UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
A FORÇA DO ATRITO
Um estudo da música de Luciano Berio, a propósito da sua ópera
La vera storia
João Lopes Madureira Silva Miguel
A FORÇA DO ATRITO
Um estudo da música de Luciano Berio, a propósito da sua ópera
La vera storia
João Madureira
Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Doutor em Ciências Musicais Históricas,
realizada sob a orientação científica da
Professora Doutora Paula Gomes Ribeiro
Apoio financeiro do Instituto Politécnico de Lisboa, no âmbito do
Programa de Apoio à Formação Avançada de Docentes do Ensino Superior
às minhas filhas,
AGRADECIMENTOS
ÀProfessora Doutora Paula Gomes Ribeiro, pelo apoio incondicional em todas as fases de elaboração deste trabalho.
A Angela Carone, Angela Ida de Benedictis, Luca Logi, e Paul Roberts, pelos materiais e informações prestadas no decurso da minha pesquisa.
Aos docentes meus colegas do curso de Composição da Escola Superior de Música de Lisboa.
À Drª Paula Esperança, pelo seu inigualável humanismo e amizade.
Aos meus amigos Francisco Trovão, Guilherme Dutschke, Jeffrey Scott Childs, João Barrento, João Pereira Coutinho, Manuel Pedro Ferreira, Paulo Pires do Vale, Paulo Sarmento, Rui Miguel Ribeiro, Tomás Maia, e Vera San Payo de Lemos, pela sua generosidade e disponibilidade.
À minha família, em particular os meus pais, pelo seu ânimo e confiança.
RESUMO
O presente trabalho pretende ensaiar uma reflexão crítica sobre a música de Luciano Berio, focando em particular a sua ópera La vera storia, estreada em 1982 no Teatro alla Scala, em Milão.
Esta reflexão crítica surge no âmbito da minha actividade de compositor, a partir de preocupações de ordem estética e ética quanto ao fazer artístico, encontrando no caso de Luciano Berio um campo oportuno para a sua consubstanciação.
A música de Berio reclama ser estudada através do cruzamento de diferentes saberes, para além do isolamento dos múltiplos aspectos e traços de singularidade que a caracterizam. Porque Berio escreve a sua música, não em nome da exploração, fechada sobre si mesma, de certas possibilidades técnicas, tão pouco em nome de um determinado gosto estético, particularmente sensível na herança musical que cita ou nos poetas e escritores que inclui em algumas das suas obras. Os motivos em que radica o seu fazer musical, com as opções técnicas e estéticas que conhecemos, são determinados por preocupações de ordem ética que não devemos ignorar.
Pensamos que é imperativo alargar o quadro de referências teóricas para além da análise musical no sentido mais estrito, convocando o pensamento filosófico de Gilles Deleuze e de Walter Benjamin e o pensamento estético de Italo Calvino para debater as implicações éticas da produção musical beriana. Este objectivo, no entanto, consolida significativamente o entendimento sobre a singularidade do fazer musical de Berio e a pertinência das suas propostas, integrando-se o presente estudo na reflexão já longa e prolixa dos estudos berianos.
Por isso, vamos desenvolver de forma sistemática uma reflexão que cruza o aparato conceptual e estético dos nomes acima citados com os traços determinantes da estética de Berio. São eles, nomeadamente, uma nova articulação entre alturas e ritmo; a ubiquidade presente no seu discurso; os comportamentos aditivos e subtrativos que presidem ao seu fazer musical; o carácter múltiplo, e por isso em constante devir, do objecto sonoro beriano; o carácter para-funcional do seu discurso, radicado na articulação entre elementos distintos; e a direccionalidade do seu discurso, resultante da sua articulação.
A fricção entre todos estes aspectos leva-nos a falar de uma singular concepção do objecto sonoro, na medida em que nos mostra de forma clara uma postura estética, e sobretudo ética, totalmente emancipada dos muitos espartilhos que tendem a ditar o fazer musical. Se nos habituámos a pensar que a música é a prova de que o uno é múltiplo, com a música de Berio somos levados a ver que o múltiplo é uno. Porque a música de Luciano Berio acolhe e reflecte a espantosa diversidade do mundo em que surge, devolvendo-lhe uma de muitas possibilidades de leitura. É essa a sua verdadeira história, é essa a força do seu atrito.
ABSTRACT
This work aims at developing a critical reflexion on Luciano Berio's music, focusing in particular on his opera La vera storia, premiered in 1982 at Teatro alla Scala, in Milan (Italy).
This critical reflexion finds its roots in my own activity as composer, where certain issues related to ethical and aesthetic questions in artistic practice find in the case-study of Luciano Berio an opportune field for their development.
Berio's music requires an approach that blends different knowledge fields, beyond the isolation of its multiple singular aspects. This is because Berio writes his music neither in the name of the exploitation, closed in itself, of certain technical possibilities, nor in the name of a certain aesthetic taste, particularly sensitive in the musical heritage he quotes or in the poets and writers he includes in some of his works. The motifs underlying under the options of his musical practice are determined by ethical concerns which cannot be ignored.
We think it is imperative to enlarge the theoretical frame of reference beyond musical analysis in a strict sense, calling in our reflexion on the philosophical thought of Gilles Deleuze and Walter Benjamin as well as the aesthetic thought of Italo Calvino in order to debate the ethical implications of Berio's musical production. This objective, though, noticeably consolidates an understanding of the singularity of Berio's practice and the relevance of its proposals, integrating this study in the already long and prolific reflexion in the field of Luciano Berio studies.
In the following pages a systematic reflexion is to be carried out by crossing a conceptual and aesthetic apparatus, drawn from Deleuze, Benjmain and Calvino, with the defining traces of Berio's aesthetics. These are, namely, a new articulation between pitches and rhythm; the ubiquity of his speech; the additive and subtractive behaviour that presides over his musical practice; the multiple character, and for that reason in permanent becoming, of his sound object; the para-functional character of his practice, based on the articulation of uneven elements; and the vectorial character of his discourse.
The friction among all these aspects leads us to speak of a unique conception of the sound object in Berio's music, as itclearly reveals an aesthetic and above all ethical posture which is completely emancipated from the many constraints which tend to dictate musical composition. If there is a general consensus as to thinking that music proves that the "one" is multiple, with Berio's music we are lead to consider the multiple as one. Because Luciano Berio's music receives and reflects the amazing diversity of the world in which it emerges, giving in return one of many possible readings.That is its (their) true story, that is the strength of its (their) friction.
ÍNDICE
Introdução Geral... 1
A nossa investigação ... 1
A música de Luciano Berio ... 7
La vera storia: o nosso caso de estudo ... 11
Esta dissertação ... 20
IPensar a Música de Berio... 25
Uma ponderação filosófica a partir de Gilles Deleuze ... 25
Multiplicidade como unidade ... 30
Rizoma ... 33
Diferença e repetição ... 38
Regime de signos ... 44
Sensação ... 47
Desterritorialização e Reterritorialização ... 52
Ciência Menor ... 58
II A Prática Musical de Luciano Berio... 63
Contextualização ... 63
La vera storia ... 71
O objecto sonoro beriano ... 76
Uno ...76
Múltiplo ... 94
Flexível e Mutante ... 122
Para-funcional e Mutante ... 135
Estruturas simples ... 144
1. Estruturas singulares ... 144
2. Estruturas pseudo-binárias ... 145
3. Estruturas circulares ... 150
4.Estruturas sequenciais ... 151
Estruturas combinadas ... 152
1. Estruturas múltiplas por sobreposição ... 153
2. Estruturas múltiplas por sucessão ... 154
3. Estruturas múltiplas por mutação ... 155
4. Estruturas múltiplas através de encaixe ... 155
Estruturas impuras ... 157
III A consciência do acontecer e a concepção da obra de arte... 171
A convulsão do devir histórico ... 174
Conceber a obra de arte ... 180
IV O que pode a música?... 199
Multiplicidade ... 204
Leveza ... 208
Rapidez ... 211
Exactidão ... 215
Visibilidade ... 220
O lugar da arte ... 230
Bibliografia ... 237
Obras de Luciano Berio ... 237
Textos de Luciano Berio ... 238
Entrevistas ... 238
Artigos e depoimentos ... 239
Livros ... 240
Notas de autor ... 240
Literatura crítica sobre Luciano Berio ... 241
Literatura sobre La vera storia ... 248
Bibliografia geral ... 251
Lista de Ilustrações ... 263
Le origini di La vera storia si perdono nella mia storia personale, che è sempre stata attraversata dalla musica popolare (Quattro canzoni popolari, Folk Songs, Questo vuol dire che…, Coro, Il ritorno degli Snovidenia) e dal bisogno di scoprire ulteriori funzioni implicite in uno stesso fatto musicale (Chemins I-V e Corale). La vera storia è un po’ la sintesi di queste mie due preoccupazioni che tendono, assieme, alla ricerca di uno spazio musicale e drammaturgico aperto ma non vuoto, uno spazio cioè che possa essere abitato da figure e da protagonisti concreti sì ma anche mutabili: uno spazio che non sia abitato da fantasmi e da personaggi prigionieri di un libretto.
Luciano Berio, Opera e no, nota de autor a La vera storia, publicada no programa da estreia no Teatro alla Scala,
INTRODUÇÃO GERAL
Uma afecção, que é paixão, deixa de ser paixão no momento em que dela formamos uma ideia clara e distinta.
(Espinosa, Ética, V, Prop. III)
A nossa investigação
Com a presente dissertação debruçamo-nos sobre alguns aspectos da música de
Luciano Berio, incidindo mais especificamente sobre a sua ópera La vera storia
(estreada em 1982), que consideramos um eixo fundamental na sua produção musical,
na medida em que, como veremos adiante, repensa um conjunto de questões da sua
anterior prática musical, ao mesmo tempo que se abre à exploração de aspectos que vêm
a cunhar a sua obra posterior. O presente estudo parte também da constatação de que
não é possível encarar a criação musical beriana sem tomarmos em consideração
aspectos filosóficos e histórico-políticos que subjazem à vertente puramente musical e
estética que enforma a sua prática composicional, clarificando-a. Se, há cerca de 16
anos atrás, nos dedicámos ao estudo comparativo de aspectos morfológicos e sintácticos
na obra de Luciano Berio, de Karlheinz Stockhausen e de Pierre Boulez (no contexto da
nossa formação na Escola Superior de Música de Colónia ), hoje interessa-nos 1
aprofundar a nossa reflexão sobre a música de Luciano Berio de um ponto de vista mais
abrangente, reflexão esta que decorre, também, das preocupações fundamentais à nossa
própria actividade de compositor.
O exercício de leitura da prática musical beriana a partir de considerações
filosóficas e histórico-políticas (no sentido lato), que de seguida apresentamos, não
estabelece qualquer hierarquia de parâmetros, tão pouco pretende fechar-se sobre si
mesmo, mas tem como objectivo fundamental dar a ver a relação estreita que a música
MADUREIRA, João, Die Retorik der Musik - Vom Material zur Form [A Retórica Musical - Do
1
de Luciano Berio tece com o mundo que a rodeia, uma relação de atrito e não de
tradução ou de redução. Ao considerar a música de Berio, estamos perante um campo
não hierárquico de mútua influência de diversas vertentes da acção humana, que vêem
no atrito que a sua relação gera a possibilidade da sua consubstanciação, integrando um
todo mutante, e por isso não completamente objectivável. Teremos ocasião de
demonstrar, ao longo dos capítulos que se seguem, como La vera storia é um exemplo
matricial desta relação. Com esta aproximação, estamos em crer, sobretudo, que o nosso
contributo para os estudos berianos se alarga a dimensões ainda esparsamente afloradas.
O que nos interessa sublinhar é: se é verdade que a filosofia (e, muito concretamente, o
pensamento de Gilles Deleuze) contém elementos que nos permitem entender o objecto
musical beriano de uma perspectiva mais vasta e não estritamente musical, também é
verdade que a criação musical de Berio se constitui enquanto modo de pensar
filosoficamente o mundo. Da mesma maneira, se a criação musical de Berio é
fortemente marcada pelas ideias e acontecimentos políticos do seu tempo – é conhecida
a sua estreita ligação aos movimentos do Maio de 68 ou ao Partido Comunista Italiano ; 2
e La vera storia remete, em parte, para os acontecimentos de violência e do terrorismo
que nos anos 70 assolaram Itália –, também constitui uma fonte concreta para se pensar 3
politicamente o mundo num sentido alargado, ou seja, no quadro de uma postura
perante a história, o tempo, que pretendemos aprofundar adiante, socorrendo-nos do
pensamento de Walter Benjamin. Não se espere, contudo, que vamos proceder, nesta
dissertação, a uma leitura do objecto artístico beriano a partir de um aparato conceptual
exterior ao mesmo; o que nos interessa é dar a ver como a música de Luciano Berio
dialoga de forma aprofundada com certos nomes de referência do pensamento filosófico
do século XX, como acontece com Deleuze e Benjamin. Decerto não se esgota a estes
Cf. HANDER-POWERS, Janet, Strategies of Meaning: A Study of the Aesthetic and the Musical
2
Language of Luciano Berio, Diss. Doutoramento em Music / Music Theory, Faculty of the Graduate School University of Southern California, Julho de 1988, p.46.
Cf. BRÜDERMANN, Ute, “Gewalt und Terror in La vera storia - «specchio d'un' epoca»”, in Das
3
nomes as possibilidades deste diálogo , mas o nosso percurso de investigação encontrou 4
neles a oportunidade de consubstanciar certas questões que nos são particularmente
caras na nossa actividade de compositor. Deleuze, nomeadamente, dispõe o seu
pensamento de forma aberta e em constante processo de actualização, sem estabelecer
quaisquer hierarquias entre os conceitos que gera, nem tão pouco os fechar em si
mesmos, o que lhes dá uma faculdade excepcional de se adaptarem aos fenómenos que
tenta ler. De resto, não é inédita a aproximação do pensamento deleuziano à reflexão
musicológica: os trabalhos recentes de Ronald Bogue, de Nick Nesbitt com Brian
Hulse, de Ian Buchanan com Marcel Swiboda e de Edward Campbell consolidam de
forma gratificante o nosso fundamento de fazer encontrar o pensamento de Gilles
Deleuze com a prática musical beriana . Benjamin, por seu turno, mostra uma 5
capacidade inaudita de pensar de modo orgânico, estabelecendo elos de sentido onde
menos esperamos, e abrindo o nosso olhar a camadas de significado que, em boa
verdade, estão presentes, se bem que por desvelar, nos fenómenos que lê.
É fundamental clarificar, portanto, qual a importância deste trabalho de
investigação para a nossa actividade de compositor, ou seja, esclarecer com que postura
e fundamentos nos aproximamos das questões trabalhadas nesta dissertação. É
incontornável a encruzilhada em que necessariamente nos encontramos quando
ambicionamos ler, de um ponto de vista teórico e de forma sistemática, a música de um
Por exemplo, o exercício de análise semiótica desconstrucionista, tal como o pensamento
4
pós-estruturalista dela decorrente, levados a cabo por Jacques Derrida (1930-2004), assim como a hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur (1913-2005), com todo o seu aparato conceptual de leitura que, sendo gerado da teoria narrativa, serve perfeitamente a análise musical, são referências a nosso ver importantes para se aprofundar a leitura da música beriana de um ponto de vista estético e sobretudo ético. Não é por acaso, de resto, que Susanna Pasticci, de cujo trabalho falaremos adiante nesta apresentação, escolhe entre as suas leituras de apoio alguns textos matriciais do pensamento de Paul Ricoeur (cf. adiante a secção “Esta dissertação”), que Paulo Pires do Vale apelida oportunamente de “estética hermenêutica”, descrevendo com minúcia os traços da mesma, a partir da experiência estética que só a obra de arte veicula, dando a ver uma verdade que o discurso filosófico só pode tentar esclarecer (VALE, Paulo Pires do, “Para uma estética hermenêutica. Notas sobre a essência e a função da obra de arte em Paul Ricoeur”. Estudos, N. S. 4 (2005), pp.311-322).
Cf. BOGUE, Ronald, Deleuze on Music, Painting and the Arts, New York and London: Routledge,
5
compositor, obrigando-nos, com isso, a sair do habitat natural em que nós próprios
vivemos. Não é o caso de não ponderarmos diversas questões caras à teoria
composicional e musicológica, simplesmente o olhar não pode deixar de ser um olhar a
partir de dentro, inevitavelmente subjectivo, contaminado pela própria actividade de
compositor, mais a mais quando temos como caso de estudo um compositor muito
próximo da nossa sensibilidade estética. Vale a pena citar a resposta que Italo Calvino
dá a Maria Corti, numa entrevista dada em 1985 (o ano da sua morte), quando esta
aponta para a feliz convivência, ou “simbiose”, entre reflexão teórica e actividade
criativa em Calvino:
Não me julgo porém com uma verdadeira vocação teórica. O divertimento de
experimentar um método de pensamento como um gadget que impõe regras
exigentes e complicadas poderá coexistir com um agnosticismo e empirismo de
fundo; o pensamento dos poetas e dos artistas, creio que funciona quase sempre
desta maneira. […] O rigor da filosofia e da ciência, sempre o admirei e amei
muito; mas sempre um tanto de longe. 6
Esta dissertação não apresenta, portanto, uma análise musicológica exaustiva de
um caso particular da história da música erudita do século XX, nomeadamente dentro
do campo operático. De resto, no percurso de leituras que viemos fazendo a propósito
da investigação a que nos dedicámos, deparámos, a dada altura, com alguns enunciados
de Luciano Berio sobre a análise musical, que foram suficientemente significativos para
nos interpelar na nossa tarefa, ao mesmo tempo que se revelavam definidores, pela
proximidade que deles sentimos, da postura que assumimos neste trabalho e com que
expomos a reflexão nesta dissertação. São enunciados que se prendem com a última das
lições de Harvard que Berio apresentou em 1993-94, e que está publicada naquele que
consideramos ser o seu mais denso, e mais rico, conjunto de reflexões acerca da música
e da sua recepção por parte do público em geral, mas também por parte dos estudiosos
da música contemporânea . Aí, o ensaio “Poetics of Analysis” tece a dada altura uma 7 8
CALVINO, Italo, “Entrevista de Maria Corti”, in Um Eremita em Paris. Páginas Autobiográficas, trad.
6
de José Colaço Barreiros, Lisboa Teorema, p.250.
BERIO, Luciano, Remembering the Future, Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University
7
Press, 2006.
Ibidem, pp.122-141.
ideia que importa reportar: Luciano Berio afirma que qualquer análise completa ou
incompleta de qualquer obra é sempre, no caso dos compositores, uma auto-análise:
[…] composers will not be able to help projecting themselves, their own poetics,
into the analysis of the work. The composer reveals himself on the couch of
someone else's work […] the chief analytical instrument at the composer's
disposal will always and in any case be his own poetics. 9
É, portanto, a partir da experiência prévia de compositor que tecemos a reflexão
que expomos nesta dissertação. Não pretendemos, no entanto, apenas esclarecer a nossa
posição face à obra de Luciano Berio e ao conjunto de questões que evidencia.
Pretendemos, também, pensar Berio em contexto, fazendo sobressair o que a Berio
“pertence” no labirinto que é a produção musical da segunda metade do século XX, da
qual somos, nós também, herdeiros e contemporâneos. Em primeiro lugar, porque
pensamos que a fecundidade das questões levantadas pela busca beriana aparece na obra
de outros compositores, e em segundo lugar, porque pensamos que não poderemos
avaliar correctamente a deriva da obra de Berio se não a enquadrarmos num todo mais
vasto. Por isso, não hesitaremos em chamar à colação a obra de outros compositores
sempre que a sua posição contribua para o esclarecimento do lugar da música de
Luciano Berio. Não se creia, contudo, que ao convocarmos outros compositores para
pensarmos a música de Berio, façamos um levantamento exaustivo do contexto
histórico e cultural em que esta surge . Gostaríamos, em vez disso, de referir uma ideia 10
fundamental do próprio Luciano Berio quando pensa a poética da análise e a natureza da
obra de arte musical. Com efeito, para Berio devemos sempre pensar cada obra de
Ibidem, p.125.
9
Mesmo em trabalhos bem aprofundados e sistemáticos sobre a música de Luciano Berio, como por
10
arte – e em específico a obra de arte musical – enquanto Texto , que não deve ser 11
encarado isoladamente, mas sim como sendo feito de outros textos:
A text is always a plurality of texts. Great works invariably subsume an
incalculable number of other texts, not always identifiable on the surface – a
multitude of sources, quotations, and more or less hidden precursors that have
been assimilated, not always on a conscious level, by the author himself. 12
A abertura à obra de outros compositores, que vem do facto de não podermos
considerar as obras de Luciano Berio senão enquanto textos compósitos, fez-nos, por
outro lado, perceber que as questões teóricas e filosóficas levantadas pelo seu legado – e
sobre as quais nos propomos reflectir de seguida – ultrapassam, em muito, o conjunto
de obras efectivamente compostas por Berio. Referimo-nos a todo o inesgotável
universo de músicas que nos circunda, como, por exemplo, o rock, o pop e o jazz nossos
contemporâneos, mas também à música de tradição popular e clássica europeia, e a todo
o universo de músicas pertencentes a outros tempos e espaços geográficos que não o
central-europeu, como o originário da ilha de Bali, o chinês, o indiano, o árabe, o
afro-cubano, o espaço ibérico ou o espaço africano. Podemos verificar como a produção
de Berio, apesar de circunscrita a um círculo geográfico e histórico do qual ele faz
necessariamente parte, nos permite, no entanto, encarar legitimamente um todo mais
vasto, com base no seu pensamento musical e no recurso ao pensamento dos dois nomes
a que já aludimos acima: Gilles Deleuze, Walter Benjamin. Por “pensamento musical”
referimo-nos à sua prática musical e não aos seus escritos sobre a música, que embora
sejam definitivamente operativos de sentido na exposição da nossa reflexão, se pautam,
a nosso ver, pelo seu carácter parcimonioso, evasivo e assistemático . 13
Ao longo de Remembering the Future Berio não se cansa de referir a sua concepção da música
11
enquanto Texto. Cf. BERIO, Luciano, op. cit., pp. 3, 4, 5, 8, 14, 49, 126, 132, e 134. Ibidem, p.126.
12
Cf. a recente edição de todos os textos escritos por Berio sobre a música: BERIO, Luciano, Scritti sulla
13
A música de Luciano Berio
A música de Luciano Berio está entre a consideração de vertentes que subjazem
à música de um John Cage, à música de um Pierre Boulez e à música popular ou
tradicional. Paralelamente, a afinidade com Italo Calvino – o libretista de La vera storia
– é evidente. Se pensarmos nas Cosmicómicas14, por exemplo, e no rigoroso exercício
de antropomorfização dos relatos científicos cosmológicos, astronómicos, geológicos e
biológicos, estamos perante uma mesma relação de atrito que, na música de Berio,
vemos entre o popular e o erudito, pondo em causa visões internas destes postulados.
Por seu turno, se na música de John Cage encontramos a consciência da estrutura
subjacente ao material musical, na escrita de Italo Calvino este mesmo pendor
autoreflexivo está presente, nomeadamente ao eleger o conto como forma matricial da
sua obra — mesmo em obras mais extensas, como por exemplo Se numa noite de
inverno um viajante15, ou As cidades invisíveis16, detectamos esta vertigem para a
narrativa curta, sempre recomeçada e re-ensaiada. Finalmente, a música de Pierre
Boulez aproxima-se da escrita de Italo Calvino pelas múltiplas formas que este último
encontra de fazer proliferar um material a partir das suas características internas.
Retornemos a Cosmicómicas para verificarmos como cada postulado científico citado
no início de cada conto é explorado até às suas últimas consequências, afastando-se
assim de uma antropomorfização ingénua, para ser encarado na sua essência. O que
distingue, quanto a nós, a música de Berio – tal como a escrita de Calvino – é a
consciência simultânea destes diferentes aspectos: à consideração das características
internas de um material, tão idiomática num Pierre Boulez, junta-se a capacidade de
encarar este mesmo material num contexto mais vasto, e portanto fora de si, tão própria
de um John Cage. Esta é uma marca global da música de Luciano Berio, cujos traços
específicos e cujas implicações profundas tentaremos descrever ao longo da presente
dissertação. Como veremos, Italo Calvino será o terceiro nome a juntar aos de Deleuze e
de Benjamin na nossa reflexão.
CALVINO, Italo, Cosmicómicas, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 1993. Mais
14
recentemente, Todas as Cosmicómicas, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 2009. CALVINO, Italo, Se numa noite de inverno um viajante, trad. de Mº de Lurdes Sirgado Ganho e José
15
Manuel de Vasconcelos, Lisboa: Vega, 1993.
CALVINO, Italo, As cidades invisíveis, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Editorial Teorema, 1996.
Devemos encarar a poética de Berio de uma forma que nos leve a compreender a
sua posição na história da música tanto temporal como geograficamente, e assim a
distinguir as ideias resultantes do seu legado musicalface às suas obras em particular.
Pensamos que esta é a marca das grandes obras: indicar caminhos que as ultrapassam.
Recorde-se, a este propósito, as palavras de David Osmond-Smith sobre a relação de
Berio com Dallapiccola:
In [Dallapiccola’s] scores, Berio found a striking demonstration of the generative
impetus that serial matrices can give to melodic invention. But he was never
greatly enthralled by the impeccable musical geometries of the Webernian
tradition ... Berio took on board the exigencies of serial orthodoxy only in as
much as they suited his creative needs . 17
Tal como Berio viu nas partituras e materiais de Dallapiccola mais possibilidades de
expressão do que as que efectivamente foram esgotadas por aquele que foi seu professor
em Tanglewood (USA), podemos hoje, também, imaginar novos caminhos e
proliferações para as suas ideias. Refira-se, a este propósito, que a linguagem de
Luciano Berio resiste a uma classificação clara: é uma música nem tonal, nem atonal.
Porque é as duas ao mesmo tempo! Consequentemente, pode praticar o convívio de
linguagens distintas, pode servir como pivot entre “linguagens” diferentes, como por
exemplo tonais, atonais livres, dodecafónicas, seriais e modais, ou simplesmente
resultar da sua sobreposição. É uma música por vir: uma música em devir quanto à sua
própria classificação.
Para além das características que acabamos de mencionar, o imperativo de
multiplicidade que caracteriza as obras de Berio tem enormes consequências no devir
musical para além da produção beriana. Poderá, por exemplo, conduzir a uma
diversificação dos próprios materiais no interior de cada uma dessas linguagens. Uma
diversificação de objectos, entre os quais se incluem o ruído, e uma enorme gama de
dissonâncias e consonâncias, em que se incluem as oitavas, no extremo oposto. E para
além disto, à sua semelhança, a prática musical de hoje pode obedecer àquilo que
François Bernard-Mâche designa por “universais da música” e, através desses mesmos 18
David Osmond-Smith, Berio, Oxford/ New York: Oxford University Press, 1991, p. 4.
17
Cf. MÂCHE, François-Bernard, Musique au Singulier, Paris: Éditions Odile Jacob, 2001. Edição
18
universais, ter a ousadia de reunir o diverso. Se em Johann Sebastian Bach o uno via a
sua possibilidade de existir no seu desdobramento em múltiplas facetas, em Luciano
Berio a irredutibilidade do múltiplo dá a ver uma essência surpreendentemente una. Não
se trata aqui de uma mera inversão formal de termos. Como veremos, a multiplicidade
em Berio tem consequências mesmo na forma como se olha o passado, dando a ver o
múltiplo que habita o que sempre pensámos como uno . Porque o facto de Berio ter 19
descoberto a possibilidade de constituir um todo uno a partir de materiais distintos 20
inaugura de forma definitiva novos modos de encarar o fenómeno musical. E porque o
facto de o mesmo Berio ter reconhecido nesses materiais o factor essencial da
modernidade que eles continham, que é o de darem corpo à multiplicação de pontos de
fuga, consubstanciada por exemplo na multiplicação de tónicas musicais, convida à 21
consideração dessa mesma multiplicidade num nível sonoro mais vasto. Ou ainda
porque a constituição de uma gramática de funçõess evolutivas por parte de Berio
resulta inevitavelmente dos seus esforços composicionais. Uma evolução que
poderemos levar ao ponto da destruição do seu material, rumo a uma simplicidade
habitualmente ausente na sua obra. Tal como poderemos estabelecer a possibilidade de
um continuum entre passado e presente, o popular e o erudito; ou experimentar o
redimensionamento da noção de autor; ou ensaiar a diluição de certas fronteiras a partir
da possibilidade de ser atonal com escalas modais e a possibilidade de construção de
uma sintaxe em construção; ou ainda de verificar a possibilidade de consonância, de
peso harmónico e consequentemente de polaridade num contexto mais vasto.
A abordagem de tais características leva, naturalmente, à aproximação a
questões como a da ahistoricidade, a da fricção entre linguagens, e com elas a questão
da existência de um sentido e significado musicais, a questão da operacionalidade de
certos conceitos filosóficos e políticos para a composição e, finalmente, a abordagem
daquilo que podemos designar de condições para a liberdade de criação e de audição.
Berio não está só neste aspecto; também na obra de um György Ligeti e de um Wolfgang Rihm vemos
19
uma mesma mundividência.
O próprio Luciano Berio fala desta busca em “Formations”: “I personally was busy looking for
20
harmonic coherence between diverse materiais” (in Remembering the Future, op. cit., pp.17-18).
Ainda Berio: “An essential factor of modernity has always been its ability to modify perspectives, to
21
Porque a enorme admiração que sentimos face à obra de Luciano Berio – pensamos nas
suas Sequenze e Chemins, nas suas Folksongs, na sua Sinfonia, em Coro, nas suas obras
electro-acústicas, em Points on a curve to find, no seu legado operático, entre tantos
outros exemplos que constituem um vasto catálogo musical – não deve impedir-nos de
ver as consequências incontornáveis do seu pensamento musical. São estas
consequências que nos propomos explorar nesta dissertação, sem ter, contudo, quaisquer
pretensões de sermos exaustivos. Porque, como dissemos atrás, a marca da grande arte
inevitavelmente ultrapassa e se estende muito para além das obras que lhe deram
origem.
Estamos, pois perante a constatação da impossibilidade e da impertinência de
qualquer análise baseada no isolamento dos seus constituintes e no esforço de derivação
a partir de cada um deles, de toda e qualquer novidade sonora que os habita. Porque essa
novidade vem necessariamente de fora da obra, e mais ainda, de fora do compositor,
porque o acto de compor é sempre um acto de estabelecimento de relações inauditas
com, e entre, textos pré-existentes. É o próprio Berio que nos diz, em “The Poetics of
Analysis”:
There are cases in which analysis is brought to bear on experiences which do not
easily lend themselves to linear and numerical description. In such cases the
creativity of the analyst may experience some difficult moments, especially when dealing with something that has no immediate meaning (a sound doodle or an
accidental and indecipherable noise) but which can be made to mean something. 22
BERIO, Luciano, Remembering the Future, op. cit., p.130.
La vera storia: o nosso caso de estudo
Composta entre 1977 e 1980, e estreada em Março de 1982 no Teatro alla Scala,
em Milão, a ópera La vera storia – por Luciano Berio denominada de “azione musicale”
– é a segunda das cinco óperas que integram um conjunto vasto de peças que se
consideram parte do recentemente estudado “teatro musical de Luciano Berio” . Com 23
libreto de Italo Calvino e de Luciano Berio, a ópera estrutura-se em duas partes,
constituindo a segunda parte um eco da primeira, na medida em que os seus elementos
musicais e textuais – distribuídos por diversos momentos que, numa leitura superficial,
se ligam a um código operático relativamente comum, com alusões a Verdi (a ópera Il
Trovatore, nomeadamente, é um modelo de referência), com duetos, trios e arie a
compor a narração de uma série de episódios, com personagens centrais e secundárias
contracenando no meio da multidão – são, na segunda parte, como que desmantelados e
dispostos num conjunto de “cenas” sem progressão narratológica aparente, fazendo no
entanto sobressair outras camadas de sentido, inauditas, da história ou histórias narradas
anteriormente. Na sua nota de autor sobre La vera storia, sintomaticamente intitulada
“Opera e no”, Berio diz, oportunamente, que a Parte II “pensa” a Parte I . Claudia di 24
Luzio sublinha a predominância do trabalho musical sobre o texto na sua segunda parte:
Thereby they are transposed reflexively in a virtual musical-dramaturgical
formation predominantly determined by music and subversive relationships of
space and time . 25
Diríamos que La vera storia, a partir do seu título, mas também na sua
concretização textual e sobretudo musical, trabalha de modo muito pertinente e
aprofundado o próprio sentido da história. Entre a primeira e a segunda parte não há só
Falamos das seis jornadas de estudos sobre o teatro musical de Luciano Berio, que tiveram lugar em
23
Paris e Veneza entre 2010 e 2013, e cujos contributos foram muito recentemente coligidos numa publicação em dois volumes: Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1 - De «Passaggio» à «La vera storia»; Tome 2 - De «Un re in ascolto» à «Cronaca del Luogo», dir. de Giordano Ferrari, Paris: L'Harmattan, 2016.
BERIO, Luciano, “Opera e no”, [nota de autor sobre La vera storia], in Scritti sulla musica, op. cit., p.
24
267.
DI LUZIO, Claudia, “Looking back on La vera storia. Critical and Documentary Introduction”, op. cit.,
25
um jogo reflexivo de subversões, no sentido das palavras de Di Luzio acima citadas, 26
mas, mais do que isso, um jogo de espectros, uma magistral ponderação sobre o
simulacro que é a história — não é só a Parte II que, aparentemente de contornos menos
nítidos, nos revela um lugar de verdade que na Parte I não se vê; também a Parte I, na
sua concretude inabalável, se revela uma ilusão ou “fantasmagoria” (inspirando-nos nas
palavras de Berio na sua nota de autor); e no entanto oferece à Parte II toda a matéria
que a faz, textual e musicalmente, ao mesmo tempo que, nesta segunda parte, se esvazia
na sua superfície de nomes, identidades, gestos nítidos e acções. E, se podemos alinhar
esta construção de simulacros no “ar dos tempos”, ou seja, no próprio contexto de
produção artística de Berio e de Calvino – que poderia levar a nossa reflexão para a
equação sobre uma estética pós-moderna ou uma “nova modernidade” em Berio (e em 27
Calvino) – tal não é, contudo, a nossa intenção. Tão pouco pretendemos prolongar o já
profundo debate sobre a herança operática e dramatúrgica de Berio – e, só mesmo para a
situar em três nomes, convocamos Giuseppe Verdi, Richard Wagner e Bertolt
Brecht – inegavelmente determinante para entendermos algumas opções de carácter 28
Juntamente com David Osmond-Smith e Ute Brüdermann, Claudia di Luzio está entre os nomes que
26
têm contribuído para a história genética de La vera storia, entre outras obras teatrais de Berio. Este trabalho tem vindo a dedicar-se a questões não só de ordem genética e monográfica, incluindo os estudos sobre a recepção desta obra, mas também de ordem genológica, nomeadamente quanto à própria reflexão que esta obra faz sobre a ópera, ou sobre a acção musical, ou sobre o teatro musical, e ainda sobre questões dramatúrgicas, que, como veremos, não são directamente chamadas à ponderação que fazemos sobre La vera storia nesta dissertação, mas que naturalmente são vitais ao estudo de base sobre esta obra. Destacamos, sobre La vera storia, os seguintes trabalhos: antes de mais, o contributo ímpar de BRÜDERMANN, Ute, Das Musiktheater von Luciano Berio, Frankfurt/M., Peter Lang 2007, onde se conceptualiza sobretudo o conceito de “Metatheater” quanto à obra de Luciano Berio, em particular La vera storia; depois, os contributos igualmente seminais de OSMOND-SMITH, David, “Berio's Theatre”, in Berio, Oxford: Oxford University Press, 1991, pp.90-118; “La vera storia”, in Autori Vari - Berio, a cura di Enzo Restagno, Torino, Edizioni di Torino, 1995, pp.88-97; ‘Nella festa tutto’? Structure and Dramaturgy in Luciano Berio's ‘La vera storia’, COJ, ix/3, 1997, pp.281–94; finalmente, o trabalho de DI LUZIO, Claudia, “Entstehungsgeschichte der Werke [sobre La vera storia]” [pp.118-131] e “La vera storia: Oper ja und nein” [pp.259-299], in Vielstimmigkeit und Bedeutungsvielfalt im Musiktheater von Luciano Berio, Mainz: Schott 2010.
A expressão é de Luciano Violante, num texto sobre Berio (“Breve viaggio intorno alla musica di un
27
compositore amico”, in Sequenze per Luciano Berio, op. cit., pp.271-273 (também disponível em: http:// www.lucianoviolante.it/index.php?option=com_content&task=view&id=519&Itemid=26).
Não deixa de ser sintomático o facto de Berio convocar Wagner e Brecht na sua reflexão sobre Verdi,
28
dramatúrgico, libretístico e musical em La vera storia29. Também não serão tema
aprofundado nesta dissertação as questões igualmente pertinentes de teor
histórico-social e político que as histórias de La vera storia encenam . 30
Interessante é, contudo, sublinhar que, pese embora o facto de Berio fazer de Il
Trovatore um modelo a partir do qual concebe a sua “azione musicale” – e a literatura
crítica traça a fundo essa mesma relação, uma relação motivada, muito provavelmente,
pela instrumentalização de que este mesmo modelo poderia ser alvo face à gestão, por
Berio, do horizonte de expectativa do público –, esta escolha não nos impede de ver
para além da herança verdiana e de fazer remontar os motivos e temas abordados na
Parte I a uma matriz cultural de fundo, que diríamos milenar e transversal a todas as
artes e que arranca da circunstância espacio-temporal esses mesmos episódios narrados,
elevando-os a uma categoria sem tempo nem espaço — se a Parte I já aponta
definitivamente para isso , a Parte II não nos abre outro caminho de leitura. Aqui, o 31
contributo de Italo Calvino terá sido decisivo para que, entre a primeira e segunda partes
desta ópera, reconheçamos de imediato os motivos/temas universais, pelo simples facto
de estes sofrerem uma recontextualização. Não estamos, portanto, de acordo com
Claudia di Luzio quando explica e remete para a herança de Verdi, e tão somente essa, a
estruturação da primeira parte desta obra , por muito que fosse esse o desejo expresso 32
por Berio, por muito que Calvino o concretizasse, e sobretudo por mais que se possa
Sobre este debate, leia-se os contributos de STOIANOVA, Ivanka, “La vera storia”, in Luciano Berio.
29
Chemins en musique, Paris: la revue musicale, triple numéro (375-376-377), 1985, pp. 301-331; GIRARDI, Michele, “Il trovatore nel 1982 secondo Berio-Calvino-Sermonti, ossia La vera storia”, in Verdi 2001. Atti del Convegno internazionale, Parma-New York- New Haven, a cura di Fabrizio Della Seta, Roberta Montemorra Marvin, Marco Marica, 2 voll., Firenze: Olschki, 2003, vol. II, pp. 443- 460; ZOPPELLI, Luca, “Dramaturgie structurale? Nouvelles observations sur le rapport entre La vera storia et Il trovatore”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1, op. cit., pp.479-500; e BRÜDERMANN, U. op. cit., pp.339-352 e pp.374-376.
Neste campo de reflexão remetemos para quatro trabalhos: GERASI, Toni, “Lisibilité de l'espace social
30
dans La vera storia”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1 op. cit., pp.467-478; RIBEIRO, Paula Gomes, “Sur un geste idéologique anti-totalitaire: La vera storia de Luciano Berio et Italo Calvino”, in Minority Theatre on the Global Stage. Challenging Paradigms from the Margins, ed. by Madalena Gonzalez and Hélène Laplace-Claveria, Newcastle upont Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2012, pp.61-74; MILA, Massimo, “Feste-rivolte di Berio trovatore”[«La Stampa», 9 March 1982], in Massimo Mila alla Scala. Scritti 1955-1988, ed. por Renato Garavaglia e Alberto Sinigaglia, Milano: Rizzoli 1989, pp. 393-395; “Anche Milva nel' La vera storia” [«La Stampa», 11 Marzo 1982], in Massimo Mila alla Scala. Scritti 1955-1980, op. cit., pp. 396-398; e BRÜDERMANN, U., “Gewalt und Terror…”, op. cit., pp.333-338.
Não é por acaso que, com toda a pertinência, Ute Brürdermann convoca os textos seminais de Michail
31
Bachtin para comentar a fundo as “Feste” que pontuam a Parte I de La vera storia, na sua análise exaustiva desta ópera: “Die Feste - «proposta d'una società diversa»”, op. cit., pp.353-369.
Cf. DI LUZIO, Claudia, “Looking back on «La vera storia»…”, op. cit., p.419-420.
dissecar em detalhe a hiperpresença desse modelo operático que é Il Trovatore na Parte I
de La vera storia.
As razões que encontramos para consolidar esta perspectiva são várias. Antes de
mais, porque o próprio Verdi e seus libretistas devem a essa mesma matriz cultural,
citando-a amiúde (tal seria, também o gosto cultivado na ópera do século XIX, ou, mais
do que uma questão de gosto, terá sido uma opção estética não sem fundamento ) e 33
remetendo para todo esse corpus atemporal com o intuito de trabalhar as questões que
sempre foram caras à expressão artística e à reflexão sobre o humano , e em particular 34
à arte teatral no sentido lato — bastará olhar para os títulos da sequência de episódios
narrados na Parte I para antevermos esses lugares universais, ou topoi, muito para além
da citação verdiana: “La Condanna”, “Il Ratto”, “La Vendetta”, “Il Tempo”, “La Notte”,
“Il Duello”, “La Preghiera”, “Il Grido”, “La Prigione”, “Il Sacrificio” e “Il Ricordo”. A
reforçar esta ideia está o facto de Berio ter insistido nas suas leituras de Vladimir Propp
e de Claude Lévi-Strauss, dois autores inegavelmente ligados ao trabalho detalhado
sobre motivos, temas e discursos transversais a todo o fenómeno artístico, para justificar
o seu projecto de uma ópera dividida em duas partes, com as marcas de singularidade
que descrevemos acima . E, finalmente, porque na escolha de dialogar com um 35
compositor como Verdi está, também, a escolha de dialogar com a tradição,
nomeadamente a tradição popular onde radica todo o mito e lenda, opção esta que,
O debate sobre esta questão não cabe nesta apresentação, dada a sua complexidade e inesgotabilidade.
33
Prende-se com a perspectivação historiográfica da própria ópera, que encontra no prolixo século XIX um campo de pesquisa imenso. A nosso ver, contudo, pertence a todas as formas dramatúrgicas cultivadas pelas várias linguagens operáticas do século XIX trabalhar este imenso legado comum, tradicional, de narrativas elementares, ou seja, lendárias ou mitológicas — como, de resto, acontece em toda a história da ópera desde Monteverdi.
Importa referir aqui o contributo fundamental de Elisabeth Frenzel nos anos 50/60, quando fixa em dois
34
volumes o levantamento deste mesmo corpus universal, numa perspectiva histórico-literária, que serve, contudo, todos os outros campos artísticos: FRENZEL, Elisabeth, Stoffe der Weltliteratur. Ein Lexikon dichtungsgeschichtlicher Längsschnitte, 8ª ed., Stuttgart: Kröner, 1992; FRENZEL, Elisabeth, Motive der Weltliteratur. Ein Lexikon dichtungsgeschichtlicher Längsschnitte, 4ª ed., Stuttgart: Kröner, 1992.
Numa entrevista que deu a Bruno Serrou (ResMusica), em 6 de Fevereiro de 1997, Luciano Berio diz:
35
R.M.: Avez-vous réfléchi au concept opéra avec vos amis écrivains, Umberto Ecco, Edoardo Sanguineti et Italo Calvino Sanguinetti, tous de grands écrivains?
L.B.: Non, j’ai inventé cela tout seul. Ma réflexion sur le théâtre musical est en fait en phase avec l’œuvre de Vladimir Propp et des structuralistes soviétiques, plus particulièrement le livre Origines du comportement fondamental.
como veremos, é uma das marcas mais visíveis da estética beriana , que vai 36
inteiramente ao encontro da sensibilidade artística de Calvino . Por muito que a história 37
documentada da génese desta ópera nos diga que Berio pensou quase tudo antes de 38
convocar o seu amigo Italo Calvino a colaborar num libreto feito a dois – no rescaldo de
um caminho cheio de avanços e recuos de cooperação com Edoardo Sanguineti, com
Vittorio Sermonti, e com o argumentista Suso Cecchi d’Amico –, estamos em crer que o
que desta colaboração resulta permite-nos projectar a nossa leitura da ópera muito para
além do debate sobre a relação mais ou menos hierárquica entre música e texto, ou para
além das questões que se prendem com o grau de influência de um campo (literatura)
sobre o outro (música), ou mesmo para além da matéria de reflexão que se prende, de
Giorgio Pestelli descreve esta relação como “La facoltà di rappresentare una contemporaneità mentale
36
di eventi diversi”, num trabalho onde revê o próprio conceito de “tradição”, ou, melhor, a relação dos compositores com a herança musical que perfilham e as profundas mudanças que esta sofre ao longo dos séculos XIX e XX (“Luciano Berio. Archetipi cancellati e avventura creativa”, in Luciano Berio. Nuove Prospettive. New Perspectives, a cura di Angela Ida De Benedictis, Firenze: Leo S. Olschki, 2012, pp. 17-33). Também Béatrice Ramaut fala de “mise en relation” (p.127) quanto à música de Berio, no seu aturado estudo comparativo da relação da música contemporânea com a tradição, focando em específico os casos de Lachenmann (a propósito de Accanto) e de Berio (a propósito de Opera) [“Deux mises en scène d'une conscience de la tradition”, Revue de Musicologie, 79/1 (1993), pp.109-141]. Faz parte deste gesto dialogante, feito da citação/"transcrição" e da intertextualidade, também um imenso corpus literário, que se estende entre a Antiguidade Clássica e a contemporaneidade: Sinfonia e Outis são dois, de muitos, exemplos claros desta tendência que diríamos "omnívora" da música beriana — um gesto de acolhimento da voz outra, que obriga, também, a uma necessária recolocação da própria voz.
Os estudos berianos têm vindo a dedicar-se, de resto, a este aspecto da remissão constante à tradição
37
mítica literária em outras óperas, para não falar da sua restante obra. A título de exemplo, cf. HEILE, Björn, “Prospero’s Death: Modernism, Anti-humanism and Un re in ascolto”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome 2, op. cit., pp.145-160; CROSS, Jonathan, “How Do You Make an Opera Without a Narrative? Journeying with Ulysses and Outis”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome 2, op. cit., pp.201-223; COHEN-LEVINAS, Danielle, “«J’ai rêvé un théâtre…» Épiphanie ou complexe d’Orphée chez Luciano Berio”, in Omaggio a Luciano Berio, dir. par Danielle Cohen-Levinas, Paris, L’Harmattan, 2000, pp.35-52; FISCHER, Michel, “Un Re in ascolto: Cinq arias dévolues au silence intérieur de Prospero”, in Omaggio a Luciano Berio, op. cit., pp.54-95; JOOS, Maxime, “Outis: Morphologie du mythe”, in Omaggio a Luciano Berio, op. cit., pp.97-117; DI LUZIO, Claudia, “Reverberating History. Pursuing Voices and Gestures in Luciano Berio's Music Theatre”, in Luciano Berio. Nuove Prospettive…, op. cit., pp.267-289.
São muitas as fontes que ajudam a documentar a génese de La vera storia, entre correspondência de
38
novo, com a identidade genológica desta obra, suas opções dramatúrgicas, seu libreto e
seus verdadeiros autores. La vera storia insere-se um continuum histórico que
inevitavelmente ultrapassa estas questões: por mais que circunstancialmente as palavras
sirvam a música, a uma escala temporal e espacial mais alargada elas não deixarão de
ser encaradas como o eco dos grandes mitos do humano, de que inevitavelmente fazem
parte. Calvino soube ver, também, qual o seu papel, por muito que se aponte para uma
relação desigual entre o peso das suas palavras face ao peso da música de Berio, questão
que, sublinhamos de novo, é a nosso ver menor face ao efeito que a obra realiza. O seu
texto sobre La vera storia aquando da estreia da ópera mostra a lucidez com que
recebeu o desafio de Luciano Berio: “[…] per ognuno di questi momenti [Berio] mi ha
chiesto delle parole che, senza precisare troppo l'azione, diano la sostanza della
comunicazione lirica” . Ousaríamos mesmo dizer que Calvino viu para além das ideias 39
bem precisas de Berio sobre La vera storia; percebeu que o que importaria escrever não
seria posto em causa neste projecto. Os testemunhos que lemos no trabalho de Ivanka
Stoianova, assim como a entrevista que Calvino dá a Lorenzo Arruga, em vésperas da
estreia de La vera storia em Milão, são disso esclarecedores:
...Ce qui m'interesse beaucoup dans le travail avec Berio c'est que lui, il a toujours
des idées très précises, il sait tout ce qu'il veut jusqu'au moindre détail. Pour
l'opéra sur lequel on travaille actuellement il sait tout ce qui arrive, tout le côte proprement musical, ainsi que tout ce qui se passe sur la scène. Et il me demande
d'écrire les mots. Je dois dire que je n'ai pas la moindre liberté. Eh bien, si l'on n'a
pas de liberté du tout, on travaille très bien. Parce que la liberté dérange parfois,
on ne sait pas quoi en faire ...
...Être parolier — ça m'amuse beaucoup. J'aime beaucoup travailler sur
commande. Et c'est parce que je pense que quand tout est prescrit et on a
beaucoup de contraintes, il reste tout de même une grande liberté dans le cadre
même de ces contraintes. C'est là que commence la liberté... 40
CALVINO, Italo, “La vera storia”, in La vera storia, programma di sala della prima rappresentazione
39
assoluta, Milano: Edizioni del Teatro alla Scala, 1982, p. 30.
Testemunhos de Italo Calvino em 15/6/1978, publicados por Ivanka Stoianova (op. cit., p.304).
40
Lorenzo Arruga: Bene, così è andata con Mozart . E con Berio? 41
Calvino: Con Berio siamo amici da molti anni. Nel '56, a Venezia, mi chiese di
collaborare con lui per una cosa che si chiamava Allez-hop: si trattava di collegare
attraverso un'azione scenica tre pezzi dati. E sempre in questi anni, da un aeroporto o da un altro, mi telefonava: «Puoi scrivermi le parole per ... ?». Ogni
tanto ho provato. Lui è un musicista che ha sempre un'idea musicale precisa,
vuole un testo, aspetta solo che le parole che scrivo si adattino perfettamente alla
sua idea. […]
Lorenzo Arruga: E in che cosa crede?
Calvino: Eh, credo in quelli che credono nelle cose che fanno, e credo nelle cose
fatte da quelli che ci credono. 42
De resto, o que Luciano Berio denomina de “azione musicale” reflecte este tipo de
cooperação na constituição do libreto de La vera storia. A partir das palavras que
citamos abaixo, trata-se de um acontecimento musical que serve de elemento pivot para
o trabalho cénico, dramatúrgico e literário que o acompanham:
R.M.: Pour quelqu’un qui dit que l’opéra est mort, vous n’arrêtez pas d’en
composer et d’en parler!
L.B.: Le dernier en date, Outis, n’est pas un opéra, mais une action musicale. C’est la musique qui tient ce petit monde, gère le tout, est la force motrice
principale, y compris de la narration. 43
Finalmente, como teremos ocasião de mostrar, a falta de liberdade de que Italo Calvino
fala acima para trabalhar no texto de La vera storia não é um factor negativo, pelo
contrário. Nas suas lições de Harvard, publicadas em Seis propostas para o próximo
milénio44, Calvino dedica uma das suas lições à Visibilidade, ou seja, à estupenda
capacidade de imaginarmos, ou de vermos por imagens, por muito condicionada que a
nossa liberdade se encontre . Este debate sobre a relação de Berio e Calvino na 45
Arruga refere-se à estreia de Zaide, uma ópera incompleta de Mozart para a qual Calvino escreveu um
41
libreto e que estreou em 20 de Fevereiro de 1982 em Veneza. Adam Pollock dá-nos um interessante testemunho sobre este trabalho de Italo Calvino em “From page to stage”, op. cit.
Italo Calvino em entrevista a Lorenzo Arruga, op. cit.
42
Luciano Berio em entrevista com a ResMusica em 6 de Fevereiro de 1997 (op. cit.). Ressalvamos aqui
43
o facto de não ser o nosso intuito discutir se Berio realiza, ou não, o que define como “azione musicale”. Citamos as suas palavras porque nos parecem suficientemente esclarecedoras da postura de coerência que assume face ao que projecta para o libreto de La vera storia e face ao modo como trabalhou com Italo Calvino.
CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milénio, 3ª ed., Trad. José C. Barreiros, Lisboa:
44
Editorial Teorema, 1998. ibidem, p.106.
constituição do libreto de La vera storia só nos interessa, não para prolongar uma
discussão já longa sobre a génese desta ópera, mas sim para mostrar uma afinidade
estética e ética profunda entre o pensamento de ambos os autores, que terá decerto
determinado a sua colaboração. Não é, de resto, por acaso que utilizaremos
precisamente as Norton Lectures de Calvino para pensar as implicações éticas da
produção beriana, no último capítulo da presente dissertação. E por muito que se
encontre uma certa ironia e capacidade de distanciação nas palavras de Calvino face à
colaboração com Berio no libreto de La vera storia (que tantos apontam como
experiência negativa), diríamos, pelo contrário, que foi um trabalho plenamente
cumprido, sem abdicar do que realmente é fundamental tanto para Luciano Berio como
para Italo Calvino.
Três anos depois da morte inesperada de Italo Calvino, Luciano Berio dá
testemunho do trabalho de colaboração que teve com o seu amigo em diversos
momentos da sua produção. É um testemunho importante, na medida em que fala da
musicalidade de Calvino e do seu papel determinante no trabalho de Luciano Berio. As
palavras que de seguida citamos, não podendo nem querendo negar o que está
documentado sobre a constituição do libreto de La vera storia, decerto contribuem para
se trazer à luz o que é essencial reter desta mesma questão — o facto de Berio ter
encontrado em Calvino um colaborador adequado, não só no que diz respeito à tarefa
que lhe propôs propriamente dita, mas, mais do que isso, o que dela se pretendia extrair
em sentido e em substância para a leitura de La vera storia:
Sarebbe lungo raccontare nei dettagli, spesso divertenti, le diverse tappe del mio
lavoro con Italo. Un giorno qualcuno lo farà. Vorrei comunque ricordare che mi
sento immensamente debitore con Italo non solo per quello che mi ha dato ma
anche e proprio per quella sua esterna non-musicalità che mi ha aiutato a tenere i
piedi per terra nell'esperienza della comunicazione verbale attraverso la musica e
della comunicazione musicale attraverso la parola. Ma soprattutto gli sono grato per la sua opera che è, in effeti, una delle piú musicali nella letteratura di questo
secolo, anche in virtú di quella moltitudine, di quella polifonia di livelli espressivi
che lui aveva difficoltà a percepire nell'esperienza musicale. Il suo percorso
paragonabile a una architettura musicale: come una costruzione di frammenti
internamente partecipi di un processo musicale in continua trasformazione. 46
BERIO, Luciano, “La musicalità di Calvino [1988]”, in Scritti sulla musica, op. cit., pp.328-331.
Esta dissertação
O objectivo final da presente dissertação é a ponderação sobre as implicações
éticas de uma estética que ousa relacionar o diverso. Porque, se é consensual na
literatura crítica sobre a música beriana a sua constante remissão para outros suportes,
sejam estes musicais, literários, ou cénicos; se é igualmente consensual, na literatura
analítica, que a música de Berio – e também em La vera storia – privilegia o encontro
com o outro e a convivência de múltiplas camadas díspares num mesmo momento
musical; tal constatação carece de uma explicação sobre as consequências éticas de tal
gesto ou traço estético. E se os estudos de teor analítico sobre La vera storia, por
exemplo por, Ute Brüdermann, por David Osmond-Smith, e por Angela Carone , são, 47
sem dúvida, importantes para a constituição deste trabalho, também o estudo de
Susanna Pasticci sobre a dimensão ética do pensamento criativo de Berio é 48
fundamental para a consolidação dos nossos propósitos de reflexão. Pasticci escreve no
resumo do seu artigo:
Luciano Berio's music is animated by a profound ethical tension: a vocation for ethos that is reflected not only in his comments or his writings on musical
aesthetics, but also in his creative choices, his artistic practice and the sound
worlds he created. Although it is urgent and indispensable, this tension has
nothing of the ideological stance about it, nor is it emphasized or exhibited; it is
more an attitude towards the world, and its ethical value can be traced only in the
most hidden folds of his thought and his way of making music. 49
Se é inegável a constatação de uma dimensão ética no fazer musical de Luciano Berio, a
sua reflexão é, sem dúvida, uma tarefa que urge cumprir. Se Pasticci elege as Norton
Lectures de Berio como caso de estudo para debater esta questão, este caminho está, no
entanto, de algum modo incompleto, na medida em que é sobretudo na concretude do
seu fazer musical (e não nos seus escritos) que esta dimensão ética se deixa descrever
Além dos trabalhos de Osmond-Smith e de Brüdermann (op. cit., com um aturado exercício
47
comparativo entre o material textual e musical presente na primeira e segunda partes da ópera, pp. 360ss. e 370ss.), citados atrás, remetemos para o estudo de CARONE, Angela, “La vera storia: organizzazione dei materiali sonori”, in Le Théâtre musical de Luciano Berio, Tome1 - De «Passaggio» à «La vera storia», dir. de Giordano Ferrari, Paris: L'Harmattan, 2016, pp.431-452.
PASTICCI, Susanna, “«In the meantime, we'll keep translating». The strength of the ethical dimension
48
in the creative thought of Luciano Berio”, in Luciano Berio. Nuove prospettive…, op. cit., pp.459-475. PASTICCI, Susanna, ibidem, p.459.
em detalhe. Qualquer percurso artístico é, sem dúvida, portador de uma dimensão ética.
E, se no caso de Luciano Berio, muitos são os estudos sobre a sua obra que se
aproximam de interpretações estéticas contextualizadas no tecido histórico-social, no
tecido político, no seu percurso biográfico e na relação com outros compositores e um
mundo imenso de artistas, falta, no entanto, saltar do campo analítico aprofundado e
tentar ler de um ponto de vista filosófico e ético a fenomenologia da sua música. Falta
fazer encontrar o esforço analítico que os estudos berianos têm cultivado sobre a sua
música com questões que, a nosso ver, estão intimamente implicadas no objecto sonoro
beriano, se bem que lhe sejam aparentemente exteriores, pelo simples facto de
pertencerem à esfera da sua relação com o mundo.
Assim, a reflexão de matriz histórico-filosófica e analítica que vamos de seguida
desenvolver tem como intuito apontar para as implicações éticas que subjazem ao fazer
artístico de Berio. La vera storia será o nosso caso de estudo, mas dadas as
características da música beriana, será impossível não falar da obra anterior e posterior a
esta ópera. E, se por um lado ensaiamos repensar a música de Luciano Berio dentro de
um enquadramento conceptual filosófico, por outro este mesmo enquadramento não
pode senão ser devidamente implicado na leitura analítica que de seguida apresentamos.
O debate sobre questões harmónicas na música beriana será, assim, não só um
contributo que dialoga com as leituras já existentes, mas também uma proposta de
análise que se esforça por caminhar para fora de si mesma.
Esta é uma dissertação estruturada em quatro capítulos que têm como ponto de
fuga a força do atrito que move a composição em Luciano Berio. Cada um dos quatro
capítulos privilegia um dos seguintes aspectos: considerações de ordem filosófica
(capítulo I), prática musical (capítulo II), questões de teor conceptual sobre a história e a
arte (capítulo III) e preocupações políticas no sentido lato (capítulo IV).
O primeiro capítulo da nossa dissertação, intitulado «Pensar a Música de Berio.
Uma ponderação filosófica a partir de Gilles Deleuze», tem a função de apresentar,
antes de mais, o ponto de partida do nosso raciocínio. Ao mesmo tempo que tece uma
reflexão geral e introdutória sobre a música de Luciano Berio, introduz de forma