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A legitimidade ativa na tutela coletiva de direitos

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Academic year: 2021

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A LEGITIMIDADE ATIVA NA TUTELA COLETIVA DE DIREITOS ACTIVE LEGITIMATION IN PROTECTION OF COLLECTIVE RIGHTS

Gustavo de Souza Campos Leão RESUMO: Este trabalho estudará aspectos processuais da tutela coletiva de direitos, enfocando-se, para tanto, os aspectos radicais da legitimação ativa na defesa daqueles. Nesse intento, buscar-se-á diferenciar as principais características do sistema de legitimação contido no Código de Processo Civil e do sistema contido no microssistema de tutela coletiva. Intenta-se destacar um ponto fulcral na tutela coletiva de direitos: a marcante presença de interesse público primário envolvido nessas ações. Tem-se como escopo vislumbrar os princípios da ciência jurídica que fundamentam a insurgência da tutela coletiva de direitos, sendo essa análise radical à consecução dos objetivos traçados nessa pesquisa. Outrossim, examina-se o momento histórico em que insurgem as legislações atinentes à tutela coletiva, perscrutando-se as bases político-sociais desta realidade.

PALAVRAS-CHAVE: Tutela Coletiva de Direitos – Legitimidade

ABSTRACT: This work will examine the procedural aspects of the protection of collective rights, focusing the essencial points of the active legitimation. It will be differentiated the main features of the system of legitimation contained in the Code of Civil Procedure and the system of protecction of collective rights. The intention is to highlight a focal point in the protection of collective rights: the strong presence of primary public interest involved in these actions. The main method used is the deductive, through which makes an analysis of formal sources of law. It has been scoped to discern the principles of legal science that underlie the insurgency of the protection of collective rights. Moreover, it examines the historical moment in that gripe laws relating to collective protection, probing the foundations of political and social reality.

KEY-WORDS: Protection of collective rights – Legitimation

SUMÁRIO: 1 – Considerações Iniciais; 2 – O sistema de legitimação do Código de Processo Civil; 3 – A legitimidade ativa na tutela de direitos coletivos e os diferentes posicionamentos doutrinários brasileiros; 4 – Técnicas de legitimação no ordenamento jurídico do Brasil; 5 – Características da legitimidade coletiva no direito comparado; 6 – Considerações Finais; 7 – Referências Bibliográficas. 1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nas últimas décadas, extensa produção científica foi desenvolvida com o objetivo de compreender-se o crescente grau de interferência do Poder Judiciário nas relações políticas e sociais. Esse contexto é caracterizado genericamente por

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alguns teóricos como uma verdadeira “judicialização” das relações , identificando-se um crescente e efetivo “protagonismo social e político do sistema judicial e do primado do direito” .

Em uma abordagem sociológica, Mauro Cappelletti destaca que a causa mais importante para essa mudança de perspectiva foi o novo papel do direito e do Estado no wellfare state. Segundo o Autor, o crescimento do papel do Estado tornou o aparelho administrativo mais complexo, o que teve como consequência o aumento das responsabilidades do Judiciário. O controle da constitucionalidade das leis seria um novo aspecto dessa nova responsabilidade .

Nos países em que essas transformações foram mais efetivas, em especial os que adotam a Common Law, o Poder Judiciário se tornou um “terceiro gigante”, o que significou uma importante tentativa de construção de um eficaz sistema de controles e contrapesos entre os poderes . Outro efeito dessas novas funções é a maior relevância do papel do juiz na proteção dos interesses coletivos e difusos. Por serem direitos mais vagos, fluídos ou programáticos, necessitam de maior ativismo e criatividade do juiz para interpretá-los .

Por outro lado, Antoine Garapon destaca que o aumento da litigância processual está ligado a um fenômeno social provocado por dois processos principais, que se intensificam após o fim da Guerra Fria. Primeiramente, destaca a consolidação da condição do individualismo capitalista, que resultou no rompimento dos laços sociais anteriores, como família, igreja, estado provedor etc.

Outrossim, complementando o acima exposto, ressalta a existência de um processo de contratualização das relações sociais. O que era controlado por relações interpessoais passa a ser regido por contrato jurídico . Realçando as consequências desses processos, o Autor argumenta:

A sociedade democrática desfaz os laços sociais e os refaz socialmente. Ela é obrigada, hoje, a fabricar o que antigamente era outorgado pela tradição, pela religião ou pelos costumes. Forçada a 'inventar' a autoridade, sem sucesso, ela acorre então para o juiz .

Garapon vislumbra de maneira positiva a mudança da justiça, como símbolo de moralidade pública e dignidade democrática, todavia alerta que o mundo político não deve ser substituído pelo jurídico. Assim, tais mudanças não significam uma transferência de soberania, mas uma mudança profunda na democracia. A justiça não conquistou controle sobre os demais poderes, teve, na verdade, seu âmbito de atuação aumentado pelo próprio mundo político .

Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, aduz ser necessário analisar, para a compreensão dessa situação, as especificidades de cada país, tais como situação sócio-econômica e posição geopolítica no cenário internacional. Todavia, destaca a possibilidade de identificar-se, de um modo geral, o protagonismo do judiciário ligado ao desmantelamento do Estado intervencionista, seja o Estado-desenvolvimentista dos países periféricos, seja o Estado-providência, relativamente mais avançado e marcante em países europeus .

Com base nessa causa principal, destaca que o protagonismo se desenvolve por duas vias distintas. De um lado, os novos modelos econômicos se assentam nas regras de mercado e em contratos privados. Para que estes sejam cumpridos,

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65 garantindo-se estabilidade aos negócios, necessita-se de um judiciário atuante e independente. Pela outra via, identifica que a maior participação do judiciário resulta da incapacidade de a administração, espontaneamente, efetivar direitos e garantias sociais:

O que significa dizer que a litigação tem a ver com culturas jurídicas e políticas, mas tem a ver, também, com um nível de efectividade da aplicação dos direitos e com a existência de estruturas administrativas que sustentam essa aplicação .

Com especial enfoque ao caso brasileiro, Leandro Aguiar pontua que, ao longo do século XX, diversas transformações políticas, econômicas e sociais puderam ser percebidas. Especificamente em relação às mudanças sociais, o mencionado autor destaca que, em razão do crescimento demográfico nos centros urbanos, como resultado do desenvolvimento industrial, as relações sociais intensificaram-se, merecendo realce as relações de consumo. Estas relações, afirma, contribuíram para o surgimento de direitos e interesses até então inexistentes, gerando como conseqüência conflitos coletivos ou conflitos de massa. Em outra abordagem, Paulo Affonso Leme Machado dispõe que as transformações ocorridas no período de redemocratização, que culmina no fim da ditadura militar no Brasil, propiciaram a intensificação dos debates referentes à afirmação de um direito ao meio ambiente. O mencionado autor destaca que a Constituição de 1988, em conseqüência desse contexto, foi a primeira na história brasileira a utilizar a expressão “meio ambiente”. Nesse cenário de universalização de direitos individuais, sociais e difusos, o art. 225 do texto constitucional preocupa-se em harmonizar e integrar a preservação ambiental à salvaguarda da dignidade da pessoa humana.

Em meio a esse objetivo, a sociedade passa a se preocupar com a ampliação da abrangência da norma jurídica, não particularizando quem tem direito ao meio ambiente. Assim, insere-se aquele na categoria de direito difuso, o qual se irradia para uma coletividade indeterminada .

Analisando o caso brasileiro, merece destaque, ainda, o trabalho desenvolvido por Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos. Segundo esses autores, no caso brasileiro, deve-se realçar o papel desempenhado pelo surgimento do Direito do Trabalho, o qual conferiu um caráter público às relações da esfera privada .

Tal fato introduziu um argumento de justiça no âmbito judicial, o que inexistia em um contexto anterior, marcado pelo “contratualismo liberal”. Com isso, o tema da justiça social deslocou-se da sociedade civil e do Parlamento, passando a fazer parte, também, da atuação do poder judiciário .

Como se pôde perceber, as diferentes linhas analíticas citadas identificam diversos acontecimentos históricos como essenciais à mudança do papel do Judiciário no cenário político-social. Embora haja divergência quanto às causas determinantes, é assente que essa nova perspectiva, para todos os autores mencionados, evidencia uma litigação sem precedentes, fazendo com que o Judiciário se depare com desafios nunca antes enfrentados.

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Em especial, merecem consideração dois problemas estruturais advindos: houve um incremento exponencial do número de causas levadas ao judiciário, principalmente as relativas ao que se denomina litigação de massa, de cunho eminentemente econômico/negocial. Com isso, os sistemas judiciais passaram a não comportar a demanda, resultando em morosidade e ineficiência da prestação jurisdicional. Sobre o tema, Boaventura destaca:

Em Portugal, a situação atingiu tal gravidade que alguns tribunais foram obrigados a fazer uma contingentação da entrada de processos, isto é, determinaram que uma determinada empresa não poderia intentar mais de um certo número de acções judiciais por semana. Veja o paradoxo: enquanto se luta para que os cidadãos tenham mais acesso aos tribunais; nestes casos, o que se procura é reduzir o acesso. É caricatural como os sistemas judiciais podem ser afogados em processos .

Por outro lado, percebe-se uma ampliação dos direitos e garantias consagrados na ordem constitucional, bem como a ampliação das estratégias e instituições para a efetivação desses direitos. Como exemplo disso, no Brasil, a partir da Constituição de 1988, houve uma extensão do rol dos legitimados para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, maior viabilização e fomento da defesa judicial de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos e promoção da autonomia institucional do Ministério Público, consagrado como instituição fundamental na consecução de um estado verdadeiramente democrático .

Acerca de uma maior utilização de instrumentos de tutela coletiva, cumpre destacar que esse fato resulta na estruturação de um microssistema de tutela de direitos coletivos. Esse novo sistema possui uma base legislativa e principiológica própria, afastando-se do tradicional sistema processual estruturado no Código de Processo Civil.

Este artigo abordará como essa desvinculação do regramento processual tradicional pode ser percebida no estudo da legitimação para a propositura de ações que versam sobre direitos coletivos. Para tanto, inicialmente, demonstrar-se-ão algumas características principais do regramento contido no Código de Processo Civil e, posteriormente, os aspectos gerais do sistema de legitimação para a tutela coletiva de direitos presente no ordenamento jurídico brasileiro.

2 – O SISTEMA DE LEGITIMAÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A análise da história da humanidade demonstra que, gradualmente, a atuação do Estado substituiu a autodefesa como principal meio de solução de conflitos sociais . Paulatinamente, o Estado fortaleceu-se, ao ponto de impor autoritativamente soluções aos conflitos de interesses dos particulares, surgindo o que se chama de jurisdição .

Contudo, como resultado de uma construção histórica, essa jurisdição tem como característica a inércia, precisando ser ativamente provocada para que atue diante de um caso concreto. Por meio dessa provocação, o sujeito exerce um direito

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67 (ou poder, para parte da doutrina) denominado ação, que terá como resposta estatal o exercício da função jurisdicional .

Embora o direito de ação seja assegurado a todos os indivíduos, estes não estão autorizados a levar a juízo qualquer pretensão acerca de qualquer objeto litigioso, conforme a legislação vigente. Exige-se a existência de um vínculo entre os sujeitos e a situação jurídica afirmada, do que surge a noção de legitimidade .

Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro tem como regramento básico o art. 6º do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Tendo como principal fundamento essa disposição legal, diversas são as classificações desenvolvidas para a análise do sistema de legitimação brasileiro, sendo a principal delas a que divide a legitimidade em ordinária e extraordinária .

A regra geral, ordinária, é a de que será legítimo à propositura da ação aquele que for o titular do interesse em conflito. Por outro lado, em situações excepcionais, extraordinárias, previstas em lei, permite-se que determinada pessoa ingresse em juízo, em nome próprio, na defesa de direito alheio .

2.1 – Legitimidade Ordinária

O Código de Processo Civil brasileiro, como se percebe em seus artigos 3º e 267, inciso IV, consagra a doutrina de Liebman acerca do direito de ação. Essa teoria define a ação como um direito subjetivo instrumental , de caráter abstrato, que independe da existência do direito material pretendido .

Para o referido autor, embora a ação seja um direito abstrato, isso não significa que seja absolutamente genérico. Deve referir-se, sempre, a um caso concreto, determinado e individualizado, sobre o qual se pretende a tutela jurisdicional . Assim, para que o direito de ação exista, é necessária a percepção de alguns requisitos constitutivos, denominados 'condições da ação', quais sejam: interesse de agir, legitimidade e possibilidade jurídica do pedido . A ausência de uma dessas condições, para Liebman, importa em carência de ação, impossibilidade de a atividade jurisdicional apreciar o mérito da demanda .

Todavia, conforme disposto anteriormente, há legitimação ordinária quando aquele que propõe a ação possui interesse no conflito. Para se aferir esse interesse, ou seja, para a verificação dessa hipótese de legitimação, é necessária uma análise, mesmo que não exauriente, da própria relação jurídica material sobre a qual se pretende a tutela jurisdicional .

Em razão disso, parte da doutrina entende haver uma aparente contradição na doutrina de Liebman, uma vez que a verificação das condições, que devem se fazer presentes para que o mérito da causa seja julgado, exige, justamente, uma análise prévia do próprio mérito da causa . Partindo-se dessa suposta contradição, Cíntia Teresinha Burharlde Mua argumenta que a teoria eclética tentou conciliar as concepções abstrata e concreta do direito de ação, as quais são, conforme pontifica, inconciliáveis. Ressalta que, na verdade, há grande intimidade entre a teoria de Liebman e a concepção concreta do direito de agir . Como conseqüência dessa tentativa de conciliação, a referida autora argumenta que acaba havendo, na

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concepção de Liebman, uma absoluta vinculação da ação processual ao direito material .

De tais apontamentos, percebe-se que o estudo da legitimidade ordinária no ordenamento jurídico brasileiro não se exaure com a simples análise dos dispositivos legais e da teoria que os fundamenta. É necessária uma breve digressão sobre as principais correntes que estudam o direito de ação, para que se possa melhor vislumbrar suas diferenças e seus reflexos no sistema de legitimação brasileiro.

Sem a pretensão de esgotar a riqueza dessa discussão, reputada por Fredie Didier Jr. como o principal objeto de pesquisa dos processualistas na fase de afirmação do processo civil , passa-se a abordar, de maneira genérica, algumas das principais concepções analíticas do direito de ação.

Em um primeiro momento histórico, merece destaque a definição de ação elaborada por Celso, que veio a ser consagrada nas publicações ordenadas pelo imperador romano Justiniano (529 a 534). Segundo Celso, a ação seria o direito de perseguir em juízo o que nos é devido, ou seja, tal definição traz a idéia de identificação da “ação” com o próprio direito subjetivo material . Assim, seria legítimo à propositura da ação quem teve seu direito lesado, sendo aquela verdadeira extensão deste direito substancial.

Essa concepção representou grande influência até meados do século XIX, fazendo-se presente, por exemplo, nos trabalhos de Savigny. Ficou conhecida com doutrina clássica, civilista ou imanentista da ação .

Nos anos de 1856 e 1857, a discussão acadêmica entre Windscheidt e Muther foi fundamental para o desenvolvimento do conceito de ação, distinguindo-a do direito lesdistinguindo-ado . A pdistinguindo-artir dessdistinguindo-as idéidistinguindo-as, pdistinguindo-assou-se distinguindo-a consdistinguindo-agrdistinguindo-ar distinguindo-a distinguindo-autonomidistinguindo-a do direito de ação, surgindo duas grandes correntes divergentes para tentar explicar a natureza jurídica desse direito autônomo: teoria do direito concreto à tutela jurídica e teoria do direito abstrato de agir .

Em 1885, Adolph Wach expôs a sua teoria do direito concreto à tutela jurídica. Para esse autor, a pretensão não está condicionada à existência de um direito subjetivo, existindo mesmo em casos em que não há direito. Exemplificando esta última hipótese, cita a chamada ação declaratória negativa, que não visa à manutenção ou proteção de um direito subjetivo .

Wach destaca a tutela jurídica como um direito público, dirigido ao Estado e contra o demandado. Todavia, verbera que só existe efetiva tutela quando houver proteção concreta, ou seja, só existe verdadeiramente o direito de ação, e consequentemente o exercício desse direito, quando a sentença for favorável . Para essa teoria, “a ação seria um direito público concreto (um direito existente nos casos concretos em que existisse direito subjetivo)” .

Segundo Ada Pellegrini, Antônio Carlos Cintra e Cândido Dinamarco, Oskar Von Bülow formulou modalidade dessa teoria da ação como direito autônomo e concreto . Para este autor, não se conhecendo o resultado da sentença, não há que se falar em direito a uma sentença favorável, nem na existência desse direito com base em fatos anteriores ao processo, uma vez que a sentença se funda na convicção do juiz, podendo não corresponder à realidade dos fatos .

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69 Ao contribuir para a consolidação da autonomia do direito processual em face do direito material, os estudos de Bülow são considerados como fundamentais para o surgimento de um direito processual como ramo autônomo da ciência jurídica. Nesse sentido, o famoso livro Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias, publicado em 1868, é tido como o principal marco no início da denominada fase científica do direito processual.

Conforme pontificam Ada Pellegrini, Antônio Carlos Cintra e Cândido Dinamarco, o grande mérito de Bülow não foi a criação da idéia de que existe uma relação jurídica processual, mas sim sistematizar essa relação, ordenando a conduta dos sujeitos do processo e suas ligações recíprocas . Destarte, o mencionado autor destacou a existência de um plano de relações de direito material, em que se discute o processo, e de um plano de direito processual, que é o continente em que se coloca aquela discussão.

A relação processual se distinguiria da material por três aspectos: 1 – seus sujeitos (autor, réu e Estado); 2 – seu objeto (a prestação jurisdicional); e 3 – seus pressupostos (pressupostos processuais). Dessa forma, Bülow pode ser identificado como o primeiro autor a visualizar os pressupostos processuais enquanto característica que explicita a autonomia da relação jurídica processual .

Em 1903, Chiovenda propõe a teoria da ação como direito potestativo. Segundo esse autor, a ação é um poder em face do adversário, ao qual este deve se sujeitar. Trata-se do poder potestativo de produzir a atuação da lei, que se exercita mediante uma declaração de vontade .

Para Chiovenda, a ação também não pressupõe um direito subjetivo, mas só existe direito de ação quando a sentença for favorável (ou seja, também segue uma linha concretista). Outrossim, trabalha com a idéia de condições da ação, que “serão condições para uma sentença favorável ao autor ”.

Cronologicamente antecedente à teoria do direito concreto de ação, a teoria do direito abstrato de agir tem como precursores Degenkolb e Plósz, os quais apresentaram suas teses nos anos de 1877 e 1880, respectivamente . Para esses autores, há ação mesmo nos casos em que a sentença julga improcedente a pretensão do autor. Portanto, trata-se de um direito abstrato, dirigido ao Estado, o qual, portanto, é o sujeito passivo desse direito .

Essa idéia teve profunda repercussão acadêmica, tanto que a concepção de ação como direito abstrato é considerada como a mais difundida entre os processualistas modernos . Nessa linha, merecem destaque os estudos de Carnelutti, que são didaticamente relacionados por Carlos Ramirez Arcila da seguinte forma:

I – A ação é um direito subjetivo processual das partes; II – Este direito é diferente do direito subjetivo material;

III – Para exercitar a ação, não é necessário ter o direito subjetivo material, pelo que pode exercitá-la qualquer cidadão;

IV – A ação não é um poder de obter uma sentença favorável, senão unicamente o poder de obter a decisão. A obrigação do juiz não é a de dar razão a quem peça, senão unicamente a quem tenha;

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V – A ação é diferente da pretensão. Aquela é uma relação; a pretensão é um ato, uma manifestação de vontade, é a exigência de subordinação de um interesse alheio a outro próprio;

VI – A ação não tem como sujeito passivo o adversário, senão o juiz ou, em geral, o membro do ofício a quem corresponde prover sobre a demanda proposta pela parte;

VII – A legitimação não é um requisito do sujeito da ação, necessário para que esta possa ter consequências jurídicas, senão um pressuposto dos atos processuais e, como tal, da pretensão; VIII – O interesse individual do autor é diferente do interesse da ação. O daquele está na solução favorável do litígio e o desta está na composição do litígio. O interesse da ação não é o interesse individual das partes, senão o interesse coletivo: o interesse da sociedade, de que os litígios sejam dirimidos mediante o exercício da ação. (grifos nossos)

Como dito anteriormente, embora a concepção de ação como direito abstrato seja a de maior ressonância hodiernamente, outras concepções foram desenvolvidas, as quais se diferenciam das correntes concretista e abstrativista ao ponto de serem chamadas de ecléticas . Dentre estas, pode-se inserir a Teoria das condições da ação de Enrico Tullio Liebman, cujos delineamentos básicos já foram traçados anteriormente.

Assim, com o estudo da evolução histórica do conceito de ação, percebe-se que a teoria de Liebman, consagrada no ordenamento jurídico brasileiro, é identificada como uma alternativa, uma proposta conciliatória entre as concepções concreta e abstrata do direito de ação. A adoção dessa teoria no Código de Processo Civil recebe inúmeras críticas, no sentido de que as condições da ação deveriam ser abolidas como categoria jurídica, ou de que só podem ser admitidas através da aplicação concomitante da Teoria da Asserção ou Prospettazione .

Segundo essa teoria, bastante difundida doutrinariamente , a análise das condições da ação deve restringir-se ao momento de prolação do juízo de admissibilidade inicial do procedimento. Verificando apenas as alegações do autor, independentemente de produção de provas, o juiz deve proferir o juízo acerca da existência das condições da ação. A correspondência entre as alegações e a realidade já seria um problema de mérito .

2.2 – Legitimidade Extraordinária

Em casos excepcionais, nos termos do artigo 6º do Código de Processo Civil, admite-se que a lei atribua legitimidade a quem não participe da relação jurídica de direito material discutida, ou seja, admite-se que um terceiro defenda, em nome próprio, direito alheio. Destarte, há legitimação extraordinária nos casos em que “não há correspondência total entre a situação legitimante e as situações jurídicas submetidas à apreciação do magistrado ”.

Justificando essa hipótese de legitimação, José Carlos Barbosa Moreira argumenta:

Esses casos, que são excepcionais, fundam-se quase sempre na existência de um vínculo entre as duas situações, considerado suficientemente intenso, pelo

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71 legislador, para justificar o fato de autorizar-se alguém, que nem sequer se afirma titular da 'res iudicium deducta', a exigir do juiz um pronunciamento sobre o direito ou estado alheio .

Segundo a classificação proposta por Barbosa Moreira, bastante difundida doutrinariamente, a legitimidade extraordinária se subdivide em subordinada e autônoma. Há legitimidade extraordinária subordinada quando, para a regularidade do contraditório, exige-se a presença do titular da relação jurídica material. Nessas hipóteses, o terceiro participa como assistente do legitimado ordinário .

Na legitimidade extraordinária autônoma, instaura-se o contraditório independentemente da participação do titular do direito litigioso. A presença do legitimado extraordinário é suficiente para a formação desse contraditório . Essa hipótese subdivide-se em exclusiva e concorrente.

Configura-se a legitimidade extraordinária autônoma exclusiva quando somente o legitimado extraordinário puder participar do processo como parte principal. Nesse caso, o legitimado ordinário poderá integrar o processo, somente, como assistente .

Por outro lado, há legitimação extraordinária autônoma concorrente nas situações em que mais de um sujeito de direito for autorizado a propor a ação . Para a formação do contraditório, não é necessário que figure o legitimado extraordinário, o legitimado ordinário ou ambos .

Essa hipótese de legitimação concorrente poderá, ainda, ser subdividida em subsidiária, quando o exercício da legitimidade extraordinária depender da inação do ordinariamente legitimado, ou primária, em que não há vinculação da legitimidade extraordinária à conduta do legitimado ordinário .

Esquematizando o que foi trabalhado acima, tem-se:

Um último ponto que merece destaque, e que será de grande relevância no estudo genérico da legitimidade do Ministério Público, desenvolvido na Seção 4, é a divergência acadêmica em relação aos termos legitimidade extraordinária e substituição processual. Majoritariamente, entende-se que todos os casos de legitimação extraordinária instrumentalizam-se por substituição processual. Com esse fundamento, defende-se que essas expressões podem ser utilizadas como sinônimos .

Todavia, há quem defenda uma concepção mais restrita, identificando a substituição processual como espécie do gênero legitimidade extraordinária. Nessa perspectiva, Cíntia Teresinha Burhalde Mua destaca:

Em linha de princípio, a substituição, na sua veia ontológica, é incompatível com o litisconsórcio, por uma razão: se figuram no processo o legitimado ordinário e o extraordinário, o segundo obviamente não substitui o primeiro, que participa do processo, como parte .

Nesses termos, tomando como base a classificação de Barbosa Moreira acima mencionada, essa corrente doutrinária pontua que ocorrerá substituição processual sempre que houver legitimação extraordinária autônoma exclusiva e em alguns casos excepcionais de legitimação extraordinária autônoma concorrente .

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3 – A LEGITIMIDADE ATIVA NA TUTELA DE DIREITOS COLETIVOS

E OS DIFERENTES POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS

BRASILEIROS

Como delineado ao longo dos itens 1.2 e 1.4, a regra contida no artigo 6º do Código de Processo Civil é fruto de uma construção histórica que tem como marcos o iluminismo e a Revolução Francesa. Em decorrência dos ideais liberais e individualistas advindos desse período, o direito de ação “passa a ser concebido como um direito de propriedade ”, tendo o indivíduo a total liberdade para participar do processo ou autorizar sua representação.

A partir do momento em que se desenvolvem os instrumentos de tutela de direitos coletivos, fundamentalmente marcados pela presença do interesse público na resolução dos conflitos, torna-se impossível uma simples aplicação das regras de legitimação tradicionalmente utilizadas. Passa a ser necessária uma redistribuição dos poderes processuais, antes concentrados no titular do direito subjetivo .

Tais afirmações são ainda mais relevantes quando se depara com algumas questões, que afastam a legitimação em ações coletivas, inclusive, da tese de legitimação extraordinária por substituição processual. Primeiramente, parte da doutrina entende que admitir que formações sociais tenham interesse e poder de movimentar o judiciário, em face de seus objetivos institucionais, geraria legitimação ordinária. Outrossim, argumenta-se que a legitimação prevista no Código de Defesa do Consumidor funda-se em um rol taxativo de legitimados, o que conotaria um caráter exclusivamente processual à legitimação, sem vínculo com o direito subjetivo material .

Com base nesse panorama, foram desenvolvidas, no Brasil, três principais correntes explicativas da legitimidade para a propositura de ações em uma perspectiva coletiva. Barbosa Moreira defende a tese da substituição processual (legitimação extraordinária), Kazuo Watanabe argumenta que, em alguns casos, há legitimação ordinária de entidades civis para a defesa de direitos supra-individuais, enquanto Nelson Nery sustenta haver legitimação autônoma para a condução do processo.

Para Barbosa Moreira, seguindo clássica lição de Arruda Alvim, o sistema brasileiro não prevê obrigatoriedade de disposição expressa e taxativa no texto legal para que haja autorização para uma legitimação extraordinária . A palavra 'lei', prevista no art. 6º do CPC, deve ser entendida como sistema. Assim, mesmo que não haja disposição expressa, com a simples menção ou com autorização legal contida em qualquer parte do ordenamento jurídico (como no caso do art. 513 da CLT), ter-se-ia abertura para a legitimação extraordinária .

Kazuo Watanabe, influenciado pelas doutrinas italiana e alemã, propõe a legitimação ordinária de entidades civis para a defesa de direitos supra-individuais, ligados aos fins associativos. Em alguns casos, a depender do objeto da ação, haveria legitimidade ordinária da formação social. Essa concepção parte de uma interpretação ampla do art. 6º do CPC e, na verdade, busca complementar a teoria de Barbosa Moreira, pois tem o intento de aumentar as alternativas para a legitimação coletiva no caso concreto .

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73 Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. advertem que a adoção desse posicionamento resultaria na necessidade de se investigar as finalidades estatutárias para a aferição da legitimação, o que poderia reduzir em grande quantidade a aplicação das ações coletivas. Por outro lado, verberam que a adoção dessa concepção não se justifica no Brasil, que possui uma realidade jurídica diferente da italiana e da alemã. Nestes países, a tese da legitimação ordinária desenvolveu-se para viabilizar a tutela coletiva, uma vez que não admitem a proteção de direitos de titularidade indeterminada .

Nelson Nery JR. e Rosa Nery, por outro lado, defendem a tese de legitimação autônoma, com o fundamento de que a legitimidade ativa deve ser analisada sob o prisma processual, dissociado da análise do direito material objeto do processo . Este também parece ser o entendimento de Marcelo Abelha . Para Fredie Didier e Hermes Zaneti Jr., essa teoria, embora relevante ao estudo, afasta a atual tendência de aproximação entre direito material e processo, desconsiderando o princípio da instrumentalidade. Portanto, não se encaixaria à atual realidade dogmática do país .

Pontuadas as três principais correntes doutrinárias desenvolvidas, cumpre destacar que, com a edição da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, o ordenamento jurídico brasileiro definiu expressamente quem são os titulares dos direitos coletivos e adotou a substituição processual (termo aqui utilizado como sinônimo de legitimação extraordinária), exclusiva e autônoma, como forma de legitimação para a defesa desses direitos. Essas características serão mais bem desenvolvidas no item seguinte.

4 – TÉCNICAS DE LEGITIMAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO DO BRASIL

O Brasil, diferentemente das experiências de outros países, que serão abordadas no próximo item, optou por instituir, expressamente em lei, um rol de legitimados para a propositura de ações coletivas . Em linhas gerais, identificam-se três técnicas de legitimação mais recorrentes na legislação brasileira:

1) Legitimação do particular (qualquer cidadão, por exemplo, na ação popular, Lei 4.717/1965); 2) legitimação de pessoas jurídicas de direito privado (sindicatos, associações, partidos políticos, por exemplo, mandado de segurança coletivo, art. 5º, LXX, da CF/888); ou, 3) legitimação de órgãos do Poder Público (MP, por exemplo, a ação civil pública, Lei 7.347/1985) .

Portanto, em regra, adotou-se uma legitimação por substituição processual, que se caracteriza por ser, segundo Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.: a) autônoma; b) exclusiva; c) concorrente; e d) disjuntiva , características estas abaixo explicitadas:

a) Autônoma: o legitimado extraordinário está autorizado a conduzir o processo sem a necessidade de participação do titular do direito, instaurando-se o contraditório mesmo sem a presença deste.

b) Exclusiva: apenas o legitimado extraordinário poderá ser parte principal do processo, admitindo-se a intervenção do titular do direito, apenas, como

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assistente litisconsorcial (essa hipótese de intervenção só é admitida na tutela de direitos individuais homogêneos) .

c) Concorrente: embora seja uma legitimação exclusiva e autônoma, são vários os legitimados extraordinários concorrentemente autorizados a interpor a ação coletiva.

d) Disjuntiva: apesar de concorrente, a legitimação é exercida independentemente da vontade dos demais co-legitimados . Gidi, sobre essa característica, destaca a possibilidade de formação voluntária de litisconsórcio .

Teori Albino Zavascki, ao estudar o sistema de legitimação no ordenamento jurídico brasileiro, pontifica a necessidade de se distinguir a legitimidade para a tutela de direitos transindividuais (difusos e coletivos) e da legitimidade para a defesa de direitos individuais coletivamente considerados (individuais homogêneos).

Quanto aos primeiros direitos, destaca que são tutelados por meio de substituição processual. Assim, o que era a hipótese extraordinária no sistema processual civil comum, passa a ser a regra ordinária de legitimação na esfera coletiva .

Todavia, faz a importante ressalva de que os legitimados expressamente na legislação não podem ser considerados aptos à propositura de qualquer demanda coletiva. O ente poderá demandar, somente, quando a causa for referente a direitos transindividuais ligados aos seus interesses institucionais . Esse aspecto será mais bem analisado posteriormente, ao se abordar a relação entre o interesse jurídico dos legitimados e o sistema de legitimação coletiva.

Já em relação aos direitos individuais homogêneos, o autor argumenta que o regime de legitimação deve ser considerado em dois momentos distintos do procedimento. Em um primeiro momento, em que se tem a ação coletiva propriamente dita, versando exclusivamente sobre a matéria efetivamente comum, homogênea, há um sistema de legitimação por substituição processual, nos moldes do que ocorre com os direitos transindividuais.

Em uma segunda fase, o cumprimento da sentença, em que se possibilita a habilitação das pretensões individuais para a execução, o regime de legitimação é o de representação. Nesse momento, o titular do direito postula, em nome próprio, o cumprimento, em seu favor, da sentença genérica de procedência .

4.1 – O interesse do substituto e o controle jurisdicional da legitimação

Como visto acima, a legitimação coletiva no Brasil tem como característica ser regulada por um rol expresso em lei, em que se confere a entes públicos, privados e despersonalizados, e até mesmo ao cidadão (ação popular), a legitimidade para atuar em nome próprio na defesa de direitos pertencentes a uma coletividade . Dessa característica de taxatividade, pode-se retirar o questionamento acerca de qual seria o interesse jurídico capaz fundamentar a presença de determinado ente no rol de legitimados.

De maneira similar ao reconhecimento do interesse do marido na proteção do bem dotal, nos termos do art. 289, inciso III, do Código Civil de 1916, ou do capitão do navio na defesa deste, a atribuição de legitimidade coletiva remonta a

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75 uma verificação histórica dos fatos da vida . Portanto, quando o legislador reconhece, por exemplo, legitimidade ao Ministério Público para a propositura de ações civis, deixa de lado qualquer análise acerca de interesses particulares deste ente, consagrando a representatividade social, a função social desempenhada por este organismo .

Assim, com base no princípio da instrumentalidade das formas e interesse jurisdicional no conhecimento do mérito no processo coletivo, mais importante que a aferição de um específico interesse processual ou material do substituto é a análise acerca da existência de interesse processual na solução do conflito , o que será realizado com base no estudo da relevância social da causa levada ao judiciário .

A possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir devem ser examinados em relação à situação jurídica litigiosa posta em juízo, não sendo relevante a informação sobre quem seja o substituto processual .

O magistrado, diante de uma ação coletiva, deve levar em consideração dois momentos distintos de cognição jurisdicional. Em um primeiro momento, ocorrerá a verificação da pertinência da instauração da demanda coletiva, face ao tipo de interesse envolvido e às circunstâncias do caso concreto. Somente em um segundo momento, realiza-se a verificação da legitimidade do substituto processual.

Quanto à primeira fase de cognição, imperioso mencionar, como verbera Maria Fátima Leyser, que a doutrina não estabelece um conceito preciso de interesse, por meio do qual se pudesse estabelecer diretrizes mais sólidas para a verificação da pertinência da demanda coletiva. Contudo, aquela autora dispõe ser possível afirmar que, sob o ponto de vista subjetivo, interesse pode ser entendido como uma necessidade, enquanto que, em um ângulo objetivo, representa uma utilidade .

Dessa forma, ao se falar em interesse público, este tanto coincidirá com o direito do Estado, pessoa jurídica, quanto se confundirá com os interesses difusos. Em um sentido lato, o interesse público poderá se configurar, mesmo que reflexamente, em todas as situações em que os interesses envolvidos atinjam a comunidade como um todo. Portanto, mesmo que a situação verse sobre interesse coletivo, atingindo uma categoria determinada ou ao menos determinável de indivíduos, ou verse sobre interesses individuais, se indisponíveis, poderão ser inseridas na noção mais ampla de interesse público .

Por outro lado, os termos interesse “difuso”, “coletivo”, “de grupo”, “meta” ou “supra-individual” são considerados como sinônimos por alguns autores, embora se admita a tentativa de divisão. Por exemplo, Celso Bastos, citado por Maria Fátima Leyser, afirma que os interesses coletivos referem-se ao homem socialmente vinculado, ao passo que os interesses difusos se verificam quando há identidade de situações de fato, que sujeitam a lesões de natureza extensiva, disseminada ou difusa .

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, como já mencionado, diferencia direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, realçando importância da questão da divisibilidade ou não do interesse nessa distinção. Sobre a divisibilidade, Barbosa Moreira dispõe que interesses difusos e coletivos

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referem-76

se a um bem, em latíssimo senso, insuscetível de divisão, mesmo que ideal, em quotas individualmente atribuíveis a cada um dos interessados. A satisfação desses interesses implica, necessariamente, na satisfação de todos os interessados, bem como a lesão representa dano a toda coletividade .

Buscando melhor diferenciar interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, Maria Fátima Leyser conclui com o seguinte exemplo:

(...) se numa série de bens de consumo vendidos ao consumidor final, um deles foi fabricado com defeito, o consumidor tem interesse individual na indenização correspondente. (...) será o interesse coletivo, quando toda a série saía da fábrica com o mesmo defeito, embora vendida a vários consumidores finais (...) ou, também, quando se verificar um aumento indevido das prestações de um consórcio (...). O interesse do consumidor só será considerado difuso se houver impossibilidade de se identificar as pessoas pelo mesmo fato jurídico, (...), v.g., os destinatários de uma propaganda enganosa veiculada pela televisão ou pelo rádio . (grifos no original)

Já no segundo momento cognitivo, enfocando-se a prevalência do interesse público no conhecimento do mérito nesses processos, deve-se buscar uma legitimação ad causam capaz garantir a maior eficácia possível à tutela dos direitos coletivos. Nesse sentido, insere-se a discussão sobre a possibilidade de o magistrado controlar a legitimidade dos substitutos processuais .

Há doutrinadores que sustentam que a verificação da adequada legitimação coube ao legislador, que o fez por meio do estabelecimento de um rol taxativo de legitimados (por exemplo, o art. 82 do CDC). Nessa linha, haveria presunção absoluta de que seriam representantes adequados. Assim, não poderia o magistrado estabelecer qualquer juízo ampliativo ou restritivo para a condução do processo .

Com base na experiência norte-americana, que sustenta o controle judicial da representatividade adequada, e com fundamento no princípio do ativismo judicial, parte da doutrina admite que o magistrado controle a legitimidade. Primeiramente, analisa-se se há autorização legal para a atuação de determinado ente. Posteriormente, com base no caso concreto, deverá o magistrado aferir se o legitimado coletivo apresenta os atributos necessários para a melhor condução possível daquele determinado processo coletivo .

Embora a não haja disposição legal nesse sentido, a jurisprudência parece caminhar no sentido de consagrar a representatividade adequada aferida pelo juiz:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Confederação Nacional das Profissões Liberais - CNPL. Falta de legitimidade ativa. - Na ADI 1.792, a mesma Confederação Nacional das Profissões Liberais - CNPL não teve reconhecida sua legitimidade para propô-la por falta de pertinência temática entre a matéria disciplinada nos dispositivos então impugnados e os objetivos institucionais específicos dela, por se ter entendido que os notários e registradores não podem enquadrar-se no conceito de profissionais

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77 liberais. - Sendo a pertinência temática requisito implícito da legitimação, entre outros, das Confederações e entidades de classe, e requisito que não decorreu de disposição legal, mas da interpretação que esta Corte fez diretamente do texto constitucional, esse requisito persiste não obstante ter sido vetado o parágrafo único do artigo 2º da Lei 9.868, de 10.11.99. É de aplicar-se, portanto, no caso, o precedente acima referido. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida . (grifo nosso)

Essa a possibilidade de a atividade jurisdicional aferir, no caso concreto, a existência de uma adequada legitimação é percebida nas diversas propostas de consolidação de um código de processo coletivo. Exemplificativamente, o Anteprojeto de Código coordenado pelo Prof. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, em seu art. 8º, inciso I, dispõe acerca da necessidade de análise pelo juiz, por meio de decisão fundamentada, da existência de adequada representatividade do legitimado, destacando nos parágrafos primeiro e segundo:

§ 1o Na análise da representatividade adequada o juiz deverá examinar dados como:

a) a credibilidade, capacidade e experiência do legitimado;

b) seu histórico de proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos dos membros do grupo, categoria ou classe;

c) sua conduta em outros processos coletivos;

d) a coincidência entre os interesses do legitimado e o objeto da demanda; e) o tempo de instituição da associação e a representatividade desta ou da pessoa física perante o grupo, categoria ou classe.

§ 2o O juiz analisará a existência do requisito da representatividade adequada a qualquer tempo e em qualquer grau do procedimento, aplicando, se for o caso, o disposto no parágrafo 3o do artigo seguinte .

O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos estabelece, em seu art. 20, um rol de legitimados à propositura das ações coletivas, dispondo nos parágrafos primeiro a quarto do referido artigo:

§ 1° Na defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, qualquer legitimado deverá demonstrar a existência do interesse social e, quando se tratar de direitos coletivos e individuais homogêneos, a coincidência entre os interesses do grupo, categoria ou classe e o objeto da demanda;

§ 2º No caso dos incisos I e II deste artigo, o juiz poderá voltar a analisar a existência do requisito da representatividade adequada em qualquer tempo e grau de jurisdição, aplicando, se for o caso, o disposto no parágrafo seguinte.

§ 3º Em caso de inexistência do requisito da representatividade adequada (incisos I e II deste artigo), o juiz notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros legitimados, a fim de que assumam, querendo, a titularidade da ação.

§ 4º Em relação às associações civis e às fundações de direito privado, o juiz poderá dispensar o requisito da pré-constituição, quando haja manifesto interesse social evidenciado pelas características do dano, pela relevância do bem jurídico a

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ser protegido ou pelo reconhecimento de representatividade adequada (inciso I deste artigo) .

Por outro lado, a proposta de nova lei da ação civil pública, Projeto de Lei nº 5.139/2009, dispõe, em seu artigo 2º, §1º, que a tutela dos direitos individuais homogêneos presume-se de relevância social, política, econômica ou jurídica. Todavia, o Projeto em comento não elimina a necessidade de verificação jurisdicional acerca do objeto da demanda. O artigo 2º daquela proposta, em seu inciso III, ao conceituar os direitos individuais homogêneos, dispõe:

Art. 2º - A tutela coletiva abrange os direitos ou interesses:

III – individuais homogêneos, assim entendidos aqueles divisíveis, decorrentes de origem comum, de fato ou de direito, que recomendem tutela conjunta a ser aferida por critérios como facilitação do acesso à Justiça, economia processual, preservação da isonomia processual, segurança jurídica ou dificuldade na formação do litisconsórcio.

Assim, conforme o texto em tela, a atividade jurisdicional deve ater-se à verificação da utilidade da demanda coletiva, no escopo de racionalizar a atuação do Estado-juiz. Ao invés de realçar a importância da visualização da pertinência entre a idoneidade do autor e o objeto da demanda, o Projeto parece presumir essa idoneidade, concentrando a atividade cognitiva na certificação do interesse social na solução coletiva do conflito.

5 – CARACTERÍSTICAS DA LEGITIMIDADE COLETIVA NO DIREITO COMPARADO

Nos países de Civil Law, percebem-se duas opções principais quanto à legitimidade ativa para a tutela de direitos coletivos: legitimidade privada e legitimidade mista .

A legitimação privada caracteriza-se pela atribuição de legitimidade exclusivamente a pessoas físicas e/ou a entes privados. É utilizada em um número restrito de países, como Alemanha, França, Itália, Japão e Suíça. Trata-se de um sistema de legitimação influenciado pela tradição norte-americana das class action, todavia fundando-se no receio de que uma abertura da legitimação possa levar a abusos .

Os demais países de tradição jurídica germano-românica adotam a legitimação mista, independente e autônoma, que se caracteriza pela ampliação dos esquemas de legitimação. Esta, é distribuída entre pessoas físicas, associações, como também entre órgãos públicos, como o Ministério Público, Defensoria Pública, dentre outros .

A legitimação mista pode ser reputada como a tendência a ser adotada pelos diversos países, consagrando um maior acesso à justiça e um maior número e qualidade de causas levadas ao judiciário. Como forma de se evitar abusos, verifica-se a utilização de instrumentos como o controle de órgãos públicos especializados e pesados encargos para a litigância de má fé (como no ordenamento jurídico brasileiro) .

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79 Percebe-se, outrossim, uma forte tendência de reconhecimento da representatividade adequada como instrumento de controle de abusos e de garantia da efetividade da coisa julgada. Poucos países, como Uruguai, Argentina e Paraguai, adotam a representatividade adequada pelo juiz. A grande maioria dos países adota um critério por previsão legal, ou seja, estabelecem uma pré-fixação legal dos requisitos para a legitimação .

Nos países de Common Law, a representação poderá ser feita por particular (membro da classe), entidade privada com objeto ligado ao direito litigioso ou órgãos públicos criados para a defesa desses direitos. O sistema de legitimação tem como traço principal a adequada representação .

Incumbe-se o juiz de examinar as condições do representante e de seu advogado, sendo que, verificada a inadequação, inviabiliza-se o seguimento da ação coletiva, ou mesmo impossibilita-se a vinculação dos membros da classe aos efeitos da sentença coletiva. Nos EUA, “a adequada representação é um importante componente do direito constitucional de devido processo legal ” (grifos no original).

Nos países dessa tradição, as partes representam a classe , parte-se da idéia de que a classe representada está presente no julgamento. O contraditório e a ampla defesa são assegurados, por exemplo, por instrumentos como:

a) Notificação dos membros da classe (fair notice): por meio dessa notificação, a decisão só será vinculativa àquele que, ciente da ação, exercer o direito de optar pela participação nos resultados da demanda ;

b) Direito de exclusão ou “de saída” do membro da classe (right to opt out): uma vez notificado da existência da ação, poderá o membro da classe requerer sua exclusão da demanda coletiva, não ficando sujeito à coisa julgada ;

c) Extensão subjetiva da coisa julgada (binding efect): como o sistema funda-se na aferição da adequada representação, partindo-se da idéia de que todos os membros da classe estão representados na demanda, confere-se extensão subjetiva à coisa julgada. Assim, a sentença atinge todos os membros da classe (que não optaram por não fazer parte), a coisa julgada opera-se erga omnes, independentemente de uma solução favorável ou desfavorável (pro et contra). 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como asseverado ao longo do trabalho, estruturou-se no Brasil um microssistema de tutela coletiva de direitos, no qual se encontram em uma posição nuclear o Título III do Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil Pública. Tais disposições normativas representam um elemento de harmonização entre os vários regramentos existentes sobre o assunto .

Todavia, embora tenha-se buscado uma ampliação dos meios de proteção dos denominados direitos coletivos, tais disposições legais, em alguns aspectos, não resultaram em uma efetiva tutela daqueles. Nesse contexto, especial realce deve ser dado aos denominados direitos individuais homogêneos.

O Código de Defesa do Consumidor consagra expressamente os direitos individuais homogêneos no rol do art. 81, o que, contudo, não esgota a divergência

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existente acerca da natureza jurídica de tais direitos. Aqueles, ora são interpretados como simples direitos individuais, coletivamente tratados por razões de política pública , ora referidos como subespécie de direitos coletivos, encontrando a sua dimensão coletiva em razão de sua homogeneidade .

Essa divergência, mesmo não inviabilizando a tutela coletiva desses direitos, contribui para que sejam geradas crises no Judiciário quanto ao ajuizamento dessas ações, em especial nas causas em que o Ministério Público figura como legitimado ativo . Destarte, demonstra-se necessária uma melhor clarificação dos institutos e dos fins teleológicos que permeiam o microssistema em tela.

Nesse diapasão, a visualização das diferenças entre os sistemas de legitimação expostos delineia um espetro de análise radical à compreensão da celeuma: a inaplicabilidade indiscriminada das regras contidas no Código de Processo Civil, eminentemente voltadas à tutela de direitos individuais, à tutela coletiva de direitos. Neste microssistema, maior realce deve ser dado à verificação da existência de interesse público envolvido na demanda, análise esta que, especialmente, destaca a relevância da atividade jurisdicional no desenvolvimento e clarificação do tema no Brasil.

7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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