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Mesa redonda intitulada: A escuta de um corpo na experiência clínica

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Academic year: 2021

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Mesa redonda intitulada: “A escuta de um corpo na experiência clínica”

Título: O Corpo e a Criança Autista Autora: Rosângela de Faria Correia

Co-autor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Esse trabalho tem como objetivo refletir sobre o atendimento clínico de uma criança autista em um CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil) em São Paulo, articulando com o conceito de corpo em psicanálise.

Falar sobre corpo em psicanálise nos remete a linguagem que afetará o sujeito, pois o humano se constituirá a partir dos significantes encarnados em seu corpo. Para a psicanálise diferentemente da medicina, o corpo não é tomado na sua vertente biológica e orgânica, pois o corpo marcado pela linguagem e pela palavra é,

Como nos diz J.A.Miller, (1999) “existem corpos estranhos habitados pela linguagem: os corpos da espécie humana”.

Abordaremos nesse trabalho o primeiro momento da constituição corporal da criança no registro do Imaginário, tendo como referência o texto de Lacan “ O estádio do Espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica”(1998).

Neste trabalho gostaria de trazer uma experiência clínica com uma criança, e há um paradoxo que surpreendeu o clínico logo no início do tratamento.

No primeiro encontro Beatriz estava na sala de espera ao lado de sua mãe, e o que chama atenção a princípio é seu aspecto físico. Beatriz é uma criança de cinco anos, notoriamente magra, cabelos negros e bem compridos, olhos grandes com um ar de tristeza. Nesse momento, a criança se apresenta de uma maneira bastante significativa, ou seja, sua fragilidade se dá a ver, em seu corpo.

Assim que Beatriz entra na sala com o clínico, a menina se apresenta extremamente ágil, corre pela sala com intensidade, seus gritos são fortes e também intensos, e nesse momento há algo de surpreendente sobre aquela criança, especialmente nas suas manifestações corporais, contranstando com a figura na sala de espera.

Assim se iniciam os encontros com Beatriz, seus gritos, sons que parecem choro e outras vezes brincadeira. Corre pela sala e depois de alguns minutos. E deita-se no chão, cobre o rosto com os cabelos e permanece imóvel, “mostrando” um corpo quase sem vida. Tem, assim, o início de uma repetição.

Nas sessões que se seguem, Beatriz corre pela sala, grita e se deita no chão permanecendo

imóvel, como nas sessões anteriores, mas observo que surge um detalhe nessa repetição;

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a pele do abdômen de Beatriz precisa estar em contato com o chão. Ao deitar-se fica completamente imóvel, inerte, e com os cabelos cobrindo o seu rosto e seus olhos. A partir do que a criança nos mostra, podemos entender que há um desencontro de Beatriz com seu corpo, a agitação psicomotora seguida de uma paralisação brusca, nos sugere um modo particular da criança se haver com seu corpo e sua dificuldade em constituir um contorno. Beatriz parece nos indicar que seu corpo apresenta dificuldades em alojar significantes. Ela tenta evitar o equívoco da língua e seus mal-entendidos, há uma operação de separação entre o corpo e a linguagem.

Essa repetição, como um ritual, se apresenta em todos os encontros, sendo essa a maneira particular de Beatriz, marcar sua forma de estabelecer um laço com o outro, ou seja, estar com o outro, mas se assegurando que tudo nos encontros se repita e permaneça da mesma maneira. O já visitado, a repetição, os mesmos movimentos, podem ser entendidos como uma manifestação no corpo da criança, para tentar se acalmar diante da possibilidade de algo desconhecido. Beatriz nos mostra de maneira significativa um retraimento na relação com o outro e sua dificuldade em brincar é marcadamente importante, pois ao entrar na sala onde ocorrem os atendimentos, ela não se aproxima dos brinquedos que lhe são oferecidos. Sabemos que a brincadeira é essencial para a constituição subjetiva da criança, ela é fundamental na infância, uma vez que é uma via pela qual se torna possível empreender construções simbólicas a partir do jogo lúdico.

Durante os atendimentos, Beatriz não consegue aceitar um brinquedo ou qualquer objeto.

Frequentemente traz uma espécie de cordinha de plástico que gira com rapidez e fica observando os movimentos desse objeto. Outras vezes tenta retirar um anel do clínico, há aqui uma marca importante, pois a criança se interessa por uma parte do corpo do clínico.

No CAPSi, frequentemente, após os atendimentos, é oferecido um lanche para as crianças e, nesse momento, Beatriz não aceita qualquer oferta de alimento, os joga pelo chão, amassa-os pela mesa e se retira da sala, visivelmente perturbada para sair a correr ao encontro de sua mãe.

Após alguns meses, Beatriz começa a se interessar mais intensamente pelo corpo do clínico. Quando entra na sala começa a correr vigorosamente, em seguida se aproxima, e o contato físico ocorre de maneira intensa. Beatriz levanta a blusa do clínico e com persistência tenta permanecer “colada” ao abdômen do mesmo, e naquele momento parece tentar se “fusionar”, em seguida sai correndo, grita e deita-se no chão.

Beatriz durante meses mostra sua potência frente à angustia na da presença do outro. Essa

é a particularidade dessa criança, frágil em sua aparência, porém com uma potência

incansável para tratar o gozo do Outro. Beatriz sabe manter o Outro distante, talvez para

controlar sua angústia diante da proximidade. Parece muitas vezes inerte, entregue

deitada no chão, mas mostra rapidamente que essa é sua maneira de calcular e antecipar

seus movimentos frente ao Outro.

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O corpo, assim como os objetos escolhidos pela criança podem indicar na clínica, principalmente na clínica com autistas, o quanto os objetos são essenciais para a constituição do sujeito.

Beatriz tem objetos definidos, ou seja, sua cordinha, o anel do clínico e posteriormente uma parte do corpo do clínico, investidos pela criança de maneira bastante particular. São essenciais para a constituição corporal. Dessa forma, compreendo que cabe ao clínico acompanhar o trabalho da criança, ou seja, sua repetição e a escolha de objetos, assim como sua “colagem” ao corpo do clínico. O corpo de Beatriz e sua potência na repetição podem indicar que há uma impossibilidade nesta criança de ocorrerem circuitos pulsionais, nesse sentido, há uma “sutura em sua pele” que não suporta a possibilidade de um furo, uma falta. Seu corpo não apresenta orifícios que fazem circular a pulsão, e dessa forma os objetos se parecem como órgãos que fazem parte de seu próprio corpo. A escolha de objetos pela criança autista, pode indicar que estes, de certa maneira ficam

“colados” à sua pele, e na ausência deles, podem produzir uma desestabilização na criança, então, esses objetos poderão ser entendidos como maneiras de gozo, pois estão intimamente ligados ao seu corpo.

“De modo mais profundo, esses vaivéns na relação com o objeto, esses remendos, são consequências do que Lacan explicitou em O Seminário, livro 11 : o corte não ocorre entre o seio e a criança, mas sim entre o seio e a mãe. Dito de outro modo, o seio se engancha no corpo do sujeito, e não no corpo da mãe. Esse acoplamento da criança é o seu próprio ser. Com esse objeto, seja uma bola, uma caixa ou um copinho, ele se apegará ao Outro”. (Laurent, 2007, p.30).

O corpo da criança não se constitui “naturalmente”, mas a partir do olhar do Outro e por meio da linguagem, que afeta o corpo da criança com os significantes da cultura.

É possível pensar aqui no texto de Lacan “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica”, para nos aproximar da constituição do corpo. Nesse trabalho, Lacan (1998) nos indica que basta compreender o estágio do espelho como uma identificação. Assim, em um primeiro momento a imagem antecipada de um corpo unificado dá à criança os primeiros passos para a formação do eu.

A criança ao reconhecer sua imagem no espelho, apesar de sua prematuração motora, vive uma experiência de júbilo ao reconhecer seu corpo de maneira “completa”, e não fragmentada; essa operação se dá com o suporte do olhar materno. Essa imagem reconhecida pela criança dá a ela uma possibilidade de constituição, e ao mesmo tempo o reconhecimento do corpo próprio, separada da mãe. Surge aqui juntamente com o júbilo da criança, um traço que poderá provocar um sofrimento, ou seja, o reconhecimento de que está separada da mãe.

“A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na

impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse

estágio de infans parecer-nos á pois manifestar, numa situação exemplar a matriz

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simbólica eu que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito”.( Lacan 1995, p.97).

Para Beatriz, a imagem no espelho de um corpo unificado, que faz função constituinte, provavelmente não se operou e tampouco a operação simbólica.

A ausência de constituição simbólica do corpo, pode levar a criança a sérias dificuldades na percepção de espaço, tempo e limites, pois a impossibilidade em reconhecer o próprio corpo, também passa pela ausência do corpo do outro.

Quando Beatriz carrega sua cordinha acoplada a seu corpo, entrando e saindo pelas salas do CAPSi, correndo pelos corredores entre as pessoas de forma a tentar delimitar um espaço, nos faz pensar em seu trabalho para construção de limites para seu próprio corpo.

“Estamos em relação com sujeitos que se deslocam em espaços de gozo, nos quais o infinito e os limites são iguais. Para eles, um furo está aberto no infinito e ao lado deles da mesma maneira. O espaço métrico só é adquirido posteriormente, com o metro- medida, isto é, o falo. Enquanto a significação fálica não estiver presente, o mundo não será medido. O Outro pode invadir o corpo do sujeito com um gozo atroz, de modos catastróficos, sem que as bordas marquem uma pulsação regulada”.(Laurent , 2007, p.28).

Nesse trabalho, o clínico intervêm por meio da leitura que se faz da relação com a criança e suas manifestações, o que pode possibilitar uma decifração do pathos que a criança dá a ver em seu corpo, e que podem ser entendidas neste caso como dando um lugar a novas formas de se apresentar e constituir um laço com o Outro.

No encontro com Beatriz, essa criança nos ensina a maneira que ela possui para tentar constituir um contorno para seu corpo, ou seja, correndo pela sala, se interessando pelo anel do clínico, sua cordinha giratória e também o próprio corpo do clínico, tentativas que sugerem a construção de uma borda para seu corpo. Ao tentar extrair o anel do clínico, podemos entender como uma forma de iniciar um circuito pulsional? De se constituir um orifício, uma abertura?

Na criança autista podemos pensar que um primeiro registro no Imaginário ainda não se constituiu, e desta forma Beatriz nos indica seu embaraço diante de um corpo fragmentado? Ou ainda, poderíamos questionar se a criança não consegue se deixar capturar pelo engodo de uma imagem antecipada no espelho, assim como evita todo o equívoco da linguagem? Imagem e linguagem poderiam nos indicar o cerne do sofrimento da criança autista?

Éric Laurent coloca que “Esforçar-se para entrar em relação com o sujeito autista,

confrontar-se com esse impossível, com esse real, a partir de uma perspectiva

psicanalítica, supõe apelar à invenção de uma solução particular sob medida. Com efeito,

a invenção é o único “remédio” do sujeito autista e deve incluir, a cada vez, o resto, ou

seja, o que permanece no limite de sua relação com o Outro: seus objetos autistas, suas

estereotipias, seus duplos”.(Laurent, 2012,pag 78).

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Rosângela de Faria Correia

Psicanalista, Pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trabalha em Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSi) em São Paulo.

Manoel Tosta Berlinck

Sociólogo; Psicanalista; Ph.D pela Universidade de Cornell, Ithaca, N.Y., USA; Professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (Campinas, SP, Br);

Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (São Paulo, SP, Br) onde dirige o Laboratório de Psicopatologia Fundamental, editor de Pulsional Revista de Psicanálise e da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental; Membro da World Association of Medical Editors – WAME (Associação Mundial de Editores de Medicina);

Ex- diretor da Livraria Pulsional e da Editora Escuta, autor de diversos livros e numerosos artigos.

Bibliografia:

Lacan, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In Escritos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1998.

Laurent, Éric.(2012). A Batalha do Autismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

____________(2007). A Sociedade do Sintoma. Rio de Janeiro : Contra Capa, 2007.

Miller, J. A. (1999). Elementos de Biologia Lacaniana. Escola Brasileira de Psicanálise.

Minas Gerais (2001).

Referências

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