A VIDA É SONHO: A TRADUÇÃO
Renata PALLOTTINI*
Meus c a r o s : quando p e n s e i n e s t e a s s u n t o , quando p l a n e j e i f a l a r , n e s t e Colóquio, a r e s
-p e i t o de Calderón e de La Vida es Sueíio f o i
d e s e j a n d o que o c o r r e s s e h o j e uma coincidência que, de f a t o , acabou p o r o c o r r e r : e s t o u f a l a n d o a vocês no d i a em que está acontecendo em São P a u l o a estréia da montagem d i r i g i d a p o r Ga-b r i e l V i l l e l a e p r o t a g o n i z a d a p o r Regina D u a r t e . Como sempre, quando o c o r r e a conversão mágica, e o t e x t o se t r a n s f o r m a em espetáculo v i v o , o T e a t r o passa a t e r m u i t o mais i n t e -r e s s e .
Ao f a l a r d e s t e t e x t o , deve-se p a r t i r de um f a t o : o t e a t r o e s p a n h o l não c r i o u uma tragédia clássica, mas, a d e s p e i t o d i s s o , e em c o n t r a p a r t i d a , c o n s e g u i u c r i a r o r e t r a t o das c o n t r a
-* E s c r i t o r a e Dramaturga. Docente da EAD e dá ECA - USP.
dições, dos c o n t r a s t e s da v i d a v e r d a d e i r a : c o n -s e g u i u c r i a r o T e a t r o do Mundo.
É sempre p e r i g o s o g e n e r a l i z a r , mas se pode, com c u i d a d o , d i z e r que f a z p a r t e do tem-peramento e s p a n h o l um d e s e j o de romper os câno-nes, de romper as r e g r a s ; a obediência a, p o r exemplo, a r e g r a das três u n i d a d e s - f a l s a m e n t e i m p u t a d a a Aristóteles, p e l o menos em sua r i g i dez a b s o l u t i s t a nunca c a i u bem ao t e m p e r a -mento e s p a n h o l , como se pode v e r , q u e r na sua produção dramática, quer mesmo na produção teó-r i c a - as suas poéticas. O t e a t teó-r o e s p a n h o l do século de Ouro ( e é desse que estamos f a l a n d o ) c a r a c t e r i z o u - s e p o r uma forma p e c u l i a r , p e l a irrupção, na sua f e i t u r a dramática, de traços épicos e, p o r t a n t o , p e l o quase t o t a l d e s p r e z o à d i s c i p l i n a r e i v i n d i c a d a , p o r exemplo, p e l o t e a -t r o clássico francês.
O t e a t r o e s p a n h o l e s t a v a preocupado em f a -l a r a r e s p e i t o do Homem saído do Renascimento, saído d a q u e l e sonho de harmonia e b e l e z a , de equilíbrio e d e s c o b r i m e n t o s , de t o d o o t i p o , que o Renascimento t r o u x e r a . A e u f o r i a r e n a s c e n t i s t a é substituída p e l o dramático c o n f l i t u a d o do B a r r o c o e da ContraReforma. P r o f u n d a -mente mergulhada na t a r e f a de c o n t r a p o r - s e à
" i n d i s c i p l i n a " da Reforma, a Espanha, através da m a i o r i a de seus a r t i s t a s , t i n h a como sua a
obrigação de f a l a r das novas relações do D i v i n o com o Humano, um dos temas p r e d o m i n a n t e s do B a r r o c o .
Era um mundo em que o Homem e s t a v a p e r -dendo algumas c e r t e z a s : a T e r r a não e r a mais o c e n t r o do u n i v e r s o e o Deus s e g u r o , f i r m e , da I d a d e Média, e s t a v a sendo c o n t e s t a d o . Não é a Espanha só - embora a Espanha apareça a i m u i t o bem r e p r e s e n t a d a - quem nos dá a imagem desse personagem a n g u s t i a d o , d i v i d i d o , "moderno"; b a s t a que se pense em Shaskespeare, b a s t a que
se pense em Hamlet. Mas não se pode, também, d e i x a r de l a d o o monumental Q u i x o t e de C e r v a n t e s , p r o v a v i v a de como o homem da época e s t a v a fragmentado e como d i s c u t i r essa f r a g -mentação e r a p r i m o r d i a l p a r a os a r t i s t a s de então.
O homem que não sabe bem q u a l é o seu tempo e q u a l é o seu l u g a r , também não sabe bem q u a l é a sua r e a l i d a d e . Ora, esse é, e x a t a
-mente, o tema de A Vida é Sonho. Em que mundo
vivemos nós, os s e r e s humanos? O que é, r e a l -mente, a v i d a ? A que r e a l i d a d e c o r r e s p o n d e e l a ? Será r e a l e s t a v i d a que supomos v i v e r ? Não c o r -responderá e l a , simplesmente, a um sonho? E, n e s t e caso, não será o sonho a única v i d a
E s t e tema, c o m p l i c a d o com a n e c e s s i d a d e em que se e n c o n t r a o mundo ibérico de d e f e n d e r o Deus, de d e f e n d e r o C r i s t o e o c r i s t i a n i s m o , acaba p o r r e d u n d a r na t r a m a dramática da o b r a . A l u t a p e l a afirmação da r e l i g i o s i d a d e p e r m e i a a própria v i d a de Calderón de La B a r c a , e l e mesmo um homem d i v i d i d o e n t r e a v i d a p r o f a n a e a v i d a r e l i g i o s a , e n t r e o amor do mundo e o amor do s a g r a d o . Calderón, n a s c i d o em 1600, desde os p r i m e i r o s anos namora o c l a u s t r o e acaba p o r , aos cinqüenta anos, a d e r i r p o r i n t e i r o à v i d a r e l i g i o s a . É c u r i o s o como se c o s -tuma d e f e n d e r a " s a n t i d a d e " de Calderón, opondo-o ao "pecador" Lope de Vega. Na v e r d a d e , p a r e c e que nem um, nem o u t r o dos extremos é v e r d a d e i r o .
A Espanha a p a r e c e , n a q u e l a a l t u r a , como a dona do mundo; no e n t a n t o , já se e s t a v a sen-t i n d o , a nível asen-té de sucessão e de famílias r e i n a n t e s (com o drama p e s s o a l dos R e i s Católi-cos e a conseqüente ascenção dos A u s t r i a s ) um começo de decadência. A c r i s e se i n s t a l a v a e t o d a s as formas de d e f e s a do que já f o r a c o n -q u i s t a d o eram necessárias e b e n v i n d a s . É nesse c a u d a l que se i n s e r e o nosso p o e t a .
O s e r humano s e r i a então, n a q u e l e c o n -t e x -t o , v i s -t o como o s e r que f a l h o u , que pode f a l h a r a i n d a , mas que tem a seu l a d o o uso da
razão, o uso do l i v r e arbítrio. Se e l e f a l h o u -e a q u i s-e i n s -e r -e o m i t o d-e Adão - -e l -e é também d o t a d o de p o t e n c i a l i d a d e s que o ajudarão a s a l -v a r - s e . O a u t o s a c r a m e n t a i de Calderón que tem
o mesmo nome - La Vida es Sueflo - e que f o i ,
c u r i o s a m e n t e , composto m u i t o s anos d e p o i s da tragicomédia que estudamos, a q u a l é de 1635 -o a u t -o , c-om-o se d i s s e , a p r e s e n t a a mesma histór i a , mas a g o histór a " c histór u a " , a b s t histór a t a , d e s p i d a do histór e -c h e i o psi-cológi-co que preen-che os v a z i o s dos personagens nossos c o n h e c i d o s . T r a t a - s e , no a u t o , de Deus, que c r i o u o Homem, falível, f a -l h a n d o , mesmo, mas que -l h e dá a o p o r t u n i d a d e de a r r e p e n d e r - s e e s a l v a r - s e . 0 homem usa de seu l i v r e arbítrio, e de f a t o se s a l v a .
A história de A Vida é Sonho é, em l i n h a s
g e r a i s , essa mesma: Basílio, r e i da Polônia, em época i n d e t e r m i n a d a , t e v e indicações, p o r s o -nhos e predições de a s t r o s , que seu f i l h o , pró-x i m o a n a s c e r , a r r u i n a r i a sua pátria e s e r i a a perdição dos p a i s . Os vaticínios são p a r c i a l -mente c u m p r i d o s p o r ocasião do n a s c i m e n t o : em meio a fenômenos n a t u r a i s a s s u s t a d o r e s , a r a i -nha m o r r e em conseqüência do p a r t o . Assim, Se-gismundo, o príncipe, já deu m o r t e a sua mãe e f o i responsável p o r v i o l e n t o s c a t a c l i s m a s . Em v i s t a d i s s o , B a s i l i o manda que a criança s e j a
p a r a sempre. No e n t a n t o , v i n t e anos d e p o i s , quando começa a o b r a , vemos que uma jovem t r a -v e s t i d a , Rosaura, se aproxima da t o r r e onde está c o n f i n a d o Segismundo, acompanhada do seu c r i a d o C l a r i m , que é o " g r a c i o s o " da peça. Ros a u r a é uma jovem m o Ros c o v i t a que, t e n d o Ros i d o l u -d i b r i a -d a em sua h o n r a p o r A s t o l f o , príncipe -de Moscou, vem à Polônia em busca de auxílio p a r a v i n g a r - s e , cumprindo um c o n s e l h o de sua mãe, V i o l a n t e . Rosaura ouve a voz q u e i x o s a de S e g i s -mundo, e é d e t i d a p o r C l o t a l d o , o guardião. Nesse e n c o n t r o , C l o t a l d o tem razões p a r a con-c l u i r que a q u e l e jovem é seu f i l h o . Levados ao palácio, f i c a m t o d o s sabendo que Basílio p r e -t e n d e f a z e r uma experiência com Segismundo, que c o n s i s t e em fazê-lo adormecer e trazê-lo d e p o i s à c o r t e , p a r a v e r como se comporta. Assim se f a z , e Segismundo, d e p o i s de drogado, é t r a z i d o ao palácio. 0 jovem príncipe se m o s t r a , então, v i o l e n t o e i n j u s t o , matando a um c r i a d o , amea-çando a C l o t a l d o e ao próprio p a i . Em v i s t a d i s s o , Basílio manda que e l e s e j a de novo l e ^ vado à t o r r e , d e p o i s de novamente embriagado. De v o l t a à t o r r e , a t o r d o a d o p e l a s s u c e s s i v a s mudanças e p e l a s beberagens que r e c e b e u , S e g i s -mundo está t o t a l m e n t e p e r d i d o : d u v i d a dos pró-p r i o s o l h o s , já não sabe o que é r e a l i d a d e e o que é sonho - e não tem a i n d a , como é n a t u r a l ,
confiança em quem q u e r que s e j a . D e s e n r o l a - s e no palácio, e n t r e t a n t o , a i n t r i g a p a r a l e l a , que acabará p o r c o l o c a r f r e n t e a f r e n t e Rosaura e A s t o l f o , seu s e d u t o r , e a i n d a p o r c o n c r e t i z a r a r i v a l i d a d e que deverá e x i s t i r e n t r e Rosaura e E s t r e l a , s o b r i n h a do r e i e n o i v a do m o s c o v i t a . C i e n t e s de que a Polônia está ameaçada de s e r governada p o r um príncipe e s t r a n g e i r o , s o l d a d o s tomam a s i a t a r e f a de l i b e r t a r Segismundo, e d a r - l h e poder p a r a e n f r e n t a r , em g u e r r a , a seu p a i . A g u e r r a a c o n t e c e , e Segismundo vence. Ao
f i n a l , c i e n t e já agora de que nada é r e a l i d a d e e que t u d o pode s e r sonho, Segismundo p e r d o a ao p a i e a C l o t a l d o , dá Rosaura em casamento a As-t o l f o e se casará com E s As-t r e l a , p a r a sanar as f a l h a s da situação. No e n t a n t o , ao s o l d a d o que o l i b e r t o u dará prisão, porque o t r a i d o r é inú-t i l quando já cumprida a inú-traição. Nessa decisão a b s u r d a , Segismundo m o s t r a já que se t o r n o u
" r e i " . Enquanto príncipe injustiçado e r e b e l d e , o t r a i d o r ( o povo?) l h e e r a útil; já a g o r a , como r e i , cumpre-lhe manter a ordem e g a r a n t i r a d i s c i p l i n a .
É de minha convicção que, p a r a bem t r a d u -z i r , uma pessoa deve conhecer r a -z o a v e l m e n t e as duas línguas básicas - a do o r i g i n a l e a da tradução - deve, se se t r a t a r de p o e s i a , s e r um
p o e t a e, mais a i n d a : deve c o l o c a r - s e a serviço do t e x t o , e não c o l o c a r o t e x t o a seu serviço.
Digo i s s o p o r q u e , das várias m a n e i r a s de mal t r a d u z i r , a p i o r , t a l v e z , é a q u e l a em que o
t r a d u t o r p r o c u r a b r i l h a r acima do t e x t o t r a d u -z i d o , a f i r m a n d o - s e através d e l e , e buscando através d e l e o prestígio que, p o r seus próprios méritos, não c o n s e g u i u . Bom t r a d u t o r é, p a r a mim, a q u e l e que se t o r n a um p o r t a - v o z das
idéias e dos méritos do a u t o r o r i g i n a l .
Não se t r a t a , o b v i a m e n t e , de f a z e r um t r a -b a l h o s e r v i l , sem c r i a t i v i d a d e , sem imaginação; t r a t a - s e de, com c r i a t i v i d a d e e imaginação, t r a n s p l a n t a r a o u t r o i d i o m a a criação o r i g i n a l , que f o i c o n s i d e r a d a apreciável na sua o r i g e m , tão apreciável, de f a t o , que m o t i v o u a t r a -dução.
O u t r o problema o c o r r e com as adaptações, e a q u i se t r a t a de uma adaptação; além de d e v e r t r a b a l h a r em uma boa versão, c r i a t i v a , poética, p e s s o a l porém a t e n t a aos v a l o r e s do o r i g i n a l , o t r a d u t o r p r e c i s a r e c r i a r um t e x t o que se a d a p t e às condições que j u l g a o p o r t u n a s - de tempo, de espaço, de pensamento - mas não pode nunca t r a i r o espírito do a u t o r , t r a i r a sua visão de mundo, o seu pensamento n o r t e a d o r , a sua f i l o
-s o f i a . Não po-s-so compreender a adaptação de um t e x t o que, na sua o r i g e m , e r a uma d e f e s a da
mon a r q u i a a b s o l u t i s t a e se t r a mon s f o r m e monuma p r e -gação, p o r exemplo, da a n a r q u i a . Nada a v e r com as minhas próprias idéias políticas, nem com a d e f e s a das idéias políticas do a u t o r o r i g i n a l . T r a t a - s e apenas de uma questão de coerência. Se p r e t e n d o um t e x t o que defenda o Anarquismo, v o u escrevê-lo eu mesmo, ou p r o c u r o um que já e x i s t a nesse s e n t i d o . Na adaptação, posso me p e r m i t i r p r a t i c a m e n t e t u d o , mas nunca t r a i r o espírito do a u t o r o r i g i n a l , b a s i c a m e n t e em suas idéias c e n t r a i s , na razão p e l a q u a l esse homem, um d i a , s e n t o u - s e p a r a e s c r e v e r uma o b r a .
No caso de La Vida es Sueno f o i p r e c i s o p e n s a r em uma peça que t i n h a mais de t r e z e n t o s anos e que o b e d e c i a a uma forma p e c u l i a r , c o r -r e s p o n d e n t e 1 a um- d e t e r m i n a d o r i t m o de v i d a , o
r i t m o de v i d a do século- X V I I .
S e r i a m u i t o c u r i o s o um e s t u d o que nos r e -v e l a s s e , como num desenho animado, em que r i t m o , r e a l m e n t e , v i v i a m e se moviam as pessoas do século X V I I (e i s s o t a l v e z já e x i s t a ! ) . Se-r i a i n t e Se-r e s a n t e c o n f i Se-r m a Se-r a nossa c e Se-r t e z a de que e r a agradável e não n e c e s s a r i a m e n t e t a -r e f a c u l t u -r a l - f i c a -r p o -r duas, t-rês h o -r a s de pé, num " c o r r a l " m a d r i l e n h o , ao a r l i v r e , nos t e a t r o s a céu a b e r t o , o u v i n d o l o n g o s monólogos em v e r s o que p e r q u i r i a m das mais p r o f u n d a s a n gústias humanas. I s s o d e v i a c o r r e s p o n d e r , e v i
-d e n t e m e n t e , a o u t r a concepção -de v i -d a , uma v i -d a onde a A r t e permeava e i n v a d i a os pensamentos, enquanto as mãos t r a b a l h a v a m e os c o r p o s se mo-vimentavam, um tempo em que a F i l o s o f i a e a
Re-ligião f a z i a m p a r t e n a t u r a l do d i a - a - d i a , em que a concepção de Mundo d e t e r m i n a v a o compor-t a m e n compor-t o humano e a visão do T e a compor-t r o e da A r compor-t e .
Assim, minha p r i m e i r a preocupação, quando comecei a t r a d u z i r , f o i a de p a s s a r , com d i g n i dade, p a r a o português, um t e x t o de a l t a q u a l i -dade, t a n t o dramática q u a n t o literária, sem castrá-lo, mas também sem impor ao público v i v o de uma a r t e v i v a duas h o r a s de frustração.
O b a r r o c o c a l d e r o n i a n o é, a q u i , t o d o f e i t o de d u p l o s , do r e a l e sua sombra, da v i d a e do sonho, da r e a l i d a d e r e da ilusão, da l o u c u r a e da s a n i d a d e , do Bem e de M a l . A q u i , como em m u i t o s momentos mais-, o Real se d e s d o b r a , se vêem o Céu .e a T e r r a , C r i s t a e os a s t r o s , amor e ódio, d e n t r o do quadro místico, ascético, pundonoroso e ousado do Século de Ouro espa-n h o l . A solução que e n c o n t r e i f o i t r a n s p o r a peça, que é t o d a f e i t a em v e r s o s m e t r i f i c a d o s e r i m a d o s e com r i m a s o a n t e , p a r a um t e x t o f i n a l , p a r t e em p r o s a e p a r t e em v e r s o , n e s t e último caso m e t r i f i c a d o e r i m a d o de a c o r d o com o o r i -g i n a l . A e s c o l h a dos t r e c h o s que d e v e r i a m s e r
m a n t i d o s em v e r s o s não f o i aleatória. I n i c i a l mente, f o r a m m a n t i d a s assim as p a r t e s de v e r d a -d e i r o conteú-do lírico, as mais s u b j e t i v a s , -de confissão, de perquirição i n t e r i o r . Também a q u e l a s que, embora n a r r a t i v a s , p e r d e r i a m m u i t o com a mudança de e s t i l o ; há t r e c h o s que, t r a d i c i o n a l m e n t e , ao l o n g o dos seus mais de t r e z e n -t o s anos de v i d a , man-têm uma música e um r i -t m o próprios. Também se conservaram em v e r s o s c e r -t o s -t r e c h o s que con-tribuíam p a r a a criação de um c l i m a de sonho (fundamento da peça), um c l i m a de i r r e a l i d a d e , que s e r v i a ao t e x t o e às intenções da direção.
P r o c u r e i f a z e r com que o t e x t o f o s s e p a s sível de uma fácil dicção, que fluísse l i v r e mente no j o g o e n t r e os a t o r e s . Sabese que t e x -t o s belíssimos, l i -t e r a r i a m e n -t e r i c o s , perdem-se quando são d i t o s em cena; a q u i , t i n h a - s e a o p o r t u n i d a d e de e x p e r i m e n t a r ; l o g o de início, p a r e c e u - n o s , p o r exemplo, que " h i p o g r i f o " , p a r a o público a t u a l , e r a p a l a v r a r a r a e, p o r t a n t o , p e r d i d a p e l o e n t e n d i m e n t o . 0 " h i p o g r i f o " se t r a n s f o r m o u em " c e n t a u r o " , sem prejuízo do s e n -t i d o e, c r e i o eu, sem prejuízo do b a r r o c o que é o c e r n e da peça. Não se pode t r a n s f o r m a r um t e x t o do Século de Ouro, um t e x t o com mais de t r e z e n t o s anos de i d a d e , que c o r r e s p o n d e a um período, a uma I d a d e , a um espírito, em b r i n c a
-d e i r a inconseqüente, a i n -d a que s e j a em nome -da comunicação.
A p e r p l e x i d a d e de Segismundo, d e p o i s de suas experiências c o n t u r b a d a s e d u p l a s , o i n -f l u x o p e r t u r b a d o r das próprias p a l a v r a s de seu guardião C l o t a l d o , o r e s u l t a d o das drogas que l h e f o r a m dadas, a s u r p r e s a que l h e a c a r r e t a m as p r o v a s de amor e as p r o v a s de ódio, s u b s t i -t u i n d o - s e e a l -t e r n a n d o - s e , não são mais que a metáfora do c o n f u s o conhecimento, do o b s c u r o c o n h e c i m e n t o do s e r humano. Será a nossa v i d a , também, um sonho? Seremos nós, os s e r e s humanos, apenas j o g u e t e s na mão do deus que f a z c o -nosco experiências, que nos j u l g a e a p r o v a ou d e s a p r o v a , que nos condena ou a b s o l v e segundo seus próprios v a l o r e s ? N a t u r a l m e n t e , não cabe ao católico Calderón d u v i d a r da justiça d i v i n a . Mas, q u a n t o a nós, l e i t o r e s de séculos p o s t e -r i o -r e s , a dúvida nos pode o c o -r -r e -r . Não e x i s t e a q u i , convém n o t a r , uma contradição e n t r e a visão da a d a p t a d o r a , que defende a t e s e de que o pensamento do a u t o r deve s e r r e s p e i t a d o , e a visão da l e i t o r a de séculos d e p o i s : Calderón é um católico f i e l ; nós não o somos n e c e s s a r i a -mente, enquanto e s p e c t a d o r e s da peça. T e r i a Ba-sílio o d i r e i t o de condenar seu f i l h o à prisão e ao delírio? O p o s t e r i o r a r r e p e n d i m e n t o do r e i não a n u l a a sua injustiça e a sua superstição;
a assunção de Segismundo ao t r o n o não a n u l a os v i n t e anos de s o f r i m e n t o que a prisão l h e a c a r -r e t o u .
É do pensamento da época a metáfora do T e a t r o do Mundo; a v i d a é, r e a l m e n t e , uma ficção dramática, que algum a u t o r s u p e r i o r e inatingível e s c r e v e e f a z r e p r e s e n t a r , ficção da q u a l não somos mais que títeres, personagens movidos e d e t e r m i n a d o s p o r um D e s t i n o ou uma Vontade imperturbável. Como conseqüência d i s s o , e mais i m p o r t a n t e do que i s s o - p e l o menos na visão cristã do a u t o r : o que r e a l m e n t e i m p o r t a e deve i m p o r t a r é a v i d a e t e r n a , a v i d a de de-p o i s da m o r t e , à q u a l t o d o s devemos a l m e j a r e p a r a a q u a l devemos p r e p a r a r - n o s . Condenado em-b o r a p o r uma e r r a d a visão da v e r d a d e , na q u a l
i n c o r r e u o r e i Basílio, Segismundo, como s e r humano, pode r e c o r r e r à sua v o n t a d e - f o n t e da fé - ao uso da razão, ao livre-arbítrio de que f o r a m d o t a d o s os homens, pode a g i r com justiça e magnanimidade, pode, e n f i m , s a l v a r - s e , s a l v a r a sua pátria e p r e p a r a r a sua própria salvação e t e r n a .
Há uma f a l a de Segismundo, ao f i n a l da J o r n a d a Segunda, que é um bom exemplo do e s t i l o e do pensamento do a u t o r ; permito-me r e p r o d u z i r p a r t e da tradução, como m a n e i r a de
SEGISMUNDO - É c e r t o ; então reprimamos e s t a f e r a condição,
e s t a fúria, e s t a ambição, p o i s pode s e r que sonhemos; e o f a r e m o s , p o i s estamos em mundo tão s i n g u l a r que o v i v e r só é sonhar e a v i d a ao f i m nos imponha que o homem que v i v e , sonha o que é, até d e s p e r t a r .
Sonha o r e i que é r e i e segue com esse engano mandando
r e s o l v e n d o e governando. E os a p l a u s o s que r e c e b e v a z i o s , no v e n t o e s c r e v e ; e em c i n z a s a sua s o r t e a m o r t e t a l h a de um c o r t e . E há quem q u e i r a r e i n a r vendo que há de d e s p e r t a r no negro sonho da morte? Sonha o r i c o sua r i q u e z a que t r a b a l h o s l h e o f e r e c e , sonha o p o b r e que padece sua miséria e p o b r e z a ;
sonha o que o t r i u n f o p r e z a sonha o que l u t a e p r e t e n d e , sonha o que a g r a v a e o f e n d e
e no mundo, em conclusão, t o d o s sonham o que são, no e n t a n t o ninguém e n t e n d e . Eu sonho que e s t o u a q u i , de c o r r e n t e s c a r r e g a d o e s o n h e i que em o u t r o e s t a d o mais l i s o n g e i r o me v i . Que é a v i d a ? Um f r e n e s i . Que é a v i d a ? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção; o m a i o r bem é t r i s t o n h o , porque t o d a a v i d a é sonho