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Inefável e "Em Todos os Nomes e Formas": diálogo sobre a experiência mística com Haroldo Reimer

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Academic year: 2021

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André Luiz Caes**

Resumo: este texto constitui um diálogo sobre a experiência mística a partir da leitura do

livro de Haroldo Reimer – “Inefável e Sem Forma” (2009) – e de outros livros que proporcionam elementos para a reflexão sobre o mesmo tema. O objetivo é compreender a aproximação entre o Ocidente e o Oriente no campo da mística.

Palavras-chave: Experiência mística. Haroldo Reimer. Ocidente e Oriente.

O

s místicos de todas as épocas afirmaram que a última e definitiva experiência da Unidade não pode ser expressa em palavras. Também nos textos sagrados das grandes religiões a realidade última é considerada inefável.

Assim está dito nos Upanixades e no Tao Te Ching:

É, na verdade, outro que o conhecido, E, ademais, acima do desconhecido.

(Kena Upanisad)

Sua forma não é para ser vista. Ninguém jamais o vê com os olhos.

(Svetasvatara Upanisad)

INEFÁVEL E “EM TODOS OS NOMES

E FORMAS”: DIÁLOGO SOBRE A EXPERIÊNCIA MÍSTICA COM HAROLDO REIMER*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 09.10.2015. Aprovado em: 22.10.2015.

** Doutor em História pela Unicamp. Docente na Universidade Estadual de Goiás (UEG), Câmpus Morrinhos, e no Programa de Mestrado Ambiente e Sociedade da UEG. Pesqui-sador na área das manifestações religiosas e culturais regionais. Estudioso das interações religiosas entre o Ocidente e o Oriente. E-mail: caesananda@bol.com.br

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O Tao discutível não é o Tao permanente, eterno; O nome nomeável não é o nome permanente, eterno.

(Tao Te Ching)

Embora tenha enveredado pelo caminho místico nos últimos quinze anos e não tenha sequer vislumbrado a “experiência última”, tenho reconhecido, em alguns mo-mentos, a veracidade dessas “experiências indizíveis”.

Percebo, porém, que esses fugidios momentos de êxtase pela sensação da Unidade não são indizíveis apenas porque nos faltam palavras, mas porque não podem ser compreendidos apenas mentalmente por meio da argumentação: é essencial-mente necessária a experiência direta1.

Por outro lado, como membro da academia, tenho percebido, também, que no caminho místico é possível acontecer outra experiência de grande beleza: a da transfor-mação interior causada pelos insights estimulados pelas reflexões dos estudio-sos que se debruçam sobre os temas da religião.

Essas muitas investigações, conduzidas por inteligências sensíveis e adeptas da busca pela verdade2, nos fazem viajar pelo universo luminoso da compreensão

hu-mana, que por outro caminho também nos leva a essa aproximação com a tão desejada experiência da Unidade.

Uma dessas experiências luminosas aconteceu durante a leitura dos escritos de Haroldo Reimer, presentes no livro “Inefável e sem forma: estudos sobre o monoteísmo hebraico” (2009). Durante essa leitura, fui levado a dialogar internamente com os ensinamentos recebidos na Índia e também com as reflexões encontradas em textos de Campbell (2008a; 2008b; 2008c), Eliade (2010; 2011), Zimmer (2008). Diálogo esse que agora compartilho aqui.

Em meu caminho particular, tanto na busca mística como na de pesquisador do fenô-meno religioso, procuro sempre a experiência de me aproximar das diversas crenças religiosas, a ponto de conseguir compreender pelo menos um pouco das motivações humanas presentes nas mesmas. Esse exercício de contato di-reto me possibilita solidarizar espiritualmente com as expectativas e desejos daqueles praticantes das diversas religiões cujos caminhos se cruzam com os meus.

A experiência da Unidade, ao menos no caminho que escolhi seguir, implica em encon-trar a “presença divina” em todas as pessoas e em todas as situações com as quais preciso viver e conviver. Nessa perspectiva, todos os momentos e todos os “encontros” nunca são ocasionais, mas fazem parte de uma ordem cósmica cujo mistério constitui a essência da própria busca.

A “vontade de Deus” ou “providência divina”, como dizem os cristãos, mas não aquela que leva ao simples conformismo e sim a que leva a um profundo respeito aos fatos que não podem ser compreendidos por uma simples análise ou

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contro-lados apenas pela racionalidade, sempre me conduz pelos caminhos da exis-tência.

Com essa motivação interna, leio os livros, vou aos templos e vejo e sinto as experiên-cias cotidianas.

Assim foi esse diálogo com Haroldo Reimer.

A EXPERIÊNCIA MÍSTICA E OS ENCONTROS E DESENCONTROS ENTRE O OCIDENTE E O ORIENTE

Não é necessário apresentar considerações gerais sobre os capítulos (artigos) que com-põem o livro de Reimer. Isso já foi feito por Osvaldo Luiz Ribeiro, numa bela e provocadora “Apresentação” (REIMER, 2009, p. 7-14), na qual aprofunda algumas das inquietações que ensejam esses escritos.

De início, é importante dizer que as reflexões de Reimer tocam de maneira sensível e inteligente o coração e a mente do “homem religioso” ocidental, princi-palmente quando destituído das tendências apologéticas. Tocam, também, o estudioso dos processos históricos e culturais que são marcantes na construção das religiões e das crenças.

Ao mesmo tempo em que nos aproxima do que é fundamentalmente histórico, Reimer tam-bém indica o que se refere ao transhistórico e transcendente. Fundamentado em bom número de fontes bibliográficas, Reimer aponta e discute diversos aspectos históricos e contextuais da construção do ideário monoteísta, conduzindo a refle-xão para a problematização de elementos que constituem o cerne do discurso, que é comumente divulgado pelos defensores das tradições judaica, cristã e islâmica. Num momento da história em que o radicalismo e a intolerância do monoteísmo

apa-recem de forma terrível e trágica, como no caso do Estado Islâmico, ou de forma insidiosa e imprevisível, como no caso das manifestações agressivas de tendências dentro do neopentecostalismo, o livro de Reimer traz grande luz à compreensão desse fenômeno, pela forma clara e coerente de expor os fundamentos complexos da fé monoteísta hebraica, que se expandiram e se agigantaram nas tradições cristã e islâmica.

Reimer faz, desde o início, a opção por procurar o esclarecimento, na direção que é apresentada por Adorno e Horkheimer (1985, p. 17): “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o ob-jetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores.” Faz isso, porém, sem cair na descrença. Nessa direção, declara a perspectiva com que pretende abordar os textos do Primeiro Testamento: uma “leitura histórico-crítica” na qual “os textos são entendidos como ‘representações’, isto é, elaborações construídas a partir da intencionalidade de autores e trans-missores” (REIMER, 2009, p. 15).

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Dessa forma, não procura desmistificar os textos sagrados, mas apanhá-los na beleza de sua historicidade, fato que permite a compreensão humanista das ações humanas vividas pelos hebreus no quadro geral da sua experiência histórica. O primeiro dos elementos que Reimer (2009, p. 21-52) problematiza é a perspectiva

do “monoteísmo original”; proposição que por muito tempo foi aceita por te-ólogos e demais estudiosos dos textos do Primeiro Testamento. Reimer expõe, de forma sintética e coerente, as diversas correntes interpretativas sobre os fundamentos do monoteísmo. Ao apontar que o monoteísmo foi uma cons-trução demorada dentro da história do povo hebreu e seus muitos desafios no contexto cananeu/mesopotâmico, Reimer expõe a fragilidade dos argumentos que fundamentaram a crença de que o monoteísmo está na origem das crenças humanas. Essa crença propõe que o monoteísmo original teria sido deturpado ao transcorrer do tempo, trazendo como corolário a crença em outros deuses ou o politeísmo.

A ideia de um monoteísmo original constituiu, sempre, uma boa justificativa para a propagada “superioridade” das religiões monoteístas sobre as demais formas de religião, que por sua vez constituiriam formas corrompidas da verdadeira religião das origens.

Para os que buscam a experiência mística, mas não fogem das reflexões acadêmicas, a aceitação de todas as crenças como possibilidades históricas e não passíveis de hierarquização, é uma experiência essencial. A bela reflexão trazida por Reimer coloca numa perspectiva crítica a ideia de inferioridade das demais crenças em relação ao monoteísmo.

O segundo elemento que Reimer (2009, p. 53-68) aborda é o mais que atual problema da identidade étnica e cultural. O monoteísmo, por sua construção forjada em contextos de disputas territoriais, étnicas e culturais, tornou-se “excludente” – como define Reimer para o período de seu estudo – e, acrescentamos, intoleran-te. Não só o monoteísmo hebraico – estudado no livro – mas também o cristão e o islâmico, emergiram e se fortaleceram em oposição e confronto com as demais crenças e culturas de seu tempo, tornando-se posteriormente – quando já estabelecidos como religião dominante em seus contextos – fonte de violên-cias históricas contra povos, culturas e crenças diferentes.

Por excluírem a possibilidade das demais crenças em Deus ou Deuses poderem levar os seres humanos à realização espiritual, os monoteísmos (independentemente de suas nuances) conseguem construir barreiras intransponíveis até mesmo para um diálogo entre si. Os monoteísmos, nas suas expressões mais duras, excluem, marginalizam e perseguem – quanto dominantes – as demais formas de crença, impedindo a paz entre os povos e culturas, não aceitando a liber-dade de cada indivíduo, grupo religioso ou povo viver dentro de sua própria perspectiva.

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Nessa mesma direção, podemos incluir os outros elementos problematizados por Rei-mer (2009, p. 69-90 e 91-102): a proibição de imagens e a perpetuação de um imaginário masculino para Deus – que Reimer capta tão bem. Estes elementos fundamentais do monoteísmo forjam outras formas de violência e intolerân-cia, seja em relação às demais representações de Deus, seja em relação à visão negativa das mulheres – causa do pecado original – em quase todos os contex-tos culturais onde prevalecem as tradições monoteístas.

Todas essas reflexões de Reimer apaziguam a mente do pesquisador e o coração do místico, à medida que levantam com sensibilidade e inteligência aquelas in-quietações e angústias que fazem os ocidentais de espírito livre e de visão de mundo fraternal, afastarem-se das raízes religiosas originárias e buscarem conforto em perspectivas religiosas mais holísticas.

Ao ler o livro de Reimer, é impossível não pensar: “que bom que alguém disse tudo isso, dessa forma e com essa clareza”. Apesar de saber que poderia ter encon-trado todas essas reflexões em muitas outras bibliografias, foram as reflexões de Reimer que me permitiram olhar as raízes do monoteísmo com uma pers-pectiva mais ampla e coerente.

Essa é a grande beleza das possibilidades oferecidas pelos textos que escrevemos: po-demos tocar profundamente uma mente e um coração ao falar de nossas pes-quisas e reflexões sobre os temas que nos são caros.

Mas é quando trata do tema “A serpente e o monoteísmo”que Reimer (2009, p. 103-26) nos faz viajar mais profundamente na trajetória que nos levou à busca pela experiência mística. Encontrar a Unidade com o Todo é terreno proibido e pecaminoso para o monoteísmo.

Tanto Jesus Cristo como al Hallaj (um dos grandes místicos sufis e mártir do Islã), co-meteram o imperdoável pecado de se sentirem e afirmarem Unos com Deus. Ao afirmar, como aparece em João 10:13, “Eu e o Pai somos Um”, Jesus incorreu

no crime de blasfêmia perante a crença judaica, e este pecado, entre ou-tros que os judeus identificaram em sua doutrina e comportamento, causou sua trágica morte. Os seguidores dos ensinamentos de Jesus transformaram essa frase na justificativa para a recusa de outros caminhos de vida espiri-tual, à medida que consideraram que Jesus foi único e se tornou também o único caminho.

Na história do cristianismo, essa perspectiva da exclusividade da experiência de Jesus, também se tornou argumento para a perseguição daqueles que buscaram, mais do que seguir as doutrinas, seguir os passos do Mestre com o intuito de alcan-çar a experiência da Unidade. Muitos foram acusados e perseguidos por causa da heresia de procurarem uma compreensão mística da vida de Jesus e de seus ensinamentos, afastando-se das doutrinas oficiais.

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também pela crucificação, por ter afirmado “Eu sou Deus [...] Eu sou o Real” (CAMPBELL, 2008b, p. 365).

O drama vivido por Jesus é por demais conhecido e reverenciado no Ocidente, mas as palavras de al Hallaj durante seu suplício – citadas por Campbell (2008b, p. 365) –, aprofundam ainda mais a percepção dessa experiência da Unidade com Deus, pela qual não há como não “morrer”:

E estes Teus servos que estão reunidos para me matar, em ardor por Tua religião e com desejo de conquistar Teu favor, perdoa-os, ó Senhor, e tem misericórdia deles. Porque em verdade, se Tu tivesses revelado a eles o que Tu me revelaste, eles não teriam feito o que fizeram. E se Tu tivesses ocultado de mim o que Tu ocultaste deles, eu não sofreria esta tribulação. Glória a Ti no que quer que fa-ças e gloria a Ti qualquer que seja a Tua vontade!

Para Campbell (2008a; 2008b), assim como para Reimer (2009), o tema da serpente é fundamental para compreender muitos dos preconceitos que são marcantes no monoteísmo, entre eles o que rejeita a experiência mística.

Reimer expõe em seu texto a “luta” para que a crença monoteísta entre os judeus preva-lecesse sobre as demais divindades do contexto cananeu/mesopotâmico. Para o autor: “Quem formulou o texto [Gênesis 3] viu a concorrência a YHWH como negativa; promove a sua tabulação por meio da simbólica do mal, crista-lizada na figura da serpente” (REIMER, 2009, p. 122).

Para Reimer, nessa formulação dos autores de Gênesis 3, a busca pelo conhecimento recebe uma conotação totalmente negativa, qualificada na punição imposta ao primeiro homem e a primeira mulher, devido ao depois denominado “pecado original”.

O desenlace mais profundo na narrativa mítica é indicado no final do texto com a expulsão do homem e da mulher do jardim. Antes, porém, há ainda a menção de que, com a ação da transgressão das ordens de YHWH, o ser humano se tor-nou sábio como Deus, conhecedor do bem e do mal (v. 22). Por isso, é lançado fora do jardim para “lavrar a terra de que fora formado”, isto é, para se dedi-car à sua função principal de cultivador da terra. Com este desenlace, há uma condenação da busca da sabedoria. Na ótica de quem formula o enredo mítico imaginário, a autonomia e o conhecimento não deveriam ser ‘democratizados’, mas restritos a YHWH ou a quem se expressa por ele (REIMER, 2009, p. 120).

Reimer, nesse ponto da reflexão, não fala especificamente da experiência mística, mas conclui que a construção desse texto pelos “produtores da narrativa” (REI-MER, 2009, p. 124), tem por intuito não apenas defender a crença em YHWH

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como a principal entre os habitantes de Israel, mas simbolizar na imagem da serpente “todas as formas religiosas desviantes possíveis” (p. 124), indicando a partir desse simbolismo “as dimensões do mal fora de YHWH e fora do ser humano” (p. 125). Ao negativar dessa forma todas as experiências espirituais que não estivessem de acordo com o credo monoteísta, o texto bíblico também colocou sob o signo do “mal” toda e qualquer busca de conhecimento e de experiência espiritual fora dos parâmetros considerados corretos pelas lide-ranças religiosas que se colocaram, em todas as épocas, como intérpretes da “vontade” de Deus. Isso ocorreu e ocorre em todas as correntes monoteístas. Essa percepção de Reimer sobre a interpretação negativa da passagem de Gênesis 3

também é compartilhada por Eliade (2010). Este autor propõe que essa pas-sagem está relacionada aos mitos mesopotâmicos mais antigos. “O cenário”, diz Eliade (2010, p. 166), “lembra um símbolo mitológico muito conhecido: a deusa nua, a árvore milagrosa e seu guardião, a serpente”. Entretanto, ao contrário do triunfo do herói que se apodera do símbolo da vida, o relato do Gênesis apresenta Adão como vítima, constituindo, como afirma Eliade, uma “imortalização malograda”. Ele continua:

[...] a serpente do Gênese afinal teve sucesso no seu papel de “guardiã” de um símbolo de vida ou de juventude. Mas esse mito arcaico foi radicalmente modi-ficado pelo narrador bíblico. O ‘fracasso iniciatório’ de Adão foi reinterpretado como uma punição amplamente justificada: sua desobediência denunciava seu orgulho luciferino, o desejo de assemelhar-se a Deus. Era o maior pecado que a criatura poderia cometer contra seu Criador (ELIADE, 2010, p. 166)

Na continuidade da narrativa, esse pecado original torna-se a razão de todos os pecados e desventuras da humanidade, começando pelo trágico episódio do assassinato de Abel (pastor) por Caim (agricultor).

Campbell (2008b, p. 95) vê outro aspecto significativo na interpretação dessa narrativa do Gênesis. Esse autor mostra que essa narrativa é uma inversão de um mito agrário arcaico no qual as oferendas do agricultor são escolhidas e não as do pastor. Campbell afirma que o mito foi modificado “para elevar os hebreus so-bre os povos da terra mais antigos: o povo de Canaã era agricultor, os heso-breus, pastores de ovelhas”. A divindade prefere os hebreus (Abel – pastor) sobre os povos que habitam a região que será tomada (Caim – agricultor).

Para Campbell, o caso de Caim e Abel é mais um dos aspectos do que chama “dissociação mítica” (2008b, p. 96), no qual “Deus e seu mundo, imortalidade e mortalidade, permanecem separados na Bíblia”, a partir do momento em que a “Árvore do Conhecimento” e a “Árvore da Vida” são separadas, sendo que em outras mito-logias elas constituem uma única árvore e seu fruto é acessível ao homem.

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Ele conclui:

A razão da rejeição ocidental a essa doutrina – ou talvez o medo de compreen-dê-la – é que nossa ideia de religião, baseada no reconhecimento de um Criador distinto de sua Criatura, é fundamentalmente ameaçada por qualquer reconhe-cimento de divindade, não apenas presente no mundo, mas inerente em sua subs-tância (CAMPBELL, 2008b, p. 97).

Voltando ao texto de Gênesis 3, em outro livro, Campbell (2008a) propõe que, da mes-ma região e do mesmo conteúdo mítico original – “o mito comum do um que se tornou dois” (CAMPBELL, 2008a, p. 17) – Oriente e Ocidente construíram duas mitologias opostas “sobre o destino e virtude humanos” (p. 17).

Na versão encontrada na Índia, Deus – o Si-Próprio – se divide em dois e se torna ma-cho e fêmea, repetindo essa mesma divisão sucessivamente para formar toda a criação, “de maneira que tudo é manifestação daquela única substância divina onipresente” (CAMPBELL, 2008a, p. 18).

Na versão que prevaleceu no Ocidente “Deus e homem, desde o início, são distintos” (CAMPBELL, 2008a, p. 18) e estão intrinsecamente separados. Nessa pers-pectiva, “o propósito do conhecimento não pode ser contemplar Deus aqui e agora em todas as coisas; pois Deus não está nas coisas. Deus é transcendente” (CAMPBELL, 2008a, p. 19). O propósito do conhecimento é “conhecer essa relação de Deus com sua criação” e não viver essa relação direta com o Deus imanente, presente em toda criação.

Para Campbell (2008a, p. 17), os sábios do Ocidente acolheram a ideia de que os seres humanos apenas comeram do fruto do conhecimento do bem e do mal, sendo que os sábios do Oriente acolheram a ideia de que os seres humanos também comeram do fruto da imortalidade. Essas duas árvores, que em Gênesis 3 apa-recem separadas, constituem uma mesma árvore com dois grandes ramos. Essa diferença de interpretação determinou que o mundo, para as crenças construídas

a partir da raiz monoteísta, fosse percebido como o local de um conflito cós-mico entre o bem e o mal, cuja história se encerrará no dia do “Senhor”, ou da vitória do bem.

Para as crenças constituídas no Oriente, o conflito entre o bem e o mal é ilusório, pois à medida que o ser humano compreende que Deus esta presente em si mesmo e em tudo que existe, esse conflito imediatamente se encerra, gerando a liber-tação da ilusão do tempo e do espaço (CAMPBELL, 2008a, p. 16-21).

Descobrindo-O em cada ser, os sábios, Ao deixarem este mundo, são imortais.

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Os sábios que O reconhecem como estando em si mesmos; Eles, e não outros, conhecem a bem-aventurança eterna.

(Svetasvatara Upanisad apud CAMPBELL, 2008b, p. 96)

Essa também é a posição expressa por Zimmer (2008), ao comparar as experiências espirituais estimuladas pelo pensamento do Ocidente e do Oriente. No pensa-mento ocidental, ele identifica o foco da vida espiritual na história e – dessa forma – em tudo que é transitório, que se desfaz no tempo.

A espera por uma transformação histórica, uma vitória do bem sobre o mal que precisa acontecer no tempo, fortalece o ego que se sente separado de Deus e prende o ser humano na ilusão do tempo e do espaço. Já no pensamento indiano – que é o objeto do estudo de Zimmer – o foco é a transcendência do tempo e do espaço pela percepção de uma realidade que está além de todas as formas, mas que está presente em todas as formas.

No entender desse autor:

De acordo com o pensamento e a experiência da Índia, o conhecimento das coisas impermanentes não conduz a uma atitude realista, pois estas coisas ca-recem de substancialidade, peca-recem. [...] As formas fenomênicas são, por natu-reza, falazes e ilusórias. Quem nelas se apoia encontrará dificuldades. Elas não passam de partículas de uma grande ilusão universal manobrada pelo mágico esquecimento do Eu, sustentada pela ignorância e prolongada pelas paixões enganosas. [...] Encontra-se implícita em tal proposição a base para uma mu-dança de interesse, não apenas nos meios e objetivos das pessoas mundanas, mas também nos ritos e dogmas da religião destas criaturas iludidas. O criador mitológico, o Senhor do Universo, já não mais importa. Somente a consciência introvertida, voltada e dirigida ao âmago da própria natureza do sujeito, alcan-ça aquela linha fronteirialcan-ça onde os acidentes transitórios encontram sua fonte imutável. E tal percepção pode finalmente guiar a consciência para além da fronteira, fazendo-a fundir-se – perecer e tornar-se imperecível – no substratum onipresente de toda substância. Assim é o Eu (átman), fonte última, mantene-dora e perdurável dos seres, doador de todas as manifestações peculiares, das mudanças das formas e desvios do estado verdadeiro; são os assim chamados vikara: transformações e evoluções da manifestação cósmica. O sábio descobre as causas do que aqui é exposto, ultrapassando o estágio do mero envolvimento, não pela glorificação e submissão aos deuses, mas pelo conhecimento, o conhe-cimento do Eu (ZIMMER, 2008, p. 25).

É importante acrescentar aqui que na própria Índia esse conflito entre o sentido da existência histórica do ser humano e o sentido da busca pela libertação dessa

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prisão foi objeto de uma profunda reflexão, originando o texto sagrado que acabou por se tornar central dentro do contexto do pensamento espiritual in-diano: o Bhagavad Gita. Eliade (2011, p. 215, grifo do autor) assim define a mensagem desse texto:

Traduzido em termos familiares aos ocidentais, o problema que se enfrenta na Gita é o seguinte: como resolver a situação paradoxal criada pelo duplo fato de que o homem, de um lado, se encontra no tempo, é devotado à história, e, de ou-tro, sabe que será “condenado” caso se deixe esgotar pela temporalidade e por sua própria historicidade; que, por conseguinte, deve a qualquer preço encon-trar no mundo uma via que desemboca num plano transhistórico e atemporal?

Neste belíssimo tratado sobre a o sentido da existência humana, o autor expõe, a partir do diálogo entre o avatar Krishna e o príncipe Arjuna, o significado da história e do agir histórico. Cada ser humano ‘encarnado’ tem seu dharma e seu karma, isto é, suas obrigações para com a vida e seus desafios existenciais estão con-dicionados pelas suas singularidades históricas e culturais (família, religião, país, profissão, condição social, etc.).

Diante do fato histórico exemplar, representado pelo desafio vivido por Arjuna, jovem rei que enfrenta o desafio de ter sido injustamente destronado e que está pres-tes a enfrentar uma batalha decisiva contra seus irmãos de sangue (pessoas da mesma família e do mesmo povo), que são, entretanto, os usurpadores do tro-no, o avatar Krishna (na situação humana de conselheiro de Arjuna) proclama sua doutrina de salvação conhecida como “Yoga da ação desinteressada” ou “Karmayoga”.

Em razão do desespero de Arjuna que se sentia incapaz de distinguir qual seria a con-duta correta (dharma) diante da necessidade de enfrentar e, talvez, matar seus irmãos, Krishna expõe o sentido e o significado da existência humana e da atitude a ser tomada quando se compreende a dimensão da presença divina na história:

Andas triste por algo que tristeza não merece – e tuas palavras carecem de sa-bedoria. O sábio, porém, não se entristece com nada, nem por causa dos mortos, nem por causa dos vivos. Nunca houve tempo em que eu não existisse, nem tu, nem algum desses príncipes – nem jamais haverá tempo em que algum de nós deixe de existir em seu Ser real. O verdadeiro Ser vive sempre. Assim como a alma incorporada experimenta infância, maturidade e velhice dentro do mes-mo corpo, assim passa também de corpo a corpo – sabem os iluminados e não se entristecem. Quando os sentidos estão identificados com objetos sensórios, experimentam sensações de calor e de frio, de prazer e de sofrimento – essas

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coisas vêm e vão; são temporárias por sua própria natureza. Suporta-as com paciência! Mas quem permanece sereno e imperturbável no meio de prazer e sofrimento, somente esse é que atinge a imortalidade. O que é irreal não existe, e o que é real nunca deixa de existir. Os videntes da Verdade compreendem a íntima natureza tanto disto como daquilo, a diferença entre o Ser e o parecer. Compreende como certo, ó Arjuna, que indestrutível é aquilo que permeia o Universo todo; ninguém pode destruir o que é imperecível, a Realidade. Perecí-veis são os corpos, esses templos do espírito – eterna, indestrutível, infinita é a alma que neles habita. Por isso, ó Arjuna, luta! (BHAGAVAD GITA, 2004, p. 21-2, cap. 2, 11-18).

A ética contida nessa afirmação de Krishna, cujo fundamento é a continuidade da ação, mas com a consciência de que o divino permeia tudo, foi interpretada tanto no sentido literal como no simbólico. No literal entende-se que o homem, movido pelo amor à verdade e consciente de ser uma manifestação da presença divina, deve agir sempre, fazendo inclusive a guerra – guerra justa –, quando o desafio que se lhe apresenta representar uma ameaça à correta ordem da existência. Essa ação, porém, deve ser sempre consciente de que o homem é instrumento e os frutos das ações não devem ser constituídos em objetivos finais.

No sentido simbólico, a luta de Arjuna contra os usurpadores é a luta que ocorre no interior de cada ser humano, aquela do Eu verdadeiro cujo reino foi usurpado pelo ego. Nessa luta, o homem deve vencer os inimigos internos representados pelos impulsos dos sentidos físicos, pela mente e pelas emoções egoistas, pois a vitória sobre os mesmos o leva a atingir a consciência plena sobre a verdade da existência.

Com essa mensagem, o Gita propõe que, para se libertar da transitoriedade do tempo e da história, não é necessário abandonar tudo e seguir o caminho ascético, mas viver corretamente sua experiência histórica. Nas palavras de Eliade (2011, p. 215, grifo do autor), citando o Gita:

Aquele que por toda parte me vê, e vê todas as coisas em mim, eu nunca o aban-dono e nunca sou por ele abandonado. Aquele que, tendo se fixado na unidade, me adora, a mim que habito em todos os seres, esse iogue habita em mim, seja qual for sua maneira de viver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trazidas por Reimer e pelos autores citados, essas reflexões expõem tanto a distância como a proximidade das experiências espirituais do Ocidente e do Oriente. Distância quando estão em evidência as doutrinas e as sistematizações

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cons-truídas pelos líderes religiosos. Proximidade quando o objetivo final de toda a busca espiritual se dirige ao contato direto com Deus – qualquer que seja o seu nome e sua forma, ou a ausência de ambos.

Nessa busca, como diz Campbell (2008c, p. 66), perde o sentido toda e qualquer clas-sificação:

A ideia é a de que o mistério supremo do universo, o ser supremo – se podemos chama-lo assim –, está além do raciocínio, além de todo o conhecimento hu-mano. Está além até das categorias do pensamento. Não faz sentido perguntar: “É um ou são muitos? É masculino ou feminino? É bom ou mau?” Essas são categorias de pensamento. Tampouco faria sentido perguntar: “É ou não é?” Ser e não ser também são categorias de pensamento. Ele existe (ou não existe) inteiramente além de todo pensamento. Ele transcende todas as categorias. Se-ria indelicado perguntar, como perguntamos: “O poder divino é amoroso, mise-ricordioso, justo? Ama essas pessoas mais que aquelas? Ele me ama?

Reimer (2009, p. 88), num dos momentos luminosos do seu livro, remete a reflexão so-bre o monoteísmo para o campo das tradições místicas, quando cita poema do místico do Islã Jalal ud-Din Rumi, que consegue – segundo ele – “expressar a tensão dialética entre a vontade da representação iconográfica por parte do fiel e a constante reticência e ou negativa de Deus em se deixar prender em ima-gens”. Este poema – que transcrevo aqui – pode ser lido como uma das belas expressões da experiência mística no interior da tradição monoteísta.

Segura o manto de seus favores, pois ele logo desaparecerá. Se o retesa como a um arco, ele escapará como flecha. Vê quantas formas ele assume, quantos truques ele inventa. Se está presente em forma, então há de sumir pela alma. Se o procuras no alto do céu, ele brilha como a lua no lago; Entras na água para captura-lo e de novo ele foge para o céu. Se o procuras no espaço vazio,

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lá está, no lugar de sempre; Caminhas para este lugar e de novo ele foge para o vazio. Como a flecha que sai do arco,

como o pássaro que voa da tua imaginação, O absoluto há de fugir sempre

do que é incerto [...]

Ele te escapará à menor tentativa de fixar sua forma numa imagem: A pintura sumirá da tela,

os signos fugirão de teu coração.

Para completar este meu diálogo com Reimer e também expressar minha gratidão pela luminosa experiência que a leitura de seu livro me proporcionou, cito outro poema do mesmo Rumi, que no meu entender, expressa esse prodigioso en-contro místico entre o Ocidente e Oriente.

Toda forma que vês

tem seu arquétipo no mundo sem-lugar. Se a forma esvanece, não importa, permanece o original.

As belas figuras que viste,

as sábias palavras que escutaste, não te entristeças se pereceram. Enquanto a fonte é abundante, o rio dá água sem cessar.

Por que te lamentas se nenhum dos dois se detém? A alma é a fonte,

e as coisas criadas, os rios.

Enquanto a fonte jorra, correm os rios. Tira da cabeça todo o pesar

e sorve aos borbotões a água deste rio. Que a água não seca, ela não tem fim. Desde que chegaste ao mundo do ser,

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Primeiro, foste mineral; depois, te tornaste planta, e mais tarde, animal.

Como pode ser isto segredo para ti? Finalmente foste feito homem, com conhecimento, razão e fé.

Contempla teu corpo – um punhado de pó – vê quão perfeito se tornou!

Quando tiveres cumprido tua jornada, decerto hás de regressar como anjo;

depois disso, terás terminado de vez com a terra, e tua estação há de ser o céu.

Passa de novo pela vida angelical, entra naquele oceano,

e que tua gota se torne mar,

cem vezes maior que o Mar de Oman. Abandona este filho que chamas corpo e diz sempre “Um” com toda a alma. Se teu corpo envelhece, que importa? Ainda é fresca tua alma.

INEFFABLE AND “ALL NAMES AND FORMS”: DIALOGUE ON THE MYSTICAL EXPERIENCE WITH HAROLDO REIMER

Abstract: this paper is a dialogue on the mystical experience from reading the book

of Harold Heimer – “Ineffable and Formless “ (2009) – and other books that provide elements for reflection on the same subject. The goal is to understand the rapprochement between the West and the East in the field of mysticism.

Keywords: Mystical experience. Haroldo Reimer. West and East.

Notas

1 Na perspectiva do Hinduísmo não é possível compreender sem experimentar, o que não significa que se deva experimentar tudo. Um exemplo básico é a meditação: não se pode compreender o que é meditação apenas pela explicação das técnicas, é preciso praticar e experimentar a meditação para compreendê-la.

(15)

2 Compreendo aqui a busca pela verdade não apenas no sentido da ontologia, mas também no sentido que a procura pela experiência direta (conforme apresentamos na primeira nota) direciona: a verdade da meditação só pode ser alcançada meditando e pode não ser a mesma verdade para todos que praticam.

Referências

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosófi-cos. Tradução, Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BHAGAVAD GITA. São Paulo: Martin Claret, 2004.

CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: mitologia oriental. Tradução Carmem Fischer. 6. ed. São Paulo: Palas Athena, 2008a.

CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: mitologia ocidental. Tradução Carmem Fischer. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2008b.

CAMPBELL, Joseph. Mito e transformação. Tradução Frederico N. Ramos. São Paulo: Ágora, 2008c.

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. volume I: da Idade da Pedra aos mistérios de Elêusis. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. volume II: de Gautama Buda ao triunfo do cristianismo. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. REIMER, Haroldo. Inefável e sem forma: estudos sobre o monoteísmo hebraico. São Leopol-do: Oikos; Goiânia: Editora da UCG, 2009.

RUMI, Jalal ud-Din. Poemas Místicos. Seleção e tradução de José Jorge de Carvalho. São Paulo: Attar Editorial, 1996.

ZIMMER, Heinrich Robert. Filosofias da Índia. 4. ed. Tradução Nilton Almeida Silva, Cláudia Giovani Bozza e Adriana Facchini de Césare; versão final Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2008.

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