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A "Mouraria alargada", em favor de Babel

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Academic year: 2020

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Marta Sofia Valadas Rodrigues

Universidade do Minho

Escola de Arquitectura

Marta Sofia Valadas Rodrigues

A “Mouraria alargada”, de Babel

A “Mourar

ia alar

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Tese de Mestrado

Ciclo de Estudos Integrados Conducentes ao

Grau de Mestre em Arquitectura

Trabalho efetuado sob a orientação da

Professora Doutora Maria Manuel Oliveira

Universidade do Minho

Escola de Arquitectura

Marta Sofia Valadas Rodrigues

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A arquitectura deverá ser, entre outras coisas, uma ciência moral. Ciência moral, mas não moralista. Isto é: não uma ciência que tenha como objectivo aumentar a moral do espaço, não: defender a arquitectura como ciência moral é defender a arquitectura como uma ciência que se preocupa com a relação entre distâncias, tamanhos, cores, não apenas numa relação de verdade ou beleza, mas ainda, e, por último, numa relação de justiça.

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Agradecimentos

À Professora Maria Manuel Oliveira, orientadora da dissertação, por todas as reflexões e empenho; o seu incentivo e disponibilidade foram insubstituíveis. A todas as instituições que me receberam, porque em todas as “portas” houve sempre alguém disponível – em especial à Associação Renovar a Mouraria, Mu-seu da Cidade e Arquivo Municipal de Lisboa.

Às professoras Manuela Palmeirim e Marluci Menezes, pelo tempo e conheci-mentos que partilharam.

À Luísa Cruz, pela óptima conversa.

À Ana Menino e à Olga Pereira, porque sem elas o perímetro jamais seria o mes-mo; com amizade, o meu profundo agradecimento.

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Resumo

A “Mouraria alargada”, em favor de Babel, constitui uma reflexão sobre as transformações urbanas, contemporâneas, decorrentes de fenómenos de apropriação, aglomeração e personificação multiétnica. Procurando um entendimento alargado a disciplinas complementares à arquitectura (antropologia, sociologia, geografia e história), a dissertação debruça-se sobre o espaço público enquanto contexto e consequência das diferentes formas de espacialização cultural.

A partir da análise do bairro da Mouraria e envolvente, em Lisboa, procurou-se compreender as potencialidades destas paisagens urbanas como suporte físico de uma coabitação miscigenada. Sendo este local um genuíno exemplar dos processos de aculturação da hiper-modernidade, foi possível, através da observação in situ, criar uma base cartográfica representativa das dinâmicas sociais, económicas e culturais que marcam o seu quotidiano. Analisar esta “etnopaisagem”, heterogénea e heterodoxa (e a consequente marginalização dos seus contextos e actores), permitiu entender como é que um grupo representa o seu património cultural aquando da instalação noutra civilização: apropriando-se (e deixando-se apropriar) pela realidade autóctone através de uma imposição, mais ou menos, consentida. No entanto esta convivência não configura uma espacialização coerente, gerando, frequentemente, situações de grande fragilidade sócio-económica, que resultam na sua marginalização, originando um ciclo de difícil rompimento.

Ao arquitecto compete, nos limites da sua acção disciplinar, reconhecer e repensar sobre estas formas de prolongamento do homem na cidade; a sua acção deve, por isso, encontrar modos de mediação entre a formalização e as dinâmicas da sociedade, promovendo uma perspectiva libertária e sem preconceitos.

Procurou-se, como objectivo último deste trabalho, construir a estratégia que permite ao arquitecto, enquanto produtor de espaço, intervir nos “novos” cenários urbanos em favor de uma Babel contemporânea.

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Abstract

“The Extended Mouraria, in favor of Babel”, consists in a reflexion about urban and contemporary transformations, arising from ownership, overcrowding and multi-ethnic personification phenomenas. Looking for an extended agreement from architecture’s complementary subjects (such as anthropology, sociology, geography and history), this dissertation focuses on the public space as context and consequence from different forms of cultural space. From the analysis of Mouraria neighborhood and its surroundings, in Lisbon, the task was to understand the potential of these urban landscapes as physical support from a mixed cohabitation. Being this site a genuine example of the acculturation process enforced by hyper modernity, it was possible, through the in situ analysis, to build a cartographic map showing the social, economic and cultural dynamics present on a daily basis. The analysis of this “etno-landscape”, heterogeneous and heterodox (and the consequent marginalization of the context and the inhabitants), allowed to understand how does a group represent their cultural heritage when they settle in a different civilization: appropriating (and letting themselves being appropriated) the indigenous reality throw a composition, more or less, consented. However, this multicultural landscape does not create a coherent space. However this interaction does not constitute a coherent spatialization, it generates, frequently, fragile socio-economic situations, that results in its marginalization, making this a vicious cycle that is hard to break. In the limits of his action, the responsibility of the architect is to understand and re-think the extended ways of the man in the city; therefore, the action should find paths of intercession between the formalization of his work and the society dynamics, promoting a libertarian perspective without prejudices. The goal of this work is to build a strategy that allows the architect, as space producer, to do an intervention in new urban environments in favor of a contemporary Babel.

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Índice

Introdução 1

1. Interpretar o espaço da multiculturalidade: metodologia adoptada 3

2. A Torre Global 13

2.1_ O Outro: estado de arte do seu reconhecimento 18

2.2_Patrimónios, o mito de fundação 22

2.2.1_Cenários de utopia 24

3. Etnopaisagens na cidade próxima 27

3.1_ Na rua das últimas coisas 30

3.2_ Proxémia, uso do método na “Mouraria alargada” 33

3.3_ A Mouraria: contexto histórico 35

3.4_ A Praça do Martim Moniz 49

4. Aproximações: Cartografia, poder e fronteiras imaginadas 59

4.1_ Limites administrativos e fronteiras culturais 67

4.2_ Vias, centros e metropolitano 71

4.3_ Os Elementos marcantes 77

4.4_ O Comércio 83

4.5_ O Alojamento e a Restauração 89

4.6_ Os Locais de Culto 93

4.8_ Aculturação das dinâmicas e Apropriação do território 97

4.9_(re)Aproximações 101

5. Considerações finais: Cinco premissas para redesenhar a “Mouraria alargada” 105

Construindo a Torre Global, em favor de Babel 109

Bibliografia 113

Índice de Imagens 118

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Introdução

Esta dissertação pretende contribuir para a compreensão das transformações do espaço público urbano promovidas pelo fenómeno de apropriação multicultural. Tenta ainda suscitar uma série de questões sobre o problema das dinâmicas desterritorializadas e da consequente marginalização dos seus promotores, aspirando a uma reflexão sem preconceitos. Salienta ainda o lado mais marginal de uma modernidade marcada pela hiper-mobilidade, onde a rápida evolução da sociedade contemporânea e o espaço urbano se articulam de forma dessincronizada.

É neste contexto que a arquitectura (e, em particular, esta dissertação) se aproxima e conjuga com diversas áreas disciplinares. Assim, o desenvolvimento do estudo levou a uma pesquisa que incluiu antropologia, sociologia, geografia e história. Serviu-se ainda de alguma literatura ficcional que, apesar da ausência de discurso científico, permitiu contextualizar e muitas vezes iluminar novas linhas de pensamento, quebrando preconceitos e inspirando o imaginário que esteve na génese do trabalho.

A investigação centra-se na identificação e estudo de “novas” paisagens arquitectónicas identitárias, tendo por base um caso de estudo português – a Mouraria, em Lisboa – o qual permitiu compreender e objectivar as razões de uma integração marginal. Para a realização do trabalho optou-se por abranger um período temporal que vai dos anos 70 (década de referência devido à chegada de muitos imigrantes) até à actualidade, tendo no entanto sido necessário fazer um recuo temporal como meio de compreensão e interpretação do actual cenário. A tese encontra-se estruturada em cinco fases, partindo de conceitos base que caracterizam a cidade multicultural e aproximando-se cada vez mais da análise exaustiva do espaço de estudo:

- No primeiro capítulo faz-se uma abordagem ao método de investigação utilizado que permitiu interpretar à luz da antropologia, filosofia e, mais raramente, da arquitectura, o actual contexto global e dos movimentos migratórios em massa. - O segundo capítulo constitui uma teorização sobre os conceitos que definem o actual sistema global, promotor da deslocação de pessoas e comunidades. Uma segunda parte deste capítulo discorre sobre estes conceitos já estudados, de formas de coabitação por parte de várias etnias, clarificando a relação entre espaço urbano e instalação de comunidades.

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- No terceiro capítulo é explicitado o contexto histórico do caso de estudo, apresentando-o como um espaço urbano historicamente afecto a actividades marginais.

- O quarto capítulo aprofunda o conhecimento sobre o actual contexto urbano da zona de estudo e das suas dinâmicas, através do recurso a cartografia. Explora-se, assim, a aproximação à zona de estudo com a consequente criação de um método de análise, promovido pelo trabalho de campo, capaz de relacionar o carácter do espaço e as dinâmicas sociais ali presentes.

- O último capítulo arquitecta uma orientação programática, construída através das conclusões produzidas ao longo da tese, que visa a integração de espaços multiculturais no cenário global da cidade.

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1. Interpretar o espaço da multiculturalidade: metodologia adoptada

Uma lição fundamental que aprendi e que tentei apresentar foi a de que não existe tal coisa como um ponto de partida dado, ou sequer disponível: os princípios têm de ser feitos para cada projecto de modo a ‘possibilitar’ o que vem a seguir a eles.

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FIG. X - Calendário da investigação. In ves tigaç ão de f on tes b ibliog rá fic as Tra tam en to de c art og ra fia A ná lise , in ter pret aç ão e co m pa raç ão dos d ados r eco lhi sdos Re dacç ão

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Compreender as manifestações culturais no espaço urbano contemporâneo, o mundo da hiper-mobilidade, exige uma reflexão alargada a campos complementares da arquitectura e uma aproximação, livre de preconceitos, aos contextos e actores que conformam os muitos cenários heterogéneos de apropriação espacial. O desenvolvimento da investigação resultou, por isso, da análise das manifestações que ritmam o espaço de estudo e das condições históricas que lhe deram origem, em consequência dos quais surge um ciclo vicioso de marginalidade e marginalização.

No actual contexto global as “etnopaisagens”1 surgem como áreas

substancial-mente “herméticas” sendo essencial, para a sua percepção e contextualização, um estudo suportado por uma pesquisa pluridisciplinar e, paralelamente, por um reconhecimento in situ. A par da investigação teórica foram, assim, realiza-das várias viagens ao local de estudo, no sentido da observação do espaço e realiza-das suas dinâmicas, bem como o reconhecimento local auxiliado por associações e habitantes. Este factor revelou-se determinante para a evolução da investigação, permitindo desmistificar pré-conceitos e enquadrar o conhecimento decorrente da pesquisa teórica.

A investigação pretendeu, deste modo, contextualizar a zona de estudo à luz de um discurso contemporaneo, reconhecendo e reflectindo sobre as condições e as condicionantes geradoras de “etnopaisagens”. Tendo como suporte um objecto de estudo específico, o trabalho permitiu reconhecer e interpretar uma realidade mais abrangente – a qual, por essa razão, se decidiu nomear Torre Global.

Paralelamente ao trabalho de campo recorreu-se, constantemente, a bibliografia oriunda de outros campos disciplinares, nomeadamente da antropologia, de sociologia, da geografia e de história. Serviu-se ainda de alguma literatura ficcional, que apesar da ausência de discurso científico permitiu contextualizar, e muitas vezes iluminar novas linhas de pensamento, ultrapassando ideias feitas e 1. (…) paisagem de pessoas que constituem o mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigran-tes, refugiados, exilados, trabalhadores, convidados e outros grupos e indivíduos em movimento. (Arjun Appadurai, Dimensões culturais da globalização, pág. 51).

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inspirando o imaginário que esteve na génese do trabalho.

Foi fundamental compreender o impacto que a globalização tem sobre os conceitos formais de sociedade, os quais se têm fixado como paradigmas absolutos e condutores do mundo em que vivemos. Actualmente a cultura surge como um processo de construção e expressão, e não como uma realidade natural, potenciada pelos meios de comunicação e fluxos migratórios.

Neste sentido explorou-se o trabalho de um conjunto de autores que reflectem sobre a actualidade marcada pelo efeito global, recorrendo aos seus conceitos como mote para a compreensão das dinâmicas da “Mouraria alargada” e da sua integração em lógicas mais amplas. A pesquisa teórica permitiu, ainda, perceber como é que um grupo representa o seu património cultural aquando da instalação numa civilização diferente, transformando-o lentamente até se integrar na comunidade envolvente. Estas formas de integração podem resultar num afastamento da cultura primitiva, mas permanecem, declaradamente, identificáveis.

Reflectiu-se, por isso, sobre uma nova cultura, de carácter itinerante e versátil onde, segundo Arjun Appadurai, o indivíduo surge como um “passageiro em livre-trânsito”2. As fronteiras transfiguram-se, os “mundos nacionalizados” dão

lugar aos “mundos culturais”, que o autor define como “mundos imaginados”3,

os quais descendem das novas “vidas-mundos”4, cada vez mais atribuladas e

preponderantes.

A estes processos de aculturação, resultantes da coabitação de diferentes civili-zações, está intrínseco o relacionamento entre indivíduos e, consequentemente, diversos mundos espaço-sensoriais, o que exige uma reflexão sobre o “Outro”, enquanto indivíduo ou conjunto de indivíduos criadores de cenários plurais, complexos e díspares. Trata-se de um suporte conceptual comparativo capaz de distinguir raças, culturas, religiões, nacionalidades, sexos e/ou idades. É por isso, segundo Ryszard Kapuscinski5 , dependente da nossa condição material e

cultural enquanto seres humanos, de como nos percepcionamos e como percep-cionamos o “Outro”. Somos, simultaneamente, “Eu”, “Outro” e os “Outros”, ge-rando múltiplas interpretações que influenciam o modo como nos relacionamos com os outros. É neste sentido que Edward T. Hall utiliza o termo “proxémia”6

para definir as observações e teorias inter-relacionais sobre a acção do Homem no espaço, enquanto produto cultural.

2. Arjun Appadurai, Dimensões Culturais da Globalização, pág.15 3. idem, pág.51

4. idem

5. Em consonância com o livro O Outro (2005). 6. Edward T. Hall, Dimensão Oculta, 1986

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É de salientar que nos contextos miscigenados a comunicação não-verbal surge como uma importante ferramenta, muitas vezes subconsciente, de transmissão de mensagens que permite aos indivíduos comunicar em diversos contextos e padrões culturais.

Em O Choque das Civilizações e a Reconstrução da Ordem Mundial (1996), Samuel P. Huntington, defende que no mundo pós-Guerra Fria, o paradigma da política internacional se encontra dependente da diversidade cultural e religiosa e que esta desencadeará coesões, mas também desagregação e conflitos civilizacionais. De facto, cultura e religião conformam, na actualidade, as principais relações de identidade sociocultural dos povos, reafirmando através deste processo antigas identidades. Face às múltiplas perspectivas que os pensadores apresentam sobre o tema, o presente trabalho pocurou explorar uma perspectiva sem pré-conceitos, evitando, no entanto, a visão conservadora e negativista do homem desterritorializado e visando antes a compreensão das capacidades e consequências culturais do efeito da globalização no espaço urbano.

Recorreu-se, ainda, a estudos já realizados sobre espaços heterogéneos, como forma de suporte ao trabalho de campo realizado. Contudo, estes são maioritariamente específicos a tempos e espaços e nem sempre aplicáveis à “Mouraria alagada”.

O caso mais marcante e o que mais indícios forneceu sobre métodos de análise de cenários marginais respeita aos estudos desenvolvidos na Escola de Chicago7, no início do século XX, realizados na sequência da abrupta instalação

de imigrante devido à expansão económica da cidade.

O trabalho realizado por Robert E. Park e Ernest Burgess, em 1925, assumiu à época bastante relevância, defendendo que as cidades se apresentam como um padrão minucioso de zonas ocupadas por actividades económicas e pelas casas das várias classes sociais.8

A cidade encontrava-se assim dividida por bairros, alguns dos quais marginais, conformando um mosaico cultural heterogéneo. À imagem da “Mouraria alargada”, a sua marginalização transformava-os numa variante das judiarias – sem limites físicos, permaneciam as barreiras mentais – mantendo-se o domínio de uma etnia sobre as restantes. Simultaneamente esta forma de ocupação permitia apaziguar conflitos entre culturas, podendo cada uma reproduzir quase

7. Corrente científica fundada por Robert Park – importante sociólogo norte-americano que contribuiu para a análise das relações étnicas e contactos multiculturais – que associava áreas como antropologia, sociolo-gia e urbanismo, através do estudo etnográfico de grandes centros urbanos.

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naturalmente o seu modus vivendi9, desde que não colocasse em causa as

regras estabelecidas.

Apesar de no final do século XX se ter verificado um afastamento desta teoria os novos fluxos migratórios e a consequente organização de pessoas por etnias, crenças religiosas ou actividades económicas, têm-se reaproximado do padrão sócio urbano desenvolvido pelos autores, ainda que de um modo mais complexo. Foi, ainda, analisado o trabalho de Elliot Liebow, Tally’s Corner (1967), que estudou a integração de comunidades negras instaladas em áreas socialmente desfavorecidas – focando um gueto em Washington D.C. – explorando a relação entre a instalação desta comunidade em bairros degradados e a sua marginalização. Entende-se, assim, que a marginalização espacial e cultural constitui uma barreira à descentralização e migração dos indivíduos que integram estas comunidades para bairros mais favorecidos – impedindo simultaneamente a sua ascensão social.

Nestas condições a comunidade surge como um alvo primário das autoridades institucionais, fundamentadas em preconceitos e estigmas que se perpétuam de geração em geração, sendo muitas vezes arrastadas para um ciclo marginal de que se não conseguem libertar. No entanto, paralelamente à conotação negativa, estas comunidades surgem como uma referência da condição da cidade contemporânea, mobilizando inúmeras associações de cariz social. Os pressupostos que permitiram estudar a realidade deste bairro marginal, procederam de uma análise aos projectos idealizados para a Praça do Martim Moniz (com o artigo de Teresa Veiga de Macedo, Lisboa do avesso: a cidade suspensa nas revistas de arquitectura – O caso do Martim Moniz) e de campos complementares à arquitectura. A evolução do trabalho verificou, no entanto, que a bibliografia disponível no campo da arquitectura era muito reduzida e não permitia contextualizar a identidade multicultural do espaço. A investigação foi, por isso, construída com recurso a bibliografia pluridisciplinar e cartografia disponível em arquivos portugueses10 e sempre sustentada pelo trabalho de

campo, que serviu de suporte permanente.

O trabalho mais próximo do objecto em estudo surgiu no campo da antropologia, com o livro Mouraria, retalhos de um imaginário (2004), da Professora Marluci Menezes, onde é analisado o bairro histórico da Mouraria, procurando nos seus símbolos uma resposta às múltiplas imagens e vidas que o qualificam. Para 9. Louis Wirth (1980) in Antropologia do espaço, pág. 39

10. Fontes de informação arquivistica: Museu da Cidade, Arquivo Municipal de Lisboa e Câmara Municipal de Lisboa.

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o efeito são apresentados factores sócio-urbanos que definem tanto o espaço físico do bairro como a sua abrangência social, traduzindo-se na delimitação de uma área à qual a autora chama “Mouraria ampliada” – a qual serviu de mote à conceptualização da zona de estudo – sendo os seus limites redefinidos, em função das intenções da presente investigação.

Por outro lado, no campo da arquitectura foram exploradas algumas narrativas sobre o desenho de espaço que permitiram criar o discurso disciplinar próprio e factual, exigido à prática arquitectónica e à sua crítica.

Neste sentido reflectiu-se sobre os processos sociais que ao longo dos anos influenciaram a qualidade urbana da cidade, realçando o crescimento dessincronizado entre a rápida evolução da sociedade contemporânea – a “terceira modernidade”11 – que o espaço urbano não tem acompanhado.

A globalização emerge de uma dualidade: se por um lado nos deparamos com uma homogeneização económica onde os diversos actores sociais podem facilmente aceder às mesmas imagens e bens, por outro a diversidade das cidades e a concorrência interurbana aumentam exponencialmente, criando, muitas vezes, amplitudes sociais extremas. Pensar num novo urbanismo – uma estrutura urbana mais democrática, mais acessível a todos e mais disponível à expressão da cidadania – implica, por isso, uma atitude mais reflexiva, flexível e plural, através de um processo de permanente indagação e do ensaio de soluções. À semelhança do trabalho realizado por Kevin Lynch em “A Imagem da cidade” (e salvaguardando as diferenças de contexto e escala das áreas estudadas) procurou-se neste trabalho um suporte teórico para a definição da metodologia aplicada, tendo sido utilizados um conjunto de conceitos definidos e desenvolvidos pelo autor, como base de sustentação da definição da área de estudo. Neste sentido a delimitação física da área a estudar e o consequente trabalho de campo (representado no estudo cartográfico) teve por base cinco elementos físicos: As “vias”, que são canais de circulação como ruas, passeios, vias de trânsito12,

ao longo dos quais o indivíduo se move, habitual, ocasional ou potencialmente, sendo um dos elementos mais recorrentes e facilmente identificáveis da percepção urbana. Os indivíduos revelam uma sensibilidade especial perante a qualidade “cinestésica” e ambiental dos arruamentos, acabando alguns destes

11. Conceito de François Ascher em Novos princípios do urbanismo. Novos compromissos urbanos, que representa o novo sistema quotidiano, impulsionado pelo processo de globalização, uma nova ordem Mun-dial que afecta invariavelmente os quotidianos colectivos, estabelecendo novos padrões tanto a nível social como urbano.

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por se tornarem memoráveis13;

Os “limites”, enquanto elementos lineares que conformam fronteiras, não aparentes, podem ser barreiras mais ou menos penetráveis que mantêm uma região isolada das outras, podem ser “costuras”, linhas ao longo das quais regiões se relacionam e encontram14;

Os “bairros”, que são áreas urbanas concebidas com uma extensão bidimensional, da qual o transeunte constrói um “mapa mental”, identificando características próprias. Para produzir uma imagem forte é necessário algum reforço das indicações de pistas. Muitas vezes encontram-se alguns sinais distintivos, mas não suficientes para a criação de uma unidade temática.15

Os “cruzamentos”, como pontos essenciais a partir dos quais ou para onde o transeunte se move, podem ter um carácter físico ou mental, como junções, locais de interrupção num transporte, um entrecruzar ou convergir de vias, momentos de mudança de uma estrutura para outra. Podem ainda ser aglomerados simbólicos que se revestem de importância por serem a condensação de alguns hábitos ou pelo seu carácter físico, tais como a esquina de uma rua ou um largo rodeado de outros elementos16, estando por isso muito próximos das vias.

Por outro lado, podem marcar o “ponto de encontro”, associando-se a uma determinada identidade. É destes nós que a sua influência irradia muitas vezes, tornando-se, por vezes, um cruzamento o símbolo de um bairro. Podem, por isso também, chamar-se «centros»17.

E, ainda, os “elementos marcantes”18, objectos físicos percepcionados

exteriormente pelo transeunte: edifício, sinal, loja ou montanha. Estes land marks são normalmente de fácil assimilação e evidenciam-se de entre inúmeros objectos físicos, identificando e estruturando o espaço urbano, sendo mais significativos quanto mais familiarizado o indivíduo está com o espaço.

A congregação e articulação destes elementos, criados em épocas diferentes e em céleres processos de mutação, confere à cidade uma leitura mais clara, organizando os espaços de uso urbano através de elementos fulcrais e, 13. A aparente qualidade «cinestésica» de uma rua, a sensação de deslocação ao longo dela, influencia os observadores, até ao nível da sua memória: as curvas, as subidas, as descidas. (…) Os objectos existentes ao longo de uma rua podem estar dispostos de modo a realçar o paralaxe do movimento, ou perspectiva, ou ainda de modo a que o percurso da rua seguinte seja visível. A adaptação contínua da linha do movimento confere-lhe uma identidade e será criadora de uma experiência contínua através do tempo. Avistar bem uma rua ou o seu fim, intensifica a sua imagem. (idem, pág. 101)

14. idem, pág. 52 15. idem, pág. 72

16. Kevin Lynch, A imagem da cidade, pág. 53 17. idem

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consequentemente, aumentando a imaginabilidade dos mesmos.

A junção dos dois processos, estudar a imaginabilidade do indivíduo e a pertinência das espacialidades estruturantes nesse processo de reconhecimento urbano, permite sugerir princípios de desenho do espaço através do desenvolvimento de um método de abordagem arquitectónico-urbanístico – construindo-se, deste modo, um método de estudo do espaço e um método de intervenção.

Esta abordagem levanta contudo algumas questões, devido ao seu carácter empírico. Falamos de uma interpretação de espaço pessoal, pelo habitante, que é posteriormente reinterpretada pelo investigador. Um acumular de interpretações e representações, que apesar de reflectirem o imaginário público, podem não ser suficientemente fidedignas para uma conclusão. Terão as conclusões valor para planear decisões e será o esforço despendido compensador do resultado?19

E foi com esta dúvida presente, mas com a convicção de que aprofundar o conhecimento sobre a percepção do mundo sempre foi uma busca do Homem, (nem sempre executada com rigor), mas que permitiu desde os primórdios o desenvolvimento mental e físico das dinâmicas humanas e o estabelecimento de estratégias para que esse desenvolvimento se processe de uma forma mais satisfatória, que se desenvolveu a investigação 20.

Ambiciona-se com este estudo reinterpretar uma nova dimensão da cidade contemporânea, através do desenvolvimento de uma proposta capaz de construir uma metodologia de intervenção para a abordagem do desenho urbano em contextos multiculturais, partindo do caso de estudo da Mouraria. Apesar de neste trabalho apenas ser analisada uma pequena parte do bairro, decidiu-se denominar a área de estudo como “Mouraria alargada”21: mais do que uma

visão ampliada sobre o bairro da Mouraria, estuda-se uma zona com dinâmicas marginais específicas (que se prolonga do bairro aos espaços limítrofes, como o Largo do Martim Moniz, Rua da Palma e Av. Almirante Reis), que permitiram identificá-la e demarcá-la como suporte espacial a uma “etnopaisagem” única na cidade de Lisboa.

19. idem, pág. 143

20. As cidades são o habitat de muitos grupos e só através de uma compreensão das imagens de grupo e das individuais, bem como das suas inter-relações, pode construir-se um ambiente satisfatório para todos. Até que tais conhecimentos sejam adquiridos, o desenhador tem de continuar a ter confiança no denomi-nador comum, ou na imagem pública, e tentar facultar uma variedade de tipos de imagem de edifícios tão vasta quanto lhe for possível. (idem, pág. 161)

21. Que advém, tal como já referido, de uma revisão do conceito “Mouraria ampliada” da Professora Marluci Menezes.

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2. A Torre Global

O mundo para mim, sempre foi uma grande Torre de Babel. Mas uma torre onde Deus misturou, não só línguas, mas também culturas, costumes, paixões e interesses, e onde criou, como habitante, um ser ambivalente que une em si um eu e um não-eu, ele próprio e o Outro, o seu Outro e o estranho.

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Pensar a evolução das práticas urbanas da humanidade exige a compreensão das manifestações civilizacionais que a conformam. Parte-se, por isso, do conceito de civilização22 que nos distinguia culturalmente – europeus – dos

restantes povos enquanto sociedade urbana, sedentária e conhecedora da escrita. O termo servia, por isso, para representar uma vasta identidade cultural, que apresentando características comuns e produzindo fenómenos idênticos, exprimia um modo de vida global. Esta convenção, que promovia a divisão entre povos, subentendia um juízo de valores viciado – distinguíamo-nos dos outros por sermos melhores. 23

No século XIX estabeleceu-se um conjunto de premissas através das quais as restantes sociedades – não-europeias – eram catalogadas como civilizadas, ou não civilizadas. A assumpção deste termo por parte dessas sociedades revelava-se vantajoso, uma vez que lhes possibilitava integrar o sistema internacional dominante, também regido por europeus.

No entanto a compreensão de que não poderia existir um critério único para o conceito de civilização – e que este não se poderia fundamentar exclusivamente no modelo europeu – conduziu ao reconhecimento de um pequeno grupo de povos como “civilizações”, passando o conceito a ser percebido como um amplo agrupamento cultural. Cada civilização é composta por várias identidades culturais, cada uma definida por elementos objectivos – raça, história, língua, religião e instituições – e por elementos subjectivos, dependentes dos diferentes níveis de identidade de cada pessoa.

A história das suas relações é definida por três fases: encontros, impacto e interacções.24 Esta última fase corresponde ao período em que nos encontramos

actualmente e, como o próprio nome indica, onde a diversidade das práticas urbanas surge com mais intensidade.

O final do século XX marcou uma nova mudança nas relações entre civilizações – a “terceira modernidade”: se, inicialmente, estas eram pontuadas por uma dinâmica unidireccional, com a sociedade europeia a exercer uma posição

22. Conceito desenvolvido por pensadores franceses, no séc. XVIII que surge por oposição ao “barbarismo”. 23. Ser civilizado era bom; ser incivilizado era mau. (Samuel P. Huntington, O choque das civilizações e a mudança na ordem global, pág. 45)

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dominante, passou-se a uma relação multidireccional com as várias civilizações a interagirem entre si. A “terceira modernidade” representa uma nova ordem mundial, impulsionada pelo processo de globalização, que afecta o quotidiano de todos, estabelecendo novos modelos tanto a nível social como urbano. A noção de distância e mobilidade é uma das principais “imposições” da globalização, encontrando-nos todos à distância de um clique, de uma chamada, de um voo low cost.

A ruptura do conceito de limite leva a uma natural mobilidade do homem, seja para turismo ou procura de melhores condições de vida e trabalho. Mas como todo o homem é culturalmente marcado, a sua deslocação – principalmente a imigração – comporta a descentralização da própria identidade. As civilizações até então bem delimitadas passam a ser representadas de forma plural e fragmentada, com os seus signos a serem implantados noutras geografias culturais. Esta deslocalização de indivíduos, bens e patrimónios, gera novas formas de apropriação espacial – identidades que se pode entender como no limiar entre civilizações – e que são promotoras de novas localidades preenchidas pelas mais variadas dinâmicas. A multiplicação das “etnopaisagens” de Appadurai poderá então resultar em representações, mais ou menos fidedignas da identidade génese, ou servir de base à criação de novos núcleos identitários – dos quais se aproxima a ideia de China Town.

O aumento destes fluxos humanos, culturais e financeiros, levam à convergência de formas de estar tão variadas que a sua instalação apela a um urbanismo com capacidade de resposta multíplice. Contudo, a resposta urbana tem-se traduzido numa fragmentação da cidade – tanto a nível social como urbano – com espaços dedicados quase exclusivamente a práticas culturais específicas, gerando, frequentemente, instabilidade social. Se primeiramente não conhecíamos o mundo, hoje não reconhecemos a nossa própria cidade, e o medo do desconhecido revela-se um dos factores preponderantes no processo de marginalização das “etnopaisagens”.

O mesmo efeito globalizante que aproximou os homens tornou as suas relações mais frágeis e instáveis – tal como num hipertexto, os “indivíduos-palavras”25

estabelecem uma infinidade de relações pessoais ou tecnológicas num vasto conjunto de “textos-campos sociais”26. No entanto, são cada vez mais efémeros

os laços que se estabelecem com vizinhos, colegas, parentes e conhecidos. A cidade tal como o fosso social aumentam, e apesar de a mobilidade ser um dos aspectos mais considerados pelo novo urbanismo, o homem é cada vez mais solitário, isolando-se em áreas afectas às suas práticas.

25. François Ascher, Novos princípios do urbanismo. Novos compromissos urbanos, pág. 47 26. idem

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Qualquer sociedade é marcada por civilizações dominantes – como é o caso da hegemonia do Ocidente industrial27 – que subjugam as outras identidades

culturais, levando ao choque de civilizações. Este cenário origina formas de combate mais radicais, sobretudo por parte das minorias, que em resposta à subversão dos seus valores patrimoniais, os exaltam na sua expressão original. A religião surge historicamente como uma identidade capaz de congregar diferentes raças, línguas e culturas, através da exaltação do sagrado e da convergência de práticas sociais.

Com a substituição do nacionalismo secular pelo nacionalismo religioso, a religião torna-se a ideologia predominante28, sendo os seus espaços arquitectónicos

preponderantes no apoio afectivo, material e social das “vidas-mundos”. É neste sentido que, desde a década de 70, o revivalismo religioso se torna cada vez mais exuberante na base da organização social.

Se o conceito de “civilização universal” enunciava uma mundialização da cultura humana com a uniformização de instituições, valores, crenças e práticas, hoje constata-se que a “realidade universal” não passa de uma superfície que camufla a diversidade cultural, religiosa e histórica – a denominada “civilização global”29.

A construção da Torre de Babel – cenário metafórico do desejo de ascensão do Homem aos céus – só seria possível pela união dos povos. Vencidos unicamente pelo poder divino, esta idealização encontra-se dominada por uma capacidade de imaginação infinita, desarmada de preconceitos. Se a chegada aos céus não foi possível, o domínio civilizacional de um território alargado surge como a racionalização do conceito da Torre de Babel.

Na “terceira modernidade” a Torre passa a ser Global, assente ainda na comunhão e interacção de povos, mas também marcando um afastamento dos valores que caracterizam cada civilização. Exige-se por isso uma reformulação libertária – não repressiva e não manipuladora – das realidades que marcam a “terceira modernidade”, um trabalho conjunto que permita a coabitação das diversas culturas.

27. Gramsci in Orientalismo, pág. 7

28. Tal como explicitado por Gilles Kepel em A Vingança de Deus.

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2.1_ O Outro: estado de arte do seu reconhecimento

Além-mar, além-fronteiras, além do que os olhos alcançam encontramos o “Outro” – sujeito condicionado por uma panóplia de interpretações de cariz histórico, filosófico e antropológico. Outras identidades, que conformam outros “Eus” e outras práticas do quotidiano. A identificação desse “Outro” passa por um processo social, tão marcante quanto o da definição da nossa própria identidade.

A curiosidade perante esse além levou os Europeus30 à descoberta de indivíduos,

práticas e hábitos – Outros – que nem sempre soube apreender/identificar, induzindo juízos e prejuízos sobre o sujeito não-europeu.

O século XV, época de mercadores e mensageiros, marca um primeiro ponto de encontro entre viajantes e o “Outro”, tanto pelas rotas de comércio, como pela circulação de mensageiros. Com a Era dos Descobrimentos31 as relações

entre Europeus e os Outros revelaram o seu carácter mais violento, o “Outro” não era considerado um Homem, o que resultava na sua subjugação tanto a nível cultural como físico – preconceito que ainda hoje se mantém de forma menos disseminada. Esta situação só se modificaria um século mais tarde, com o Iluminisno e o Humanismo a enunciarem uma inovadora interpretação sobre aquele sujeito, não-branco, não cristão e selvagem, aquele monstro, mesmo sendo tão diferente de nós também era humano.32 Sujeitos, Europeus

ou não, permitiram-se, assim, pela primeira vez, o estabelecimento de contacto e reconhecimento cultural e espiritual, dando início à época que ainda hoje vivemos, caracterizada por três teorias marcantes de ruptura: da antropologia, de Lévinas e da multiculturalidade.

A ruptura dos antropólogos gerou duas correntes: evolucionistas e difusores. Revendo-se numa unidade familiar humana, os evolucionistas consideravam-se a si e aos Outros “cidadãos do mundo”, uma perspectiva próxima do que nos dias de hoje entendemos como globalização. Por outro lado, os difusores apreendiam o mundo como uma malha multilingue e multicultural, dividindo-o em grupos que viviam de forma isolada. Uma perspectiva anti-globalistas, não no sentido de se oporem à globalização, mas por olharem o mundo à imagem de um tapete

30. África nunca construiu nenhum barco para ver o que há além dos mares que a rodeiam. Os seus habitantes, nem à Europa, que está mesmo ao lado, tentavam chegar. Ainda mais longe foi a civilização chinesa: simplesmente se separou do resto mundo construindo a Grande Muralha. (Ryszard Kapuscinski, O Outro, pág. 16)

31. (...)os patriotas do Terceiro Mundo não apreciam esta denominação. Porque dizem que descobriram a América ou a Ásia? Nós conhecíamos esses continentes desde tempos imemoráveis, e sempre lá vivemos! (idem, pág. 27)

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persa com a sua diversidade e a sua finura.33

Para Lévinas34, o “Ser Ocidental” desenvolveu-se sob um discurso de dominação,

o que limita perigosamente a capacidade de resposta do “Eu” moderno perante o “Outro”. Marcado pela Segunda Guerra Mundial e a sua origem judia, o autor defendia uma responsabilização sobre o outro – não só é preciso encontrar o Outro, como há-de recebê-lo em franco convívio. Hás-de responsabilizar-te por ele.35 Aceitar as diferenças do “Outro” seria um primeiro passo para a constituição

de uma sociedade mais rica e valorosa; não funcionando esta diferenciação como uma forma de exclusão, mas sim como meio de identificação.36

O processo de descolonização iniciado em meados do século XX marca uma nova realidade para colonos e colonizadores, com dois terços da população mundial a ganhar formalmente o estatuto de cidadão livre. Contudo a Europa não acompanha plenamente este processo, não se reconhece numa posição igualitária e fecha-se no seu “Eu” moderno, tal como perspectivado por Lévinas. Somente após o fim da Guerra Fria, e com a euforia da democratização, a Europa se abre, finalmente, a culturas e sujeitos diversificados, aumentando a sua mobilidade, intra e transcontinental. É o início da Aldeia Global37, fenómeno

pró-democrático, onde as relações atingem um nível mais complexo e diversificado, conformando a sociedade heterogénea que hoje conhecemos. Um mundo rizomático (Deleuze e Guattari, 1987) ou mesmo esquizofrénico38, que exige

desenraizamento e uma permanente alienação entre sujeito e grupos.

Ultrapassadas fronteiras, barreiras e limites físicos e psicológicos, o Outro surge cada vez mais associado a histórias e memórias extraterritoriais, uma mobilização cultural consciente definida pelos estatutos (refugiado, exilado, trabalhador, estudante) que compõem o novo mapa-mundo cultural.

Apesar da evolução da perspectiva sobre o “Outro”, a imigração continua a reflectir em grande parte as desigualdades que caracterizam a sociedade mundial. O “Outro” continua a procurar países que lhe propiciem um melhor nível de vida e de trabalho, contudo esta realidade é agora acentuada por uma tomada de consciência mais generalizada dessas mesmas desigualdades. Por outro lado, a evolução tecnológica das últimas décadas, alterou significativamente as noções de mobilidade e distâncias. Vulgarizou-se o transporte aéreo, reduziram-se os tempos de deslocação e agilizou-se o contacto entre o “Eu” e o “Outro”. Contacto 33. idem, pág. 30

34. Filósofo francês, influenciado pelas obras de Edmund Husserl, Martin Heidegger e Franz Rosenzweig. 35. Emmanuel Lévinas in O Outro, pág. 35

36. Ao mesmo tempo, a diferença não elimina a minha identificação com o Outro: “Eu sou o Outro.” (O Outro, Ryszard Kapuscinski pág. 36)

37. Conceito criado pelo filósofo Marshall McLuhan, em Guerra e Paz na Aldeia Global (1971). 38. Arjun Appadurai, Dimensões Culturais da Globalização, pág. 45

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este que leva a uma inevitável comparação à qual poderá estar implícita uma atitude de desvalorização do “Outro”, como meio de auto-promoção, se baseado em preconceitos – hostis ou benevolentes39.

Uma relação positiva com o “Outro” exige confiança numa sociedade baseada na diferença e diversidade humana, a qual só é possível se nos sentirmos seguros com a nossa própria identidade. As reticências, preconceitos, ou mesmo a exuberância e a recepção forçada são muitas vezes amplificadas pelos “media”, desencadeando manifestações mais irreflectidas a nível individual.

Defrontamo-nos ainda mais vezes com uma atitude de indiferença perante o “Outro”, não se trata necessariamente de aceitar as diferenças, mas sobretudo de uma tolerância consensualmente irreflectida, onde presença e diferenças são ignoradas: sabemos que o Outro existe, mas não “O” assumimos como parte integrante do nosso quotidiano.

Tal como no discurso preconceituoso existe uma ideia pré-definida, que induz a um julgamento, também a indiferença é consequência de uma interpretação prévia, a ausência de conhecimento sobre culturas não-ocidentalizadas, inibindo um julgamento isento sobre o “Outro” contemporâneo. Retorna-se ao medo (pré-Descobrimentos) perante o desconhecido, no entanto medo não faz parte do vocabulário da geração tecnológica e mergulhamos numa cadeia de acções, inibidas entre o não inferiorizar e o não querer valorizar, permanecemos estáticos. Mais vale não olhar.

Por outro lado, a nova realidade político-económica Ocidental reverteu o sentido de mobilidade, passamos a ser o “Outro”, procurando novas oportunidades e condições de vida num Oriente em acelerado processo de modernização. Apesar de partirmos com os mesmos princípios e objectivos, não nos consideramos “Outro”, mas sim cosmopolitas, uma reinvenção moderna dos “cidadãos do mundo”40. A visão contemporânea do cosmopolitismo concentra-se nos benefícios

da existência de diferentes visões do mundo e prioridades. Se o cosmopolita for um cidadão do mundo, ou alguém que de bom ou mau grado aceita variadas identidades, a sua perspectiva transglobal deverá ser relevante.41

O multiculturalismo transporta, por isso, mais dúvidas que certezas. Por multiculturalismo entendemos uma sociedade estruturada onde existe mais do que uma cultura. Enquanto processo social, o multiculturalismo colabora com a unificação de culturas, acentuando as semelhanças; ou, pelo contrário, afasta-39. Ambos os preconceitos inferiorizam, mas apenas o preconceito hostil se baseia na atribuição explícita de atributos negativos. (Jorge Vala, Diferença e semelhança: o peso da identidade in Podemos viver sem o Outro?, pág. 105)

40. Termo defendido pela corrente evolucionista.

41. Sherifa Zuhur, Uma abordagem intercultural à questão do extremismo islâmico in Podemos viver sem o Outro, pág. 199

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as, evidenciando as diferenças.

Contudo, dizemos hoje que o mundo se tornou multiétnico e multicultural; não é porque hoje haja mais culturas e comunidades do que outrora, mas sim pelo facto de falarem agora (…) requerendo, assim, a aceitação, o reconhecimento e o lugar a que têm direito à mesa redonda das nações.42 O discurso sobre o “Outro”

deixou de ser, exclusivamente, negativo passando a promover o interesse de um ambiente multicultural. Exemplo disso são os programas de intercâmbio escolar, a promoção por parte dos “media” dos novos contextos comerciais conformados por várias etnias e a proliferação de espectáculos culturais de índole étnica. Estas mutações sociais reflectiram-se, também, no espaço urbano. As novas interpretações de mobilidade e do “Outro” transportam consigo novas formas de ocupação, uma transmutação do quotidiano. Assim somos inadvertidamente confrontados com novas noções de identidade urbana – novos “mitos de fundação”43 - que proliferam mesmo ao nosso lado, fruto de um imaginário

alargado, que vai do “Eu” Moderno ao “Outro” Global.

42. Ryszard Kapuscinski, O Outro, pág. 94

43. Yañez Casal, Arqueologia, Antropologia e Património, in Ethnologia, nº1-2, Revista do Departamento de Antropologia da UNL, Lisboa.

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2.2_Patrimónios, o mito de fundação

A cidade é principalmente um estado de espírito (a state of mind), um conjunto de costumes e tradições, com os sentimentos e atitudes inerentes aos costumes, e que se transmitem pela tradição.

(Robert E. Park, The City, 1925) O desejo de recuperar o passado leva a uma adaptação simbólica das coisas inertes e invisíveis, transformando-as em objecto de significação. A transmissão destas significações perpetua-se através de processos de requalificação e performances rituais, conferindo-lhes o estatuto de Património. O conceito de património fundamenta-se numa inversão das dinâmicas de relacionamento com o passado as quais advêm da necessidade de identificação com o “mito de fundação, o núcleo de identidade das nossas sociedades”.44

O património material compreende sítios, monumentos e paisagens sujeitos a regras de classificação e preservação precisas. Este surge na sequência de dinâmicas de degradação do tecido urbano, de conflitos de ideias de modernização, inovação e preservação, da propagação e de dinâmicas de concorrência entre cidades – simbolizando um questionamento sobre a nossa própria condição de ser urbanos.

Se a associação de património a algo material é quase imediata, esta relação advém, muitas vezes, de construções mentais assentes em vivências culturais. É neste sentido que surge o património cultural imaterial, que contempla as tradições, expressões de vida, conhecimentos e aptidões que constituem a cultura e a identidade de cada país.45

No actual contexto global, de transformação social, o interesse patrimonial associa os aspectos arquitectónicos com determinadas especificidades assentes em formas culturais e simbólicas plurais – notoriamente peculiares e expressivas – elevando, ocasionalmente, a tradição ao estatuto de património.

A globalização permite, então, uma expansão física do património cultural de uma comunidade, que através da criação de novos cenários culturais inicia um processo de descontextualização de determinados objectos e práticas que 44. idem

45. Entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimen-tos e aptidões – bem como os instrumenconhecimen-tos, objecconhecimen-tos, artefacconhecimen-tos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural. Esse património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuida-de, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana. (UNESCO, Convenção para a salvaguarda do património cultural imaterial, disponível em http:// www.unesco.pt)

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compõem o seu “mito de fundação”. Contudo, ao representarem uma minoria, estas tradições encontram-se sujeitas a ameaças de intolerância, degradação e desaparecimento – empobrecendo o seu património. A propagação de patrimónios culturais orienta-nos, por isso, para a produção de lugares idealizados pela prática social, com os objectos simbólicos a adquirirem cada vez mais um carácter efémero e portanto durarem menos que nós.

Por outro lado, a mercantilização da cultura – assente em critérios económicos globais – tende a homogeneizar a imagem da cidade e consequentemente do seu património cultural. Exemplo disso é a proliferação de “etnopaisagens” como China Town e Indian Town que, promovidas por processos de estetização, encenação e estandardização do património cultural, conceberam novos “mitos de fundação” – os “cenários de utopia”46.

46. Ascânio (2001) in Da idealização do património urbano à construção de um projecto social de salva-guarda e reabilitação

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2.2.1_ Cenários de utopia

O século XX é marcado pelo início de uma nova vaga de deslocação, motivada pela procura de trabalho e/ou melhores condições de vida. Este processo de migração, como analisado no texto “O Outro”, não conforma, por si só, uma nova realidade. No entanto, a modernização desse processo secular, que envolve múltiplos cenários tecnológicos (como os “media”, mobilidade e internet), gera formas de migração fortemente influenciadas pelo imaginário mediático. Uma nova ordem global, instável e subjectiva, que atinge o Outro desterritorializado47.

Aquando da chegada ao cenário o sujeito vê-se confrontado com ambientes que, na maioria das vezes, não correspondem ao imaginário fantasiado – a terra dos sonhos transforma-se muitas vezes num espaço de desilusão – onde as “vidas-mundos” se tornam cada vez mais atribuladas. Face à incapacidade de inserção, exalta-se a diferenciação, promovendo a formação de identidades de grupo, convertendo-se o “Outro” em Outros.

O sentimento de decepção nutre o saudosismo cultural que, exaltado pela lealdade ao país de origem, leva muitos imigrantes a formarem ou a inserirem-se em comunidades étnicas: podemos falar de diásporas de esperança, diásporas de terror e diásporas de desespero. Mas em todos os casos estas diásporas trazem a força da imaginação como memória e como desejo.48

Se nos “mundos nacionalizados” as práticas sociais decorriam naturalmente do hábito, hoje o hábito tem que ser reforçado, de modo a responder aos permanentes fluxos das “vidas-mundos”49. A imaginação torna-se um acontecimento colectivo

capaz de reconfigurar a vida social, superar estados emocionais e sensações interditas. Este processo transforma-se num meio de reconhecimento, cria-se identidade e identificação.

Por identificação entenda-se as dinâmicas intergrupais geradas como meio de defesa e sobrevivência da identidade de grupo, estando esta sujeita a juízos pejorativos. A obra da imaginação, vista neste contexto, nem é puramente emancipadora nem inteiramente disciplinada: é um espaço de contestação no qual indivíduos e grupos procuram anexar o global às suas próprias práticas do moderno50, transformando-o num espaço de abstracção com rotinas cada vez

mais reguladas, menos espontâneas e crentes. É esta adaptação que permite a 47. Desterritorialização, termo utilizado por Arjun Appadurai para representar o actual aumento da mobili-dade e os consequentes fenómenos culturais miscigenados.

48. Appadurai, Arjun, Dimensões culturais da globalização, pág. 17

49. Houve uma transformação geral das condições globais das vidas-mundos: em termos simples, onde a improvisação era outrora furtada ao refluxo glacial do hábito, tem o hábito que ser agora penosamente reforçado perante vidas-mundos que estão quase sempre em fluxo. (idem, pág. 81)

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uma minoria impor-se como comunidade dominante num determinado espaço urbano, mantendo-se contudo marginalizada da restante cidade.

As referências grupais são desde sempre factores fundamentais na auto-representação pessoal, na medida em que contribuem para o sentido de distintividade e para o sentimento de valor pessoais51, associando-se o

sujeito a símbolos identitários como bandeiras, crenças, mitos e estereótipos. Consequentemente, é muito provável que as pessoas estejam motivadas para apoiar, promover e defender o valor e a distintividade dos grupos a que pertencem. Este princípio de indissociável ligação entre identidade pessoal e pertenças colectivas pode explicar por si só o amor pelo grupo de pertença (…) mas não explicar por si só a derrogação, a hostilidade, a representação do outro como radicalmente diferente e inferior ou, na nossa linguagem, a sua etnicização52.

A fantasia descende, neste sentido, das inúmeras práticas sociais grupais, produzindo imaginários, ambientes e localidades que se repetem nos mais variados pontos do globo.

Estas procuram resgatar, repetidamente, os simbolismos do passado promovendo cenários fundamentados em processos imagéticos estandardizados, muitas vezes descontextualizados – pelos contextos, elementos, práticas e objectos – da cidade pré-existente. A diferença é então camuflada por um novo ambiente, onde o Outro autóctone se torna comum, e o “Eu” emigrado uma memória, um revivalismo, uma peça patrimonial.

Camuflam-se os problemas através de uma criação idílica de lugar, ou, como diria Ascânio (2001), de cenários de utopia53. Contudo, é muito ténue a linha que

orla estes pequenos grupos e os ambientes por eles produzidos.

51. Jorge Vala, Diferença e semelhança: o peso da identidade, in Podemos viver sem o Outro?, pág. 106 52. idem

53. Marluci Menezes, Da idealização do património urbano à construção de um projecto social de salva-guarda e reabilitação.

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3. Etnopaisagens na cidade próxima

Na era da globalização, é provável que os assuntos que unem os debates externos e internos tenham muito a ver com a democracia, os mercados livres, a migração, a pobreza, o ambiente, a guerra justa e o bem-estar social.

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O mundo mudou porque as sociedades mudaram, impõem-se novos ritmos e novas formas de estar, novos arquétipos. Estas mudanças económicas, políticas e sociais, a que genericamente se chama mundo globalizado, implicam uma nova percepção sobre o “Eu” e o “Outro”, bem como das suas práticas.

A economia pós-industrial, que marca a era da globalização, é composta por formas divergentes de apropriação do espaço urbano e as dinâmicas das grandes metrópoles mundiais marcadas pelo poder económico, atraem um número cada vez maior de “vidas-mundos”.

O sistema económico afecto às comunidades estrangeiras constitui-se como sendo fechado e dedicado à própria comunidade. Tendencialmente direccionado para sectores pré-definidos, como restauração e venda de bens tradicionais, permite às comunidades estrangeiras aceder mais facilmente a produtos e serviços que lhes são familiares. É ainda frequentemente mencionado como uma economia marginal, com regras internas próprias e dependente de práticas informais promotoras de um processo inversos à gentrificação – a desvalorização imobiliária de uma zona urbana ocorre paralelamente à entrada de imigrantes e, consequentemente, dá-se a deslocação dos residentes com maior poder económico para outro local. Neste sentido são, normalmente, ocupadas áreas onde predominam os espaços comerciais e edifícios abandonados, transformando-os em bairros residenciais e comerciais, promovendo-se uma nova identidade. O carácter circunscrito destas áreas potencia o seu cenário romantizado pelas práticas sociais, simbologias culturais e mitos.

A instalação de zonas comerciais afectas a uma comunidade estrangeira serve ainda como ponto de referência cultural, pelo que as novas levas de imigrantes se instalam tendencialmente nas proximidades de modo a conseguirem recriar as suas práticas tradicionais.

No plano global da cidade a instalação das “vidas-mundos” encontra-se intrinsecamente associado a uma perturbação social. Deste modo a criação de um bairro surge associado a um exercício de poder que tende a transformar o ambiente génese positiva ou negativamente – O principal dilema é que os bairros são contextos e ao mesmo tempo requerem e produzem contexto.54 As

dinâmicas criadas como resposta/protecção à sua própria condição de minoria 54. Arjun Appadurai, Dimensões culturais da globalização, pág. 245

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na cidade, perpetuam muitas vezes estigmas e marginalizam espaço e pessoas. A large city is a space of difference, in Sennett’s words (1992). The inscription of difference into the urban landscape and into urban space is no easy matter; it cannot simply be an enactment of different cultures, the merchandising of subcultures, a simplistic democratic conception of one vote/one space carried onto the group level. It needs to be rooted in the constitution itself of urban space.55 Para a compreensão da cidade global – promotora destas formas de

apropriação – é necessário construir uma nova abordagem sobre os complexos “cenários de utopia”, através da aproximação e compreensão das dinâmicas e motivações dos seus actores.

55. Saskia Sassen, Ethnicity and space in the global city: a new frontier? in Ciutat i immigració [City and immigration], Urbanitats no. 2

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3.1_ Na rua das últimas coisas

Quando vivemos na cidade, aprendemos a não contar com coisa nenhuma. Fechamos os olhos por um momento, viramo-nos para olhar para outra coisa qualquer, e, de súbito, aquilo que tínhamos à nossa frente desapareceu.

(Paul Auster, No país das últimas coisas, 2010) Assim são as novas metrópoles, instáveis ou até mesmo indomáveis. Reinventam-se diariamente ao ritmo de uma população cada vez mais díspar, que Reinventam-se multiplica em número e identidades. Reproduções de imaginários culturais, nem sempre fidedignos, nem sempre intemporais – mas sempre adaptáveis à urbe. As verdades são cada vez menos absolutas, reinam as mutações e a vontade fugaz do Homem e a cidade transmuta-se.

Fenómenos de apropriação, aglomeração e personificação reproduzem-se, muitas vezes silenciosamente. E num fechar de olhos deixamos de reconhecer o espaço que sempre nos foi familiar, com as pessoas com quem nos identificamos e o ambiente que nos caracteriza. A cidade, que muitas vezes permanecia intocável, ganha novas cores, novas dinâmicas e novos actores – criam-se novas formas de adaptação ao espaço público e privado, conferindo-lhes uma identidade muito própria. Pessoas e culturas variadas imiscuem-se projectando novas formas de estar na cidade e a cidade é adaptada pelas novas necessidades, conformando sistemas miscigenados de apropriação urbana.

É neste contexto de proximidade multicultural que surge o Centro Comercial da Mouraria (CCM) um lugar exótico56, uma “viagem de curto curso” ao Oriente.

Rápida e eficaz para preencher o imaginário do desconhecido. Somos confrontados com pessoas, símbolos e aromas diferentes, desde a movimentação frenética de comerciantes que aqui se abastecem. Escondido por uma pesada fachada modernista dos anos 80, este centro é muitas vezes marginalizado, tanto pelas entidades governamentais como pela população lisboeta. O desconhecimento cultural dá, neste espaço, azo a preconceitos e marginalização, um ciclo vicioso que condena pessoas e espaço ao abandono social. O espaço comercial transforma-se em espaço de transição, entre a Praça do Martim Moniz (PMM) e a Rua da Mouraria ou, para os mais cépticos, num espaço limítrofe – que para ser ultrapassado deve ser contornado.

É neste contexto que o estudo do Centro Comercial da Mouraria transporta para a envolvente Rua da Mouraria, Praça do Martim Moniz, Rua da Palma e Av. Almirante Reis.

A Praça do Martim Moniz, uma ampla zona de estar arborizada, com chafariz e 56. Que é de país ou de clima diferente daquele em que vive ou em que se usa. Estrangeiro; importado. (disponível em www.priberam.pt)

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quiosques, é envolvida pelo movimento frenético de automóveis e pessoas, que circulam ao seu redor.

A Rua da Mouraria marca um dos limites do bairro que lhe dá o nome, conhecido desde sempre pelo seu ambiente marginal – casas de fado e de prostituição confundiam-se muitas vezes no emaranhado de ruas, vielas e travessas que vão subindo ao longo da colina.57 Hoje a zona baixa do bairro – ruas da Mouraria

e do Benformoso – encontram-se ocupadas por comércio e habitação afectos a imigrantes. Ao longo deste espaço multiplicam-se as lojas, restaurantes, habitações e locais de culto destinados às novas comunidades provenientes do Bangladesh, China, PALOP, Brasil e leste europeu que, coabitando com portugueses, geram um cenário multicultural de escala única no centro da cidade. Um ambiente em permanente mutação, com a rotação frequente de espaços comerciais e de pessoas.

E num fechar de olhos, aquilo que hoje vemos poderá já não existir amanhã.

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3.2_ Proxémia: uso do método na “Mouraria alargada”

Os mapas têm funcionado como ferramentas versáteis e essenciais para se pensar visualmente o mundo a uma escala global, continental nacional e local. (…) Também comunicaram, explicaram e preservaram informação essencial para a sobrevivência das culturas.

(Karen Armstrong, Conseguimos nós viver sem o outro?, 2009) Sendo este lugar um genuíno suporte da “vida-mundo” ali desenvolvida, que historicamente perpetua uma imagem de marginalidade – onde apenas os actores vão mudando – a “Mouraria alargada” define-se por dinâmicas sociais e urbanas únicas na cidade de Lisboa. Desde a génese do bairro que as suas facetas se associam a um (sub)mundo regido por regras muito próprias, marcadas por práticas marginais e vidas miscigenadas, dissimuladas por uma encosta onde se multiplicam ruelas, travessas, becos e escadas irregulares. Espaço(s) e vidas fundem-se desde sempre para definir a Mouraria, criando uma realidade desagregada da restante cidade, com a Baixa Pombalina e a malha ortogonal que se desenvolve a partir da Igreja dos Anjos a servirem de espaços de transição.

É neste sentido que a Mouraria (na sua dimensão alargada) se reinventa simbólica e quotidianamente, conformando o espaço simultaneamente emblemático e segregado que hoje conhecemos. O quotidiano do espaço público, que se desenrola entre o poder social e político das normas formais e o poder de códigos e signos informais, surge como o elemento dominante das práticas urbanas. Transformando o espaço público num importante reflexo dos processos de apropriação urbana das “vidas-mundos” que ali gravitam, tanto na sua vertente tradicional como globalizada, promotor das ligações rua/casa, casa/bairro e bairro/cidade.

Assim optou-se por fazer uma análise de rua, uma vez que funciona como a expansão e a expressão dessas “vidas-mundos”, concentrando a observação nos elementos que a caracterizam e limitando o espaço de observação aos elementos públicos e semi-públicos.

Para a compreensão do quotidiano que marca a “Mouraria alargada” foi inicialmente realizado um estudo, que através de um levantamento in situ acompanhado por bibliografia específica58, permitiu avaliar o espaço

arquitectónico que contextualiza as dinâmicas heterogéneas ali presentes. Para

58. Por bibliografia específica (entenda-se específica ao sítio) recorreu-se à tese de doutoramento, em antropologia, da Professora Marluci Menezes (editada com o nome Mouraria, retalhos de um imaginário) e o artigo de Teresa Veiga de Macedo, Lisboa do avesso: a cidade suspensa nas revistas de arquitectura – O caso do Martim Moniz, in Revista de arquitectura: arquivo(s) da modernidade.

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o efeito foram realizadas várias visitas, a pé e de carro, de dia e de noite, com suporte cartográfico. Deste modo pretendeu-se registar fidedignamente um conjunto de elementos notáveis, físicos e sociais, que definem e caracterizam a zona. Este registo serviu de base para a criação de uma imagem urbana, representativa do ambiente, originando um conjunto de mapas analíticos que escrutinam as características físicas do lugar. Resultando no reconhecimento de pontos sugestivos de um modelo espacial, historicamente marginal.

No primeiro conjunto de mapas procura-se abordar e delimitar o conceito de “Mouraria alargada”, através da análise ao tecido urbano, que também foi necessário delimitar, e que posteriormente servirá de suporte à análise social. Como o lugar não vive por si só, acabou por se tornar preponderante a interacção com a comunidade. No entanto, actuar em espaços marginais ou marginalizados comporta dificuldades inicialmente acrescidas pela desconfiança dos habitantes. Neste sentido recorreu-se a associações locais como intermediários e, muitas vezes, como fonte de informação sobre as práticas sociais que conformam o quotidiano da área de estudo.

A oportunidade surgiu inicialmente com uma visita local, organizada pela Associação Renovar a Mouraria (ARM). A “Visita à China lisboeta”, apesar de claramente direccionada para uma comunidade específica, revelou-se esclarecedora sobre os processos de integração e ocupação da comunidade chinesa, que conforma um dos “centros” étnicos mais marcantes – tanto pelo número de chineses que ali se instalaram como pelas dinâmicas comerciais que desenvolvem. Bem como o interesse que este espaço multicultural suscita nos portugueses.

Com vista ao aprofundamento do estudo das práticas sociais manteve-se o contacto com esta associação, entendendo-se que surgia como uma das fontes mais fidedignas e próximas da população não só autóctone, mas também imigrante. Graças a este suporte e ao trabalho de campo foi possível realizar, simultaneamente, um segundo conjunto de mapas que permitem compreender as dinâmicas sociais, económicas e culturais que marcam o quotidiano da “Mouraria alargada”, revelando-o como uma “etnopaisagem”.

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3.3_ A Mouraria: contexto histórico59

Na Cidade Medieval

Nascida do rio e pontuada por sete imponentes colinas, a história de Lisboa viveu sempre de inúmeros avanços e recuos. A ocupação moura de 719 viria, após variadas investidas cristãs, a ser tomada pelo primeiro rei português no ano de 1147. Os mouros e judeus que não deixaram a cidade tiveram que residir semi-enclausurados numa comuna ou arrabalde.60

Em 1170 é redigido o foral que institui a comuna moura, sendo esta a data formal da génese da Mouraria. O arrabalde foi isolado dos fiéis da cruz. Constituindo no valle profundo que fica no sopé dos montes orientaes (…). Trepando em pittoresco amphithetro pelas encostas, a comuna dos mouros, cerrada com muralhas e cadeias, como as judiarias61. Sendo-lhe imposto o cumprimento

de “determinados serviços, encargos e impostos”62, o espaço urbano criado

separava, intencionalmente, o aglomerado populacional da restante cidade, maximizando a segregação espacial e social.63

À época a Mouraria era marcada por um crescente número de terrenos hortícolas que, servindo-se do braço de água do Tejo que provinha do Areeiro e culminava no Rossio, sustentavam uma importante parcela da produção de hortaliças que abasteciam a cidade. No entanto o trabalho produzido na comuna, bem como a sua economia, gravitava sobretudo em torno das actividades artesanais (tecelões de tapetes muçulmanos e oleiros) e dos lagares de azeite.

A manutenção do arrabalde e do perímetro exterior encontrava-se ao encargo da comuna muçulmana, com as suas mesquitas a constituírem os domínios centrais da Mouraria. O seu principal marco a Grande Mesquita com cerca de 300 m2, localizada sob a antiga Igreja do Socorro64 e junto à qual se encontrava

uma escola corânica. Uma outra mesquita de menores dimensões, denominada Mesquita Pequena, situava-se na Rua de Dentro da Mouraria, próxima de uma das entradas do bairro.65

Perto da Mesquita Grande habitavam os oficiais da comuna; por outro lado, a Mesquita Pequena encontrava-se fora dos limites da muralha, nas imediações 59. Para a realização do presente texto foram considerados os períodos presentes no livro Lisboa: urbanis-mo e arquitectura de José-Augusto França.

60. Ribeiro in Marluci Menezes, Mouraria, retalhos de um imaginário, pág. 24 61. idem, pág. 25

62. idem

63. Em situação idêntica encontrava-se a colónia judia que teve de se organizar em três bairros próprios – judiarias – dispersos pela baixa da cidade.

64. A igreja encontrava-se na actual praça do Martim Moniz e integrava um ex-convento, tendo sido doado pelo Rei D. João III à Companhia de Jesus, que o ocupou desde 1542, até à expulsão da ordem.

Imagem

FIG. 1 - Gdansk Babel Tower. National Museum of Gdańsk. Wojciech Kostiuk. 2009
FIG. 3 - Ampliação da Planta da Cidade de Lisboa I. Museu da Cidade. João Nunes Tinoco
FIG. 7 - Plano Geral da Cidade de Lisboa em 1785. Museu da Cidade. Francisco D. Milcent
FIG. 9 - Planta da Cidade de Lisboa II. Museu da Cidade. J. F. M. Palha. 1898
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