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Cinco Casos Clínicos de Medicina e Cirúrgia de Animais de Companhia.

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Academic year: 2023

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CASO CLÍNICO DE CIRURGIA DE TECIDOS MOLES: HÉRNIA INGUINAL Caracterização do paciente: DJ, felídeo fêmea inteira, Europeu Comum, com cerca de 11 semanas e 0,76 kg de peso.

Motivo da consulta: Dor e tumefação da região inguinal esquerda, prostração.

História clínica: Os proprietários relataram que a DJ tinha caído no dia anterior à consulta e que desde então notaram uma tumefação na região inguinal esquerda. Foi referido também que a DJ se mostrava mais parada e que parecia estar com dor.

A DJ foi encontrada na rua com cerca de 9 semanas de idade, estando com os proprietários desde então.

Não estava desparasitada ou vacinada.

Vivia num apartamento sem acesso ao exterior, não costumava fazer viagens, era alimentada com uma dieta comercial seca, tinha livre acesso a água e não coabitava com outros animais.

Não tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou outros alimentos, para além da sua dieta habitual.

Relativamente às perguntas efetuadas para os diferentes sistemas, não foram referidas quaisquer alterações.

Exame geral: A DJ manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento, possuía um temperamento equilibrado, encontrava-se alerta e não era agressiva. Apresentava uma desidratação entre 6 e 8% e uma condição corporal de magro a caquético. Os movimentos respiratórios e o pulso não evidenciavam alterações. A temperatura estava normal (38,2 ºC), à introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam ligeiramente pálidas (algo normal em jovens) e o TRC era inferior a 2 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A palpação abdominal e a auscultação cardiopulmonar não evidenciaram qualquer anomalia. Foi detetado parasitismo externo intenso e uma tumefação da região inguinal esquerda (Anexo I - Fig. 1) que era redutível à palpação e algo dolorosa. Os olhos e os ouvidos foram avaliados e estavam normais.

Exame locomotor: A inspeção em estação e em marcha não evidenciou qualquer alteração. A palpação e a manipulação evidenciaram dor e um aumento ligeiro da temperatura na zona afetada, o que é sinal de inflamação.

Exame neurológico: A DJ apresentava-se alerta, não havia alterações da postura, da marcha, das reações posturais, reflexos miotáticos e flexores, pares cranianos ou sensibilidade. Só à palpação da zona afetada é que se notou um ligeiro aumento da temperatura.

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Diagnósticos diferenciais: Vasculares: hematoma, seroma; Inflamatórias/Infeciosas: abcesso, celulite, linfadenomegália, quisto mamário; Traumas/Tóxicos: hérnia traumática, trauma;

Anomalias: hérnia congénita.

Exames complementares: RX abdominal LL e VD (Anexo I - Fig. 2), em que era visível uma fratura simples do ísquio esquerdo.

Diagnóstico (s): Fratura simples do ísquio esquerdo e hérnia inguinal traumática esquerda.

Tratamento pré-cirúrgico: Como a DJ apresentava uma fratura e se encontrava em má condição corporal, desidratada e extremamente parasitada, resolveu-se adiar a intervenção para ela recuperar um pouco e, assim, proporcionar uma maior estabilidade anestésica e facilitar o maneio. Sabia-se, porém, que o grau de fibrose encontrado iria ser maior.

Foi internada, colocada em repouso absoluto em jaula e submetida a AINE (2 mg/kg cetoprofeno sc SID), analgésico (4 mg/kg cloridrato de tramadol im BID), desparasitação (22 mg/kg flubendazol po SID, durante 3 dias), fluidoterapia iv (NaCl 0,9% + glicose 2,5% a uma taxa de manutenção de 112 mL/kg/dia) e a uma dieta adequada a pediátricos. Passados 2 dias, a DJ teve alta com cetoprofeno (2 mg/kg SID) durante 3 dias e repouso. Uma semana depois foi reavaliada (a hérnia já era menos redutível como inicialmente previsto) e, como se apresentava estável, foi submetida a cirurgia.

Para isso foi internada e submetida a fluidoterapia (NaCl 0,9% + 2,5% de glicose, a uma taxa de manutenção de 105 mL/kg/dia), antibioterapia profilática (12 mg/kg amoxicilina - ácido clavulânico sc SID), AINE (2 mg/kg cetoprofeno sc SID) e analgesia (4 mg/kg cloridrato de tramadol im BID). Uma vez que se tratava de um animal pediátrico, não se realizou jejum.

Cirurgia: A DJ foi sedada com medetomidina (10 µg/kg im) e ketamina (5 mg/kg im). De seguida, alterou-se a taxa de fluidoterapia para 210 ml/kg/dia e procedeu-se à entubação com um tubo endotraqueal nº 2,5, após anestesia traqueal com lidocaína 2%. A anestesia foi mantida com isoflurano a 2% e O2 a 2 L/min. (Anexo I - Fig. 3a). Procedeu-se à tricotomia da região abdominal caudal e inguinal (Anexo I - Fig. 3b) e, em seguida, colocou-se a DJ em decúbito dorsal, fixando-se os membros (Anexo I – Fig. 3c). Para o seu aquecimento usou-se uma botija de água quente. Posteriormente procedeu-se à limpeza e desinfecção cirúrgica do local com aplicações intercaladas de álcool e de clorexidina a 10%. Colocou-se um pano de campo, fixado com pinças de campo, para delimitar o campo cirúrgico, e iniciou-se a cirurgia com uma incisão da pele na linha média da região abdominal caudal, cranialmente à sínfise pélvica. De seguida, continuou-se a incisão pelo tecido sc, dissecou-se e pesquisou-se o saco herniário (Anexo I – Fig.

3d, 3e e 3f). Como este não era visível por esta aproximação abdominal, efetuou-se uma

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abordagem inguinal, fazendo-se uma incisão da pele lateral ao local da tumefação. Dissecou-se a região e fez-se exposição e incisão do saco herniário, visto que ele não era facilmente redutível (Anexo I - Fig. 3g, 3h e 3i). Logo a seguir, reduziu-se o seu conteúdo (mesentério), dissecando- se à volta com uma zaragatoa (Anexo I - Fig. 3j e 3k). Depois ligou-se o saco herniário o mais junto possível à sua base com um fio de sutura monofilamentar de poligliconato não absorvível 2/0 (Anexo I - Fig. 3l e 3m) e procedeu-se à sua remoção (Anexo I - Fig. 2n). Por último, fechou-se o tecido restante (tecido muscular e sc, e pele) usando um padrão contínuo simples com o mesmo tipo de fio (Anexo I - Fig. 3o e 3p), verificou-se se havia hemorragia (Anexo I - Fig. 3q e 3r) e procedeu-se à sutura das restantes camadas da parede abdominal (AIE, músculo e tecido sc de igual forma e pele num padrão id) (Anexo I - Fig. 3s). A limpeza do campo cirúrgico foi sendo feita ao longo do procedimento através da colocação de compressas, de modo a garantir a correta visualização das estruturas. Já a hemostase foi garantida pela aplicação de pinças de mosquito nos vasos sangrantes.

Tratamento pós-cirúrgico: No mesmo dia, a DJ manteve-se internada e com analgésico (4 mg/kg cloridrato de tramadol im BID) e alimentada (bastante importante em pediatria). No dia seguinte, foi-lhe administrado novamente antibiótico (12 mg/kg amoxicilina - ácido clavulânico sc SID), AINE (2 mg/kg cetoprofeno sc SID) e analgésico (4 mg/kg cloridrato de tramadol im BID). Teve alta ao final desse dia com enrofloxacina (5 mg/kg po SID) durante 5 dias, uma vez que havia suspeita de incubação viral. Foi também recomendada a limpeza diária da ferida cirúrgica (povidona iodada diluída em água duas vezes ao dia), colocação, se necessário, de polissulfato de mucopolissacarídeo (Hirudoid® tópico), à volta da mesma, e a vigilância de alterações de apetite, vómitos e diarreia.

Acompanhamento: A DJ voltou 7 dias depois para a consulta de controlo, onde se mostrou ativa e bem-disposta. O estado geral estava normal, comia bem e a ferida cirúrgica apresentava bom aspeto, sem sinais de inflamação ou deiscência de sutura, não havendo dor ou desconforto local. A única alteração prendeu-se com o facto de não ter defecado durante 2 a 3 dias, o que podia estar relacionado com a fratura ou mesmo com a cirurgia, mas depois começou a defecar normalmente.

Discussão do caso clínico: A anamnese, o exame geral e o RX permitiram identificar os seguintes problemas: prostração, dor e tumefação da região inguinal esquerda, desidratação entre 6 e 8%, condição corporal magro a caquético, parasitismo externo intenso, aumento ligeiro da temperatura na região inguinal esquerda e fratura simples do ísquio esquerdo. Tendo em conta este quadro foi diagnosticada fratura simples do ísquio esquerdo e hérnia inguinal traumática.

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Uma hérnia é a protusão de um órgão ou um tecido, através de um defeito (abertura natural, iatrogénica ou traumática) na parede da cavidade anatómica onde se encontra, podendo causar morbilidade e mortalidade apreciável3,4a. Pode ocorrer em qualquer lado, embora as mais comuns sejam abdominais (como na DJ)4a. O fator mais importante na herniação é a presença de um defeito na parede, independentemente de uma protusão estar presente4a.

As hérnias podem ser classificadas de acordo com o local, presença ou não ao nascimento, estado do conteúdo (redutibilidade, encarceramento, estrangulação) e tipo de material herniado3,4a. Neste caso, a DJ apresentava uma hérnia inguinal, adquirida, redutível e com mesentério como conteúdo.

A hérnia é constituída por um anel (o defeito na parede, que se espessa e provoca estrangulação durante as tentativas de resolução espontânea), um saco (tecidos que envolvem o conteúdo) e conteúdo3,4a. No caso da DJ, a hérnia tinha o canal inguinal como anel, o omento como saco e o mesentério como conteúdo.

A hérnia inguinal é uma protusão de órgãos ou tecidos (normalmente omento2) através do canal inguinal2 e ocorre esporadicamente nos pequenos animais3,4b. Ela pode ser provocada por uma anomalia congénita ou traumática, principalmente em animais mais jovens2. Independentemente da causa, uma anomalia ao nível do anel inguinal provoca protusão do conteúdo abdominal2. As hérnias inguinais unilaterais (como a da DJ) são mais frequentes do que as bilaterais2,4b. Em gatos, a situação é ainda mais rara que nos cães e não tem predisposição sexual ou racial4b. A causa mais importante de hérnias inguinais é o alargamento da entrada do processo vaginal e fatores anatómicos, hormonais, metabólicos ou nutricionais estão envolvidos no processo da sua formação4b. Os animais com hérnias inguinais apresentam-se à consulta com uma história de tumefação indolor na região ou por vómito, letargia, dor e depressão, se o conteúdo estiver encarcerado2,4b. A aparência externa da hérnia varia com o conteúdo herniário e o grau de obstrução vascular: se houver estrangulamento intestinal, herniação de um corno grávido ou da bexiga, é evidente uma tumefação grande, flutuante e dolorosa; caso contrário, é indolor e mole2,4b. O diagnóstico é feito principalmente pela anamnese e pelo exame físico, nomeadamente a palpação da tumefação (se a tumefação for redutível e o canal inguinal palpado, o diagnóstico é confirmado)2,4b. Meios complementares, como o RX e a ecografia abdominal, ajudam a identificar as estruturas envolvidas e a descartar diagnósticos diferenciais (neoplasia mamária, linfadenopatia, lipoma, abcesso, hematoma, quisto, granuloma)1,2,4b.

O tratamento das hérnias é cirúrgico e consiste numa técnica chamada herniorrafia. Os seus objetivos consistem em reduzir o conteúdo abdominal e fechar o canal inguinal, para evitar

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recidivas2. Ela deve ser realizada o mais rapidamente possível, pois qualquer atraso resulta em maior dificuldade de realização da técnica e desenvolvimento de complicações associadas a obstrução intestinal ou prenhez2,4b. O maneio pré-cirúrgico inclui antibioterapia (aquando de suspeita de encarceramento ou obstrução intestinal), fluidoterapia, anestesia (segundo os protocolos existentes), posicionamento (decúbito dorsal) e preparação asséptica das regiões abdominal caudal e inguinal2. A abordagem depende da localização (uni ou bilateral), da redutibilidade do conteúdo e da existência de estrangulação intestinal ou trauma abdominal concomitante2. Como tal, essa abordagem pode ser feita diretamente sobre o anel inguinal ou medialmente, com posterior exposição inguinal, em casos mais complicados ou no caso de fêmeas (palpação de ambos os canais inguinais)2,3,4b,5. Independentemente da abordagem utilizada, a técnica baseia-se nos seguintes princípios: verificação da viabilidade do conteúdo herniário (e remoção das porções afetadas), redução da hérnia, fecho do anel inguinal ou do defeito (fio monofilamentar para diminuir a probabilidade de infecção), diminuição da tensão no fecho (flap do músculo sartório ou próteses), obliteração do espaço morto, eliminação da causa e maneio das hérnias congénitas (esterilização)2,3,4b. O sucesso desta intervenção depende do conhecimento da anatomia local e da qualidade da técnica empregada4b. Em fêmeas, a esterilização é aconselhada, pois o parto e o alargamento uterino (prenhez, piómetra) aumentam a probabilidade de recidiva2. No pós-operatório, os drenos e os antibióticos não são necessários;

porém, o local da sutura deve ser observado para pesquisa de sinais de infecção ou de formação de seroma ou hematoma, e o exercício reduzido durante alguma semanas2,4b. Caso ocorra abcedação, deve-se remover as suturas cutâneas, drenar e aplicar tratamento tópico, com o intuito de prevenir deiscência de sutura2,4b.

O prognóstico normalmente é excelente, a não ser que ocorra perfuração ou fuga de conteúdo intestinal2.

Referências bibliográficas: 1Gogny A, Bruyas J, Fiéni F (2010) “Pyometra in an Inguinal Hernia in a Bitch” Reproduction in Domestic Animals 45, 461-464; 2Fossum T (2002)

“Surgery of the Abdominal Cavity: Inguinal, Scrotal and Femoral Hernias” in Fossum T (Eds.) Small Animal Surgery, 2ª Ed, Mosby Elsevier, 261-267; 3Pratschke K (2002) “Management of hernias and ruptures in small animals” In Practice, 570-571 e 578-581; 4a Read R & Bellenger C (2003) “Hernias” in Slatter D (Eds.) Textbook of Small Animal Surgery 1, 3ª Ed, Saunders, 446-448; 4bSmeak D (2003) “Abdominal Hernias” in Slatter D (Eds.) Textbook of Small

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Animal Surgery 1, 3ª Ed, Saunders, 452-455; 5Wirght J (1963) “The Surgery of the Inguinal Canal in Animals” The Veterinary Record 75, 1352-1357

CASO CLÍNICO DE GASTROENTEROLOGIA: PANLEUCOPÉNIA FELINA Caracterização do paciente: Julie, felídeo fêmea castrada, cruzada de Siamês, com 5 meses de idade e 1,5 kg de peso.

Motivo da consulta: Anorexia parcial, náusea, vómito e prostração.

História clínica: A sintomatologia tinha aparecido de forma súbita e já durava há 3 dias. O vómito ocorria 3 a 4 vezes por dia, era bilioso, aquoso e não apresentava saliva ou alimento.

Apesar de beber água normalmente, também a vomitava. Foi referido também que os vómitos eram precedidos de salivação (que era exacerbada na presença de alimento), inquietação e contrações abdominais fortes.

A Julie estava desparasitada corretamente e não estava vacinada. O passado médico-cirúrgico apenas incluía uma OVH eletiva aos 4 meses e meio de idade e não tomava qualquer medicação.

Vivia num apartamento sem acesso ao exterior desde que foi encontrada aos 2 meses. Não costumava fazer viagens, era alimentada com uma dieta comercial Premium seca e húmida, tinha livre acesso a água e coabitava com dois cães, vacinados e desparasitados corretamente. Não tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou ingerir outros alimentos, para além da sua dieta habitual.

Relativamente às perguntas efetuadas para os restantes sistemas, não foram referidas quaisquer alterações.

Exame geral: A Julie manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento, tinha um temperamento equilibrado, encontrava-se alerta e não era agressiva. Apresentava uma desidratação entre 6 e 8% e uma condição corporal normal. Os movimentos respiratórios e o pulso não apresentavam alterações. A temperatura estava acima do normal (39,2 ºC), à introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam ligeiramente pálidas e o TRC era de 3 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A palpação abdominal e a auscultação cardiopulmonar não evidenciaram qualquer anomalia. Os olhos e os ouvidos não foram avaliados.

Exame dirigido ao aparelho digestivo: A inspeção e a palpação da cabeça, boca, esófago, abdómen, ânus e região perianal não evidenciaram nenhuma alteração, assim como a auscultação abdominal.

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Diagnósticos diferenciais: Inflamatórias/Infecciosas: campilobacteriose, clostridiose, coccidiose (isosporose, criptosporidose, toxoplasmose), giardíase, salmonelose, toxocaríase, FIV/FeLV, panleucopénia felina, PIF; Traumas/Tóxicos: CE, intussusceção, arsénico, chumbo, organofosforados, permetrinas, piretrinas, piretróides; Anomalias: síndrome do intestino curto;

Idiopáticas/Imunomediadas: GE aguda, diarreia juvenil idiopática; Nutricionais: alergia ou intolerância alimentar.

Exames complementares: hemograma: panleucopénia [0,29x103/µL (normal: 5,5x103 – 19,5x103)]; anemia [2,81x106/µL (normal: 5,0x106 – 10,0 x106); Hb – 3,5 (normal: 8,0-15,0);

Hto (%) – 11,7 (normal: 24,0-45,0)]; trombocitopénia [41x103/µL (normal: 150 x103 - 500 x103)]; bioquímica: hipoproteinémia [3,89 g/dL (normal: 6,0 - 7,9)] por hipoalbuminémia [1,63 g/dL (normal: 2,8 - 3,9)].

Diagnóstico presuntivo: Panleucopénia felina.

Tratamento: A Julie foi internada e submetida a um tratamento de suporte composto por:

fluidoterapia (iv) – LR + glicose 2,5% + 20 mEq/L KCl a uma taxa de 172 mL/kg/dia durante as primeiras 24 horas e, quando resolvida a desidratação, à taxa de manutenção de 87 mL/kg/dia;

antibioterapia - metronidazol (15 mg/kg iv BID), amoxicilina - ácido clavulânico (12 mg/kg im BID), enrofloxacina (5 mg/kg sc SID); antiemético - citrato de maropitant (1 mg/Kg sc SID);

protetor gástrico - ranitidina (2,5 mg/kg iv BID); AINE – cetoprofeno (2 mg/kg sc SID);

alimentação – NPO até final do quadro de emese, passando a ser feita com dieta húmida e de elevado valor energético.

Acompanhamento: Durante o internamento, o estado da Julie foi-se deteriorando. Os vómitos continuaram e agravaram-se (aumento da frequência e alteração do seu aspeto, que de bilioso passou a sanguinolento); a anorexia, a palidez e a náusea permaneceram; a prostração, a depressão e a desidratação agravaram-se, começando a apresentar hipotermia; e desenvolveu diarreia, que também se agravou (apresentando melena e hematosquezia: Anexo II - Fig. 1).

Adicionalmente procedeu-se ao seu aquecimento com botijas de água quente e mantas (Anexo II – Fig. 2), à administração de enemas de carvão ativado (2mg/kg BID) e à transfusão de plasma.

Apesar de todas as tentativas, a Julie acabou por falecer ao fim de 3 dias.

Discussão do caso clínico: A anamnese, o exame geral, o hemograma e a bioquímica permitiram identificar os seguintes problemas: anorexia, náusea, vómito, prostração, desidratação entre 6 e 8%, mucosas pálidas, TRC de 3 segundos, hipertermia ligeira, panleucopénia, anemia e trombocitopénia severas e hipoproteinémia por hipoalbuminémia.

Tendo em conta este quadro, foi diagnosticada presuntivamente panleucopénia felina. Esta

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doença é provocada pelo VPF, um parvovírus da mesma família que o VPC1,2,6. Devido à proximidade genética e à evolução dos vírus, os gatos podem ser infectados pelas variantes 2a, 2 b e 2c do VPC, que causa uma doença indistinguível da provocada pelo VPF, embora seja algo pouco frequente1,2,4,6. Mesmo assim, é recomendada uma vigilância serológica, pois podem ocorrer coinfecções ou superinfecções que colocam em causa a eficácia da vacinação2. O VPF é altamente contagioso e afeta principalmente gatinhos e gatos com menos de 1 ano de idade 3.

A infecção dá-se pelo contacto com secreções de um gato infectado ou com um ambiente contaminado, sendo também viável a via transplacentária, desde que a infecção da gata ocorra durante a gestação1,6,7. Gatis, refúgios e criadores são os locais de maior risco1,6. Assim, a infecção da Julie pode ter acontecido através do contacto com outros gatos de rua, pela mãe ou mesmo pelos coabitantes caninos. O vírus pode sobreviver no ambiente até 1 ano, pois é eliminado em grandes quantidades nas fezes e resistente a temperaturas até 56ºC durante 30 minutos1,7.

A sua transmissão é feita pela via oro-fecal, replicando-se no tecido linfoide da orofaringe e provocando posteriormente uma virémia com disseminação por todos os tecidos6, embora as lesões apenas apareçam naqueles com elevadas taxas de mitose (MO, intestino, GL, baço, timo, olhos). Tem um PI de 5 a 7 dias, tornando o gato contagioso 2 a 3 dias antes da exibição da sintomatologia e continuando assim até 2 a 6 semanas pós-infecção1.

A doença clínica pode ser hiperaguda, aguda ou subclínica. A primeira provoca uma mortalidade de 100%3 e morte súbita nas primeiras 12 horas. Ocorre entre as 4 semanas e os 12 meses de idade e é causada por um choque séptico com desidratação aguda, hipotermia e coma.

A aguda, que foi a forma manifestada pela Julie, é a mais comum e a sintomatologia apresentada pode ser moderada ou bastante severa. Caracteriza-se por uma mortalidade entre os 25 e os 90%3 e os animais normalmente apresentam febre (40-41ºC), depressão, letargia, desidratação, anorexia e vómitos. A diarreia aguda de intestino delgado é rara (diferente do VPC), podendo só aparecer tardiamente e a hipotermia é possível com o agravamento da desidratação, tal como neste caso. Em situações de sépsis causadas por neutropénia e destruição das criptas intestinais ocorrem úlceras orais, hematosquezia (como na Julie), icterícia e petéquias por CID. A nível analítico observa-se panleucopénia, trombocitopénia, hipoalbuminémia e, mais raramente, anemia não regenerativa1,7. Todas estas alterações foram encontradas. Poderão igualmente ocorrer elevações das enzimas hepáticas e da bilirrubina e hipoglicémia por endotoxémia, como azotémia pré-renal por desidratação1,7. Por último, a forma subclínica tem uma prevalência até 75%1 e caracteriza-se por anorexia e depressão durante 1 a 3 dias7. As consequências de uma

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infecção durante a gestação dependem da altura em que ela ocorra: infertilidade e reabsorção fetal (até aos 20 dias); aborto, mumificação fetal (até aos 40 dias); atrofia do timo e do nervo ótico, retinopatia, hidrocefalia, hipoplasia cerebelar (que também ocorre em infecções até às 2 semanas de idade), miocardite e cardiomiopatia dos gatinhos (até ao término) 1,7.

O diagnóstico presuntivo pode ser feito através da anamnese, sintomatologia, exame físico e analítica, mas a confirmação só é possível recorrendo a: ELISA (fezes), PCR (fezes, sangue), ME (fezes, baço, íleo) e histopatologia (jejuno, íleo, baço, GL). A serologia também é possível, mas só é aconselhada em locais com um grande número de animais de forma a ser implementado um programa de vacinação adequado, e as amostras pareadas (manifestação clínica e convalescença) têm de apresentar títulos elevados, para o seu resultado ser definitivo. É sempre necessário ter atenção à interpretação dos testes, pois um resultado positivo pode ocorrer se o animal foi vacinado nas 6 semanas anteriores ao teste com uma vacina viva atenuada, e um resultado negativo pode surgir se a eliminação viral for intermitente ou se a eliminação fecal ocorreu apenas nas primeiras fases da doença1,6,7.

O tratamento é de suporte e agressivo e pode diminuir a mortalidade. O ponto essencial é a correção do desequilíbrio hidroelectrolítico e a prevenção de infecções secundárias por bactérias anaeróbias e Gram-, devido à fragilidade da parede intestinal7. Dessa forma, deve-se proceder ao internamento do animal, manter uma temperatura e higiene adequadas, fazer fluidoterapia agressiva (40 a 60mL/kg/dia iv) com LR suplementado com glicose (nos casos de septicémia ou hipoglicémia) e KCl, administrar colóides ou fazer transfusões de plasma/sangue (hipoalbuminémia), administrar antibióticos de largo espectro (12,5 a 25 mg/kg po BID/TID de amoxicilina – ácido clavulânico + 5 a 10 mg/kg iv/im/sc TID de gentamicina ou 5 mg/kg po/sc SID de enrofloxacina ou 22 mg/kg po SID/BID de cefalosporina) e antieméticos (0,5 a 1 mg/kg sc SID de citrato de maropitant ou 1 a 2 mg/kg im/sc TID/QID de metoclopramida), fazer nutrição parentérica através de uma sonda nasoesofágica (anorexia) ou entérica com alimentos de elevada digestibilidade findo o quadro de emese, e estimular o apetite (2 a 4 mg/kg BID de ciproheptadina, 1 mg/kg BID de mianserina, 4 mg/animal a cada 72 horas de mirtazapina ou vitamina B)1,6,7. A administração de interferão ω felino (2,5 MU/kg/dia iv, durante 3 dias) é possível, já que possui efeitos antivíricos, o que pode ser uma ajuda na prevenção da doença.

Porém, apesar da capacidade de inibição da replicação do VPF demostrada in vitro e da eficácia em cães com VPC, possui um efeito antiviral atípico no caso de doenças provocadas por VPF5.

O prognóstico varia de reservado a grave, no caso de gatinhos ou de gatos bastante jovens com sintomatologia bastante severa a bom, no caso de adultos que ficam com imunidade

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duradoura. Os gatinhos infectados com menos de 10 semanas de idade que sobrevivam ficarão com disfunções neurológicas para o resto da vida7. No caso da Julie, o prognóstico foi reservado a grave, de acordo com a severidade da sintomatologia, idade e valores analíticos. Os fatores que o fazem variar ainda não são conhecidos, mas a presença de leucopénia, trombocitopénia, hipocalémia e/ou hipoalbuminémia são considerados negativos, havendo relação paralela entre a gravidade dos seus valores e a severidade da doença, embora não estejam relacionados com a mortalidade ou morbilidade provocadas pela doença3. A hipotermia7 e a coinfecção com bactérias, outros vírus e parasitas também influenciam o prognóstico. A presença de parasitas poderia ser descartada, visto que a Julie estava corretamente desparasitada, mas a pesquisa de bactérias e de outros vírus, nomeadamente FIV/FeLV (que cursam também com diarreia) devia ter sido realizada.

Devido às características do VPF, a prevenção é crucial. Dessa forma, o isolamento dos animais infectados, a limpeza dos ambientes contaminados e a vacinação são a chave. O VPF é bastante resistente aos desinfetantes comuns, mas a desinfecção de jaulas, bebedouros comedouros, liteiras, sapatos, roupa e ambiente pode ser feita com ácido paracético, hipoclorito de sódio (1:30) ou hidróxido de sódio. No caso de um surto, em que haja necessidade de proteger gatos suscetíveis (não vacinados, vacinados incompletamente, privados de colostro) é possível a administração de um soro (hiper) imune (2-4mL/kg sc/ip/iv), que confere proteção durante 2 a 4 semanas e pode reduzir a morbilidade. Tem origem em gatos vacinados ou recuperados da doença, sendo a sua aplicação feita apenas quando o efeito da vacinação tiver passado, pois o soro pode interferir com esta1,6. As vacinas disponíveis no mercado são bastante eficazes7, desde que aplicadas corretamente. Neste caso, a Julie não era vacinada, aumentando a sua suscetibilidade ao VPF. Como noutras patologias, a imunidade inicial (passiva) é fornecida pelos anticorpos maternos presentes no colostro, que se mantêm em concentrações protetoras até às 6 - 8 semanas de idade. A partir daí, os valores baixam e deixam de ser protetores, embora interfiram com a imunidade ativa (vacinação ou infecção natural) até às 12-16 semanas. No caso de mães que tenham sobrevivido à panleucopénia felina ou que habitam em locais de alto risco, o tempo de interferência aumenta. Segundo o European Advisory Board on Cat Diseases, o esquema vacinal deve ser implementado entre as 8 e as 12 semanas e todos os gatos devem ser vacinados, com exceção de fêmeas lactantes/gestantes (transmissão via colostro/transplacentária) e gatinhos com menos de 4 semanas de idade (risco de hipoplasia cerebelar). O protocolo vacinal consiste na primovacinação (primeira dose às 8-9 semanas de idade e reforço 3 a 4 semanas depois, tendo o animal no mínimo 12 semanas de idade nessa altura) e nos reforços posteriores.

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O 1º reforço é feito no ano seguinte, para garantir que se estabelece uma imunidade adequada, pois a primovacinação pode não tê-lo feito6. Os reforços seguintes bastam ser realizados a cada 3 anos ou mais (7 anos7), pois as vacinas conferem imunidade de longa duração, ao contrário do que é normalmente feito. No caso de gatos dos quais não se conhece o passado vacinal, deve-se fazer uma primeira administração, seguida de reforços anuais não sendo necessário o reforço inicial, e uma nova dose às 16-20 semanas de idade àqueles provenientes de ambientes de alto risco.

Referências bibliográficas: 1Colado M, Pérez V (2010) “Panleucopenia Felina” in Colado M et Pérez V (Ed) Enfermedades infecciosas felinas, 1ª Ed, Servet, 147-161; 2Decaro N, Buonavoglia D, Desario C, Amorisco F, Colaianni M L, Parisi A, Terio V, Elia G, Lucente M S, Cavalli A, Martella V, Buonavoglia C (2010) “Characterization of canine parvovirus strains isolated from cats with feline panleukopenia” Veterinary Science 89, 275–278; 3Kruse BD, Unterer S, Horlacher K, Sauter-Louis C, Hartmann K (2010) “ Prognostic Factors in Cats with Feline Panleukopenia”, Journal of Veterinary Internal Medicine 24, 1271-1276; 4Ohshima T, Mochizuki M (2009) “Evidence for Recombination Between Feline Panleukopenia Virus and Canine Parvovirus Type 2” Journal of Veterinary Medical Science 71, 403–408; 5Paltrinieri S, Crippa A, Comerio T, Angioletti A, Roccabianca P (2007) “Evaluation of inflammation and immunity in cats with spontaneous parvovirus infection: Consequences of recombinant feline interferon-ω administration” Veterinary Immunology and Immunopathology 118, 68-74;

6Truyen U, Addie D, Belák S, Boucraut-Baralon C, Egberink H, Frymus T, Gruffydd-Jones T, Hartmann K, Hosie MJ, Lloret A, Lutz H, Marsilio F, Pennisi MG, Radford AD, Thiry E, Horzinek MC (2009) “Feline Panleukopenia – “ABCD guidelines on prevention and management” Journal of Feline Medicine and Surgery 11, 538-546; 7Zoran D (2006) “Chapter 32 - The cat with signs of acute small bowel diarrhea” in Rand J (Ed.) Problem Based Feline Medicine, 1ª Ed, Saunders Elsevier, 698-701 e 722-724

CASO CLÍNICO DE PNEUMOLOGIA: CALICIVIROSE FELINA

Caracterização do paciente: Manecas, felídeo macho inteiro, Europeu Comum, com 7 meses de idade e 1,8 kg de peso.

Motivo da consulta: Anorexia, claudicação dos MP, diarreia, halitose e úlceras linguais.

História clínica: O Manecas foi recolhido da rua e está com a nova proprietária há 24 horas.

Já tinha sido avistado na vizinhança e quando foi recolhido (à noite) encontrava-se com bom

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aspeto. Na nova casa, a proprietária deu-lhe banho, alimentou-o e separou-o dos restantes animais (18 gatos no total, todos vacinados e desparasitados corretamente), apenas notando halitose, claudicação ligeira dos MP e pouco apetite. No dia seguinte, reparou que apresentava diarreia (fezes de consistência mole, mas não líquida) e úlceras linguais. Ao fim do dia, como a diarreia não tinha passado (4 episódios relatados) e como o Manecas ainda não tinha comido, a proprietária procurou aconselhamento médico-veterinário.

Exame geral: O Manecas manifestava uma atitude normal em estação e decúbito, em movimento apresentava claudicação de grau I dos MP, tinha um temperamento equilibrado, encontrava-se alerta e não era agressivo. Apresentava uma desidratação entre 6 e 8% e uma condição corporal normal a magro. Os movimentos respiratórios e o pulso não evidenciavam alterações. A temperatura estava normal (38,3 ºC), à introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam normais e o TRC era inferior a 2 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A palpação abdominal e a auscultação cardiopulmonar não evidenciaram qualquer anomalia. Os olhos e os ouvidos foram avaliados e estavam normais.

Exame dirigido ao aparelho digestivo: A inspeção e a palpação da cabeça, esófago, abdómen, ânus e região perianal não evidenciaram nenhuma alteração, assim como a auscultação abdominal. A inspeção da boca tornou evidente a presença das úlceras nos bordos da língua (Anexo III – Fig. 1 e 2).

Exame locomotor: A inspeção em estação não evidenciou qualquer alteração. Já a inspeção em marcha demonstrou alteração ligeira da marcha normal dos MP (claudicação grau I). À palpação notou-se um aumento ligeiro da temperatura nas zonas articulares dos MP, o que é sinal de inflamação. Não evidenciava dor, tanto à palpação como à manipulação.

Diagnósticos diferenciais: Inflamatórias/Infecciosas: bactérias (clamidiose, salmonelose, yersiniose), micoplasmose, vírus (herpesvirose, FIV/FeLV); Traumas/Tóxicos: acetaminofeno, produtos cáusticos; Idiopáticas/Imunomediadas: complexo eosinofílico felino.

Exames complementares: FIV/FeLV - negativo; coprologia – negativo (parasitas gastrointestinais).

Diagnóstico presuntivo: Calicivirose felina.

Tratamento: O Manecas foi internado e submetido a: fluidoterapia (iv) – LR + glicose 2,5%

+ 20 mEq KCl a uma taxa de 159 mL/kg/dia, durante as primeiras 24 horas, passando depois a uma taxa de manutenção (87 mL/kg/dia); antibioterapia – amoxicilina - ácido clavulânico (12

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mg/kg sc SID), enrofloxacina (5 mg/kg sc SID), metronidazol (15 mg/kg iv BID); tópicos orais/protetores gástricos – ácido hialurónico (Aftaspray®, pulverizações po TID), fosfato de alumínio (0,25 mL/kg po TID); antiemético - metoclopramida (5 mg/kg sc BID); desparasitação interna - fenbendazol + praziquantel (1 comprimido/10 kg, SID, 3 dias); nutrição - alimento de elevada digestibilidade na forma seca e húmida.

Acompanhamento: Ao longo do internamento, o estado do Manecas foi melhorando. Ao final do 1º dia já comia, suspendendo-se a administração do antiemético e substituindo-se toda a medicação parentérica por entérica no dia seguinte. O grau de hidratação melhorou, suspendendo-se a fluidoterapia ao fim de 4 dias. A antibioterapia foi mantida durante 4 dias, com exceção do metronidazol que foi administrado durante 7 dias. As úlceras foram desaparecendo ao longo do tempo, tal como a halitose, e só teve mais 2 episódios de diarreia, que ocorreram nos 2 dias seguintes ao internamento. A claudicação também desapareceu. A administração do produto tópico e do protetor gástrico foi feita durante 7 dias, baixando-se a frequência aquando das melhorias clínicas. O Manecas recuperou totalmente e teve alta ao fim de 8 dias. O controlo foi feito telefonicamente 7 dias depois, no qual a proprietária informou que o Manecas estava perfeitamente normal, sem apresentar qualquer sintomatologia anterior.

Discussão do caso clínico: A anamnese e o exame geral permitiram identificar os seguintes problemas: anorexia, claudicação grau I dos MP, diarreia, halitose, úlceras linguais, condição corporal normal a magro e desidratação entre 6 e 8%. Tendo em conta este quadro, foi diagnosticada presuntivamente calicivirose felina. Esta doença é provocada pelo VCF, um vírus pertencente à família Caliciviridae. O VCF é altamente contagioso, está associado ao complexo granulofílico felino e a ITU’s e possui grande mutabilidade e adaptabilidade, característica concedida pelo seu genoma2,6,7, que permitiu a formação de um subtipo que provoca doença sistémica virulenta, o VCF-SV1a,11.

O vírus está distribuído mundialmente e a sua prevalência é proporcional ao número de animais no local7. A transmissão ocorre pelo contacto com secreções oro-nasais de animais na fase aguda da doença ou de portadores crónicos2,6, urina ou fezes2,7. Como o vírus pode persistir no ambiente até 1 mês em locais secos e à temperatura ambiente e sobreviver mais tempo ainda em locais mais frios2,7, também pode ocorrer transmissão indireta por jaulas, bebedouros, comedouros, equipamentos e pessoal infectado1c,2,6. Apesar de não se considerar a existência de reservatórios ou hospedeiros alternativos6,7, estudos recentes demonstram que cães4 e pulgas5 podem representar fontes de infecção. Para além disso, os portadores crónicos, representam uma fonte constante de infecção para outros gatos suscetíveis7. Desta forma, a infecção do Manecas

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pode ter acontecido por qualquer uma destas formas, visto que vivia na rua, não estava desparasitado e foi habitar num local com um grande número de gatos.

A infecção pelo VCF pode ocorrer por uma de 3 vias: nasal, conjuntival ou oral, ocorrendo a replicação primária na orofaringe, o que demora 2 a 10 dias (PI)1c,6. Formam-se vesículas, tipicamente nas margens da língua, que necrosam e se transformam em úlceras. A recuperação pode demorar 2 a 3 semanas, embora gatos recuperados continuem a excretar vírus nos 30 dias seguintes. Caso essa excreção se prolongue (mais de 30 dias), esses gatos tornam-se portadores crónicos, ou seja, animais saudáveis que excretam vírus, podendo esse estado durar toda a vida.

Como o vírus se armazena principalmente nas amígdalas, a amigdalectomia podia ser recomendada; porém isso não é suficiente, o que demonstra que o vírus deve estar também localizado noutros locais6. Mais raramente pode atingir o pulmão, causando alveolite e pneumonia, e as articulações, provocando sinovite por deposição de imunocomplexos, espessamento da membrana, aumento do líquido sinovial e consequente claudicação. Já o VCF- SV tem um PI de 1 a 5 dias6 e atinge todos os sistemas causando vasculite disseminada e falência orgânica múltipla, o que resulta em morte em mais de 75% dos casos. A razão da manifestação desta forma sistémica virulenta pode dever-se à evolução viral ou à resposta imunomediada e a fatores ambientais (como introdução de um novo animal noutro local, o que lhe causa stress e consequente imunodepressão) e de maneio (higiene dos utensílios, roupas, comedouros, bebedouros, liteiras)1a,2,6,7.

Os sinais clínicos variam conforme a estirpe viral, idade do animal e fatores diversos (stress crónico, coinfecção por FIV/FeLV ou Bartonella henselae, neoplasia, doenças crónicas, sobrecrescimento bacteriano oral)2,6,7, mas há um sinal que é característico e que pode ser único:

a ulceração oral. Diferenciam-se 2 formas clínicas da doença2: aguda e crónica. A forma aguda inclui 3 quadros2: doença oral e respiratória superior aguda (febre, úlceras, sialorreia, dor, anorexia, corrimentos oro-nasais, conjuntivite, espirros, que são mais observados em gatinhos, e, mais raramente, tosse, estertores, dispneia e depressão; também pode aparecer diarreia), doença sistémica virulenta (pirexia, edema cutâneo da cabeça e membros, dermatite ulcerativa, lesões crostosas, alopécia periocular/nariz/lábios/orelhas/almofadas plantares, dispneia, anorexia, petéquias, equimoses, epistaxe, hematosquezia e letargia; os adultos são mais severamente afetados e, mesmo vacinados contra o VCF, não estão protegidos contra uma infecção provocada pelo VCF-SV) e poli-artrite1c,2,6,7. Já a crónica apresenta 2 quadros2: gengivite-estomatite crónica (sialorreia, halitose, disfagia, anorexia, pelagem fraca, engrossamento do tecido orofaríngeo), glomerulonefrite (vómitos, náuseas, pu-pd, anorexia, emagrecimento) e poliartrite (claudicação,

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que também pode ocorrer até 1 mês pós-vacinação, resolvendo-se entre 24 a 48 horas2)1c,2, todas por deposição de imunocomplexos. Destes sinais, o Manecas apresentava ulceração oral, halitose, diarreia e claudicação ligeira dos MP, compatível com o quadro de doença oral da forma aguda.

O diagnóstico é feito com base nos sinais clínicos, elevada contagiosidade e mortalidade e pelo isolamento viral de secreções oro-nasais e conjuntivais. Podemos usar como meios de diagnóstico o PCR (secreções orais, sangue, feridas, pulmão, líquido sinovial), a serologia (ELISA, neutralização viral) e a imunohistoquímica (tecidos fixados em formol), que nos fornece o diagnóstico definitivo. Independentemente do método usado, a interpretação de resultados positivos deve ser cuidadosa, devido à existência de portadores crónicos3,9. De todos os métodos disponíveis, a serologia é pouco útil, visto que os anticorpos vacinais podem interferir e os portadores crónicos podem ter níveis elevados de anticorpos sem exibirem sintomatologia1c,2,6.

O tratamento existente é de suporte. Dessa forma deve-se fazer fluidoterapia iv (reidratação e restauração dos distúrbios eletrolíticos e ácido-base), nutrição adequada (alimento mole para não causar dor, altamente palatável e aquecido para aumentar o aroma, visto que a congestão nasal provoca uma diminuição do olfacto; um tubo gastroesofágico é aconselhado se a anorexia persistir mais de 3 dias), estimulantes de apetite (ciproheptadina – 0,1 a 0,5 mg/kg po BID/TID;

mirtazapina – 3,75 mg/animal po a cada 72 horas1c), AINE’s (diminuição da temperatura e dor), antibióticos de largo espectro (suspeita de infecção secundária: amoxicilina - ácido clavulânico - 22 mg/kg iv TID, doxiciclina – 5 mg/kg po SID, marbofloxacina – 2 mg/kg iv/po/sc SID, trimetoprim-sulfonamida – 15 mg/kg po BID1c), instilações nasais com NaCl várias vezes ao dia, mucolíticos, descongestionantes e nebulizações salinas (limpeza, descongestão e rehidratação local) e interferão ω felino (2,5 MU/kg sc SID1c)1c,2,6,7.

Devido às características do VCF, a prevenção é crucial. Dessa forma, o isolamento dos animais infectados, a limpeza dos ambientes contaminados e a vacinação são a chave. Visto as pulgas serem uma possível fonte de contágio, o seu controlo é aconselhável, cumprindo os planos de desparasitação externa mensais. A desinfeção de jaulas, bebedouros, comedouros, liteiras, sapatos, roupa e ambiente pode ser feita com peroximonossulfato de potássio, hipoclorito de sódio (1:30), derivados de cloro, isopropanol (40 e 60%), etanol (70 e 90%), bicarbonato de sódio (5%) ou outros produtos domésticos1b,6,7. Desde que aplicadas corretamente, as vacinas disponíveis no mercado protegem contra a doença e são seguras, embora não previnam uma infecção. Para além disso, não protegem contra todas as estirpes existentes, embora uma vacina

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com as estirpes VCF e VCF-SV produza uma melhor proteção cruzada do que as atuais apenas com a estirpe VCF3. Neste caso, o Manecas não era vacinado, aumentando a sua suscetibilidade ao VCF. Segundo o European Advisory Board on Cat Diseases, todos os gatos devem ser vacinados. O protocolo vacinal consiste na primovacinação (primeira dose às 8-9 semanas de idade e reforço 3 a 4 semanas depois, tendo o animal no mínimo 12 semanas de idade nessa altura) e nos reforços posteriores. O 1º reforço é feito no ano seguinte, para garantir que se estabelece uma imunidade adequada, pois a primovacinação pode não tê-lo feito1d. Os reforços seguintes bastam ser realizados a cada 3 anos, ao contrário do que é feito normalmente. No caso de gatos provenientes de ambientes de alto risco, uma nova dose deve ser administrada às 16-20 semanas de idade1d,2,6,7.

Referências bibliográficas: 1aAddie D (2008) “Calicivirus felino sistémico virulento” in Radford A, Roca A, Addie D, Forcada Y (Ed) Actualizacion Clinica De La Infeccion Por Calicivirus En Gatos, 1ª Ed, Purevax, 93-107; 1bAddie D (2008) “Prevención de la infección por calicivirus felino” in Radford A, Roca A, Addie D, Forcada Y (Ed) Actualizacion Clinica De La Infeccion Por Calicivirus En Gatos, 1ª Ed, Purevax, 117-137; 1cForcada Y (2008)

“Aspectos clínicos de la infección por calicivirus en gatos” in Radford A, Roca A, Addie D, Forcada Y (Ed) Actualizacion Clinica De La Infeccion Por Calicivirus En Gatos, 1ª Ed, Purevax, 41-84; 2Colado M, Pérez V (2010) “Infección por Calicivirus” in Colado M et Pérez V (Ed) Enfermedades infecciosas felinas, 1ª Ed, Servet, 237-268; 3Huang C, Hess J, Gill M, Hustead D (2010) “A dual-strain feline calicivirus vaccine stimulates broader cross-

neutralization antibodies than a single-strain vaccine and lessens clinical signs in vaccinated cats when challenged with a homologous feline calicivirus strain associated with virulent systemic disease” Journal of Feline Medicine and Surgery 12, 129-137; 4Martino B, Rocco C, Ceci C, Marsilio F (2009) “Characterization of a strain of feline calicivirus isolated from a dog faecal sample” Veterinary Microbiology 119, 52-57 ; 5Mencke M, Vobis M, Mehlhorn H, Haese JD, Rehagen M, MAngold-Gehring S, Truyen U (2009) “Transmission of feline calicivirus via cat flea (Ctenocephalides felis)” Parasitology Research 105, 185-189; 6Radford A, Addie D, Belák S, Boucraut-Baralon C, Egberink H, Frymus H, Frymus T, Gruffydd-Jones T, Hartmann K, Hosie M, Lloret A, Lutz H, Marsilio M, Thiry E, Truyen U, Horzinek M (2009) “Feline Calicivirus - ABCD guidelines on prevention and management” Journal of Feline Medicine and Surgery 11, 556-564; 7Radford A, Coyne K, Dawson S, Porter C, Gaskell R (2007) “Feline Calivirus” Veterinary Research 38, 319-335

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CASO CLÍNICO DE UROLOGIA: FLUTD OBSTRUTIVA

Caracterização do paciente: Deco, felídeo macho castrado, Europeu Comum, com 8 anos de idade e 4,6 kg de peso.

Motivo da consulta: Alopécia ventral, anorexia parcial, disúria, estrangúria, hematúria, poilaquiúria, prostração e tenesmo.

História clínica: Aproximadamente há 1 mês, a proprietária reparou que o Deco lambia muito o abdómen e a região perianal, começando a perder pêlo nestas zonas. Há 5 dias, e de uma forma aguda, o Deco ficou prostrado, começou a comer pouco (embora bebesse água normalmente) e sempre que ia à liteira tinha imensas dificuldades em urinar, havendo alturas em que as tentativas eram improdutivas e em que vocalizava. Para além disso, o Deco começou a ir mais vezes à liteira e quando conseguia urinar fazia-o em gotejos. A proprietária referiu também que via sangue na liteira e que o Deco não tinha nenhum antecedente médico semelhante. Não foi referida qualquer alteração na posição de micção.

O Deco estava desparasitado e vacinado corretamente. O passado médico-cirúrgico apenas incluía uma orquiectomia eletiva aos 6 meses de idade e não tomava qualquer medicação.

Vivia num apartamento sem acesso ao exterior. Não costumava fazer viagens, era alimentado com uma dieta comercial seca, tinha livre acesso a água e não coabitava com outros animais.

Não tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou ingerir outros alimentos, para além da sua dieta habitual.

Relativamente às perguntas efetuadas para os restantes sistemas, não foi referida qualquer alteração.

Exame geral: O Deco manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento, tinha um temperamento nervoso, encontrava-se alerta e não era agressivo. Não estava desidratado e apresentava uma condição corporal normal a obeso moderado. Os movimentos respiratórios e o pulso não apresentavam alterações. A temperatura estava normal (38,2 ºC), à introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam normais e o TRC era inferior a 2 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A auscultação cardiopulmonar não evidenciou qualquer anomalia. A palpação abdominal causava desconforto e a bexiga estava visivelmente distendida (Anexo IV – Fig. 1). Os olhos, a boca e os ouvidos foram avaliados e encontravam-se sem alterações. Foi observada alopécia abdominal ventral generalizada (Anexo IV – Fig. 2).

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Exame dirigido ao aparelho urinário: Os rins eram palpáveis e apresentavam tamanho, superfície e consistência normais. A bexiga encontrava-se bastante distendida e dolorosa à palpação. Os ureteres não eram palpáveis e as mucosas peniana e prepucial encontravam-se congestionadas.

Diagnósticos diferenciais: Inflamatórias/Infecciosas: FLUTD obstrutiva, ITU;

Traumas/Tóxicos: trauma uretral; Anomalias: estritura uretral adquirida; Metabólicas: urolitíase;

Idiopáticas/Imunomediadas: cistite idiopática felina; Neoplasias: neoplasias uretrais ou vesicais.

Exames complementares: hemograma: leucocitose ligeira [leucócitos - 20,48x103/µL (normal: 5,5x103 – 19,5x103)] com neutrofilia ligeira [neutrófilos – 18,86x103/µL (normal:

2,5x103 – 12,8x103)] e linfopénia moderada [linfócitos – 0,99x103/µL (normal: 1,5x103 – 7,0x103)]; bioquímica: hipoproteinémia [PPT’s - 5,95 g/dL (normal: 6 – 7,9)] por hipoalbuminémia [albumina – 2,49 g/dL (normal: 2,8 – 3,9)], azotémia (pós-renal) [creatinina – 10,70 mg/dL (normal: 0,9 – 2,2) e ureia – 513,5 mg/dL (normal: 22,0 – 64,0)]; urianálise: urina vermelha e turva (Anexo IV – Fig. 3), densidade – 1,017 (normal: 1,020-1,040), proteinúria (+2), piúria (+2), bilirrubinúria (+1), hematúria/hemoglobinúria (+3) e sedimento urinário inativo, sem cristais e com poucas células epiteliais; urocultura: negativa; RX [Anexo IV – Fig. 4a) e 4b)]:

bexiga bastante distendida e com contornos regulares, sem cálculos urinários visíveis.

Diagnóstico presuntivo: FLUTD obstrutiva.

Tratamento: O Deco foi internado e sujeito a cateterização iv para fluidoterapia com NaCl 0,9% a uma taxa de manutenção (68 mL/kg/dia), cistocentese (recolha de urina para cultura e antibiograma), descompressão e desobstrução do trato urinário para restabelecimento do fluxo urinário. Para esta última procedeu-se à algaliação, feita sem sedação e com alguma facilidade (só inicialmente é que houve uma ligeira resistência provavelmente devido à presença de um tampão uretral). De seguida, a bexiga foi esvaziada e a algália suturada ao prepúcio.

Adicionalmente foi medicado com amoxicilina - ácido clavulânico (12 mg/kg sc SID), cetoprofeno (2 mg/kg sc SID), cloridrato de tramadol (4 mg/kg im BID), metoclopramida (5 mg/kg sc BID), ranitidina (2,5 mg/kg po BID) e dieta comercial húmida e seca específica para problemas urinários. Após avaliação dos resultados analíticos, adicionou-se nova medicação (hidróxido de magnésio – Maalox Plus®: 1 comprimido/ 20kg po BID, Arctostaphylus uva-ursi + Vaccinium myrtillus + Althaea officinalis + Olea europaea + L-metionina + vitamina C + Lactobacillus acidophilus + Zea mays + Taraxacum dens leonis + Phyllanthus niruri - Dialix®

TU: 1 comprimido/2,5 kg po SID, benazeprilo: 0,5 mg/kg po SID) com o intuito de fazer proteção renal.

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Acompanhamento: Ao fim dos 3 primeiros dias verificaram-se melhorias notórias (começou a comer e a urinar sem alterações e apresentava-se mais confortável), suspendendo-se a administração de antiemético e removendo-se a algália. Porém, ao 4º dia de internamento houve um retrocesso e o seu estado voltou a piorar: vomitou pela 1ª vez e voltou a apresentar anorexia e obstrução. Dessa forma, algaliou-se novamente, reintroduziu-se o antiemético, introduziu-se butilbrometo de escopolamina (Buscopan®; 1comprimido/20kg po BID; cólicas), metronidazol (12 mg/kg po BID, prevenção em caso de afeção GI) e ácido ursodesoxicólico (Destolit®; 1 comprimido/20 kg po SID; protecção hepatobiliar) e procedeu-se a novo RX [Anexo IV – Fig.

4c) e 4d)], que evidenciou a presença de uma estrutura circular central, de contornos bem definidos na bexiga. Nos 4 dias seguintes, a situação agravou-se ainda mais (hipotermia, desidratação) e o Deco acabou por sucumbir após um episódio de choque. Posteriormente realizou-se uma necrópsia onde foi encontrada a causa de obstrução e de morte: massa tumoral vesical, compatível com carcinoma das células transicionais, localizada na parede (Anexo IV – Fig. 5).

Discussão do caso clínico: A anamnese, o exame geral, o hemograma, a bioquímica e a urianálise permitiram identificar os seguintes problemas: alopécia ventral, anorexia parcial, disúria, hematúria, poilaquiúria, prostração, tenesmo, condição corporal normal a obeso moderado, desconforto abdominal, distensão e dor vesical, congestão das mucosas peniana e perianal, leucocitose e neutrofilia ligeiras, linfopénia moderada, hipoproteinémia por hipoalbuminémia, azotémia pós-renal (obstrução), piúria, proteinúria, hematúria, bilirrubinúria/hemoglobinúria e descamação epitelial ligeira. Tendo em conta este quadro, foi diagnosticada presuntivamente FLUTD obstrutiva. FLUTD é um conceito que engloba todos os problemas que afetam a bexiga e/ou a uretrae é uma das principais razões para a procura de assistência médico-veterinária em gatos2,4,7. Independentemente da causa há um conjunto de sinais clínicos comuns: poilaquiúria, estrangúria, hematúria, periúria e disúria3,4,5,6. A FLUTD pode ser classificada de acordo com a presença ou não de uma causa e pelas manifestações clínicas (obstrutiva ou não obstrutiva)3,4. Tendo em conta o quadro apresentado pelo Deco, considerou tratar-se de um quadro de FLUTD obstrutiva. As causas mais comuns de FLUTD obstrutiva são: cistite idiopática felina, tampões uretrais e urolitíase4. A cistite idiopática felina é considerada a causa mais comum de FLUTD obstrutiva4,5, enquanto a 2ª causa mais comum é a urolitíase4. Outras causas como neoplasias, distúrbios de comportamento, disfunções neurológicas, ITU e malformações anatómicas são mais raras3. A incidência desta patologia é maior nos machos e, nestes, maior ainda nos castrados3. Já a prevalência é maior no Inverno e na

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Primavera2. Os gatos obesos, sem acesso ao exterior, com idades entre os 2 e os 6 anos (sendo rara em idades inferiores a 1 ano e superiores a 10 anos) e que partilham o habitat com outros animais constituem o grupo de risco2,3,4,5. Outros fatores de risco incluem: diminuição da atividade física, dieta (seca e com níveis de Mg2+ e/ou cinzas elevados), baixo consumo de água e alterações ambientais3,4.

A fisiopatologia depende da causa subjacente. No caso da cistite idiopática felina, não se compreende bem a razão porque acontece, mas provavelmente deve-se a uma alteração na interação entre o suprimento nervoso, a camada protetora de GAG’s e os componentes da urina5. Os tampões uretrais, são constituídos por uma matriz proteica, proveniente da parede vesical como resultado de uma inflamação, e material cristalino, podendo resultar em obstrução, distensão vesical e, eventualmente, azotémia pós renal1,4. Por último, a urolitíase ocorre por fatores relacionados com a dieta2,4.

Como referido, os sinais mais comuns são: estrangúria, periúria, poilaquiúria, disúria e hematúria de forma aguda. Os animais afetados também podem apresentar lambedura excessiva do pénis e região perianal, vocalização durante a micção e extrusão e congestão peniana. Por sua vez, o exame físico evidencia uma bexiga de parede espessada, sensível à palpação, distendida e de difícil descompressão1. Caso o animal apresente depressão, anorexia, vómito, desidratação e hipotermia ou acidose e hiperventilação ou hipercalémia e bradicardia ou choque, estamos perante um quadro de azotémia pós-renal indicativo de obstrução completa. Os episódios normalmente têm uma duração de 1 a 10 dias e são separados por intervalos de dias a semanas de aparente normalidade2,6. A resolução da sintomatologia ocorre normalmente em 7 dias4.

O diagnóstico desta síndrome é feito pela integração das informações obtidas na anamnese, sintomatologia, exame físico, urianálise completa, urocultura com antibiograma e imagiologia, pois nenhum sinal ou conjunto de sinais é diagnóstico de uma FLUTD em particular3. O estudo imagiológico pode ser feito recorrendo a RX abdominal (deteção de cálculos radiopacos e de tamanho superior a 3 mm), ecografia abdominal (avaliação da bexiga, cálculos), estudos contrastados (anomalias conformacionais, estritura uretrais, coágulos sanguíneos, cálculos não radiopoacos, espessamento da parede vesical) e uroendoscopia (observação das mucosas vesical e uretral, cálculos não evidentes por outros métodos, massas tumorais e remanescências uracais).

Nos casos de recidiva ou persistência de sintomatologia, os estudos contrastados e a uroendoscopia são os métodos por excelência2,4. A realização de biópsias da parede vesical também é praticável e a sua avaliação histológica evidencia a presença de inflamação e infiltração por mastócitos das paredes6. Os parâmetros bioquímicos e hematológicos devem

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também ser determinados de forma a se identificar e corrigir as alterações que possam existir e a ter-se conhecimento do estado renal1.

A chave para o sucesso do tratamento é o diagnóstico, mas como muitas vezes não se consegue determinar a etiologia, o objetivo é reduzir a recidiva dos episódios3. Dessa forma, os proprietários devem ser alertados dos custos inerentes e da necessidade de cumprimento da terapia e controlo, para além dos fatores de risco. Independentemente da causa de obstrução, a abordagem de emergência não varia1: cateterização iv, fluidoterapia, descompressão vesical por cistocentese, desobstrução uretral e correção dos desequilíbrios existentes3. O primeiro passo será sempre estabilizar o animal e depois sedar (se necessário) para algaliação e desobstrução uretral por retropropulsão com soro fisiológico. Se necessário, pode-se fazer massagem peniana simultaneamente à compressão vesical manual, o que pode resultar na eliminação de tampões uretrais ou cálculos muito pequenos2. A manutenção ou não da algália vai depender do fluxo urinário, da sintomatologia e eficiência do músculo detrusor3. De forma a evitar a desidratação, e porque pode ocorrer diurese pós-obstrutiva, é necessário vigiar a produção de urina3. Adicionalmente é imperativo haver maneio da dor, pois é uma patologia extremamente dolorosa.

A analgesia pode ser conseguida recorrendo a diversos fármacos, como: butorfanol (0,2 a 0,5 mg/kg im/sc), buprenorfina (20 µg/kg iv/im/sc QID), hidromorfina ou penso de fentanil, se a dor for bastante severa4. Caso ocorram espasmos uretrais pós-obstrutivos (fatores de risco para recidiva), é recomendada a administração de antiespasmódicos como: fenoxibenzamina, prazosina e/ou acepromazina (α1-antagonistas), de forma a diminuir o tónus uretral3,4. A antibioterapia pode ser dispensável, pois a bibliografia refere que deve ser feita apenas em situações em que a ITU seja comprovada2,4. Neste caso, foi usado profilaticamente amoxicilina - ácido clavulânico, pois não se sabia a causa de obstrução e queria-se proteger o Deco de uma eventual infecção. Caso a causa da obstrução sejam os tampões uretrais, pode ser usada a amitriptilina (0,5 a 1 mg/kg po SID), fármaco que tem ação antidepressiva, anticolinérgica, anti- histamínica, analgésica e anti-inflamatória. Este fármaco parece ser também benéfico no caso de cistite idiopática felina quando administrado diariamente durante 1 ano, mas com benefício residual se usado a curto prazo3,4,6. A cirurgia (uretrostomia perineal) só está indicada para animais que não respondam ao tratamento e que estejam gravemente afectados3. Outros fármacos como a prednisolona, o DMSO e os GAG’s podem ser usados, mas a sua eficácia ainda não está totalmente comprovada1,3,6.

O prognóstico varia com a duração da obstrução e a correção da falha renal. É grave quando a duração da obstrução é superior a 60 horas, o volume de eritrócitos numa amostra centrifugada

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de urina com sangue é superior a 2% e se a densidade urinária é inferior a 1,020. O prognóstico pós-uretrostomia é bom, pois a recidiva de obstrução é improvável, embora o procedimento possa predispor a ITU ascendente1. A recidiva de um caso de FLUTD obstrutiva pode atingir os 45%3 e é maior em animais com mais de 4 anos de idade que tenham sofrido obstrução por tampões uretrais1,3. No caso do Deco, o prognóstico considerado foi reservado.

Para a prevenção aconselha-se a redução do stress e a mudança ambiental (limpeza frequente e substituição semanal da areia da liteira, colocação de liteiras em locais sossegados e em número adequado, aumento do número de atividades, maior interação com os proprietários, uso de feromonas sintéticas - Feliway®)3,4, para além do fornecimento de uma dieta que diminua a probabilidade de formação de cálculos e mantenha o pH da urina baixo, tal como a densidade (alimento húmido). A adição de água com sabor a peixe ou carne pode ser feita com o intuito de aumentar a ingestão de água1,6.

Tendo em conta o quadro inicial do Deco, o diagnóstico considerado foi o de FLUTD obstrutiva. Como as analíticas não evidenciavam cristalúria ou ITU, considerou-se como causa dessa FLUTD obstrutiva a cistite idiopática felina. Devido a restrições orçamentais, não foi possível a realização de ecografia abdominal (ou uroendoscopia, pois havia indicação para tal), algo que nos poderia ajudar na obtenção de um diagnóstico definitivo. Este só foi possível com a realização de uma necrópsia (FLUTD obstrutiva por neoplasia), embora no RX abdominal realizado durante o internamento se tenha visualizado algo que poderia ser compatível devido à localização. Como referido, as neoplasias podem causar FLUTD obstrutiva, mas é algo bastante raro e agressivo7. É uma situação mais prevalente em machos com idades entre os 6 e os 19 anos (média de 15 anos) e desenvolve-se em locais distantes ao trígono vesical7. O seu tratamento pode ser médico ou cirúrgico. O tratamento médico pode incluir uma monoterapia com piroxican (0,3 mg/kg po 2-3 vezes/semana) ou uma terapia conjunta de doxorrubicina + ciclofosfamida. Já o tratamento cirúrgico inclui cistotomia ou exérese parcial e pode ser auxiliado com um tratamento médico (piroxican)7. O prognóstico é mau e, independentemente do tratamento aplicado, o tempo de sobrevida não é superior a 9 meses7.

Referências bibliográficas: 1Filippich L (2006) “Chapter 11 - The cat straining to urinate” in Rand J (Ed.) Problem Based Feline Medicine, 1ª Ed, Saunders Elsevier, 173-175 e 179-184;

2Grauer G (2003) “Chapter 47 - Urinary Tract Disorders” In Nelson R & Couto C (Eds.) Small Animal Internal Medicine, 3rd Ed, Mosby Elsevier, 642-649; 3Hostutler R, Chew D, DiBartola P (2005) “Recent Concepts in Feline Lower Urinary Tract Disease” Veterinary Clinic of North

Referências

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