamento de História .

Universidade Estadual de Maringá, 2003.

1. Violência contra mulheres - Cidade de Maringá. 2. Violência de Gênero - Cidade de Maringá. Universidade Estadual de Maringá. Programa Associado de Pós-Graduação UEM/UEL em História Social. II. Título.

CDD 21.ed. 362.83098162

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INTRODUÇÃO

A violência de gênero, termo que consideramos mais adequado para analisar as relações violentas de gênero, é praticada geralmente por aquele que possui maior parcela de poder numa relação. Em se tratando das relações de gênero -homem/mulher- o homem comumente exerce maior poder sobre a mulher e as crianças, devido à dita superioridade masculina transmitida pela cultura machista de nossa sociedade, que apregoa estereótipos de força, virilidade e potência. Ela revela a luta e resistência dos gêneros na perspectiva de possuir controle sobre o outro, de não permitir que o outro alterne a direção da relação. Este aspecto da não alternância nas relações de poder, freqüentemente é possível graças ao recurso da violência como artifício para a coação do outro.

A sensação de perda da autoridade masculina sobre as mulheres, faz os homens recorrerem à força física e à violência psicológica ou sexual, como formas de expressar sua dominação e poder, vitimando-as. Mulheres, crianças e adolescentes são quase sempre os principais alvos dessa violência, bem como outros grupos sociais tais como os idosos, homossexuais, negros etc., por não se ajustarem às normas preestabelecidas pela sociedade.

O olhar mais atento à temática da violência contra as mulheres resultou em uma maior percepção das relações de gênero e culminou com a implantação de delegacias especializadas no Brasil, tornando público esse fenômeno. Percebeu-se que se tratava de um tipo específico de violência, a de gênero. Uma violência que vai além das agressões físicas e da fragilização moral e que limita a ação feminina ao determinar os espaços que as mulheres podem conquistar. Em suma, a violência de gênero é muito mais complexa do que a violência doméstica, pois acontece não somente entre quatro paredes, por motivos às vezes

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banais, mas se faz presente em todos os lugares por alegações aparentemente fúteis. Carrega uma carga de preconceitos sociais, disputas, discriminação, competições profissionais, herança cultural machista, se revelando sobre o outro através de várias faces: física, moral, psicológica, sexual ou simbólica.

As relações violentas de gênero podem ser entendidas como fronteiras entre o masculino e o feminino. Não são estáticas, estão em constante movimento e poderiam ser denominadas de fronteiras flutuantes. Ao tentar romper com arquétipos sociais, as fronteiras sociais, culturais e de pensamento parecem avançar entre ambos devido às desigualdades de gênero construídas socialmente.

Essa ‘região de fronteira’ entre o masculino e o feminino é por vezes uma região de confrontos e conflitos, na qual ambos vivem numa tensão que a qualquer momento pode se transformar em violência. Isso quer dizer que quando a relação familiar, conjugal ou afetiva entra em crise, o equilíbrio intra-familiar e interpessoal se desestabiliza e aquele que enfeixa maior parcela de poder na relação subjuga, ofende, maltrata e agride o outro. Portanto, essa imposição da vontade sobre o outro perpassa a questão do poder que cada indivíduo desempenha na relação nos mais diferentes grupos sociais. Essa dominação, no que se refere às relações de gênero, é caracterizada pelas desigualdades no processo de socialização dos indivíduos, uma vez que ocorre de formas diversificadas.

A violência contra as mulheres, antes vista como uma questão pertencente à esfera privada, a partir de meados da década de 1980 passou a ser apreendida de maneira mais complexa. Ao trabalho dos movimentos feministas e de mulheres para que o Estado reconhecesse a necessidade da criação de órgãos especializados às vítimas de violência, e proporcionasse um tratamento legal ao assunto1, deve-se acreditar tal mérito.

As delegacias especializadas desempenham um papel importante, pois constituem-se em espaço onde as vítimas oficializam suas denúncias, trazendo à tona um problema que é cultural, social, legal e público. A Delegacia Especializada na Defesa da Mulher, alvo de

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nossa pesquisa em Maringá, foi instalada em 24 de Outubro de 1986, logo após a criação de sua congênere em âmbito nacional.

Nosso interesse inicial pelo tema em questão já se fizera presente no projeto de iniciação científica, desenvolvido por dois anos, cujas leituras nos levaram a um balanço da produção acadêmica acerca de gênero. Ao mesmo tempo, nossas atividades foram dirigidas ao levantamento e arrolamento das fontes documentais, disponibilizadas pela Delegacia da Mulher, que não poupou esforços para propiciar as condições adequadas ao nosso trabalho.

Nosso objetivo é analisar as relações violentas de gênero via Registros de Ocorrências da Delegacia da Mulher de Maringá, recuperando o contexto violento e as circunstâncias em que os episódios ocorreram, destacando as falas dos agentes sociais nos Registros, delineando os perfis de vítimas e agressores, bem como resgatando as alegações e motivos que transformaram as relações de gênero em relações violentas. As balizas temporais da pesquisa se situam entre os anos de 1987 e 1996, tendo como marcos o início dos registros formais e o decênio de funcionamento e experiência da Delegacia.

Resta-nos, em primeiro lugar, tecer algumas considerações sobre as fontes, destacar sua tipificidade e os aspectos qualitativos, bem como abordar questões relacionadas às condições gerais do acervo recorrido, no conjunto do acervo geral da Delegacia da Mulher de Maringá. As vítimas ao tomarem a iniciativa de efetivar a denúncia em uma Delegacia da Mulher estão iniciando uma série de etapas que vão desde a formulação da queixa, ou seja, o registro da ocorrência, até a representação na justiça. A primeira providência das policiais é ouvir e registrar as queixas denunciadas e elaborar um Boletim de Ocorrência, através de formulário padronizado e específico para tal registro, contendo data, local, nome e endereço do (a) denunciante e o histórico, ou seja, informações gerais sobre o agressor, o fato e os motivos alegados pelo agressor.

Os Registros de Ocorrências da Delegacia da Mulher de Maringá, utilizados como fonte nesta pesquisa, não são os formulários padronizados (Boletim de Ocorrência), mas estão lavrados em livros que têm a mesma finalidade: registrar a ocorrência, oficializar a

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denúncia feita pelas vítimas ou denunciantes. São manuscritos por funcionários da Delegacia, variando muito na apresentação, pois não há um formulário padrão. Não há uniformidade na forma e pré-requisitos de conteúdo, sujeitando-se aos procedimentos individualizados do funcionário atendente. Variam, portanto, na quantidade e na qualidade das informações.

Ainda que os Boletins de Ocorrência revelem a idiossincrasia das escrivãs atendentes, o acervo do período de 1987 a 1996 está consubstanciado em 6.399 Registros de Ocorrências, reproduzidos integralmente através de fotocópias xerografadas sob o patrocínio da coordenação do Centro Paranaense de Documentação e Pesquisa, da Universidade Estadual de Maringá, e aquiescência da delegada Titular - Dra. Elza da Silva - que facilitou o acesso às fontes e as condições de trabalho.Foram consultados para o período em questão 18 Livros de Registros de Ocorrências, porém seu estado de conservação é precário, não havendo um acervo organizado, cuidado no manejo dos livros, bem como nem sempre as grafias são legíveis, dificultando a obtenção de leitura dos dados.

Mesmo que marcados por ausência de informações padronizadas, os Registros de Ocorrências se constituem em importante fonte de pesquisa, pois, em geral, são ricos nos relatos dos eventos denunciados. Se, de um lado, o propósito de delinear perfil de vítimas e agressores, onde dados como idade, estado civil, local de residência, grau de escolaridade, cor e profissão resultariam em quantificações consideráveis, por outro, a qualidade das informações constantes nos permitiu analisar práticas e comportamentos que marcam o quotidiano de mulheres vítimas de violência, bem como de agressores. Mais importante que a quantidade foi a qualidade da narrativa das ocorrências registradas e que estarão se manifestando ao longo de nosso texto.

As “falas” dos documentos passam por um duplo processo de filtragem: pela escrivã que registra a ocorrência e pelo denunciante que relata o ocorrido. A ausência de um formulário padronizado para os registros propicia informações muitas vezes incompletas.

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Contudo, há que se ressaltar que o registro em livros, por outro lado, garante a sistematização serial das fontes.

A narrativa da Ocorrência registrada inicia-se, geralmente, com o horário da efetivação da denúncia, estado civil, idade e ocupação profissional, nº de RG, filiação e endereço de residência. Em seguida há um histórico do fato narrado, contendo nome, estado civil, idade, ocupação profissional do agressor, grau de relação com a vítima, tempo de união entre vítima e agressor, local, dia e hora da agressão. Há também informações sobre o número de filhos, testemunhas, bem como se há crianças e adolescentes vítimas coadjuvantes da agressão, bem como, se for o caso, se a mãe estava ausente ou não quando as crianças foram agredidas. Além dessas informações que podem ser vistas como cadastrais, e que nem sempre constam nos documentos, há em contrapartida uma riqueza nos detalhes dos relatos de vítimas que narram queixas e sofrimentos resultantes de um quotidianode violência doméstica.

A vulnerabilidade das vítimas de violência se manifesta e aflora nos Registros. São mulheres que não conseguem romper o círculo da violência, sem alternativa de moradia e sem condições de sustentar os filhos sozinhas em função da dependência econômica, emocional e psicológica de seus agressores, uma vez que o agressor humilha, subestima a capacidade e anula, muitas vezes, a força e a coragem das vítimas.

Diante dessa vulnerabilidade nem sempre explícita nos documentos, os dados revelam muito pouco sobre o rumo que as vítimas irão imprimir às suas vidas após a denúncia. A manifestação da vontade de divórcio ou de rompimento da convivência com o agressor quando é o caso, quase sempre não consta nos Registros.

A freqüência com que as agressões ocorrem nem sempre é mencionada, mas quando é a primeira ou segunda vez que estão sendo agredidas, as vítimas fazem questão de expressar o número. O mesmo se aplica quando as agressões são constantes, pois em ambas situações nota-se tristeza, decepção e desilusão em receber um tipo de tratamento violento de quem deveria lhes tratar com respeito, lealdade, carinho e cumplicidade.

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As diversas formas de agressão, seja física, moral, sexual ou ameaças, são narradas em seus detalhes e demonstram o grau de frieza, crueldade e força física dos agressores ao desferirem bofetões, pontapés, socos, tapas, ou utilizarem de instrumentos tais como pedaços de madeira, cintos, cadeiras, facas, punhais, revólver, facões, espetos, garfos etc.

A violência sexual, por sua vez, fere o que há de mais íntimo: a escolha de se relacionar ou não com o outro. Quando essa escolha é lesada pela força e as vítimas denunciam, pois estão cientes de que tiveram um direito violado, percebe-se nos Registros a angústia, o medo e a humilhação de revelarem um assunto tão privado. Do mesmo modo, nota-se a conformidade e a aceitação dessa brutalidade sexual, pois há mulheres que acreditam que seus maridos e companheiros têm o direito de possuí-las sexualmente quando e como querem.

Os sofrimentos, mágoas e vulnerabilidade diante das ameaças, pressão psicológica, agressão física, moral, sexual entre outras formas de violência revelam através dos Registros de Ocorrências que nem sempre as vítimas apresentam o que são verdadeiramente. Geralmente, revelam a forma como são representadas por seus agressores e que uma vez apropriada, passam a reproduzir tal representação.

Embora sejam documentos policiais, temos que destacar alguns limites dessas fontes para os pesquisadores, pois nem sempre são capazes de revelar dados que seriam de grande significado e relevância para o levantamento de questões e hipóteses instigantes acerca do fenômeno da violência. As fontes apresentam, portanto, alguns aspectos limitados. Contudo, não nos impedem de traçar um bom quadro quantitativo, de delinear perfis de vítimas e agressores.

Neste sentido, o não-dito pelos documentos às vezes expressa mais que o dito, ou assume um grau de paridade na busca de entendimento do contexto, já que nos meandros dos documentos pode-se levantar questionamentos, hipóteses e perceber as evidências ocultas nas entrelinhas. Há, entretanto, que se considerar a produção das fontes, pois assim

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como todo documento policial e/ou oficial, sua construção segue uma norma e “sofre” a ...intermediação imposta pelo escrivão, entre o réu, as testemunhas e o registro escrito2.

Torna-se preciso, pois, levar em conta as filtragens a que as narrativas foram submetidas. Além do processo natural de filtragem pelo próprio denunciante, para se registrar de forma mais sintética ou sucinta a escrivã redigiu da maneira como melhor considerou e absorveu as informações. Isso implica no modo como os documentos foram produzidos, pois por ser um registro policial deve ser formalmente sucinto, com as informações necessárias para que se comprovem os fatos. Assim, a ausência de certos dados, a omissão de fatos nos relatos ou ainda, o foco divergente de interesse das escrivãs na obtenção das informações, a pressa em atender o maior número possível de vítimas explicam, de certo modo, o prejuízo no atendimento e à solicitação de dados abrangentes, que fariam diferença para o trabalho do pesquisador. Assim, desde a ocorrência até o momento do registro há um distanciamento entre o fato, o que foi narrado e o que foi registrado.

Sabemos que toda fonte é produzida sob um prisma, sob a ótica de quem as elaborou, e diante disso é necessário considerarmos que os Registros de Ocorrências - fontes policiais- assim como todo e qualquer documento oficial, não apresentam as “falas” de quem denunciou, e sim a concepção de quem redigiu. Mas o interessante para o historiador, como enfatiza Chalhoub, é...compreender como se produzem e se explicam as diferentes versões que os agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso3.

Aos limites e deficiências dos Livros de Registros de Ocorrências em relação ao estado e as formas em que são redigidos, nem sempre legíveis, com ausência de dados, narrativa sucinta, falta de classificação e sistematização das ocorrências segundo o tipo de queixas, acrescenta-se insuficiência de informações sobre o encaminhamento dado às

2 Cf. MACHADO, Maria Helena P.T. Os Crimes da Escravidão-1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987. 3 CHALHOUB,Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle

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queixas. Apenas há menção no final do histórico que a vítima pede providências, e a orientação dada pelas policiais é que procurem representação criminal, embora esse procedimento não ocorra em todos os registros. Além disso, as vítimas não manifestam vontade em representar criminalmente, impedindo assim a análise do desfecho das ocorrências. No caso das vítimas pedirem que sejam tomadas providências pelas policiais, não quer dizer que querem a punição dos agressores, pois elas exigem das policiais que os agressores sofram apenas uma “prensa” das autoridades, que lhes dêem apenas um susto, pois alegam não querer “nenhum mal” para seus maridos, companheiros, pais de seus filhos, ou seja, não desejam instaurar Inquérito Policial, muito menos dar prosseguimento ao processo criminal.

Sendo assim, fica difícil analisar as “falas” dos agressores, pois quando são intimados a comparecerem na Delegacia os agressores são advertidos verbalmente em suas atitudes e esclarecidos das medidas jurídicas que podem ser tomadas contra eles, caso reincidam. Quando o agressor desmente o fato, ou então, faz um compromisso de que o acontecido não se repetirá, registra-se uma nova ocorrência, ressalvando a feita anteriormente pela vítima.

Dessa forma, as “falas” dos agressores quase nunca aparecem, pois esses Registros de Ocorrências não possibilitam um prosseguimento formal e subseqüente aos próprios registros, cuja finalidade esgota-se aí e depois são apenas arquivados. O momento de escuta dos homens ocorre apenas quando são ouvidos como agressores ou na condição de vítimas que oficializaram uma denúncia. Postura, atitudes, comportamentos e visão dos homens em relação às mulheres, quando se consegue apreender é através das “falas” femininas, através daquilo que elas afirmam que eles disseram, portanto, uma representação.

Os Registros de Ocorrências embora possuindo inúmeras limitações quanto aos dados e informações, contêm em contrapartida um arsenal riquíssimo quanto às circunstâncias das agressões, motivos apresentados, estereótipos do feminino e do masculino reproduzidos socialmente, dúvidas, angústias, medos e sentimentos das vítimas, permitindo

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a construção do cenário das relações de gênero, convivência, negociações e extrapolação dos limites dessa relação que causa a violência, seja aparentemente por um motivo banal, desgaste da relação, desequilíbrio psico-emocional dos agressores, machismo, agravantes como o alcoolismo, situações sócio-econômicas desfavoráveis e inúmeros outros fatores. E é com base nesses dados qualitativos, bem como nos quantitativos levantados, que trabalhamos com os Registros de Ocorrências como fonte histórica a fim de contextualizar o fenômeno e denunciar os números da violência de gênero.

Em segundo lugar, resta-nos adiantar os pontos principais contemplados no corpo da dissertação que, em conseqüência dos desdobramentos proporcionados pela dimensão e alcance dos dados, foi sub dividida em quatro capítulos.

No primeiro capítulo, denominado “Violência de gênero e a ´desnaturalização` da diferença sexual”, recuperamos uma discussão teórica das relações de gênero, utilizando autoras como Joan Scott, Heleieth Saffioti, Maria Izilda Matos e Rachel Soihet, abordando as diversas vertentes historiográficas para o resgate da participação das mulheres na história. Trabalhos nacionais e internacionais como os de Mariza Corrêa, Danielle Ardaillon, Guita Debert, Maria Filomena Gregori, Suely Souza de Almeida, Maria A. Banchs e Nelly G. Tapia, entre outros, foram de grande relevância para a elucidação da temática. Quanto à questão do poder, trabalhamos com a perspectiva de Michel Foucault (autor também utilizado por Saffioti e Almeida), de que o poder não é algo inerte, mas circula na relação e os indivíduos são centros de transmissão, pois o poder transita de um para o outro.

Através do resgate da produção historiográfica sobre o tema, tivemos maior entendimento de como se processou a análise histórica acerca da inserção das mulheres como objeto de estudo e das temáticas posteriores que foram surgindo como a maternidade, a sexualidade, o aborto e de um amplo leque de discussões, e em particular, a violência contra as mulheres e a questão do gênero. Assim, sub-títulos como “As mulheres na historiografia: contribuição no campo da produção do conhecimento” e “Gênero enquanto

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categoria de análise: ´desnaturalização` da diferença sexual” são espaços abertos para dar conta de uma abordagem mais ampla e contemplar as questões propostas no capítulo.

No segundo capítulo – “ A visibilidade social das mulheres e da violência de gênero: a construção de alternativas ou as mulheres por suas próprias mãos” - propusemos uma subdivisão. Em um primeiro momento “Os movimentos reivindicatórios e a emergência das estruturas de apoio às mulheres vítimas de violência”- nos ocupamos em resgatar a conjuntura dos anos 1970 e 1980, época dos movimentos feministas e de mulheres voltados à democratização do país e às novas demandas sociais e políticas. Nosso objetivo é a inserção de tais demandas em um contexto mais amplo face à necessidade de identificarmos as raízes dos movimentos que culminaram na visibilidade do problema da violência contra as mulheres e na sua denúncia junto à estrutura do Estado para a busca de soluções mais efetivas. Como ponto culminante desses movimentos discutimos a criação e implementação de vários órgãos e instituições de caráter público voltados ao combate da violência contra as mulheres, a partir de uma abordagem cronológica, do nacional para a conjuntura local.

A segunda parte de nossas atenções no interior do segundo capítulo – “Maringá: contexto da colonização e a dinâmica do processo de urbanização” - se constitui em um trabalho de retomada da história inicial da colonização do Norte do Paraná, com ênfase particular para o Norte Novo de Maringá. O objetivo é enfatizar a dinâmica do processo de urbanização de Maringá e evidenciar a incidência de problemas relacionados à violência em geral, e à violência contra as mulheres, em particular, não mais como exclusivo dos grandes centros urbanos. O recurso, em termos de fontes, são as inúmeras teses e dissertações produzidas no âmbito da historiografia regional que, aliás, conta com obras já consideradas clássicas, a exemplo das pesquisas de Nadir Apparecida Cancian e de France Luz. No terceiro momento – “Violência de gênero: a retomada do problema no cenário nacional e local” - a inserção do tema contempla a criação e instalação da Delegacia Especializada na Defesa da Mulher em Maringá, em 1986, como resultado de um movimento da comunidade local.

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O terceiro capítulo – “A vida como ela é: descortinando a violência de gênero” - se dedica exclusivamente à visibilidade do fenômeno da violência contra as mulheres em Maringá a partir dos registros de ocorrência. Em “Formatando a violência de gênero” propusemos para o elenco das queixas registradas na Delegacia da Mulher uma tipificidade norteada pelo Código Penal Brasileiro e Leis das Contravenções Penais, com o propósito de sistematizar a multiplicidade das práticas violentas contra as mulheres. Nosso objetivo, além de analisar as tipificidades e o grau de incidência da violência de gênero, é analisar as justificativas, circunstâncias e local da agressão. O segundo passo no interior do capítulo restringe-se ao objetivo de delinear o perfil de vítimas e agressores e se objetiva no sub título “Vítimas e algozes: retrato falado”.

No quarto capítulo – “Agenda da violência” – abrem-se perspectivas de análise que, em um primeiro momento, pretendem compor cenários e bastidores da violência contra as mulheres e colocar em cena, ao lado de vítimas e agressores, filhos, testemunhas e denunciantes. Acrescenta-se uma abordagem que permite dimensionar a freqüência das agressões, tempo de união entre parceiros da violência, tamanho da prole e local da agressão. Em “Todo dia é dia, toda hora é hora” nosso objetivo é reconstituir uma verdadeira agenda da violência contra mulheres, analisando dia da semana, turno, mês das ocorrências, bem como dia da semana para as denúncias. Abrimos uma longa análise sobre os motivos alegados no ato da denúncia, a partir da tipificidade das queixas enfocadas sob o prisma da legislação penal brasileira.

Neste sentido, buscamos uma conjugação de dados quantificáveis com as narrativas de mulheres vítimas de violência. Suas denúncias, narrativas descritivas e alegações da violência sofrida estarão impregnando nosso texto, pois os dados numéricos por si não dariam conta de retratar personagens e reconstituir cenários da violência de gênero.

Esperamos, com esta pesquisa, contribuir para espanar a poeira de uma temática, às vezes, tão velada pelo medo e insegurança das vítimas. Esperamos lançar luz sobre um

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fenômeno que se pretende doméstico, privado, em geral restrito a quatro paredes e ao mais íntimo segredo. Mas, na realidade a violência de gênero extrapola os lares, atinge também escritórios, repartições públicas, ruas, ou qualquer outro espaço em que homens e mulheres estejam compartilhando.

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CAPÍTULO I

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A “DESNATURALIZAÇÃO” DA DIFERENÇA SEXUAL.

É a primazia da desnaturalização da idéia de gênero e do entendimento que as relações de gênero são cultural e historicamente construídas que produziu a sensibilidade para buscar o arbitrário da construção de gênero.4

4 MACHADO, Lia Zanotta. “Gênero, um novo paradigma?” In: BESSA, Karla Adriana Martins (Org.). Trajetórias do gênero, masculinidades... Cadernos Pagu (11), 1998. Campinas: Núcleo de Estudos de

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1-Relações de Gênero, poder e violência: desvendando seus meandros.

A população feminina convive com a insegurança doméstica e permanece em estado de alerta constante, na medida em que tensões e conflitos familiares assumem a cena cotidiana das relações de gênero, pois essas divergências desencadeiam a violência. A violência de gênero5 é uma das facetas da criminalidade social atingindo comumente mulheres, crianças, adolescentes e outros grupos sociais causando danos irreparáveis à vida.

Na América, um dos temas mais proeminentes e que mais tem ocupado a atenção dos governantes, da sociedade civil e dos organismos internacionais é, sem sombra de dúvida o da violência em suas mais diferentes formas de manifestação. Fatores econômicos, políticos e culturais são desencadeadores das múltiplas formas da violência, entre elas a de gênero, e geram conseqüências irreparáveis para os indivíduos, a família e diferentes grupos da população. A violência é um problema que assusta a todos, não só em função da sua complexidade, mas de sua abrangência.

5 A violência de gênero é inerente ao padrão das organizações sociais de gênero conhecidas que, por sua vez, é

tão estrutural quanto a divisão da sociedade em classes sociais. Violência de gênero, embora englobe a expressão violência doméstica, não pode ser utilizada como sinônimo desta, já que além de possuir dimensão mais ampla, tem caráter também mais difuso, não indicando que é dirigida rotineiramente a um mesmo alvo. A violência de gênero atinge, preferencialmente, a categoria que se inscreve de forma subordinada no contexto das relações desiguais de gênero. Ver: SAFFIOTI, Heleieth. “O Estatuto teórico da violência de gênero” In: SANTOS, José Tavares dos. (Org.). Violência em tempo de Globalização. São Paulo, Hucitec, 1999, p. 142-163 , e ainda: ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: algemas (in) visíveis do público-privado. Rio de Janeiro, Revinter, 1998.

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No Brasil, apenas a partir da década de 1980, o Estado, a polícia e a sociedade civil têm dado apoio e atenção a essa problemática. Essa forma específica de violência representa não apenas um ataque à integridade física das vítimas, mas uma tentativa intencional de impedir que as mulheres conquistem novos espaços e se retirem da moldura de modelos sociais idealizados socialmente por uma tradição cultural machista.

Além disso, o quadro desse tipo de violência se agrava devido às crises no cenário político e econômico que influem, diretamente, nas relações sociais e interpessoais, uma vez que afeta a estabilidade de categorias que se encontram em posições privilegiadas no contexto em que estão inseridas e atinge os não-privilegiados.

Essa provocação de instabilidade social remete à desestruturação das relações interpessoais, pois gera conflitos internos devido à expectativa negativa diante dos acontecimentos atuais, os quais não permitem um vislumbramento positivo acerca de perspectivas futuras.

A ansiedade, o medo, o descrédito político, o caos econômico, a falta de recursos básicos para a dignidade humana, somados às desigualdades sociais, às cruéis formas de preconceito, discriminação e exclusão pelas quais sofrem as diversas classes sociais, principalmente os grupos considerados mais fracos6, colaboram diretamente para o acúmulo de tensões e desarticulação das relações. Além disso, devemos considerar a tradição cultural de exploração e dominação masculina que sempre imperou na sociedade, oprimindo e controlando aqueles que detém uma menor parcela de poder, gerando conflitos interpessoais que caminham para a violência, opressão e desestabilização da convivência íntima e familiar.

A tensão vivida pelas pessoas na esfera social, pública, acaba por afetar a vida íntima e familiar, pois em se tratando de violência, o espaço privado é, muitas vezes, o local onde as tensões cotidianas são expressas de formas mais cruéis sobre o “outro”. Ou seja,

6 Incluem-se nessa caracterização as mulheres, os homossexuais, os negros, os povos indígenas, as prostitutas,

os escravos, etc., pois, sempre foram alvos da dominação e exploração daqueles que se consideravam mais fortes, seja pelo poder econômico, psíquico ou emocional, desempenhado sobre os outros.

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sobre aquele que lhe é dependente emocional ou financeiramente, sobre aquele que se inscreve de forma subordinada na relação, independente deste desnível de poder ser obtido através da coerção ou da violência.

As relações de gênero são caracterizadas pelas desigualdades advindas do processo de construção de identidade, uma vez que a socialização dos indivíduos – gêneros feminino e masculino – é feita de forma diversificada7, contribuindo, assim, para uma hierarquização dos gêneros. Essas desigualdades de gênero colaboraram para a constituição das relações de poder, ou seja, ao criarem estereótipos femininos e masculinos baseados em princípios de submissão e dominação, forjaram-se relações desiguais de poder entre os gêneros. Assim, as relações de gênero são permeadas pelo poder de um sobre o outro, não sendo um alvo inerte, passivo, pois o poder, como diria Foucault:

... funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão8.

Como se percebe, as relações de poder estão presentes em todas as relações sociais e interpessoais, quer entre Estado/indivíduo, pais/filhos, patrão/empregado, professor/aluno, homem/mulher, etc. No âmbito familiar, nas micro-relações, o poder não só existe como articula grandes estratégias de exercício9. Ou seja, aquele que detém uma maior parcela de poder na relação – geralmente o gênero masculino devido à tradição patriarcal de nossa sociedade10 – utiliza-se de mecanismos nem sempre pacíficos para impor sua vontade sobre o outro, gerando assim relações violentas de gênero.

7 SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade, Porto Alegre, 1990.

SAMARA, Eni de Mesquita. “O discurso e a construção da identidade de gênero na América Latina”. In:

Gênero em debate. São Paulo: Educ, 1997. p. 13-51. BIRD, Caroline. Born female, the hight cost of keeping women down. 4th Ed; New York: David Mckay, 1974. OAKLEY, Ann. Women’s work, the housewife, past and

present. New York: Vintage Books, 1974 . 8

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 183.

9 Idem, Ibidem, p. 248.

10 Em relação ao patriarcalismo, ver: SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense,

1986. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977. CORRÊA, Mariza. “Repensando a família patriarcal”. In:

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Essa imposição de poder nas relações de gênero e, comumente, a prática da violência refletem não apenas o uso da força física, mas da possibilidade de ameaça ou da utilização da imposição de sua vontade, desejo ou projeto de um sobre o outro.11 Sendo assim, a violência é um mecanismo de poder utilizado na luta de preservação do status quo, na manutenção da organização social de gênero baseada nas desigualdades e nos desníveis de poder entre os gêneros.

As manifestações de poder nas relações de gênero através da violência, geralmente, expressam as preocupações daquele que se sente mais forte, mais ameaçador e dominador na relação. Qualquer tipo de transformação substantiva no plano político, econômico e social que possa reformular e redefinir os papéis sociais masculinos e femininos, ameaçando a ordem vigente deve ser contido. Essa resistência às mudanças sociais acontece de forma repressiva, coercitiva e agressiva sobre o outro.

Todavia, não se pode afirmar que o exercício de poder de um sobre o outro seja aceito passivamente, como se o ponto atacado fosse inerte e incapaz de reação. Quando um indivíduo se sente ameaçado, coagido ou agredido, ele tende a resistir às pressões, ele cria um campo de forças, um contra-poder, pois segundo Foucault o poder circula, transita entre aqueles que se relacionam de alguma forma12. As relações de poder geram, assim, um campo de forças em que os gêneros disputam a movimentação de quem irá exercê-lo, desencadeando um processo de formas de resistência. Portanto, considerando que o campo de forças é a expressão de lutas constituídas no seio de tais relações, o poder é estruturador do referido campo, como assinala Almeida.13

O indivíduo que detém uma maior parcela de poder na relação, seja através do uso da força física, seja através da ameaça, pressão psicológica ou econômica, insiste em subalternizar o outro, em inferiorizá-lo moral, profissional ou sexualmente como forma de

11 Cf. VELHO, Gilberto. “Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva antropológica”. In:

VELHO, Gilberto & ALVITO, Marcos (Orgs.). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 10.

12 Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit., 1982, p. 183. 13 ALMEIDA, Suely Souza de. Op..cit., 1998, p. 15.

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impedi-lo a sobressair-se na relação ou na vida pessoal. O receio de mudanças sociais nas relações de gênero causa no indivíduo que presume ser o dominador, o guia das trilhas pelas quais a relação caminha, uma certa desconfiança, instabilidade quanto à sua posição social superior. Dessa forma, por se sentir mais forte, mais viril – no caso o gênero masculino – a apropriação da força física, da violência em suas mais variadas formas são mecanismos utilizados para intimidar e amedrontar aqueles que estão em posição de subalternidade – no caso o gênero feminino. Mas, como afirmou Saffioti sua subalternidade, contudo, não significa ausência absoluta de poder. Com efeito, nos dois pólos da relação existe poder, ainda que em doses desiguais14.

É essa dose desigual de poder nas relações de gênero que permite a ambos se confrontarem, se agredirem e criarem um campo de forças na luta de alcançar uma posição mais privilegiada de poder. Essa hierarquização das relações de gênero que, como se viu, são relações de poder, não é tão inflexível assim, pois as mulheres, ao longo do tempo, vêm se articulando e conseguindo ocupar as brechas não preenchidas pela dita superioridade masculina. Brechas essas que permitem uma pequena entrada de luz, capaz de iluminar um espaço escuro, ou seja, de ocupar espaços sociais deixados pelas fendas do poder masculino.

Essa disputa de poder nas relações de gênero, a luta por novos espaços sociais, bem como a reformulação dos papéis prescritos pela sociedade, refletem o processo de movimentação que ele realiza. Ora está nas mãos de um, ora nas mãos de outro. As relações de gênero são de fato, um centro transmissor, um fio condutor que delega poderes a um e a outro, nunca o poder se concentra em um ponto fixo, é como se fosse um baile onde os pares não se fixam no centro do salão, mas se movimentam por toda sua extensão. Ou, então, pode ser comparado à tessitura de um artigo artesanal, cujos fios vão se entrelaçando e formando uma trama, uma rede. Portanto, os fios não agem isoladamente, mas em conjunto, perpassando vários pontos do tecido. Assim é o poder. Age em rede e transita por toda a

14 Cf. SAFFIOTI, Heleieth. “Rearticulando gênero e classe social”. In: ALBERTINA, O. Costa &

BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/FCC, 1992, p. 183-215.

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trama, manifesta-se nas micro-relações como a família e nas macro-relações como o Estado, mas nunca é lançado de um único ponto, ele é transmitido de cima para baixo e vice-versa.15

Essa transmissão de poder é percebida pelas formas de resistência que os indivíduos oprimidos, agredidos e subestimados criam para se defender do opressor. Resistência que nem sempre é de forma pacífica, mas que também agride, luta e retalia o adversário, mesmo que esse seja um parceiro íntimo como acontece nas relações de gênero.

A resistência à imposição de poder ou à prática de violência cometida por aquele que se sente mais forte, superior – comumente o homem, devido à tradição machista – é uma forma de luta contra as normas e regras sociais preestabelecidas baseadas na perspectiva essencialista de que a submissão e a passividade são inerentes à natureza feminina. A criação de estereótipos e de um modelo ideal de mulher confinada ao espaço privado, às obrigações conjugais como mãe, esposa e dona de casa refletem a sujeição relegada às mulheres.16

Todavia, a sujeição à qual as mulheres são submetidas através da agressividade, virilidade, força física, opressão psicológica e coerção não é aceita passivamente. Isso gera uma tensão social e conflitos são deflagrados entre os gêneros, pois muitas mulheres, vítimas dessa violência, às vezes, insatisfeitas com sua posição na relação e na sociedade, lutam para mudar essas normas. Os princípios de submissão versus dominação não conseguem ser aplicados sem causar o despertar de algum tipo de resistência ou de sublevação por parte daqueles que são oprimidos, quer entre pais/filhos, patrão/empregado, senhor/escravo, quer entre homem/mulher. A resistência, a não-concordância com a opressão, a luta por poderes deixados nos interstícios do poder que se considera supremo, é uma forma de equilibrar a desigualdade de poder, é a gestação de um contra-poder. Pois,

15 Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit., 1982. SAFFIOTI, Heleieth. “Movimentos sociais: face feminina”. In:

CARVALHO, Nanci V. de (Org.). A condição feminina. São Paulo, Vértice/Editora. Revista dos Tribunais, 1988, p. 143-183.

16 Ver: MICHELET, Jules. La femme. Paris: Flamarion, 1981. FRIEDNAN, B. The feminisme mystique. 10th

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ninguém é totalmente dominado, oprimido. Há um momento em que os opressores sentem o peso da reação daqueles que foram vítimas da sua autoridade.

Nem sempre esse equilíbrio de poder é atingido. Como foi visto, a desigualdade gera tensões e provoca relações violentas de gênero, pois quando a prática social das mulheres difere das regras e da norma vigente, os homens para contê-las e não perder seu status social, fazem uso da força física para submetê-las ao seu locus, ao seu espaço.

A utilização da força física e da opressão psicológica pelos homens perpetrada contra as mulheres pode ser caracterizada como violência de gênero, um tipo específico de violência que visa à preservação da organização social de gênero fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam o gênero feminino17. Tomando as palavras de Saffioti e Almeida, percebemos que a grande preocupação do poder masculino é a ameaça que o gênero feminino representa. Por isso que os homens lutam tanto, seja através da agressão física, seja através da opressão psicológica, para manter a subalternidade do gênero feminino.

Essa luta pela permanência das diferenças sexuais baseadas em pressupostos da biologia de que o masculino é forte/viril e o feminino é fraco/frágil reflete a construção das oposições binárias fixas e naturalizadas, sobre as quais são forjadas as desigualdades de gênero. Tais diferenças estão incutidas na cultura masculina, no discurso masculino, uma vez que a tradição de nossa sociedade foi sedimentada sob o jugo do patriarcalismo e da dominação, ou seja, um tipo de relação em que a figura do homem, branco, ocidental e a figura do macho, do pai, indicavam o poder supremo e as outras categorias (mulheres, escravos, filhos, etc.) estavam submetidas à sua autoridade.

A transmissão dessas oposições via processo de socialização das crianças e jovens fortaleceu ainda mais a fronteira entre o masculino e o feminino. Uma fronteira difícil de ser rompida, pois no momento em que certos arquétipos são desvanecidos pela atuação e

17 SAFFIOTI, Heleieth e ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de

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participação das mulheres na sociedade, outras fronteiras parecem avançar entre os gêneros, e talvez a mais marcante e imponente seja a violência de gênero, que visa não somente demonstrar a força física masculina sobre a integridade física feminina, mas insiste principalmente em delimitar fronteiras, em preservar papéis e espaços sociais, em demarcar território, ou seja, mostrar às mulheres que a ordem social preestabelecida deve permanecer e que a sociedade é dividida em dois espaços, o masculino e o feminino; entretanto, com um único poder: o masculino. Ambos podem conviver juntos, contrair relações de amizade, conjugais, adentrar a privacidade, a intimidade do outro, superar e contrabalançar as fronteiras do pensamento, do comportamento em prol da convivência, mas nunca permitir que o outro, o gênero feminino, conquiste uma posição de vanguarda, de primeiro poder na relação e principalmente na sociedade.18

A violência de gênero revela, portanto, a luta e a resistência dos gêneros na perspectiva de possuir controle sobre o outro, de não permitir que o outro assuma a direção da relação, não possibilitar uma mudança no status quo e lutar pela perpetuação da situação, mesmo que para isso, o mecanismo mais utilizado seja a violência física, moral ou sexual. Todavia, essa competição não indica que os homens exerçam poder sobre as mulheres e que estas passivamente aceitem a subordinação imposta, ou então, se conformem com a ordem dada.

Existem várias facetas para a violência e, ora uma ou outra, se manifesta das formas mais distintas. Porém, não há corpo que seja espancado ou intimidade invadida em que dia ou outro, os gritos e gemidos de dores não sejam ouvidos.

Segundo Saffioti e Almeida, a violência de gênero apresenta duas faces. A primeira, é que a dita violência é produzida no interior de densas relações de poder, objetivando o controle da categoria que detém sua menor parcela; e a outra face é que a mesma violência

18 Indispensável consultar: SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana - 1890/1920. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1989.

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revela impotência de quem a perpetra para exercer a exploração-dominação, pelo não-consentimento do alvo desta forma de violência19.

Como se pode perceber, o poder, imposto através das diversas e variadas formas de violência sobre as mulheres ou outra categoria, acaba tecendo uma certa resistência, produzindo um contra-poder. Nenhuma relação social acontece independente das relações de poder, e todos estão em condições de disputá-lo, bem como de resisti-lo, de criar um contra-poder, pois, sob a perspectiva foucaultiana, o poder funciona e se exerce em rede20.

Em relação a isso, compreende-se que a inserção e atuação operante das mulheres na sociedade, engajamento em movimentos feministas, ações sociais, movimentos de mulheres, associações de bairros, creches, inserção no mercado de trabalho, na academia21 e vários outros espaços preenchidos com sua capacidade intelectual e profissional, são formas elaboradas de resistência ao poder e supremacia masculinos. São formas de resistência, através das quais, re-elaboraram e reformularam seus papéis sociais, conquistando novos espaços e produzindo novos poderes.

Entretanto, essa ampla visibilidade social, as lutas para acabar com a subordinação feminina, a não-conformidade com as regras dicotômicas da sociedade, a não sujeição aos modelos e estereótipos preestabelecidos, a não-aceitação da dominação masculina são alguns dos vieses que colaboraram para despertar o descontentamento, o receio e a agressividade dos homens. A violência, quer de forma prática ou simbólica, tem sido o mecanismo mais utilizado por aqueles que querem mostrar às outras categorias que quem manda na relação detém o poder.22

19 Apud ALMEIDA, Suely Souza de. Op. cit, 1996, p. 18. 20 Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit., 1982, p. 248.

21 Consultar MATOS, Maria Izilda. “Outras histórias: as mulheres e os estudos de gêneros – percursos e

possibilidades”. In: Gênero em debate. São Paulo: Educ, 1997, p. 88.

22 SOIHET, Rachel. “Violência simbólica. Saberes masculinos e representações femininas”. Estudos feministas, vol. 5, n° 1/97:IFCS/UFRJ, 1997. Esta leitura nos remete a CHARTIER, Roger. “Diferença entre os

sexos e dominação simbólica (nota crítica)”. Cadernos Pagu (4). Núcleo de estudos de gênero/UNICAMP, 1995. Consultar ainda: SOIHET, Rachel. “Formas de violência, relações de gênero e feminismo”. Núcleo de Estudos Contemporâneos. Conferência apresentada no III Encontro Enfoques Feministas e Tradições Disciplinares nas Ciências e na Academia, promovido pela REDEFEM na UFF, em 24-09-2001, 28 páginas.

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Porém, as mulheres vítimas da violência, conscientes dessa legitimação social que o machismo e a suposta superioridade masculina inferem à violência, não sucumbiram às ameaças e práticas violentas. Recebendo o apoio de movimentos feministas e de mulheres, pressionaram as autoridades públicas para que a violência de gênero fosse vista e assumida como um problema de âmbito público e legal. Exigiram a criação de órgãos especializados ao atendimento das vítimas, bem como a punição de seus agressores.23 Essa mobilização feminina para com o trato público da violência será assunto do próximo capítulo, bem como as denúncias efetuadas pelas vítimas que parecem ser uma forma de resistência, uma forma de dizer basta à violência e à opressão masculina.

A violência de gênero é um campo muito complexo, pois como se viu, não se refere apenas à violência impetrada contra o corpo, a moral, a sexualidade feminina, mas é uma forma de indicar às mulheres e a outras categorias excluídas, como os homossexuais, os negros, as prostitutas, etc., seu determinado lugar. Ou seja, inferir a esses grupos que eles são portadores de uma inferioridade intelectual e profissional, bem como caracterizá-los de desviantes da sociedade e que devem viver à mercê das decisões e desempenhar somente papéis predeterminados pela sociedade como dona de casa, mãe e esposa, no caso das mulheres.

Essa iniciativa de aparar os poderes que as mulheres desenvolveriam dentro de casa ou conquistariam na esfera privada é um ato premente para os homens, devido ao receio que têm de perder seu status, mediante a suscetibilidade e predisposição que elas têm para se sobressaírem nas mais variadas profissões, cargos e posturas assumidas.24 Além desse

Neste paper a autora discute as múltiplas formas de violência contra as mulheres, destacando a violência simbólica.

23 Ver: SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher quem mete a colher? São Paulo: Cortez, 1992. 24 Quanto à inserção das mulheres no mercado de trabalho e seu destaque profissional, quer em âmbito

nacional ou internacional, há obras que se destacam, tais como: DIAS, Maria Odila L Silva. Quotidiano e

poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981. BLANCO, Esmeralda B. “Trabalho feminino e a condição

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destaque no espaço público, na conquista de lugares antes exclusivamente masculinos, como cargos políticos, participação na vida pública, não se pode deixar de acrescentar a performance que as mulheres desempenham nos lares. Pois, ser mãe, dona de casa e esposa vai além dos estereótipos criados socialmente para adequá-las a um modelo de mulher ideal. Exercer as tarefas domésticas, a educação das crianças, o trato com o parceiro não são procedimentos nada fáceis para mulheres com uma tripla jornada de trabalho, no entanto, administram bem tais afazeres. Crises de desemprego, recessão econômica, ondas de consumismo, consumo de drogas e entorpecentes, violência nas ruas são faces das dificuldades que afetam a família e a gerência da economia doméstica. Contudo, não têm sido impedimento para que mulheres se realizem nestas múltiplas tarefas.

O espaço doméstico, visto por muitos autores como o local da “opressão masculina”, pois insistem em submetê-las e confiná-las ao âmbito privado,25 desperta em muitas mulheres ojeriza e aversão ao trabalho da casa, preferindo funções e empregos públicos para se livrar do estigma “rainha do lar”. No entanto, concorda-se com a abordagem de que o lar é e pode ser um local onde as mulheres, principalmente as mães, penetram nos interstícios deixados pelo poder masculino, assumindo, assim, várias formas de poderes.26 Um aspecto cultural muito importante é a questão da educação das crianças, pois as mulheres podem delinear novos caminhos no processo de formação das crianças e dos adolescentes. Caso não sejam revistas as práticas de desigualdades baseadas nas diferenças sexuais, as futuras

Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco Zero, 1989. SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis, Vozes, 1969.

25 Vários autores tratam desse assunto: OAKLEY, Ann. Op. cit., 1974. MATTHEWS, Glena. Just a housewife.

New York: Oxford University Press, 1987. MATTELART, M. La cultura de la opresión femenina. México: Ediciones Era, 1977.

26 Em algumas abordagens historiográficas, o lar é tido como um espaço de poder. Ver: TORRE, Claudia.

“Eduarda Mansilla de Garcia. El spacio domestico como spacio de poder”. In: KNECHER, L. & PANAIA, M. (eds.). La mitad del pais, la mujer en la sociedad argentina. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1994. SAMARA, Eni de Mesquita. op. cit., 1986. SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

Referências

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