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O início da missão cristianizadora da Escandinávia e sua interpretação nas Gesta Hammaburgensis de Adam de Bremen

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O INÍCIO DA MISSÃO CRISTIANIZADORA DA ESCANDINÁVIA E SUA INTERPRETAÇÃO NAS GESTA HAMMABURGENSIS DE ADAM DE BREMEN

THE BEGINNING OF SCANDINAVIAN CHRISTIANIZATION MISSION AND ITS INTERPRETATION IN ADAM DE BREMEN’S GESTA HAMMABURGENSIS

Lukas Gabriel Grzybowski Universidade de São Paulo

_________________________________________________________________________________________________________

Resumo: O presente artigo se propõe a lançar um olhar sobre o problema da cristianização da Escandinávia. Tal problema, embora não seja novo, segue sendo central entre os pesquisadores do espaço nórdico europeu durante a Idade Média. Pretende-se, neste trabalho, realizar uma nova abordagem do problema, partindo das propostas da Vorstellungsgeschichte (História das conceptualizações). Para tanto, serão abordados alguns trechos das Gesta

Hammaburgensis de Adam de Bremen. Ao

privilegiar os conceitos apresentados pelo autor medieval na narrativa de alguns eventos ligados às transformações religiosas no contexto de expansão do cristianismo no espaço nórdico, observa-se, como resultado, uma perspectiva diversa daquela dominante nas investigações acerca do processo de cristianização da Escandinávia na Idade Média, sobretudo em relação ao seu significado para os contemporâneos.

Palavras-chave: Cristianização da Escandinávia, Adam de Bremen, História da Religião.

Abstract: This paper intent to launch a new view on the problem of the Christianization of Scandinavia in the Early Middle Ages. It is not a new topic under the historians of this period, but it continues to promote vivid debate among the specialist on the history of medieval northern Europe. A new approach to the problem is intended by

following the methodological

propositions of the

Vorstellungsgeschichte. For that some

passages of Adam of Bremen’s Gesta

Hammaburgensis are going to be

analyzed. As a result a shifting on the general tone on the Christianization debate is observed, once the medieval author’s perspective on the narrated facts assumes the center of the discussion.

Keywords: Christianization of

Scandinavia, Adam of Bremen, History of Religion.

__________________________________________________________________________________________________________

Recebido em: 31/10/2015 Aprovado em: 02/06/2016

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1. Introdução

Entre os pesquisadores do medievo escandinavo,1 é comum encontrar uma clara distinção entre duas grandes fases da experiência histórica envolvendo os territórios nórdicos europeus na Idade Média. A primeira fase é chamada recorrentemente de “Era Viking”, e refere-se, sobretudo, ao período de expansão das populações escandinavas no contexto das incursões militares ocorridas aproximadamente entre os séculos VIII e XI no continente europeu e nas ilhas britânicas. A esta fase segue-se outra, que se distingue pela consolidação de reinos nos territórios da Dinamarca, Noruega e Suécia, em que elementos de uma história nacional passam a moldar a abordagem e a interpretação do passado. Ambas as fases distinguem-se também em relação a outros aspectos. Os modelos de organização social e cultural passam reconhecidamente por profundas alterações; o próprio conhecimento a respeito de ambos os períodos é bastante diverso, uma vez que, na primeira fase mencionada, o uso da escrita é relativamente restrito e não há uma cultura de manutenção de registros, o que dificulta deveras o trabalho do historiador em sua busca por informações sobre tal época.

Um evento decisivo promoveu a transição do primeiro ao segundo momento. Há hoje, na academia, unanimidade sobre o papel da cristianização da Escandinávia, entre os séculos IX e XI, na integração dos territórios nórdicos à dinâmica histórica e cultural do continente Europeu. Autores como Sverre Bagge, Anders Winroth, Peter Sawyer, Birgit Sawyer e Klaus von See2 apontam que é a partir da influência peremptória do modelo

1 Exemplarmente no caso das obras introdutórias, de caráter mais geral, mas que refletem uma divisão visível nas

investigações mais específicas. Cf. ROESDAHL, Else. The Vikings. 2 ed. London: Penguin Books, 1998; SAWYER, P. H. Kings and Vikings: Scandinavia and Europe, A.D. 700-1100. London, New York: Routledge, 1982; SAWYER, Birgit (ed.), SAWYER (ed.), Peter. Medieval Scandinavia: From conversion to Reformation,

circa 800 - 1500. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993; SIMEK, Rudolf. Die Wikinger. 4 ed.

München: Beck, 2005; BRINK, Stefan (ed.), PRICE, Neil (ed.). The Viking world. London: Routledge, 2008; CHRISTIANSEN, Eric. The Norsemen in the Viking Age. Oxford: Blackwell, 2006; JONES, Gwyn. A history of

the Vikings. 2nd ed. ed. London, New York: Oxford University Press, 2001; HAYWOOD, John. The Penguin historical atlas of the Vikings. London, New York: Penguin Books, 1995. Alguns exemplos de trabalhos

tematicamente mais circunscritos, mas que mantém a proposta de uma distinção entre ambas as fases da história escandinava na Alta Idade Média podem ser BAGGE, Sverre. Cross & scepter: The rise of the Scandinavian

kingdoms from the Vikings to the Reformation. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2014; WINROTH,

Anders. The conversion of Scandinavia: Vikings, merchants, and missionaries in the remaking of Northern

Europe. New Haven: Yale University Press, 2012b; HOFMANN, Kerstin P. (ed.), et al. (ed.). Die Wikinger und das Fränkische Reich: Identitäten zwischen Konfrontation und Annäherun.. Paderborn: Wilhelm Fink, 2014.

2 BAGGE, Sverre. Op. Cit., 2014; WINROTH, Anders. Op. Cit., 2012b; SAWYER, P. H. Op. Cit., 1982;

SAWYER, Birgit; SAWYER, Peter. Op. Cit., 1993; SEE, Klaus von. Königtum und Staat im

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cultural associado à religião cristã medieval que os desenvolvimentos políticos, sociais, econômicos e culturais observados na segunda fase do medievo escandinavo terão seu início. Por conseguinte, a propagada centralidade do processo de transformação religiosa experimentada pela Escandinávia durante a Alta Idade Média assume uma posição de destaque na historiografia a respeito do recorte espaço-temporal em que está inserido. E embora haja consenso quanto à importância da introdução da religião cristã para os desenvolvimentos observados na segunda fase da história escandinava no medievo, permanece grande controvérsia sobre diversos aspectos da cristianização, dentre os quais o debate acerca das reações contemporâneas ao processo assumem um papel central.3

Para além de posições subjetivas quanto ao “dano” ou às “vantagens” experimentadas pela cultura escandinava a partir da cristianização, permanece um vívido debate em torno dos meios através dos quais a religião cristã se difundiu nos territórios nórdicos; a partir de que momento é correto assumir que as populações nórdicas passaram a aceitar o cristianismo como religião singular? Quais as incorporações e permanências de práticas místico-religiosas anteriores na nova dinâmica religiosa? Quais foram os agentes centrais da cristianização – agentes germânicos, anglo-saxões ou locais? a adoção do cristianismo foi uma ação estratégica política, ou um ato de piedade? Ela foi imposta ou requerida? Todas essas questões permanecem em aberto e são temas recorrentes em discussões a respeito do passado escandinavo. Embora tais discussões tenham seu mérito, ainda assim elas correm o risco de construir a análise sobre um princípio anacrônico e por vezes teleológico, se não positivista, na interpretação do passado, ao invés de centrar-se sobre o significado das mudanças experimentadas durante a cristianização de acordo com as perspectivas de

3 Isso pode ser observado, por exemplo, nos estudos que abordam a questão da transição religiosa com

base na cultura material e, sobretudo, nas práticas de enterramento. A este respeito ver ROESDAHL, Else. The Vikings. 2 ed. London: Penguin Books, 1998, com um panorama das posições mais tradicionais em torno da interpretação dos vestígios funerários e sua relação com a transição religiosa. Uma posição mais recente e crítica apresentam LUND, Julie. Fragments of a conversion: Handling bodies and objects in pagan and Christian Scandinavia ad 800–1100. World Archaeology, v. 45, n. 1, 2013 e KRISTJÁNSDÓTTIR, Steinunn. Becoming Christian: A Matter of Everyday Resistance and Negotiation.

Norwegian Archaeological Review, v. 48, n. 1, 2015. Ambas as autoras propõem uma releitura dos

vestígios, sugerindo um largo processo de transição das práticas religiosas, em oposição às interpretações absolutas de pesquisas anteriores. Nesse caso, conceitos como aculturação, resistência cotidiana e apropriação assumem um papel central nas análises dos vestígios. Do ponto de vista teórico, o trabalho de BAER, Marc David. History and Religious Conversion. In:. RAMBO, L. R. (ed.), FARHADIAN, C. E. (ed.). The Oxford Handbook of Religious Conversion, Oxford University Press, 2014, apoiado em discussões existentes desde a década de 1960, propõe uma interpretação de momentos de transição religiosa, os quais divide em quatro fases.

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suas testemunhas. Tal é a proposta do presente artigo, a saber, analisar como Adam de Bremen, um dos principais narradores do processo de cristianização da Escandinávia, percebe e significa o início do esforço evangelizador no espaço nórdico através de suas

Gesta Hammaburgensis, uma obra historiográfica dedicada à exaltação da empresa

missionária levada a cabo pela diocese de Hamburgo-Bremen.

Para tanto, tomo as propostas da Vorstellungsgeschichte4 como referencial teórico-metodológico no presente trabalho. Trata-se de uma proposta ligada à investigação das ideias do passado. Aproxima-se, portanto, da noção de “história das ideias” enquanto conceito geral, muito embora se mostre bastante distante de uma

history of ideas, intellectual history ou Geistesgeschichte. Ela surge enquanto reflexão

teórico-metodológica no contexto germânico da segunda metade do século XX, e está diretamente ligada ao movimento mais amplo de contestação da primazia dos elementos político-institucionais na escrita da história. Ela se conecta, desse modo, ao movimento dos Annales franceses e sua proposta de uma história voltada para todos os sujeitos do passado. Todavia, enquanto no contexto francês foi dado especial destaque a uma abordagem estrutural, voltada para a investigação das coletividades, a

Vorstellungsgeschichte se dirige ao sujeito singular. Um de seus principais teorizadores

é o alemão Hans-Werner Goetz, a quem sigo na breve exposição seguinte.5

Seria, sem dúvida, presunção negar o papel dos historiadores em torno dos

Annales na (re)descoberta dos indivíduos na história, sobretudo diante dos grandes

impulsos colocados pelas propostas de uma histoire totale e de uma abordagem como a antropologia histórica, frutos, em grande medida, das reflexões de pensadores franceses. Entretanto, ao tomar-se como objeto somente o campo das ideias, do troisième niveau,

4 A opção por empregar nesse momento o termo em alemão, língua em que foi originalmente cunhado,

deve-se à dificuldade de sua tradução e à complexidade do conceito. Uma versão para a língua portuguesa depende de uma discussão mais larga, que extrapolaria os limites do presente artigo.

5 Goetz expos sistematicamente a Vorstellungsgeshcichte pela primeira vez em um artigo publicado no

ano de 1979 no periódico Archiv für Kulturgeschichte (GOETZ, Hans-Werner. "Vorstellungsgeschichte": Menschliche Vorstellungen und Meinungen als Dimension der Vergangenheit. Archiv für

Kulturgeschichte, v. 61, 1979). Ele não é, como bem indica em seu trabalho, o primeiro, nem o único a

realizar as reflexões que sustentam a Vorstellungsgeschichte. Suas reflexões atuaram, todavia, no sentido de sua sistematização e expansão, de modo a respaldar um caráter de novidade para tais teorias. Goetz desenvolve, a partir de seu artigo, e em trabalhos posteriores, igualmente uma metodologia para a investigação pautada pela Vorstellungsgeschichte. Um balanço teórico-metodológico que engloba a relação da Vorstellungsgeschichte com outras abordagens da investigação histórica é apresentado em GOETZ, Hans-Werner. Gott und die Welt: Religiöse Vorstellungen des frühen und hohen Mittelalters. Berlin: Akademie Verlag, 2011, p. 13–48.

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que se coloca como foco da presente investigação, é sem dúvida notável a preponderância, no contexto francês, de análises de caráter estrutural e coletivo, organizadas sob o conceito ali desenvolvido de “mentalidades”. Nota-se pouco espaço para a investigação do pensamento ou das ideias de sujeitos singulares do passado.

Em sua perspectiva antropológica, a Vorstellungsgeschichte se afasta, ao mesmo tempo, de uma história das ideias de caráter biográfico, fortemente influenciada pela perspectiva político-institucional, que busca identificar no passado as “grandes ideias” e os “grandes pensadores”, como se pode observar no contexto da history of ideas, da

Gesitesgeschichte e também da intellectual history. Do contrário, uma

Vorstellungsgeschichte compartilha dos mesmos princípios reflexivos e críticos que

estão na base de uma história das mentalidades. Seu tom é o de uma antropologia histórica das ideias, voltada, todavia ao contrário das mentalidades, para a investigação dos sujeitos, sua singularidade individual e temporal. Assim, interessa a esta abordagem histórica não somente o grandioso, mas também – e sobretudo – o medíocre, como expressão das ideias no passado.6 Ao mesmo tempo, “ela se direciona a todo o

pensamento e o saber dos homens (ou de um homem), e apreende, com a soma dos pensamentos, perspectivas, opiniões, certezas e pontos de vista, as sensibilidades e capacidades espirituais7 dos homens em geral”.8

A maneira mais simples de definir a proposta da Vorstellungsgeschichte passa necessariamente pela sua relação com as demais formas – níveis – de investigação histórica: os fatos e as estruturas. Uma história factual se ocupa com os acontecimentos históricos individualmente, sejam eles fatos isolados ou processos; uma abordagem estrutural da história, por outro lado, dedica-se a investigar os fenômenos passados que permitam identificar regularidades, tipificações e generalizações referentes à experiência histórica, as quais não estejam vinculadas a fatos ou processos singulares,

6 Cf. “Sie ist gleichsam der Versuch, einerseits die Ausweitung der Geschichtswissenschaft auf alle

Menschen und alle Bereiche menschlichen Lebens auch auf die Geistesgeschichte auszudehnen und nicht mehr nur die großen Denker, sondern auch die „Durchschnittsautoren“ als Zeitzeugen zu analysieren.”

GOETZ, Hans-Werner. Gott und die Welt: Religiöse Vorstellungen des frühen und hohen Mittelalters. Berlin: Akademie Verlag, 2011, p. 17–18.

7 Emprego aqui o termo em seu sentido filosófico, e não religioso, como poder-se-ia interpretar.

8 “zielt sie auf das gesamte Denken und Wissen der (oder eines) Menschen ab und erfaßt mit der Summe

menschlicher Gedanken, Ansichten, Meinungen, Überzeugungen und Anschauungen die geistigen Befindlichkeiten und Kapazitäten der Menschen insgesamt.” Ibid., p. 18.

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nem a indivíduos. O terceiro nível da investigação histórica, ao qual pertence a

Vorstellungsgeschichte, dedica-se ao estudo dos homens inseridos nos acontecimentos

históricos, não a partir da perspectiva dos agentes – ao menos não no seu sentido tradicional, ligado à proposta da história factual –, mas na perspectiva das vítimas, dos “observadores pacientes” da experiência histórica.9

A Vorstellungsgeschichte pergunta, por conseguinte, como o sujeito via, ou queria ver, o mundo ao seu redor, importando aqui não o acontecimento em si ou mesmo o quão acurada é a perspectiva do observador em relação aos acontecimentos que narra, mas exclusivamente o seu ponto de vista em relação a estes.10 A Vorstellungsgeschichte se concentra sobre o problema do enfrentamento dos sujeitos com o universo ao seu redor a partir de uma perspectiva conceitual. Tais conceptualizações divergem por vezes drasticamente da realidade prática, sem, contudo, contradizer a esta dentro dos limites de seu contexto. Elas representam, enfim, o aparato utilizado por um determinado sujeito – investigado – em sua tarefa cotidiana de significação de seu mundo e abrem novas perspectivas para a compreensão do passado.11

2. Questões

O ponto de partida para as reflexões que apresento nesse trabalho é um problema levantado por duas publicações recentes voltadas ao tema da cristianização ou conversão

9 Cf. “Am einfachsten macht man sich das wohl in Abgrenzung von den beiden anderen „Ebenen“ der Geschichte

klar: den Ereignissen und Strukturen. Erstere beinhalten das historische Geschehen (als einzelnes Faktum wie auch als Prozeß), letztere enthalten die vom Individuum ebenso wie vom Einzelereignis losgelösten Generalisierungen oder Typisierungen historischer Phänomene. Historische Vorstellungswelten richten sich hingegen auf den Menschen im historischen Geschehen, der es nicht selbst bewirkt (erwirkt allenfalls daran mit), sondern der es, als „Betroffener“, beobachtet hat (und nun anderen mitteilt).” GOETZ, Hans-Werner. Gott und die Welt: Religiöse Vorstellungen des frühen und hohen Mittelalters. Berlin: Akademie Verlag, 2011, p. 19–20.

10 “„Vorstellungsgeschichte“ fragt demnach, wie der Mensch seine Umwelt gesehen hat oder sehen wollte. Dabei

interessieren letztlich weder (oder nur bedingt) das Geschehen selbst, das Faktum (wobei „Faktum“ hier Ereignis, Vorgang, Situation, Zustand, Prozeß oder Struktur sein kann) bzw. werden die – dargestellten – Vorstellungen selbst zu einem „Faktum“, noch die Frage, wie realitätsnah die Perspektive des mittelalterlichen Betrachters ist, sondern allein die menschlichen Auffassungen davon.” Ibid., p. 20.

11 Um breve exemplo oferece o modelo tripartido da sociedade, da forma como Aldaberón de Laon o

sistematizou. Não é possível conceber que, de um ponto de vista factual, a sociedade medieval se organizasse de maneira tão rasa. Ao mesmo tempo é inegável a força discursiva presente em tal proposta e os valores que ela representa para a sociedade em que foi pensada. Sua presença nas interpretações da coisa social em seu período indica sua funcionalidade enquanto mecanismo de enfrentamento com as realidades sociais vigentes. Sobre a sociedade tripartida ver DUBY, Georges. As três ordens: Ou o

imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982 e OEXLE, Otto Gerhard. Die funktionale Dreiteilung

der ‘Gesellschaft’ bei Adalbero von Laon.: Deutungsschemata der sozialen Wirklichkeit im früheren Mittelalter. Frühmittelalterliche Studien, 1978, v. 12, n. 1.

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dos povos escandinavos na Idade Média. São problemas conceituais, mais que terminológicos, ligados primordialmente ao aparato teórico aplicado na investigação do processo de introdução do cristianismo na Escandinávia medieval. Qual o momento decisivo na passagem da Escandinávia para a dinâmica cultural de caráter cristão na Alta Idade Média? Em outras palavras, quando a Escandinávia tornou- se cristã?

Em seu livro, Cross & Scepter, publicado em 2014, Sverre Bagge levanta uma série de questionamentos que, de certo modo, guiam a pergunta em torno da introdução do cristianismo na Escandinávia durante a Idade Média. Ele identifica duas tendências gerais: aqueles que veem na cristianização um processo longo, de transformação da base cultural, e aqueles que identificam alguns eventos-chaves que marcam a mudança de religião, ao menos em seu caráter oficial, o que corresponderia a uma formalidade almejada na Idade Média. A essas posições se assomam ainda as perspectivas endógenas e exógenas de interpretação do processo, cada qual enfatizando o papel de agentes internos ou externos respectivamente no processo de cristianização da Escandinávia.12

É notável que a preocupação aqui esteja voltada totalmente a categorias interpretativas modernas, que se orientam a partir da perspectiva do historiador em relação ao passado. Isso fica evidente quando Bagge remete à experiência missionária recente como guia para a proposição de modelos interpretativos. De fato, o historiador norueguês procura se afastar das categorias modernas, que ele identifica justamente com a análise da cristianização como processo, adotando para tanto uma postura que vê sobretudo nas ações de líderes políticos os marcos da cristianização. Seu argumento apoia-se na ideia de que para o homem medieval, para o missionário entre os escandinavos, interessa primeiramente promover a religião entre a elite política, de modo a conquistar para o cristianismo um status hegemônico de caráter político que permita a instalação de uma hierarquia eclesiástica na região, pouco importando em um primeiro momento – e que para Bagge pode estender-se até a Reforma Protestante – a perspectiva moderna, de salvação individual da alma através do arrependimento. Para ele, as fontes históricas que tratam da questão da cristianização da Escandinávia, tanto as autóctones quanto as estrangeiras, são unânimes em indicar uma intenção de

12 HOFMANN, Kerstin P (ed.), et al. (ed.). Die Wikinger und das Fränkische Reich: Identitäten zwischen

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conversão meramente formal, de que o esforço missionário e cristianizador tinha como objetivo realizar uma conversão de caráter coletivo, daí sua preocupação na divulgação do cristianismo entre as elites políticas, pois estas poderiam impor a aceitação da nova religião, atingindo assim o fim a que os missionários se propuseram.

É possível aqui traçar um paralelo em relação ao processo de cristianização dos Saxões, durante o período carolíngio, que parece ter grande influência sobre o modelo proposto por Bagge. De acordo com Matthias Becher a cristianização entre os Saxões seguiria um modelo de Gewaltmission, quer dizer, de missão violenta. A despeito das diferenças gerais entre os contextos, Becher sugere que o ímpeto para a cristianização dos Saxões não estava posto no início do conflito, mas se desenvolveu como estratégia em seu decorrer. As dificuldades enfrentadas pelos francos, aqui em especial Carlos Magno, em seus contínuos embates com os povos saxônicos, o levaram a vislumbrar a cristianização dos Saxões como meio para incorporá-los à estrutura política, social e cultural franca, garantindo sua integração na dinâmica imperial e sua subjugação em termos militares ao poder franco.13 Pensando o caso da Escandinávia, Bagge parece defender uma motivação

similar para a cristianização dos Nortmanni. Ele sugere que o interesse principal no processo de cristianização seria político, tanto na perspectiva escandinava, em que os líderes políticos buscavam, através da religião14, uma aproximação com as elites cristãs da Europa continental, quanto na perspectiva missionária, que via na conversão de governantes escandinavos um meio para a pacificação e integração dos Nortmanni na dinâmica política, social e cultural do continente cristão.

Bagge está convencido de que não se trata somente de um argumento interpretativo da história, mas que se trata da visão apresentada pelas próprias fontes que lidam com o tema da cristianização da Escandinávia. A partir da análise de uma das fontes a que o historiador norueguês se refere, pretendo discutir o ponto de vista

13 BECHER, Matthias. Gewaltmission: Karl der Große und die Sachsen. In: STIEGEMANN, Christoph

(ed.), KROKER, Martin (ed.), WALTER, Wolfgang (ed.). Credo. Christianisierung Europas im Mittelalter. 1. ed.. Petersberg: Michael Imhof, 2013.

14 O termo aparece na obra de Bagge em diversos momentos, quando o autor analisa a introdução do

cristianismo na Escandinávia, sua apropriação pelos sujeitos políticos e seu subsequente emprego no processo de formação dos reinos da Dinamarca, Noruega e Suécia. Um conceito de religião como elemento destacado e individual no arcabouço cultural da Idade Média é bastante controverso, ao menos desde a polêmica levantada por Alain Guerreau. Sverre Bagge, por sua vez, varia entre o uso dos termos “religião”, “práticas religiosas”, “crenças” e “cristianismo”, de modo que é possível supor que o autor rejeita os questionamentos levantados por Guerreau, ao não se dedicar à polêmica.

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apresentado. Abordarei as Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum de Adam de Bremen, mais especificamente o primeiro livro dessa obra.15

O mesmo problema é levantado por Anders Winroth ao tratar da cristianização, ou como prefere chamar, da conversão da Escandinávia na Idade Média.16 Winroth também observa um problema de aproximação ao acontecimento “cristianização”. Por um lado há uma ênfase no processo lento de transmissão de valores culturais ligados à religião cristã.17 Para o autor, tal processo pode ser observado através da investigação arqueológica, que aponta para a mudança de práticas religiosas, sobretudo em relação às práticas funerárias, tendo seu início ainda no período antigo, resultado dos contatos existentes entre a cultura escandinava e a cultura romana, em processo avançado de cristianização nos primeiros séculos da era cristã. Por outro lado, há uma ênfase dada aos processos políticos de conversão, que estariam ligados à institucionalização do cristianismo como religião predominante e oficial entre as elites nórdicas. Winroth identifica esse processo com o surgimento das fontes escritas sobre a cristianização, e divide o processo em três fases: um momento missionário inicial, de pouco sucesso, uma fase de adoção do cristianismo pelas elitese, finalmente, uma fase de consolidação da estrutura institucional eclesiástica na Escandinávia, marcando o final do processo de conversão.18 Aqui, o autor justifica a sua terminologia, definindo a cristianização como o processo lento de infiltração de elementos da cultura cristã no espaço escandinavo, a transformação da religiosidade individual e social num processo “a partir da base”, para usar termo de Brink. A conversão, por outro lado, é o processo de transformação institucional e associação da política e suas elites com os quadros eclesiásticos da nova religião; um processo que, na perspectiva de Brink, acontece

15 ADAM DE BREMEN. Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (ed.). Hamburgische

Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917; RIMBERTUS. Vita Anskarii. In: WAITZ (ed.). Vitae Anskarii et Rimberti, Hannover: Hahn, 1884. Sobre a centralidade dessas obras em relação à cristianização da Escandinávia

ver HOFMANN, Kerstin P. (ed.), et al. (ed.). Die Wikinger und das Fränkische Reich: Identitäten zwischen

Konfrontation und Annäherun.. Paderborn: Wilhelm Fink, 2014; BRINK, Stefan. Die Christianisierung

Skandinaviens. In: STIEGEMANN, Christoph(ed.), KROKER, Martin (ed.), WALTER, Wolfgang (ed.). Credo. Christianisierung Europas im Mittelalter. 1. ed.. Petersberg: Michael Imhof, 2013; BRINK, Stefan. Christianization and the emergence of the early church in Scandinavia. In: BRINK, Stefan (ed.); PRICE, Neil (ed.). The Viking world. London: Routledge, 2008; SAWYER, Birgit (ed.); SAWYER, Peter (ed.). Medieval

Scandinavia. Minneapolis: University of Minnesota Press. 1993; WINROTH, Anders (ed.). The conversion of Scandinavia. New Haven; Yale University Press. 2012b.

16 WINROTH, Anders (ed.). The conversion of Scandinavia. New Haven: Yale University Press. 2012a, p. 102ss. 17 Assim como no caso de Sverre Bagge, Anders Winroth utiliza, ainda que de maneira mais restrita, o conceito

de religião para tratar do cristianismo e sua introdução no espaço Escandinavo na Alta Idade Média.

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“de cima”.19 Stefan Brink, finalmente, aponta para a mesma dicotomia em suas diversas

contribuições a respeito do tema da cristianização da Escandinávia.

Surge, assim, um problema a ser tratado pela investigação histórica. Na observação de Winroth, as perspectivas diferentes se apoiam em tipos diferentes de fontes, de modo que se torna muito difícil consolidar ambas as visões – a arqueológica, da cristianização como processo de transformação cultural, e a historiográfica, da conversão como ato institucional das elites políticas – em uma interpretação sintética do processo de cristianização. Uso aqui o termo “cristianização” de uma maneira bastante ampla, cujo sentido deve ser entendido como “o processo pelo qual a Escandinávia se integrou à dinâmica religiosa continental”. Neste caso, a questão se houve primeiro uma mudança da cultura religiosa, ou uma imposição politico-institucional da nova religião, tem sua importância reduzida. Minha proposta é realizar uma aproximação ao tema de um ponto de vista vinculado ao troisième niveau, ao universo das ideias, em oposição – complementar – às abordagens factuais e estruturais.

Como os contemporâneos ao processo de cristianização da Escandinávia observaram tal processo, de que maneira eles perceberam, interpretaram, significaram e transmitiram suas visões a respeito da cristianização dos Nortmanni passa a ser o elemento central da investigação. Para tanto, proponho uma análise pautada pelos fundamentos da Vorstellungsgeschichte, que busca colocar os homens, as suas formas de interpretação da realidade, no centro da investigação histórica.20 Nesse sentido interessa menos saber “o que de fato aconteceu”, sendo mais importante para a proposta compreender como aquilo que – de fato – aconteceu foi apreendido pelos contemporâneos e (re)transmitido como ‘conhecimento da realidade’. O presente trabalho investiga, então, como Adam de Bremen interpreta e reconta o processo de cristianização da Escandinávia em sua obra historiográfica; como o autor supera o problema da transformação religiosa no contexto da ação evangelizadora dos bispos de Hamburgo-Bremen.

É preciso destacar já de início que se trata de um trabalho ligado diretamente à perspectiva de Adam, que é necessariamente parcial e que não pretende dar conta do

19 BRINK, Stefan. Christianization and the emergence of the early church in Scandinavia. In: BRINK,

Stefan (ed.), PRICE, Neil (ed.). The Viking world. London: Routledge, 2008, p. 622.

20 GOETZ, Hans-Werner. "Vorstellungsgeschichte: Menschliche Vorstellungen und Meinungen als

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processo de cristianização como um todo, mas apenas de uma parcela deste, a saber, a contribuição, ou o papel, dos bispos missionários da diocese de Bremen-Hamburg nessa empreitada. Embora tal perspectiva já seja restrita, o contexto do presente trabalho exige um recorte a ser definido sobre o volume de informações que Adam oferece em suas Gesta Hammaburgensis. Assim opto por tratar aqui apenas dos dados oferecidos pelo primeiro livro das Gesta de Adam, que cobre o período que antecede ao grande movimento missionário e às ações dos primeiros bispos missionários, até o episcopado de Unni, no primeiro terço do século X.

3. Adam de Bremen e as Gesta Hammaburgensis

Adam de Bremen é provavelmente o cronista mais importante a relatar acontecimentos envolvendo a região da Escandinávia na Idade Média, pelo menos até o século XI, através das suas Gesta Hammaburgensis. Muito pouco se sabe a respeito da vida do próprio autor, sendo que a maioria das informações tidas hoje como mais ou menos seguras são fruto de investigações realizadas no início do século XX por Bernhard Schmeidler, editor das Gesta em 1917, no corpus da Monumenta Germaniae Historica. O nome de Adam é conhecido somente pela nota de Helmold de Bosau, que se refere ao

magister Adam.21 Este, por sua vez, identifica-se no prefácio de suas Gesta como A.

minimus sanctae Bremensis ecclesiae canonicus.22 Adam informa em sua obra igualmente que não era natural do norte germânico, ao menos não da região de Bremen, ao se identificar como proselitus et advena.23 Sua região de origem também é desconhecida. Um

scholium acrescido a um manuscrito das Gesta o identifica como proveniente da Germania superiori.24 Por essa razão, muitos historiadores acreditam que Adam tenha vindo da região central da Germânia, da Franconia oriental ou da Turíngia ocidental.25

21 “Testis est magister Adam, qui gesta Hammemburgensis ecclesiae pontificum disertissimo sermone conscripsit”

HELMOLD DE BOSAU. Cronica Slavorum. In: SCHMEIDLER (ed.) . Helmolds Slavenchronik: Anhang: Die Verse über das Leben Vicelins und der Brief Sidos. 3. ed.. Hannover, Leipzig: Hahn, 1937, p. 30.

22 ADAM DE BREMEN. Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (ed.) .

Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917p. 1, (Prol.).

23 Ibid..

24 “Hic apparet, quod scriptor huius libelli fuit ex Germania superiori, unde vocabula pleraque sive nomina

propria, cum ad suam aptare voluit linguam, nobis corrupit.” Ibid., p. 270, (IV, 35, Schol. 151 (C2))

25 A esse respeito, ver a discussão apresentada em SCIOR, Volker (ed.). Das Eigene und das Fremde.

Berlin: Akademie Verlag, 2009, p. 29 e em SCHMEIDLER, Bernhard. Einleitung. In: SCHMEIDLER (Ed.) . Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. LIIIss.

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Adam chega a Bremen no 24° ano do pontificado do arcebispo Adalbert, ou seja, entre 1066 e 1067. Ele atua num primeiro momento como cônego (cônego?) na catedral da sede episcopal, assumindo em pouco tempo a posição de magister scholarum26, mestre da escola episcopal. Seu ano de morte é desconhecido, assim como seu ano de nascimento. Sabe-se que morreu em um 12 de outubro, certamente antes de 1085 e Schmeidler parte do pressuposto de que Adam não teria atingido idade avançada, de modo que se considera que o cônego (cônego?) tenha nascido na década de 1040. Adam teria iniciado os trabalhos em suas Gesta Hammaburgensis logo após sua chegada em Bremen. O início de sua composição se dá após a morte de Adalbert em 1072 e uma primeira versão da obra é dedicada ao seu sucessor na sé arquiepiscopal, Liemar, em 1075/76. Adam ainda trabalhou na sua obra realizando melhorias e acrescentando comentários até 1080/81. Sua morte27 impediu a publicação de uma nova versão, que incluísse as reformulações e expansões previstas. Um cônego contemporâneo a Adam tentou realizar a tarefa, atualizando o manuscrito das Gesta no intuito de incluir as novas notícias e realizar melhorias gramaticais. Os resultados, contudo, são questionáveis e as alterações foram transmitidas como scholia nas edições posteriores da obra.28

As Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum são compostas por quatro livros. Os três primeiros livros tratam da história da arquidiocese de Hamburg-Bremen e da legação missionária desta em relação aos Nortmanni. A abordagem é caracteristicamente cronológica e inicia com as guerras contra e a conversão dos Saxões, entre os séculos VIII e IX, estendendo-se até o episcopado de Adalbert, na segunda metade do século XI. O quarto livro apresenta uma descrição geográfica e etnográfica da Escandinávia e do Báltico, e de seus povos, concluindo com a laudatio

Dei e de Hamburg como centro missionário para o norte europeu.29 Este quarto livro

26 "CI". In: LAPPENBERG, Johann Martin (ed.). Hamburgisches Urkundenbuch. Erster Band. 1. ed.,

Hamburg: Perthes, Besser & Mauke, 1842, p. 97.

27 O ano de morte de Adam é incerto, mas provavelmente antes de 1085. O dia 12 de outubro é

mencionado no Dypticon Bremensis MOOYER, E. F. Diptychon Bremense. In: VON SPILKER (ed.), BROENNENBERG (ed.). Vaterlaendiths Archiv des historischen Vereins fur Nieden sachsen. Lüneburg: Herold und Wahlstab, 1835, p. 304.

28 TRILLMICH, Werner. Einleitung. In: TRILLMICH, Werner (ed.); BUCHNER, Rudolf (ed.). Quellen

des 9. und 11. Jahrhunderts zur Geschichte der hamburgischen Kirche und des Reiches. 7. ed.,

Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2000, p. 139, 154.

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recebe um título específico, a Descriptio insularum aquilonis, sendo seu significado e papel na obra de Adam um tanto controverso.30

Ao presente trabalho interessa sobremaneira o livro I das Gesta Hammaburgensis, que cobrem o relato histórico dos inícios da diocese de Bremen, a fundação da diocese de Hamburg, a atividade missionária de Ansgar e Rimbert, os reveses sofridos pelos bispos, a unificação das dioceses através da criação da arquidiocese de Hamburg-Bremen, e o legado missionário para os povos do norte e do leste europeus, reivindicação dos bispos e de Adam em sua obra. O livro termina com o episcopado de Unni e a retomada da atividade missionária na Escandinávia. Através da análise de trechos desse primeiro livro tentarei oferecer algumas respostas viáveis à pergunta colocada pelo trabalho, qual seja, o que significa a cristianização dos Nortmanni para Adam de Bremen. Sendo assim, o presente trabalho se distingue de outras investigações a respeito do processo de expansão do cristianismo no espaço escandinavo na Alta Idade Média por tentar compreender aquilo que, no contexto de composição das narrativas acerca de tal processo, era concebido, pelo autor do relato historiográfico medieval, como a cristianização dos povos nórdicos. Desloca-se assim o foco dos fatos e processos, colocando-o sobre as concepções subjacentes à apreensão e transmissão; subjacentes, enfim, à própria constituição dos fatos e processos enquanto objeto do conhecimento humano.

4. A cristianização nas Gesta:

Rompendo com certa tradição, que procura repetidamente enquadrar o processo de cristianização da Escandinávia dentro de um esquema explicativo cronológico e

30 A esse respeito ver as considerações em SCIOR, Volker (ed.). Das Eigene und das Fremde. Berlin:

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linear,31 o presente trabalho aborda três passagens das Gesta Hammaburgensis de Adam de Bremen de acordo com a relevância de suas informações para o problema levantado. Interessa aqui menos saber quais os passos seguidos pelos agentes do processo de cristianização – seja ele lento e gradual, ou institucional e abrupto – numa perspectiva cronológica, que identificar aquilo que para o autor se caracteriza a expansão do cristianismo para a Escandinávia.32 Assim, os capítulos finais do primeiro livro de Adam trazem informações valiosas ao discorrerem sobre o episcopado e a ação missionária de Unni. O arcebispo ascende ao trono de Hamburg-Bremen em um contexto difícil, em 918. Sua indicação, como explica Adam, baseia-se em uma situação quase milagrosa. Unni acompanhava Leidrad, o eleito pelo povo de Bremen como sucessor de Reginward, em sua viagem à cúria real. O rei, Conrado I, que deveria confirmar a eleição de Leidrad fora, contudo, tocado pelo Espirito Santo e, enxergando Unni ao fundo da comitiva, entregou

31 Refiro-me aqui às investigações de caráter historiográfico sobre o tema da cristianização da

Escandinávia na Idade Média. Concentrando-me sobre obras compostas a partir do início do século XX, alguns exemplos são GOETZ, Hans-Werner. Gott und die Welt: Religiöse Vorstellungen des frühen und hohen Mittelalters. Berlin: Akademie Verlag, 2012; OLRIK, Axel. Nordisches Geistesleben in heidnischer und frühchristlicher Zeit. Heidelberg: Winter, 1908; SCHMEIDLER, Bernhard. Hamburg Bremen und

Nordost-Europa vom 9. bis 11. Jahrhundert: Kritische Untersuchungen zur Hamburgischen

Kirchengeschichte des Adam von Bremen, zu Hamburger Urkunden und zur nordischen und wendischen Geschichte. Leipzig: Dieterich, 1918; LJUNGBERG, Helge David. Die nordische Religion und das

Christentum: Studien über den nordischen Religionswechsel zur Wikingerzeit. München: C. Bertelsmann,

1940; JONES, Gwyn. A history of the Vikings. 2nd ed. ed. London, New York: Oxford University Press, 2001; ROESDAHL, Else. The Vikings. 2 ed. London: Penguin Books, 1998; SAWYER, Birgit (ed.), SAWYER (ed.), Peter. Medieval Scandinavia: From conversion to Reformation, circa 800 - 1500. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993; BRINK, Stefan. Christianization and the emergence of the early church in Scandinavia. In: BRINK, S. (ed.), PRICE, N. (ed.). The Viking world. London, Routledge, 2008; BRINK, Stefan. Die Christianisierung Skandinaviens. In: STIEGEMANN, C. (ed.), et al. (ed.). Credo: Christianisierung Europas im Mittelalter. 1. Petersberg: Michael Imhof, 2013; WINROTH, Anders. The conversion of Scandinavia: Vikings, merchants, and missionaries in the remaking of Northern

Europe. New Haven: Yale University Press, 2012b; BAGGE, Sverre. Cross & scepter: The rise of the Scandinavian kingdoms from the Vikings to the Reformation. Princeton, NJ: Princeton University Press,

2014. Uma visão distinta aparece em SEE, Klaus von. Mythos und Theologie im skandinavischen

Hochmittelalter. Heidelberg: Winter, 1988, assim como em obras voltadas à investigação arqueológica,

como por exemplo em SAWYER, Birgit (ed.), SAWYER (ed.), Peter, WOOD, Ian (ed.). The

Christianization of Scandinavia: Report of a symposium held at Küngalv, Sweden 4-9 August 1985.

Küngalv: Viktoria Bokförlag, 1987 e HOFMANN, Kerstin P. (ed.), et al. (ed.). Die Wikinger und das

Fränkische Reich: Identitäten zwischen Konfrontation und Annäherun.. Paderborn: Wilhelm Fink, 2014,

cujo diálogo com os estudos historiográficos permanece, todavia, ainda muito restrito.

32 Parece-me importante apontar que a terminologia utilizada por Adam de Bremen não comporta um termo que

se traduza por “cristianização”. Todavia encontram-se em sua obra expressões que denotam a ideia contida no termo moderno, como por exemplo christianus reddere, christianus facere ou fidelis Christo facere.

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ao acompanhante do bispo eleito o báculo. Tal gesto fazia de Unni bispo em lugar de Leidrad, feito confirmado pelo papa João X pela investidura do pallium.33

A cena narrada por Adam é carregada de simbolismo e serve para reforçar os ideais defendidos pelo historiador. O cônego remete aqui a um tema neotestamentário, aparente no contexto do livro dos atos dos apóstolos34, a saber, a noção de que a escolha das lideranças eclesiásticas se deva fazer pela própria divindade. Além disso, ao remeter a tal tema, Adam vincula explicitamente a ação episcopal à figura apostólica do texto bíblico do livro dos atos dos apóstolos, que, compreendido enquanto relato histórico dos primeiros passos da religião cristã, destaca insistentemente o caráter proselitista e expansivo da nova crença. Assim, a referência do cônego bremense a tal característica revela, em grande medida, os referenciais e ideais de Adam para a realização de um bom governo episcopal, assim como as condições fundamentais para o sucesso da legatio

gentium. Ele se orienta sobre uma perspectiva bastante singular de piedade35, em que o

autor se vê compelido a fundamentar o juízo positivo lançado sobre a atuação de Unni, assim como o relato dos sucessos do arcebispo em sua missão junto aos povos escandinavos, sobre uma perspectiva sobrenatural da ascensão do mesmo, apontando para uma escolha divina em oposição à eleição humana. Unni é escolhido, assim transparece no relato, pelo próprio Deus, através da ação do Espirito Santo em Conrado I. No relato histórico, seu episcopado – de toda forma questionável por fugir às regras estabelecidas para a sucessão – justifica-se pela intervenção sobrenatural, acrescida ainda da

33 “Memoriae traditum est a fratribus, cum Reginwardus transisset, Leidradum Bremensis chori prepositum a

clero et populo electum. Qui hoc Unni pro capellano utens ad curiam venit. Rex autem Conradus divino, ut creditur, spiritu afflatus, contempta Leidradi specie parvulo Unni, quem retro stare conspexerat, virgam pastoralem optulit. Cui etiam papa Iohannes decimus, ut privilegium indicat, palleum dedit.” ADAM DE

BREMEN. Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (ed.). Hamburgische

Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. 55, (I, 54).

34 P.e. WEBER, Robert, GRYSON, Roger. Biblia sacra: Iuxta Vulgatam versionem. 5 ed. Stuttgart: Deutsche

Bibelgesellschaft, 2007, Act. 2; 6.. Os textos bíblicos citados apresentam, no capítulo segundo, a narrativa de pentecostes, em que o Espírito Santo desce sobre os apóstolos, conferindo-lhes o dom para a pregação e conversão dos povos; no capítulo sexto é relatada a escolha dos auxiliares dos apóstolos, que deveriam atuar junto aos fiéis. A analogia ao trabalho episcopal vislumbrado por Adam para a diocese constrói sobre esse modelo.

35 A respeito da piedade na Idade Média ver ANGENENDT, Arnold (ed.). Grundformen der Frömmigkeit

im Mittelalter. 2. ed.. München: Oldenbourg, 2004 e ANGENENDT, Arnold (ed.). Geschichte der Religiosität im Mittelalter. 4. ed.. Darmstadt: Primus Verlag. 2009. Uma perspectiva das diversas

manifestações da piedade na Idade Média a partir de uma abordagem vinculada à Vorstellungsgeschichte em CARVER, Martin (ed.). The cross goes north: Processes of conversion in northern Europe, AD 300 – 1300. York: York Medieval Press/Boydell Press, 2006. Sobretudo este segundo volume aponta para a relação entre a piedade e uma perspectiva salvífica da experiência histórica humana (Heilsgeschichte/Heilsgeschehen), que é especialmente interessante para o presente artigo.

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perspectiva retroativa, que a partir do sucesso da empreitada de Unni, pode ser lançada por Adam para reforçar sua perspectiva sobre a ação ideal do episcopado bremense.

Mais que isso, o relato do cônego se presta não somente a uma tarefa legitimadora a partir do discurso histórico, em perspectiva retroativa, mas ele dá-nos pistas sobre as percepções presentes e as projeções futuras do autor. Para este, a legitimidade episcopal não se sustenta apenas pelo rigor jurídico com que se deu a eleição e investidura do bispo – e é preciso lembrar que Adam escreve em meio ao conturbado cenário da crise das investiduras, ao qual não é alheio, como sugere sua narrativa – mas sobretudo a consonância entre a ação do líder eclesiástico e a vontade divina, esta, na ótica do bremense, representada por um lado pelo zelo para com a legatio gentium, e por outro lado pelo cuidado para com os fiéis da diocese. Tais elementos aparecem em outros trechos do relato, especialmente no relato de Adam acerca do episcopado de Ansgar, que aparece como modelo e ideal. Eles acabam por constituir um fundamento sobre o qual Adam constrói seu relato. A tarefa do arcebispo de Hamburgo-Bremen se condensam nas supracitadas atividades, e estas definem, na obra, o juízo do cônego.

Segundo o relato de Adam de Bremen, o arcebispo Unni, aproveitando uma vitória de Henrique I sobre Gorm, rei dos dinamarqueses, decide reassumir a legatio – o termo ‘missão’ é moderno, e não aparece na fonte – aos povos escandinavos, que havia sido negligenciada – assim o cônego de Bremen faz crer – desde Rimbert. A essa decisão Adam associa três elementos, que parecem fundamentais para a atividade missionária: a ação divina, a vitória militar de Otto e subsequente pacificação da Dania, e a resolução piedosa de um arcebispo comprometido com a legação para com os Nortmanni.36 O primeiro elemento, o favor divino (preveniente misericordia Dei) não carece maiores explicações. Sem a intervenção misericordiosa de Deus não há esperança na empreitada, como a teologia cristã sugere, por oposição, através da fórmula paulina.37 A cristianização dos povos do

36 “Tunc beatissimus archiepiscopus noster Unni videns ostium fidei gentibus apertum esse, gratias Deo egit de

salute paganorum, precipue vero quoniam legatio Hammaburgensis ecelesiae, pro temporis importunitate diu neglecta, preveniente misericordia Dei et virtute regis Heinrici locum et tempus operandi accepit. Igitur nihil asperum et grave arbitrans subiri posse pro Christo latitudinem suae diocesis per se ipsum elegit circuire. Secutus est eum grex universus, ut aiunt, Bremensis ecclesiae, boni pastoris absentia maesti secumque et in carcerem et in mortem ire parati.” ADAM DE BREMEN. Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In:

SCHMEIDLER (ed.). Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. 57, (I, 58).

37 “quid ergo dicemus ad haec si Deus pro nobis quis contra nos” WEBER, Robert (ed.), GRYSON, Roger (ed.).

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norte europeu se deve em primeira instância à misericórdia divina que se estende tanto aos cristãos quanto aos pagãos, vivendo fora da graça divina38, buscando conduzi-los à salvação – e assim à própria história, segundo a concepção medieval.39

Mais significativos para a compreensão da perspectiva de Adam em relação à cristianização são as duas outras características mencionadas pelo autor. O cônego declara que um fator essencial para o sucesso da empreitada de Unni foi o contexto político favorável. Na pena de Adam o fato de Henrique I ter subjugado os dinamarqueses, transposto a fronteira do reino para a região de Haithabu e ordenado a fundação de um povoado saxão no local, sob o governo de um Markgraf, foi essencial para que os dinamarqueses, impressionados pelo poder do reino cristão e forçados por acordos de paz, autorizassem novamente a ação de missionários cristãos entre seu povo. Esta notícia do cônego bremense aponta para a perspectiva defendida por Bagge em relação à cristianização da Escandinávia, ao colocar o esforço político – por um lado a pressão política dos conquistadores cristãos, por outro lado o desejo de afirmação a partir do fortalecimento político em face de possíveis alianças com governantes cristãos do continente europeu – como base sobre a qual se formata a transposição do paganismo ao cristianismo. Esta necessidade dúbia – por um lado submeter-se ao poder germânico, por outro lado afirmar-se pela associação à religião dos conquistadores – promove uma ‘reabertura’ para os esforços evangelizadores dos bispos de Hamburgo-Bremen no espaço escandinavo, notadamente na região da Dinamarca.

Contudo, Adam de Bremen sugere que o poderio militar e a conquista bélica não foram isoladamente responsáveis pela conversão dos dinamarqueses. É preciso atentar aos detalhes da descrição do historiador. Unni aproveita a situação favorável, como aparece no relato, e decide retomar o esforço pela cristianização dos Dani, honrando a legação do episcopado de Hamburg-Bremen para a evangelização dos povos nórdicos.

38 Os status aparecem em diversas obras no contexto do renascimento do séc. XII, cf. CLASSEN, Peter.

Res Gestae: Universal History, Apocalypse: Visions of Past and Future. In: BENSON, Robert L. (ed.),

CONSTABLE, Giles (ed.). Renaissance and renewal in the twelfth century. Toronto: University of Toronto Press, 1991. Ver também “Civitatis perversae triplex eque status invenitur, quorum primus ante

gratiam, secundus tempore gratiae fuit et est, tercius post presentem vitam erit.” OTTO VON

FREISING. Ottonis episcopi Frisingensis Chronica sive Historia de duabus civitatibus. In: HOFMEISTER (ed.) . Ottonis episcopi Frisingensis Chronica sive Historia de duabus civitatibus. 1. ed., Hannover: Hahnsche Buchhandlung, 1912 (1984), VIII, Prol., p. 391.

39 A este respeito GOETZ, Hans-Werner (ed.). Geschichtsschreibung und Geschichtsbewußtsein im

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Na descrição de Adam, Unni assume sua tarefa crendo inexistir obstáculo demasiadamente duro àquele que trabalha para Cristo.40 A referência aqui também é à teologia paulina.41 De certo modo o cônego bremense indica através da remissão ao texto paulino, que a decisão de Unni, de levar adiante a tarefa missionária, independe da conjuntura política, embora esta possa desempenhar um papel favorável ao desenvolvimento do plano do arcebispo. Na narrativa tais elementos são dados independentes – o momento político e o fervor de Unni – que convergem em um contexto específico pela graça divina – sua menção no relato fica assim mais clara – a fim de que a cristianização dos povos nórdicos seja levada a cabo.

O arcebispo parte para a Dinamarca, onde evangeliza, segundo Adam, o herdeiro do trono, Harald, além de muitos povos.42 O converso mencionado é Harald I, Dente-Azul da Dinamarca, uma das figuras centrais nas investigações a respeito da cristianização de seu reino. O rei dinamarquês erigiu em Jelling, na segunda metade do séc. X uma pedra com importante inscrição rúnica, na qual estabelece a si mesmo como aquele que cristianizou aos dinamarqueses e conquistou a Noruega (Figura 1). As divergências no relato de Adam e de outras fontes da Idade Média a respeito de Harald são menos importantes na presente proposta, mas a forma como o cônego bremense organiza seu relato autoriza concluir que, em sua perspectiva, a institucionalização do cristianismo43 não constitui um elemento do processo de cristianização, que de modo geral é visto não como a constituição legal da presença cristã, mas como transformação

40 “Igitur nihil asperum et grave arbitrans subiri posse pro Christo latitudinem suae diocesis per se ipsum

elegit circuire.” ADAM DE BREMEN. Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (ed.). Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. 57, (I, 58).

41 “omnia possum in eo qui me confortat” Hannover: Hahn, 1917, p. 57, (I, 58).

41 “quid ergo dicemus ad haec si Deus pro nobis quis contra nos” WEBER, Robert (ed.), GRYSON, Roger (ed.).

Biblia sacra: Iuxta Vulgatam versionem. 5 ed.. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2007, Phil 4, 13, p. 1819.

42 “Postquam vero confessor Dei pervenit ad Danos, ubi tunc crudelissimum Worm diximus regnasse, illum

quidem pro ingenita flectere nequivit saevitia; filium autem Haroldum sua dicitur predicatione lucratus. Quem ita fidelem Christo perfecit, ut christianitatem, quam pater eius semper odio habuit, ipse haberi publice permitteret, quamvis nondum baptismi sacramentum percepit. / Ordinatis itaque in regno Danorum per singulas ecclesias sacerdotibus sanctus Dei multitudinem credentium commendasse fertur Haroldo. Cuius etiam fultus adiutorio et legato omnes Danorum insulas penetravit, euangelizans verbum Dei gentilibus et fideles, quos invenit illuc captivatos, in Christo confortans.” ADAM DE BREMEN. Op. cit., 1917, p. 57-58 (I, 59).

43 Refiro-me aqui à perspectiva apresentada, por exemplo, por Sverre Bagge. Apesar do autor norueguês apontar

para um fator institucional para definir a passagem religiosa do território dinamarquês para o cristianismo, Adam, em seu relato, considera somente a conversão como fator digno de menção. Nesse sentido é possível colocar em questão a visão de Bagge. Cf. HOFMANN, Kerstin P. (ed.), et al. (ed.). Die Wikinger und das Fränkische Reich:

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sociocultural efetivada pela pregação evangélica.44 Adam enfatiza que Harald fora convertido por Unni, através de sua pregação, embora não tenha aceitado o batismo, o que veio a acontecer somente anos mais tarde, após derrota diante de Otto I.45 Esta ênfase não é despropositada. Ela aponta para a compreensão do historiador, um cônego da igreja de Bremen, defensor da legação e dos direitos da arquidiocese de Hamburgo-Bremen sobre os territórios eclesiásticos escandinavos. Sua postura não é institucional – ao menos não da forma enfática como em alguns autores aqui apresentados –, de modo que se possa colocar em questão a perspectiva de Bagge, ao menos no que concerne sua defesa do primado político-institucional na compreensão da cristianização da Escandinávia.

Figura 1

44 Trata-se, sem dúvida, de uma leitura dos indícios, em geral subjetivos, presentes na obra, e que se permitem

ser depreendidos a partir de indicações como no caso específico da conversão de Harald para o cristianismo, seu posterior batismo, e o retorno à prática religiosa pré-cristã sob o reinado de Svein Barba-Bifurcada.

45 “Tandemque condicionibus ad pacem inclinatis Haroldus Ottoni subicitur, et ab eo regnum suscipiens

christianitatem in Dania recipere spopondit. Nec mora baptizatus est ipse Haroldus cum uxore Gunhild et filio parvulo, quem rex noster a sacro fonte susceptum Sueinotto a vocavit.” ADAM DE BREMEN. Gesta

Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (ed.). Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. 63-64 (II, 3). Adam constrói seu relato sobre um equívoco, ao unir dois episódios de embates entre o poder imperial e o reino dinamarquês sob Harald. O governante do norte enfrentou tanto Otto I quanto Otto II. O episódio de sua derrota e seu batismo é tido como correto. A participação de Otto I no batismo é, contudo, improvável e encarada como fantasiosa. Cf. TRILLMICH, Werner. Adam von Bremen: Bischofsgeschichte der Hamburger Kirche. In: TRILLMICH, Werner (ed.); BUCHNER, Rudolf (ed.). Quellen

des 9. und 11. Jahrhunderts zur Geschichte der hamburgischen Kirche und des Reiches. 7. ed.. Darmstadt:

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Tal perspectiva se reforça através do segundo exemplo, a saber, o de Rimbert, ajudante de Ansgar na missão entre os povos nórdicos e seu sucessor na diocese de Hamburgo-Bremen. A descrição de Adam a respeito dos feitos de Rimbert é vasta e se baseia em grande medida na hagiografia do bispo. Não obstante, a escolha do historiador na construção do seu relato aponta para suas prioridades e acentos, oriundos de seus horizontes ideais. Assim, o cônego de Bremen louva a humildade e a dedicação de Rimbert em seu trabalho missionário e em seu cuidado para com os cristãos na Dinamarca.46 Ao seguir o conselho de Ambrósio de Milão – como Adam indica em seu texto – o bispo de Bremen estaria exercendo o verdadeiro papel missionário dos legados para a cristianização dos povos escandinavos. Tal perspectiva é reforçada pela presença dos milagres de Rimbert na narrativa histórica.47 O bispo teria em certa ocasião, através de sua oração, quebrado as correntes que aprisionavam escravos cristãos em Schleswig, e com seu cavalo teria comprado a liberdade dos mesmos, demonstrando assim o espírito de um homem piedoso e um líder religioso preocupado não somente com os grandes círculos, mas com o bem-estar de todos os cristãos sob seu cuidado. Tal preocupação se estende ainda além de uma perspectiva meramente espiritual, abarcando uma problemática social. O trecho em si recupera a narrativa hagiográfica e, por essa

46 “Quid autem dicimus Interim nostrum fecisse archiepiscopum? Require in Gestis eius, capitulo XX. Ad

redemptionem, inquit, captivorum cunctis pene, quae habebat, expensis, cum multorum adhuc apud paganos detentorum miserias cernere cogeretur, etiam altaris vasa impendere non dubitavit, dicens cum beato Ambrosio: ‘Melius est animas Domino, quam aurum servare. Preciosa ergo sunt illa vasa, quae animas de morte redimunt’.” ADAM DE BREMEN. Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (ed.). Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. 42 (I, 39). Parte do capítulo é tomada da

descrição presente na Vita Rimberti, como Adam indica. Seu uso não diminui, todavia, a importância ou o significado que o texto assume nas Gesta Hammaburgensis. Pelo contrário, o uso realizado por Adam da Vita

Rimberti aponta para sua subscrição ao relato, ao mesmo tempo em que suas intervenções no mesmo e as

alterações de sentido, demonstram uma proposta distinta daquela, presente na hagiografia. Adam realiza assim uma leitura específica e uma ressignificação do conteúdo da narrativa hagiográfica, de acordo com suas concepções e visões de mundo, como fica claro pelo uso do texto de Ambrósio. A título de comparação ver Vita Rimberti. In: WAITZ (ed.) . Vitae Anskarii et Rimberti. Hannover: Hahn, 1884, p. 95 (c. 17). O texto de Ambrósio se encontra em seu De officiis ministrotum II, 28, §137s. TESTARD, Mauritius (ed.). Sancti Ambrosii

Mediolanensis De officiis. Turnhout: Brepols. 2000, p. 146s.

47 “Erat igitur sanctus Rimbertus cum Moyse vir mitissimus, cum apostolo, qui omnium infirmitatibus

compateretur; precipuam vero curam habuit in elemosinis pauperum et in redemptione captivorum. Unde quadam vice, cum venisset ad partes Danorum, ubi ecclesiam novellae christianitati constructam habebat in loco, qui dicitur Sliaswig, vidit multitudinem christianorum catena trahi captivam. Quid multa? Duplex ibi miraculum operatus est. Nam et catenam oratione disrupit, et captivos equo suo redemit. Cap. Gestorum eius nota XVIII.” Adam de Bremen. Gesta Hammaburgensis ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (Ed.) . Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. 44 (I, 41). Neste capítulo Adam novamente

se refere à sua fonte, a Vista Rimberti, da qual extrai informações, que são reorganizadas e retrabalhadas nas

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razão, teria que ser interpretado de acordo com os critérios necessários para uma compreensão adequada dos motivos e interesses de sua formulação.48

Contudo não é o relato que, neste caso, suscita maior interesse, mas sim a escolha de Adam. Dentre as diversas informações a que o cônego tinha acesso a respeito de Rimbert, sua escolha recai repetidas vezes sobre os eventos que mostram o bispo em atividades de cuidado e defesa dos cristãos e da missão cristã na Escandinávia. Suas razões estão certamente ligadas mais à sua necessidade de justificar, por um lado, a presença de Hamburgo-Bremen como arquidiocese com poderes sobre os territórios eclesiásticos do norte europeu, por outro lado elas figuram como advertência aos próprios arcebispos da diocese, para que se orientem nos modelos levantados por Adam e levem adiante a tarefa da legatio gentium. A imagem proposta pelo magister scholarum se torna ainda mais aguda diante de sua crítica àqueles que buscam nos milagres o sinal da santidade dos homens piedosos – uma clara referência a Gregório Magno49 –, a que ele

opõe a ideia de que o verdadeiro milagre acontece quando um pagão se converte do pecado, assumindo o cristianismo. Em outras palavras, para Adam de Bremen, a marca do verdadeiro santo é o seu trabalho missionário, que corresponde ao esforço pela salvação

48 Sobre hagiografia ver GRUNDMANN, Herbert (ed.). Geschichtsschreibung im Mittelalter. Göttingen:

Vandenhoeck & Ruprecht, 1965, com uma apresentação geral dos gêneros historiográficos do medievo, dentro os quais a hagiografia é abordada, ainda que de forma bastante superficial. Um estudo mais aprofundado quanto aos problemas da hagiografia, as possibilidades de sua investigação e os métodos para tanto ver LOTTER, Friedrich. Methodisches zur Gewinnug historischer Erkenntnisse aus hagiographischen Quellen.

Historische Zeitschrif, v. 229, n. 2, p. 298-356, out. 1979, com ampla discussão bibliográfica. Para uma crítica

ver LIFSHITZ, Felice. Beyond Positivism and Genre: "Hagiographical" texts as historical narrative. Viator:, Medieval and Renaissance Studies, v. 25, p. 95-114, 1994, que defende uma nova abordagem da hagiografia medieval, a partir do pressuposto de que as obras são testemunho também de concepções historiográficas de sua época. A crítica de Lifshitz se concentra, contudo a um caso bastante específico, das hagiografias do período tardo-carolíngio e capetíngio, entre os séculos IX-XI no espaço franco. Recentemente os trabalhos de Ian Wood têm se dedicado a explorar os problemas da hagiografia e sua investigação no contexto da Idade Média inicial, como em WOOD, Ian. The Use and Abuse of Latin Hagiography in the Early Medieval West. In: CHRYSOS, Evangelos (ed.), WOOD, Ian (ed.). East and West modes of communication. Proceedings of the first plenary conference at Merida. Leiden: Brill, 1999. Especificamente o contexto da hagiografia dos missionários carolíngios Wodd explora em WOOD, Ian. Missionary Hagiography in the Eighth and Ninth Centuries. In: BRUNNER, Karl (ed.), MERTA, Brigitte (ed.). Ethnogenese und Überlieferung: Angewandte Methoden der Frühmittelalterforschung. Wien: Oldenbourg, 1994.

49 “Frustra in sanctis signa et miracula quaeruntur, quae habere possunt et mali, quia secundum auctoritatem

sanctorum patrum maius miraculum est animam, quae in aeternum victura est, a peccato convertere, quam corpus, quod denuo moriturum est, suscitare a morte.” ADAM DE BREMEN. Gesta Hammaburgensis

ecclesiae Pontificum. In: SCHMEIDLER (Ed.) . Hamburgische Kirchengeschichte. 3. ed.. Hannover: Hahn, 1917, p. 43 (I, 40). Adam aponta aqui para a posição de Gregório Magno aparente em sua homilia 29 ETAIX, Raymond (Ed.). Homiliae in Evangelia, Turnhout, Brepols. 1999, p. 244s. e em seus diálogos. Cf. TRILLMICH, Werner. Adam von Bremen: Bischofsgeschichte der Hamburger Kirche. In: TRILLMICH, Werner (ed.), BUCHNER, Rudolf (ed.). Quellen des 9. und 11. Jahrhunderts zur Geschichte der hamburgischen Kirche und

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