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Open Dialética do castigo: histórias de um frade no Brasil holandês

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Academic year: 2018

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

A DIALÉTICA DO CASTIGO: HISTÓRIAS DE

UM FRADE NO BRASIL HOLANDÊS

Sylvia Brandão Ramalho de Brito

Orientador: Ângelo Emílio da Silva Pessoa

Área de concentração: História e Cultura Histórica Linha de pesquisa: Ensino de História e Saberes Históricos

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Sylvia Brandão Ramalho de Brito

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.

Orientador: Ângelo Emílio da Silva Pessoa

Área de concentração: História e Cultura Histórica Linha de pesquisa: Ensino de História e Saberes Históricos

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UM FRADE NO BRASIL HOLANDÊS

Sylvia Brandão Ramalho de Brito

Dissertação de Mestrado avaliada em ___/ ___/ ____com conceito _________________

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Prof. Dr. Ângelo Emílio da Silva Pessoa

Programa de Pós-Graduação em História / Universidade Federal da Paraíba Orientador

______________________________________________________

Profª Dra. Maria Emilia Monteiro Porto

Programa de Pós-Graduação em História / Universidade Federal do Rio Grande do Norte Examinadora Externa

______________________________________________________

Prof. Dr. Mozart Vergetti de Menezes

Programa de Pós-Graduação em História / Universidade Federal da Paraíba Examinador Interno

______________________________________________________

Prof. Dr. Ricardo Pinto de Medeiros

Programa de Pós-Graduação em Arqueologia / Universidade Federal de Pernambuco Suplente Externo

______________________________________________________

Profª Dra. Carla Mary S. Oliveira

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Ao antigo Centro Federal de Educação Tecnológica da Paraíba e à Universidade Federal da Paraíba, instituições que oportunizaram um ensino público e de qualidade, no ensino médio, na graduação e na pós-graduação. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino de Nível Superior pela concessão da bolsa de Mestrado. À Universidade de Salamanca e à Fundación Carolina pela bolsa Iberoamericana para a temporada no Máster em Estudios Avanzados e Investigación en Historia: España y el Mundo Iberoamericano.

À coordenação do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba pela retidão e atenção dispensadas aos alunos. Uma pesquisa não nasce e se desenvolve sem a ajuda e direção dos mestres. Agradeço a todos os professores que marcaram essa longa trajetória do Mestrado, não apenas àqueles vinculados à UFPB. Ao meu orientador, Prof. Dr. Ângelo Emílio Pessoa, que deu-me liberdade para definir os rumos deste trabalho e que dividiu comigo o interesse pelo frei Manoel Calado, contribuindo, generosamente, com seu brilhantismo, sua erudição e a sua paixão pela História. À Profª. Drª. Carla Mary de Oliveira, pelo auxílio com a bibliografia dita barroca, pelas indicações e pelo fundamental apoio nos caminhos que decidi trilhar. Ao Prof. Dr. Mozart Vergetti pelas valiosas sugestões no Seminário de Dissertação que, atentando para o cariz político, ajudaram a dar um novo colorido ao tema. À Profª. Drª. Solange Rocha, que colaborou de forma significativa para minha formação universitária, pela viva inspiração e estímulo frequente. À Profª. Drª. Serioja Mariano, sempre prestativa, agradeço pela torcida e gentileza singular. Ao Prof. Dr. Carlos André Cavalcanti pela disposição e auxílio no intuito da compreensão do universo das ordens religiosas. Ao Prof. Dr. José Pedro Paiva, pelas pontuadas informações, dentro desse abismo que é a compreensão de percursos biográficos de regulares em Portugal, depois da extinção e quase total destruição dos arquivos. À Profª. Drª. Ana María Carabias Torres, pela leitura atenta dos meus trabalhos e pelas melhores aulas de História Moderna da minha vida. Ao Prof. Dr. Jose Manuel Santos Perez, agradeço a acolhida na Universidade de Salamanca, os ensinamentos profissionais e os inúmeros exemplos de seriedade e competência acadêmica. Agradeço também a Prof. Drª. Kalina Vanderlei que, em pelo menos duas ocasiões distintas, com o seu engenho peculiar, sugeriu novas possibilidades para a pesquisa e caminhos a percorrer. À Profª. Drª. Maria Lêda de Oliveira, agradeço o privilégio de tê-la na banca de qualificação. Sua leitura rigorosa e atenta do texto preliminar e seus questionamentos pertinentes foram imprescindíveis para que este trabalho tivesse bem aparadas as suas arestas e as suas incongruências mais flagrantes. À Profª. Drª. Maria Emília Porto que gentilmente aceitou compor a banca de defesa, apesar de sua agenda atribulada, agradeço a contribuição valiosa. À Profª. Drª. Regina Célia Gonçalves, pelos anos compartilhando ideias e pelos ensinamentos, demonstrando o que é de fato dedicação ao ofício de historiador. Mesmo que este trabalho não faça honra a todas as possibilidades indicadas por ela, sua participação marcou, irrevogavelmente, minha trajetória.

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Torre do Tombo, a Fundação Biblioteca Nacional e a Brasiliana (USP). Agradeço ainda a todo o corpo de funcionários do Archivo General de Simancas, na Espanha, onde tive o privilégio de fazer o estágio Practicum, agradeço, em específico, a sub-diretora e tutora, Julia Teresa Rodríguez de Diego, pelas ricas orientações no trato da documentação.

O que levo com mais carinho desses anos de convivência no Mestrado são os amigos. Devem ser lembrados os parceiros desde a graduação, Juliana Barros, Maiara Belo, Rossana Cardoso, Fabiolla Furtado, Vanderlan Oliveira. Os companheiros de História Colonial, João Paulo Costa, Bruno Cezar, José Inaldo Chaves, João Aurélio Travassos, Hugo Bonifácio, Rubén Iglesias e Eudes Gomes (este último, por ter me facilitado o acesso aos livros da biblioteca da Universidade Nova de Lisboa). Ainda agradeço aos colegas de minha excepcional turma de curso, em especial, aos amigos “de copo e de cruz", Marcos Melo, Germana Guimarães e Leonardo Rolim, que não me deram outra coisa senão saudades e esperanças. Lembro ainda das amigas queridas, Ana Luiza Marques (interlocutora sempre presente), Fernanda Coelho, Maíra Rosas, Raisa Agra, Suênia Soares, Mariana Mayer, Janine Falcão, Luísa Gadelha, Vânia Cristina, Inara Rosas, Ana Raquel Brandão, Ana Tereza Landolfi e Taísa Dantas, estas duas últimas, agradeço por terem tornado a temporada salmantina tão mais acolhedora e por terem me ajudado a pensar a história do Brasil em uma dimensão ibero-americana.

Aos meus pais, a minha eterna gratidão pelo incansável incentivo. Se não fosse por minha mãe, Mércia Brito, a melhor avó do mundo, com seu coração gigante, me auxiliando a cuidar de Sofia, eu não teria conseguido passar a temporada em Salamanca, muito menos concluir esta dissertação. Ao meu pai, Flávio Brito, devo o gosto pela pesquisa e pelo estudo. Agradeço pelos ensinamentos diários, por ter sempre acreditado em mim (mesmo quando nem eu acreditava), pelo companheirismo e incentivo, não apenas para que eu concluísse este trabalho, mas para que eu continue a pesquisa e a partir dela, queira mais. Obrigada, Painho, pelo seu enorme amor por mim. Às minhas irmãs, Fernanda, Flávia e Marina, agradeço pelo carinho e apoio, tanto nos momentos difíceis, como nos alegres. Sobretudo a Fernanda, que nas horas mais abatidas, com sua fé, que vale por nós duas, soube acalentar o meu coração. Também recordo os meus cunhados Joel e Afrânio, pelo entusiasmo e sábados de sorrisos.

Durante a feitura deste trabalho, perdi uma alma irmã, mais que isso, gêmea, como dizem. É algo ainda tão doloroso e latente que me fogem as palavras, e peço desculpas aos prováveis leitores por essa indisfarçável melancolia. Surpreendo-me ainda telefonando pra um celular que já não dá linha, imaginando para onde você levou os nossos segredos, fazendo escolhas com base no que você já dissera ou no que acho que você diria. Como andar em um mundo onde você não está? Então esse trabalho é teu, Titia. Foi pensando em você e por causa de você, que também foi mãe e melhor amiga, que consegui terminá-lo. Obrigada por ter feito a minha existência tão mais feliz. “Yo pronuncio tu nombre, en esta noche oscura, y tu nombre me suena más lejano que nunca. Más lejano que todas las estrelas y más doliente que la mansa lluvia”.

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Este estudo centra-se na análise de uma narrativa escrita durante o período da invasão holandesa ao Brasil, o livro intitulado O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade. A obra, publicada em 1648, em Lisboa, pelo religioso Manoel Calado, tem João Fernandes Vieira, senhor de engenho de Pernambuco, como financiador e protagonista. O Valeroso Lucideno, cujo componente central guiava-se por uma história de cunho providencialista, tinha uma finalidade estratégica. A obra pode ser compreendida como um projeto político, tanto do encomendador, quanto do encomendado, pautado pelas marcas da historiografia do período, cujo esforço discursivo residia na teoria da boa razão de Estado. Para além de compreender de que forma se deram as justificativas da "guerra da liberdade divina" que perpassam, a todo o momento, a escrita de Manoel Calado, nosso trabalho pretende perscrutar a relação que havia entre uma escrita panegírica e os anseios de nobilitação. Por fim, atentamos ainda para o discurso utilizado pelo religioso com o intuito de entender quais os ideais que ele defendia e pretendia divulgar em seus escritos.

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ABSTRACT

This study focuses on the analysis of a narrative written during the dutch invasion to Brazil, the book entitled O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade. The work, published in 1648, in Lisbon, by the religious Manoel Calado, has João Fernandes Vieira, a "senhor de engenho" of Pernambuco, as financier and protagonist. The book, in which the central component was guided by providential history, had a strategic purpose. The work can be understood as a political project, guided by the marks of the historiography of the period, whose efforts lay in the discursive theory of "boa razão de Estado". In addition to understanding which were the justifications of "guerra da liberdade divina", our work aims to scrutinize the relationship between a panegyric written and aspirations of ennoblement. Finally, we look at the speech used by the religious in order to understand what ideals he stood for and meant to disclose in his writings.

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AHU – Arquivo Histórico Ultramarino AGS – Archivo General de Simancas Cx. – Caixa

D. – Documento

GYM – Guerras y Marina

IAGP – Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

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SUMÁRIO

APROXIMAÇÕES À OBRA DE UM FRADE SEISCENTISTA...12

CAPÍTULO 1 - COMO DEPENDEM AS GUERRAS DA FAMA QUE DELAS CORRE...36

1.1 Protagonismo e Ascensão Social...36

1.2 O Teatro da Guerra...57

CAPÍTULO 2 - PARA QUE SE SAIBA COMO ESTA EMPRESA FOI FAVORECIDA DOS CÉUS: O DRAMA BARROCO DA CARNE E DO ESPÍRITO...72

2.1. O Barroco: A construção de uma categoria...73

2.2 Providencialismo e Alegoria Divina...80

2.3 A História nos escritos seiscentistas...94

CAPÍTULO 3 – A TERRENA OBRA E A CELESTRE EMPRESA: A MÃO NA PENA PELO TRIUNFO DA LIBERDADE...99

3.1 Explicações escusas: proibição ou boicote?...100

3.2 Os sujeitos e as topografias de interesses...107

CONSIDERAÇÕES FINAIS...153

FONTES E BIBLIOGRAFIA...157

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Coqueiros de Olinda Moinhos de Holanda Girando nos ventos, chamados terrais Moinhos de Haia, meus olhos de águia De longe enxergam os canaviais1

“De Olinda a Holanda não há aí mais que a mudança de um i, em a, e esta vila de Olinda se há de mudar em Holanda, e há de ser abrasada por os holandeses antes de muitos dias; porque pois falta a justiça da terra, há de acudir a do céu”2 (CALADO, 1648, Livro Primeiro, Capítulo I, p. 9). Essas palavras foram emprestadas do visitador do Santo Ofício, Frei Antônio Rosado, e reutilizadas por Manoel Calado do Salvador 3 em O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade para demonstrar a terra de desaforos e injustiças que se tornara a Capitania de Pernambuco antes do bem sucedido ataque holandês, iniciado em fevereiro de 1630. Pouco depois as forças luso-brasileiras capitularam, dando início a um

1 Moinhos (composição de Alceu Valença e João Fernando para o álbum Mágico, de 1984).

2 Neste trabalho, utilizaremos a edição de 1648 de O Valeroso Lucideno, porque pode ser editada pelo seu

autor, Manoel Calado, quando ainda vivo. Optamos por atualizar a ortografia, utilizando como base comparativa a edição brasileira de 1985, publicada pela Cooperativa Editora de Cultura Intelectual, pois esta possui estudo introdutório e avaliação crítica do historiador José Antônio Gonsalves de Mello que, na referida publicação, realizou um confronto com a primeira edição da obra, de 1648, acrescentando, ao final do livro, uma listagem das erratas, contendo as corrigendas no que diz respeito à escrita. Mantivemos, contudo, a pontuação e o uso de maiúsculas de acordo com a obra original, critério não utilizado pelo historiador pernambucano. Em regra, mantivemos esse mesmo procedimento para outros documentos citados neste trabalho, tanto no caso de manuscritos, quanto no caso de textos impressos.

3 Autores consagrados, a exemplo de José Antônio Gonsalves de Mello Neto e Evaldo Cabral de Mello, se

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período, posteriormente, conhecido pela historiografia como Brasil holandês4. A partir de 1630 os holandeses ocupariam o Nordeste açucareiro5 durante 24 anos.

Este estudo objetiva analisar uma narrativa histórica que trata da invasão holandesa a Pernambuco. A história6, intitulada O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade. Primeira Parte. Composta por o P. Mestre Frei Manoel Calado da Ordem de S. Paulo primeiro Ermitão, da Congregação dos Eremitas da Serra d'Ossa, natural de Vilaviçosa. Dedicada ao Serenissimo Senhor Dom Theodosio Príncipe do Reyno, & Monarchia de Portugal – (doravante aqui denominado O Valeroso Lucideno), crônica dedicada a D. Teodósio, foi escrita entre 1645 e 1646, e publicada em Lisboa em 1648, pelo religioso português Manoel Calado do Salvador (1584-1654), ainda durante o período de dominação holandesa.

A vasta e qualificada bibliografia sobre o período holandês tornou possível destacar inúmeros registros produzidos por ambos os lados que se confrontaram durante as lutas no período. No lado luso-brasileiro, temos como um dos escritos fundamentais a obra de Manoel Calado.O Valeroso Lucideno é indispensável para a compreensão da guerra da resistência e do chamado período nassoviano7. A leitura da obra de Calado torna-se particularmente importante no entendimento do processo de relutante integração e confronto que se deu entre as várias culturas que ocuparam aquele território da América portuguesa no século XVII.

4 Utilizamos “holandês” por ser uma terminologia já consagrada dentro da historiografia, mas recordamos que

o que havia à época era a República dos Países Baixos que agrupava as sete províncias do norte dos Países Baixos, quais sejam: Frísia, Groningen, Güeldres, Holanda, Overijssel, Utrecht e Zelândia - dentre as quais a Holanda era a parcela mais importante, política e economicamente. Escolhemos também tratar os seus habitantes genericamente como holandeses, neerlandeses, flamengos e batavos.

5 Sempre que utilizarmos a expressão Nordeste açucareiro, estaremos nos referindo ao Nordeste oriental,

aquele território ocupado pelas antigas Capitanias do Norte do Estado do Brasil, vale dizer, a região atual, compreendida entre os estados do Rio Grande do Norte e Alagoas. Em relação especificamente ao período holandês padeceram da invasão, conquista e domínio dos holandeses, os Estados do Brasil (desde a Bahia, em 1624, Pernambuco, em 1630, até o atual Rio Grande do Norte) e o do Maranhão (desde o Ceará, em 1637 até São Luís, em 1641). Conforme Evaldo Cabral de Mello, o Nordeste, no primeiro quartel do século XVII, correspondia às chamadas capitanias de cima, “que, demograficamente falando, constituíam apenas a franja litorânea de disposição latitudinal que, de Natal no Rio Grande do Norte, alcançava Penedo às margens do São Francisco” (MELLO, 2007, p. 72). Segundo José Honório Rodrigues, o episódio da invasão holandesa, que durou trinta anos, alcançou seu auge no ano de 1640, com o domínio de sete das dezenove capitanias brasileiras (RODRIGUES, 1979, p. 48).

6 O próprio Manoel Calado demonstra ter escrito uma história, intuito que afirma já na Epístola Dedicatória,

oferecida a Dom Teodósio: “As horas dizimei, para a memória / Deixar entre os humanos desta história” (CALADO, 1648, Epístola Dedicatória do Autor). No decorrer deste trabalho, utilizamos, com certa liberdade, tanto história, quanto crônica, devido à inexistência de uma fronteira nítida, ao menos no século XVII, entre essas duas terminologias. A distinção metodológica surgirá, como sabe-se, com o estabelecimento da formalização da ciência histórica, o que ocorreu ainda durante o século XIX. De todo modo, pensamos ser importante delimitar alguns aspectos referentes às narrativas seiscentistas, tendo por norte a discussão que faz a historiadora Maria Lêda Oliveira, em seu estudo sobre Frei Vicente do Salvador, sobre a historiografia no chamado período barroco: “O presente, como fonte ‘inspiradora’ para a construção da escrita da História, conflui necessariamente para a utilidade do discurso, o qual, para ser ‘corretamente útil’, deveria ser demonstrado através da experiência” (OLIVEIRA, 2008, p. 74).

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Além da questão política e religiosa, aquela situação configurava diferenças de costumes, de leis, de temperamentos, de culturas – essa dinâmica perpassou o universo colonial dessa região por um largo tempo.

O Valeroso Lucideno foi publicado pela primeira vez, em Lisboa, em 1648 por Paulo Craesbeeck8. Contudo, sete anos depois, em 24 de novembro de 1655, o livro foi alvo de sequestro por parte das autoridades eclesiásticas da Igreja Católica, tendo sido incluído no Índice de Livros Proibidos9. Em 1668 houve a sua liberação e uma nova publicação foi feita, dessa vez pelo impressor Domingos Carneiro. No Brasil, O Valeroso Lucideno foi primeiramente publicado em 1942 pela Cooperativa Editora de Cultura Intelectual de Pernambuco, em dois volumes. No ano seguinte, em 1943, foi publicado, também em dois volumes, pela Edições Cultura de São Paulo. Em 1954 e 1985, foi editado novamente pela Cooperativa Editora de Cultura Intelectual/Fundarpe. Há ainda uma edição publicada pela Editora Itatiaia em 1987 e outra pela Companhia Editora de Pernambuco, em 2004. Nas duas edições portuguesas, de 1648 e 1668, o livro possui apenas um volume. Já nas edições brasileiras, o livro foi sempre estruturado em dois volumes.

A obra de Manoel Calado, religioso da Ordem de São Paulo, teve como suposto encomendador, e também principal protagonista, João Fernandes Vieira (1613-1681), denominado pelo frade português de o Lucideno10. O propósito do livro estava muito claro já no Prólogo ao Leitor, quando Calado afirma o seu intuito de “acudir por a honra, e infalível palavra, e nome de S. Majestade, e dar alento aos moradores de Pernambuco” (CALADO, 1648, Prólogo ao Leitor). O livro de Calado visava, primordialmente, animar os soldados portugueses e luso-brasileiros e defender a atuação relevante do reinol João Fernandes Vieira, que juntamente com o mazombo André Vidal de Negreiros, o índio Antônio Filipe Camarão,

8 A afamada família editorial Craesbeeck, de origem flamenga, iniciou suas atividades em Lisboa em 1592,

adquirindo posteriormente o status de impressor régio por Filipe II (MEGIANI, 2004, p. 224). Segundo Ruben Borba de Moraes, Paulo Craesbeeck teria sido possivelmente o melhor impressor de sua época (MORAES, 1958, p. 124).

9 Para Roger Chatier, foi com o surgimento do Índice de Livros Proibidos, esse aparato institucional

pertencente à Inquisição, que a função do autor foi efetivamente constituída, em finais do século XVI, “como una arma esencial en la lucha de la Iglesia católica contra la herejía y la heterodoxia” (CHARTIER, 2000, p. 101). Os índices inquisitoriais "son, pues, el marco de la censura, su punto de referencia más general y sistemático. Por tanto, su análisis como fuente para el estudio de la censura inquisitorial resulta esencial e imprescindible" (TOMAS, 1991, p. 49).

10 A terminologia Lucideno provavelmente derive de Luz (Lux) o que intensifica o caráter alegórico da escrita

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e o negro Henrique Dias, figura de forma destacada como um dos heróis da Restauração Pernambucana (1645-1654) (MELLO, 1997, p. 195).

Para além do livro de Manoel Calado, Vieira encomendou, posteriormente, uma outra obra com o fito de engrandecer suas ações. Este outro panegírico, Castrioto Lusitano, foi escrito em 1676 e publicado em 1679, pelo também religioso português, Frei Raphael de Jesus. O Castrioto é uma obra muito mais grandiosa no que diz respeito à louvação da figura de João Fernandes Vieira, talvez porque, quando escrita, pode ter sido apreciada e editada de forma mais detalhada pelo próprio laureado. Segundo Evaldo Cabral de Mello, Castrioto beneficiou-se de larga difusão em Pernambuco, provavelmente por obra do próprio Vieira (MELLO, 1997, p. 75). Essa fama, para José Antônio Gonsalves de Mello, era bem imerecida. A maior parte do texto de Frei Raphael de Jesus, que nunca esteve no Brasil, havia sido copiada de História da guerra de Pernambuco11, de Diogo Lopes Santiago, que, por sua vez, já os havia recolhido de O Valeroso Lucideno, “sendo do autor apenas a redação e os conceitos literários” (MELLO NETO, 1954, p. 22).

O encomendador de O Valeroso Lucideno, João Fernandes Vieira, provavelmente, era proveniente de uma casa humilde. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, circulavam rumores que Vieira seria filho natural do português Francisco de Ornelas com mulher "de condição humilde e talvez de cor", chamada pejorativamente de "benfeitinha" (MELLO NETO, 2000, p. 19) Não se sabe especificamente onde Vieira nasceu, mas Manoel Calado afirma que ele foi criado em Funchal, Ilha da Madeira, de pai nobre e ilustre. O frade português, que gostava de revestir sua narrativa histórica com inúmeras poesias, de modo a deleitar o seu discreto leitor, descreve a chegada de João Fernandes Vieira à América portuguesa nesta décima:

A Pernambuco chega humilde, e pobre,

(Porque quem foge aos pais tem mil desgraças) Porém como seu sangue é sangue nobre, Para passar a vida busca traças;

Considera que o ouro, a prata, o cobre, É o que mais se estima pelas praças, E assim para buscar a honesta vida, Serve a um mercador por comida.

Sai-se do Recife continente, Por não vir nele a dar se magano, E não ser visto ali da muita gente

11Segundo Evaldo Cabral de Mello, o livro de Diogo Lopes de Santiago só foi publicado em 1875, “mas não

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Que ia, e vinha da ilha cada um ano; O coração cercado de ânsias sente, Um engano o persegue, e outro engano, Em resolução parte do Recife,

Que não diz bem ser nobre, e ser patife.

(CALADO, 1648, Livro Terceiro, Capítulo I, p. 158-159)

Diferentemente de outros panegiristas, cujo trabalho seria meramente exagerar e engrandecer, Manoel Calado fala abertamente da origem pobre de João Fernandes Vieira. Em uma determinada passagem do livro, ao falar da educação laboriosa que o Duque de Bragança deu aos seus três filhos, o religioso português afirma, bem ao modo retórico da tópica de conselho ao príncipe12, que também pensava ser necessário, para uma boa educação, o aprendizado nas artes mecânicas, tudo isto para “sair ao encontro às adversidades, que as mudanças do tempo costumam trazer consigo” (CALADO, 1648, Livro Segundo, Capítulo I, p. 99). Essa não é uma afirmação muito usual para um erudito seiscentista. Teria tido esse breve comentário algo a ver com as origens e, o posterior, trabalho mercante de João Fernandes Vieira?

Importa dizer que o João Fernandes Vieira que se percebe nas páginas do Castrioto Lusitano era bem diferente do apresentado em O Valeroso Lucideno. Entre a publicação das duas obras passaram-se 31 anos. Quando da publicação da obra de Raphael de Jesus, já no fim do século XVII, os tempos eram outros, não havia mais holandeses no Brasil, João Fernandes Vieira já era um homem maduro, de carreira e prestígio consolidados, que já havia recebido inúmeras mercês pelos seus serviços prestados na guerra da Restauração, que tinha governado a Paraíba (de 1655 a 1658) e também Angola (entre 1658 e 1661), e que havia sabido representar bem, junto à monarquia lusitana, a divulgação de seus feitos.

Coube a Manoel Calado contar sobre o início dessa trajetória ascendente de um João Fernandes Vieira que ainda não era aquele que ficou nos anais da história tradicional. Quando o religioso português escreveu o seu livro, entre 1645 e 1646, Vieira ainda era um homem que estava apostando no bom sucesso das armas contra os holandeses. Tudo ainda era muito

12A literatura de “conselho de príncipe” ou “espelhos de príncipe” é um estilo de gênero discursivo muito em

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incerto e duvidoso e aquela poderia ter sido uma guerra perdida. O Valeroso Lucideno, dentro daquele contexto, foi uma peça importante a ser lançada.

Ocorre que em 1676, quando foi escrito o Castrioto Lusitano, o livro de Manoel Calado já não devia mais interessar ao madeirense. A obra que deveria ficar para a história seria o Castrioto Lusitano, dedicada ao próprio João Fernandes Vieira, diferentemente de O Valeroso Lucideno, que é dedicado ao então Duque de Bragança, D. Teodósio. A escolha de João Fernandes Vieira por Raphael de Jesus parece ter sido meticulosa. Jesus, religioso da Ordem de São Bento, tinha grande reputação no Reino. O beneditino chegou a ser nomeado cronista-mor em 1681 e teve relevante participação, como autor, na célebre obra Monarquia Lusitana13.

A participação de Vieira na feitura da obra de Raphael de Jesus provavelmente deve ter sido muito mais direta, como se – agora um ancião – pretendesse monitorar mais de perto a narrativa dos seus sucessos para os pósteros. O maior cuidado na elaboração de sua história pode ser observado desde o frontispício de Castrioto Lusitano, com o imponente busto de Vieira adornado ao centro, sendo acompanhado por imagens femininas representando a Fidelidade, à esquerda, a Liberalidade, à direita, e a Fortuna, o coroando no topo. Tudo muito diferente da singeleza da portada das edições de 1648 e 1668 de O Valeroso Lucideno14.

A origem de João Fernandes Vieira parece ser silenciada na narrativa de Raphael de Jesus propositalmente. Não se sabe como o madeirense chegou ou o que teria feito quando aportou em Pernambuco. Importava apenas o Vieira que surge a partir da guerra da Restauração. Segundo o religioso da Ordem de São Bento, mesmo tendo nascido na ilha da Madeira, João Fernandes Vieira estimava Pernambuco como se fosse a sua própria terra natal. A guerra da resistência, para o cronista beneditino, havia sido apenas um alento para os inimigos. Segundo Jesus, João Fernandes Vieira havia convivido com os inimigos graças a uma sagacidade prudente. Vieira "se introduziu com os Holandeses de sorte que se adiantou a todos na estimação, na confiança e na opulência, havendo-se com astúcia tão engenhosa, que era senhor das mais recatadas notícias" (JESUS, 1844, Livro VI, Capítulo I, p. 178-179).

A verdade é que o madeirense era uma figura controvertida. Entre 1630 e 1635, fase da resistência aos holandeses, Vieira participou aguerridamente ao lado das tropas

13 A Monarquia Lusitana (1597-1727) a cuja organização, segundo Fidelino de Sousa Figueiredo, presidiu o

desejo de demonstrar "a persistência da gente portuguesa através dos tempos, desde a fundação do Mundo, sempre triunfante das transformações da terra e sempre obreira de grandes feitos", teve como iniciador o Frei Bernardo de Brito (1569-1617), e seus principais continuadores Frei Antonio Brandão (1584-1637), Frei Francisco Brandão (1601-1680), Frei Raphel de Jesus (1614-1698) e Frei Manuel dos Santos (1672-1740). (FIGUEIREDO, 1966, p. 200).

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brasileiras. Depois da rendição, Vieira decidiu permanecer no território conquistado, quando acabou aproximando-se de Jacob Stachouwer15, conselheiro político holandês. A partir daí, tem início a sua ascensão, quando começou a acumular grande fortuna em negócios com os holandeses:

Vários depoimentos do século XVII indicam que serviu como assalariado e depois trabalhou como auxiliar de um marchante. (...) ele próprio escreveu (no testamento) que ganhou a vida “com as mãos” num tempo em que exercitar ofícios mecânicos representava inferioridade. (MELLO NETO, 2000, p. 30).

Percebemos em O Valeroso Lucideno que preocupava, ainda, Manoel Calado, a necessidade urgente de obtenção de ajuda material da Coroa aos insurretos de Pernambuco, naquele momento particularmente importante da história europeia e do Brasil colonial, denominado de União Ibérica. É preciso compreender que entre 1580 e 1640, Espanha e Portugal dividiram o mesmo cetro, consolidando uma longa relação entre as duas monarquias. Os acontecimentos que levaram à submissão de Portugal à Espanha tiveram início com o desaparecimento precoce do jovem D. Sebastião, na batalha de Alcácer Quibir (1578), o que provocou uma complicada questão sucessória, pois o rei não havia deixado herdeiros. A Coroa ficou a cargo do tio-avô do seu D. Sebastião, o Cardeal D. Henrique, que morre em 1580, sem deixar sucessor. Filipe II, da Espanha, no mesmo ano, consegue integrar habilmente Portugal à sua política imperial (STELLA, 2000, p. 58-59). Desse modo, a Coroa lusitana herdou os inimigos da Espanha. Antigo aliado dos holandeses, Portugal teve então

15 Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, Jacob Stachhouwer chegou ao Recife em 8 de maio de 1634,

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suas colônias ameaçadas durante esse período com a ocupação de Pernambuco, e de boa parte do Nordeste açucareiro, pelos holandeses, entre 1630 e 1654.

Tornando à delimitação do nosso estudo, como disse Edward Carr (1982), o historiador é necessariamente um selecionador. Sempre haveremos de fazer escolhas – sobre o tipo de interpretação, o viés metodológico, o uso da linguagem. Perceber os meandros da cultura histórica de um determinado período, pelo menos aquela determinante, já que podem existir várias disputando espaços e estabelecendo interlocuções entre si, através de uma narrativa contemporânea, é um dos nortes do nosso trabalho. Para tanto, pretendemos compreender como Manoel Calado interpretou o seu mundo e como conferiu-lhe significado. Interessa ainda perceber de que maneira e com quais propósitos o cronista seiscentista, autor de O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade, incorporou a cultura histórica do seu tempo e quais os ideais que ele defendeu e divulgou em seus escritos. Calado, português de nascimento, viveu parte de sua vida na América portuguesa onde atuou como religioso, escritor e também guerrilheiro durante o período de dominação holandesa, como veremos em momento oportuno.

Importa, portanto, delimitar o que seria esse conceito interpretativo – cultura histórica – no âmbito que nos propomos nesse trabalho, pois, algumas das justificativas aqui elencadas serão motivadas por ele. Cultura histórica notadamente deriva de cultura16 (esse verbete amplo e controverso, variável conforme a temporalidade e o pensamento que lhe é coevo). A forma como o conceito cultura se re-significou no tempo pode possibilitar a indicação de inúmeras transformações políticas e sociais acerca da sociedade de Antigo Regime, temática particularmente interessante a esse trabalho. O fator cultural, se é que podemos chamar desta

16 A questão da cultura quase sempre esteve ligada ao elitismo e ao conservadorismo. Etilomogicamente,

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forma, passou a ser considerado fator de mudança social, um agente decisivo no processo de modificações no curso da própria história.

Imaginávamos, de início, cultura histórica como uma categoria ampla, mas algo estática, que poderíamos ter sempre à mão para aplicar da maneira que melhor coubesse a determinado momento. Afinal, já havíamos aprendido com Jacques Le Goff (1996)17que cultura histórica seria a relação que uma dada sociedade mantinha com seu passado. Mas, quanto mais nos aprofundávamos nas leituras, mais percebíamos que tal terminologia não era um conceito que se bastava em si. Afinal, para que houvesse verdadeiramente cultura seria preciso que as práticas sociais tivessem significado para quem as realizasse (CERTEAU, 1995, p. 141). O que seria importante para determinado grupo, poderia não ser para outro, os ritmos variavam, não acompanhavam uns aos outros, e a cada problema novo seria possível desvestir sistemas de referência e significados heterogêneos, distintos e plurais.

Segundo Elio Chaves Flores, cultura histórica seria a intersecção entre a História ciência, aquela habilitada no mundo dos profissionais, com a História sem historiadores, feita e difundida por intelectuais, documentaristas, jornalistas, escritores, enfim, seus diversos agentes sociais. Em uma cultura histórica, portanto, profissionais ou leigos tomariam para si a descrição e divulgação dos feitos do passado, dando-lhe um sentido histórico. Flores atenta, contudo, que nem tudo que é pertinente ao passado pode ser considerado cultura histórica. Para que esta surja, a ação é o verbo primeiro, pois somente dos feitos se pode criar uma narrativa, uma cultura histórica (FLORES, 2007, p. 95-101). Entendemos, portanto, cultura histórica como um aplicativo, um instrumental, para adentrarmos em determinada sociedade e temporalidade, mas que, ao mesmo tempo, precisa ser investigado nos seus mais diversos significados – cultura histórica, portanto, também é objeto próprio da história. E, por mais que não tenhamos acesso direto ao universo da recepção de determinada cultura, este deve ser sempre levado em conta, sobretudo, no sentido do entendimento acerca da constituição de determinadas identidades ou mesmo mistificações políticas.

Manoel Calado foi uma fonte privilegiada dos acontecimentos que sucederam, na primeira metade do século XVII, na Capitania de Pernambuco. O Valeroso Lucideno, obra escrita na colônia, reproduziu a cultura histórica do seu tempo, da qual o próprio autor era elemento constituinte. Toda história se configura a partir de sistemas e códigos sociais em que ela está inserida. Desta forma, O Valeroso Lucideno é uma obra histórica, dentro do que se

17 Jacques Le Goff, em História e Memória, utiliza a expressão cultura histórica cunhada por Bernard Guenée,

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entendia por história no século XVII. Dentre as leis básicas da historiografia do período estava o sentido de verdade, que residiria na forma de contar verdadeiramente um fato. Nessa fase inicial, segundo Maria Lêda Oliveira, “era a forma discursiva que ajudaria a garantir ou não o tom da veracidade do contado nas histórias” (OLIVEIRA, 2008, p. 79).

O valor de uma escritura é correlato de práticas específicas em uma dada temporalidade. Manoel Calado pertencia a um mundo seiscentista em que as histórias eram “instrumentos recorrentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas ou políticas”, como afirma Reinhart Koselleck (KOSELLECK, 2006, p. 43). Um texto datado pode vir a representar descontinuamente as possibilidades discursivas de uma época. Jacques Le Goff nos aponta a necessidade de entender o documento como algo produzido e moldado, conscientemente ou não, a partir de determinadas condições de produção, assim ele explica a partir de sua famosa analogia documento/monumento:

(...) Um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem, é preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documento/monumentos. (LE GOFF, 1984, p. 103)

Com relação às motivações de uma pesquisa, Michel de Certeau explica que é sempre em função do lugar social do historiador que se configura o objeto de seu estudo e que, por sua vez, se instauram os métodos, que se delineia a topografia de interesses, que os documentos e as questões que lhe são propostas se organizam (CERTEAU, 2008, p. 66). Nosso interesse pela história colonial esteve presente desde a graduação, determinado, sobretudo, pela participação no projeto de pesquisa “A Conquista do Rio Ruim: A Companhia

das Índias Ocidentais na Capitania da Paraíba (1634-1654)” 18. Essa experiência permitiu o enriquecimento do nosso embasamento teórico e possibilitou o acesso aos clássicos da historiografia colonial, tendo sido, inclusive, durante as leituras dirigidas que conhecemos aquele que viria a ser nosso futuro tema de pesquisa.

Por mais que se diga de outro modo, sempre estudamos história a partir de indagações do agora. Apesar do olhar voltado para o século XVII, foram indagações do presente que incitaram a realização dessa pesquisa. As mistificações do período que passou à história com o título generalizante de Brasil holandês são inúmeras, tanto no mundo da historiografia,

18 O projeto, vinculado a Universidade Federal da Paraíba, foi desenvolvido de 2003 a 2009, sendo

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quanto na esfera da vida pública. Historiograficamente, no que diz respeito ao chamado período holandês, não há ausência ou enfraquecimento de memória, muito pelo contrário. As fontes são inúmeras, não apenas no universo acadêmico: exposições e peças em cartaz, histórias em quadrinhos, matérias jornalísticas e romances históricos, acerca do período, são frequentemente publicados. Um bom exemplo desse estratagema de popularizar e rememorar tão nobres e heróicos fatos da história brasileira é a encenação da Batalha dos Guararapes na cidade de Jaboatão dos Guararapes. Ao adentrar no município pernambucano é possível perceber inúmeras placas de sinalização que mencionam ter sido aquele o local original de nascimento do exército e da própria nação brasileira, quando diferentes grupos étnicos se uniram na luta contra o invasor. Batalha dos Guararapes: assim nasceu a nossa pátria é o título da peça de teatro que afirma em sua sinopse o intuito de "representar a luta histórica que deu origem ao exército brasileiro". Essa teatralização, que ocorre anualmente, já faz parte do calendário oficial do Estado de Pernambuco. O Monte dos Guararapes é o cenário onde são representadas, ao ar livre, as batalhas travadas entre portugueses e holandeses em solo jaboatanense19.

Outra aproximação a essa temática seria Calabar: o elogio da traição, título da peça de teatro musicada, escrita em 1973 por Chico Buarque e Ruy Guerra. A peça, notadamente, trata de Domingos Fernandes Calabar, que, em 1635, foi julgado e condenado à forca por traição à coroa portuguesa. Em linhas gerais, a peça, escrita no período da Ditadura Militar, adota uma provocação sobre quem realmente poderia ser considerado traidor, relativizando a posição de Calabar, quando este optou por tomar partido ao lado dos holandeses ao invés de lutar ao lado dos seus confrades lusos. Buarque e Guerra tratam da dificuldade de se definir o que seria traição em uma época tão subjetiva. Quem deveria ser considerado traidor? Aquele que trai a Portugal, o que trai a Coroa filipina ou aquele que trai a Holanda? A figura de Calabar, propriamente dita, não aparece na peça. Os narradores da história são personagens atuantes do referido período, a exemplo de Matias de Albuquerque, Henrique Dias, Filipe Camarão, Maurício de Nassau, e o próprio Manoel Calado, confessor de Calabar, como, posteriormente, veremos mais a frente, guiados pelo próprio O Valeroso Lucideno. Os autores da peça utilizaram como uma das referências principais o livro de Manoel Calado e é possível perceber em inúmeras passagens essa "inspiração", pois a narrativa do frade seiscentista foi

19 As informações sobre a peça foram retiradas do sítio: http://www.batalhadosguararapes.com.br/ (acessado

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utilizada em inúmeros diálogos e ainda na construção de diversos personagens, a exemplo de Albuquerque e Nassau20.

É válido dizer que a chamada historiografia “oficial”21 tendeu a descrever as guerras holandesas, travadas no Nordeste açucareiro, como o momento original de uma suposta consciência nacional. Queremos deixar claro que, por recurso metodológico, ou por ausência de uma melhor definição, utilizaremos neste trabalho palavras como “nacional, “Brasil”, “brasileiros”, “luso-brasileiros”, mas reconhecemos e atentamos para as suas fragilidades enquanto conceitos identitários no estudo do processo de colonização e de seu desenvolvimento posterior. Não havia àquela altura uma nação22, muito menos brasileiros ou mesmo luso-brasileiros. Nações e nacionalismo são construções políticas modernas, que utilizam componentes culturais como uma estratégia operacional de formular elementos integradores a um determinado território. Sobre mitologias políticas, nos fala Hosbsbawm:

Mito e invenção são essenciais à política de identidade pela qual grupos de pessoas, ao se definirem hoje por etnia, religião ou fronteiras nacionais passadas ou presentes, tendem a encontrar alguma certeza em um mundo incerto e instável. (HOBSBAWM, 2005, p. 19)

20 Percebemos na passagem a seguir, o recorte de trechos, personagens e episódios de O Valeroso Lucideno:

“nesse tempo estava metido com os holandeses um mestiço mui atrevido e perigoso chamado Calabar. Conhecedor de caminhos singulares nesses matos, mangues e várzeas, levou o inimigo por esta terra adentro, rompendo o cerco lusitano, para desgraça de humilhação do comandante Mathias de Albuquerque. Esse Calabar carregava consigo uma mameluca, chamada bárbara, e andava com ela amancebado” (BUARQUE; GUERRA, 1973, p.11). Tais informações foram compiladas do Livro Primeiro, Capítulo II, p. 14, da edição de 1648, da obra de Calado.

21 Por historiografia “oficial” ou “tradicional compreendemos aquela submetida às concepções políticas e

ideológicas vinculadas ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), esta instituição cuja tarefa primordial seria forjar um passado de glórias através de personagens e episódios (SCHWARCZ, 1993, p.99). A definição de um suposto projeto nacional e a defesa das singularidades de cada província/Estado dentro desse "espírito nacional" parece ser o ponto de ligação de boa parte do que é produzido em termos de historiografia pelos Institutos, nacional e estaduais. Mais que uma história “oficial” ou “tradicional”, esta seria uma história “nacional" ou história da “nacionalidade", muito embora o uso desse singular sempre seja controverso e redutor. Neste sentido, o caráter "oficial" se daria mais precisamente no estabelecimento de currículos oficiais, bem como a publicação de compêndios sob a chancela do Estado, de modo a circunscrever as aspirações de exaltação dos valores dessa “nacionalidade”. Importa dizer que é a pesquisa e o ensino de história que começam a questionar esse caráter da nacionalidade (e o que pudesse se apresentar como uma história "oficial") nas últimas décadas do século XX, com a ampliação das Universidades, o surgimento dos cursos de pós-graduação e a renovação da pesquisa.

22 José Antonio Maravall, em um estudo sobre o Estado espanhol no século XVII explica: “Existen unas

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Para Julio Aróstegui (2005), sociedade e história são duas realidades inseparáveis, ainda que de forma alguma idênticas. Dentro dessa perspectiva, a escolha inicial do objeto deste trabalho (apesar de não ter diretamente ligação com o seu objetivo) surgiu de uma curiosidade: entender esse período fascinante tido pela historiografia dita tradicional como precursor de uma consciência nacional brasileira. Diversos historiadores pernambucanos23 invocavam, no Império, uma herança precoce pela causa da liberdade da nação, que teria nascido naquela região. Para eles, a guerra da Restauração fora a escola que embalara o patriotismo, daí a entenderem a singularidade da história pernambucana não ter sido acompanhada pelo resto do Brasil. Pernambuco teria andado sempre adiante das outras províncias e fora a pioneira na defesa da liberdade. Para Evaldo Cabral de Mello esse é um típico anacronismo estéril:

(...) a restauração pernambucana foi antes uma reação da consciência nacional portuguesa dos colonos do Nordeste, ativada pela presença estrangeira herética e pela recente Independência readquirida pelo Reino perante Castela. (MELLO, 2001, p. 27)

O cerne da constituição de nossa nacionalidade foi algo moldado dentro de uma emergência histórica, se é que podemos chamar desta forma. A própria criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, se insere no processo de consolidação de uma história nacional, supostamente una e sob o enfoque do estado imperial, que teria ocorrido simultaneamente a um processo de afirmação do papel do Estado como criador e garantidor de uma nacionalidade brasileira (GOMES, 1996, p. 15).

O período holandês foi muito bem utilizado por esses requerimentos de criação de uma história nacional mesmo que isso implicasse numa manipulação da cultura histórica e certa “deformação” da realidade. As guerras holandesas, por exemplo, sob a ótica de Francisco Adolfo Varnhagen, historiador, e um dos mais influentes membros do IHGB, serviram para estreitar os laços da futura união brasileira em prol da Coroa portuguesa. Sobre isso nos explica José Carlos Reis:

23 Os historiadores pernambucanos estavam atrelados ao Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco

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O Brasil que ele (Varnhagen) vê integrar-se nesse momento não é um Brasil popular, mestiço, índio e negro; ele celebra o coroamento da dominação portuguesa com o consentimento e a colaboração da população nativa. A vitória contra os holandeses confirmou e concluiu a vitória portuguesa contra indígenas e negros. (REIS, 2005, p. 42)

Essa espécie de tomada de consciência – o entendimento dos colonos finalmente como “paraibanos”, “pernambucanos”, “paulistas”, “brasileiros” – foi uma percepção que demorou muito tempo. O Brasil, enquanto construção nacional, não existia no século XVII. Segundo a concepção nativista, ele estava em latência, foi-se gestando, sobretudo no istmo da historiografia tradicional. Evaldo Cabral de Mello, em sua obra, Um imenso Portugal, afirma que “o nacionalismo brasileiro não precedeu, (mas) sucedeu, a criação do Estado nacional” (MELLO, 2002, p. 15). Como veremos, a partir de O Valeroso Lucideno, houve no Brasil, durante muito tempo, um sentimento local que de maneira alguma poderia ser confundido com um nacionalismo nascente. Não se falava em nação, mas em pátria no sentido localista.

A historiografia nativista24 foi um recurso muito eficiente de criação e, posterior ressignificação de uma memória. Recorremos novamente a Evaldo Cabral de Mello em artigo denominado Fabricando a nação:

Os nativismos brasileiros comportaram, é certo, um teor protonacionalista, do mesmo modo pelo qual na Europa o nacionalismo foi precedido por formas frustras de sentimento nacional desde o fim da Idade Média. O que importa assinalar, porém, é que tais nativismos podiam também (...) ser manipulados em sentido antagônico ao nacionalismo, que se viu assim na necessidade de digeri-los para poder eliminá-los. (MELLO, 2002, p. 23)

Um dos mitos mais populares acerca do Brasil holandês diz respeito ao governo do Conde Maurício de Nassau e, à elaboração deste imaginário25, como veremos mais a frente, O Valeroso Lucideno se liga especialmente. Muito do que permaneceu da chamada era nassoviana, o período de ouro do Brasil holandês (concernente à fase que Maurício de Nassau governou a capitania) deve-se à obra de Manoel Calado. O religioso fora o principal redator

24 Compreendemos essa terminologia, como propõe Forastieri da Silva, no sentido de que o nativismo

representa uma instrumentação política, utilizada para coordenar e consolidar, nas grandes massas, os elementos que precisamente constituem o sentimento nacional, de forma a tornar a história uma biografia da nação, cujo passado colonial devesse estar sempre presente (SILVA, 1997, p. 13).

25 Entendemos o imaginário da forma como propõe José D'Assunção Barros, qual seja, um sistema ou

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(do lado luso-brasileiro) dos sucessos do Conde, chamado de Santo Antônio pelos portugueses.

Toda a escrita de Manoel Calado é assentada na conjectura do pecado, do castigo e da redenção. Sua narrativa é barroca, mística e obcecada, sobretudo, pelo pecado. O religioso referenda os acontecimentos narrados em sua crônica a partir de uma perspectiva providencialista26 da história. Como os seus escritos trataram da invasão holandesa, e esta, segundo o seu raciocínio, foi motivada pelos pecados dos moradores – e este é um conceito central da sua obra – decorrentes dos infortúnios que lá estavam presentes, achamos pertinente a utilização de A dialética do castigo como título deste trabalho. A dialética27 foi um poderoso instrumento na compreensão da realidade histórica e seus elementos se encontram presentes no pensamento de diversos filósofos do século XVII. A dialética de Manoel Calado, que é a da teologia cristã, originou-se em Aristóteles, que ensinava que o discurso deveria possuir majestade e comover ao mesmo tempo (ARISTÓTELES, 2005, p. 190)28.

Tornando a tratar especificamente do nosso objeto, acreditamos ser dever primordial do historiador, contribuir para a demolição e o enfrentamento de mitos e imagens do passado, que pertencem não só ao mundo da disciplina especializada, mas também à esfera pública, ou seja, à cultura política29 de uma dada sociedade. Para além da necessidade, já tardia, da historiografia atentar para uma obra do porte de O Valeroso Lucideno, imprescindível e opulenta de informações para aqueles estudiosos do período holandês, julgamos importante

26 “Existe una acción de Dios sobre los hombres y sobre las sociedades a la que el cristiano llama divina

Providencia” (MARAVALL, 1997, p. 363). Foi Santo Agostinho quem primeiro apresentou um enredo de história humana guiada pela Providência divina. Em A Cidade de Deus, afirma Agostinho que a Providência, muitas vezes, se valia da guerra para "corrigir e pulverizar a corrupção humana" (AGOSTINHO, 2006, p. 28). Sobre essa temática, falaremos de forma mais alongada no segundo capítulo.

27 As origens da dialética, segundo Leandro Konder, remontam à Grécia antiga. Da arte do diálogo, a dialética

passou a ser “a arte de, no diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão" (KONDER, 1981, p. 7). Para Aristóteles, a dialética parte de lógica que tem por objeto os argumentos prováveis, contrasta com a demonstração, constituindo, por esse motivo, uma “aparência de filosofia” (MORA, 2001, p. 719). Segundo Kalina Silva, o sentido dessa terminologia mudou com o passar do tempo. Depois de séculos em desuso, esta foi recuperada pela filosofia alemã e pensadores como Kant, Fichte e Hegel, deram ao termo novo significado (SILVA, 2010, p. 98).

28 As culturas letradas do século XVII tinham como matriz a dialética aristotélica-escolástica, disto trataremos,

também, no segundo capítulo.

29 Utilizaremos a terminologia cultura política dentro da perspectiva conceitual que propõe o grupo do

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destacar a persistência, ainda nos dias de hoje, de um discurso nativista contemporâneo, personificado em um “bairrismo” ainda comum em algumas historiografias locais. Tal enfoque ainda carece de análise apurada e sólida apreciação crítica, e este não é o nosso propósito. Todavia, o fenômeno é facilmente percebido em muitas obras nativistas (quer do século XVII, quer do século XXI) que se basearam, em menor ou maior escala, em O Valeroso Lucideno, este sim objeto de nossa investigação, obra que de certa forma ajudou a firmar essa vertente extemporânea.

Ainda tratando das motivações desse trabalho, também acreditamos ser interessante destacar ecos, na nossa sociedade contemporânea, do discurso providencialista (supostamente ingênuo e permeado de interpretações místicas) adotado por Calado. “Da origem da destruição e ruína de Pernambuco”, título do Capítulo I do Livro Primeiro de O Valeroso Lucideno, é extremamente atual face ao discurso de inúmeras religiões, e mesmo credos laicos, em arranjar explicações plausíveis para mazelas individuais ou coletivas. Interpretações essas, ainda ancoradas no discernimento dos pecados e ilicitudes do homem, em torno, ora do castigo, ora da culpa.

Do ponto de vista historiográfico, poucos foram os autores que trataram especificamente de O Valeroso Lucideno. José Antônio Gonsalves de Mello Neto publicou, em 1954, pela então Universidade do Recife, um livro dedicado ao frade português intitulado: Frei Manuel Calado do Salvador: Religioso da Ordem de São Paulo, Pregador Apostólico por sua Santidade, Cronista da Restauração. Este é o único e fundamental estudo sobre a obra de Manoel Calado. José Antônio Gonsalves de Mello, tido por muitos como o mais importante historiador dedicado ao estudo do período holandês, com trabalhos sobre a presença batava em Pernambuco e estudos biográficos sobre os principais nomes da guerra da Restauração pernambucana, ressalta a importância de OValeroso Lucideno, atentando para o que havia de real no depoimento de um contemporâneo, fato que dava à crônica um valor único, comparada às outras sobre o período publicadas em seguida. Capistrano de Abreu também trata de Manoel Calado em um breve estudo denominado Memórias de um Frade publicado no Jornal do Commercio30. Capistrano, contudo, não faz grandes elucubrações, opta apenas por resenhar a obra, atentando para a sua importância para a nossa historiografia.

Uma plêiade de historiadores, e alguns literatos, chamam atenção para a importância de O Valeroso Lucideno: os tópicos nele apontados, os seus informes, e até mesmo para as

30 A publicação no Jornal do Commercio deu-se nos seguintes dias: entre 1º e 16 de junho e 1º de julho de

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suas limitações. Francisco Adolfo Varnhagen, historiador do Império, afirma em sua História Geral do Brasil (1854), que o livro estava bem abaixo de outras obras contemporâneas ao período, a exemplo daqueles escritos por Duarte de Albuquerque e por Barléus, tanto em relação à exata aquilatação dos fatos relatados, quanto à ordem e ao método utilizados na narrativa (VARNHAGEN, 1981, p. 100). Já em História das lutas com os holandeses no Brasil (1874), aponta Varnhagen que faltava à obra do religioso português método e dignidade histórica, visto que Calado dedicava páginas inteiras a muitos contos sem importância e fazia uso de uma linguagem às vezes vulgar demais, utilizando um tom informal no decorrer de sua narrativa. A crítica de Varnhagen ao Valeroso Lucideno dá-se, sobretudo, em relação a um certo descuido do frade com relação à história. Na ótica do Visconde de Porto Seguro, faltaria em Manoel Calado a preocupação com as fontes, o compromisso com a verdade, uma melhor seleção dos fatos dignos de figurar na história e uma urgente revisão de linguagem. Todos esses aspectos desvirtuaram, para Varnhagen, a índole da história, desaguando na escrita de um romance histórico em vez da história formal (VARNHAGEN, 2002, p. 18-19).

Varnhagen, uma das figuras responsáveis por lançar as bases do conhecimento histórico no Brasil, pretendeu analisar uma obra seiscentista sob a ótica de um historiador moderno, o qual, em seu método, dava extrema importância à utilização de fontes variadas e à exposição de pontos de vista conflitantes para, ao final, chegar até à verdade. Havia, ainda, de forma muito presente em Varnhagen, a ideia de “história como mestra da vida” – a história com uma finalidade pedagógica, que servisse de exemplo e ensinasse a ser sábio e prudente. Segundo Koselleck, foi Cícero, autor que figura em inúmeras referências dentro da obra de Manoel Calado, quem cunhou a expressão historia magistra vitae. O pensador entendia a história como uma coleção de exemplos que deveriam servir de modelo para instrução (KOSELLECK, 2006, p. 43).

Compreendemos, contudo, que não se deve esperar de Calado preceitos de uma metodologia historiográfica moderna como, isenção, imparcialidade ou apurada depuração dos fatos. O frade português não estava preocupado propriamente com a semântica do tempo, muito menos simplesmente amolado a aconselhar a partir do passado. Sua preocupação era com a empresa de liberdade que se começava a construir, nos moldes da fé católica, objetivo que Calado deixa explicitado já no início de sua obra:

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amigo, e fiel companheiro, me achei presente, com a espada em uma mão, e com a língua ocupada na propagação, e defensão da Fé Católica. (CALADO, 1648, Prólogo ao Leitor)

É interessante destacarmos brevemente, pois, mais à frente, abordaremos mais detidamente, a acepção que tem Manoel Calado acerca da história. Ao incorporar a cultura histórica do seu tempo, na tentativa exitosa de narrar o que se sucedeu no Nordeste açucareiro, Calado procurou, em cores fortes, destacar a predominância do braço luso-brasileiro na conquista do território. Com esse intuito, havia, por parte do religioso, uma constante preocupação em legitimar os seus escritos sob a ótica da verdade histórica. A narrativa histórica de Manoel Calado apesar de ter um cariz teológico, possuía também uma unidade política, representava um claro requerimento ao Rei, como percebemos nesse trecho:

Tudo isto que aqui tenho escrito, e o mais que se escrever neste capítulo, em o particular do Padre Frei Manuel, além de ser público, e notório, está qualificado por instrumentos públicos, e sumários de testemunhas, e por certidões autênticas das Cabeças que governavam o nosso exército, o que tudo deve estar já apresentado a S. Majestade, ou a seus Ministros; e quando o não esteja, em breve se apresentará com o favor de Deus. (CALADO, 1648, Livro Primeiro, Capítulo III, p. 30)

Em duas outras passagens iniciais de sua obra, Manoel Calado aponta uma importante diferenciação que há entre o narrador participante e aquele que apenas ouviu falar. No Prólogo ao Leitor, o religioso afirma que "vai muita diferença entre o que se escreve como testemunha de vista, e o de ouvida” (CALADO, 1648, Prólogo ao Leitor). Em outro momento, no poema que compõe a Aclamação, antes de iniciar a narrativa presente no Livro Primeiro, Calado afirma "Sem que encarregue em nada a consciência, / Relatarei aqui verdades puras, / Porque aprendi por larga experiência / A não julgar jamais por conjecturas" (CALADO, 1648, Livro Primeiro, Capítulo I, p. 2). Manoel Calado, testemunha participante da guerra, sublinha a importância e a utilidade da narrativa ocular de um efetivo protagonista, em matéria de verdade histórica. Com essas e outras assertivas, o religioso pretende acrescentar ao seu relato, o foro de documento fiel dos acontecimentos sucedidos durante o período de invasão holandesa.

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Jornal do Commercio do Recife, Capistrano atentou para a importância da obra para a historiografia brasileira, ressaltando os aspectos que julgou serem mais importantes. O historiador cearense, ao final, ainda aproveita para alfinetar Varnhagen,

Pelo testemunho de Frei Manoel vê-se que Varnhagen não compreendeu verdadeiramente como as coisas passaram, e sua narrativa, se não é um solecismo, para empregar o termo de d'Avezac, contém em todo caso mais de caricatura que de história (ABREU, 1975, p. 197)

José Honório Rodrigues (1949), em estudo sobre a historiografia referente ao Brasil holandês, destaca o trabalho de Manoel Calado enfatizando seu alto índice de autenticidade e chamando O Valeroso Lucideno de “o melhor espelho português da vida contemporânea” (RODRIGUES, 1949, p. 12). Em um livro organizado por Rubens Borba de Moraes e William Berrien, José Honório Rodrigues defende ainda Calado, autor da “melhor crônica da época”, dizendo que é certo que ele fora parcial, mas de outro modo não poderia proceder, já que tomou partido e caiu em ação em prol da empresa da liberdade (RODRIGUES, 1949, p. 563).

O historiador inglês Robert Southey, em História do Brasil (1810), refere-se a Manoel Calado como um português às direitas e detalha com louvor suas proezas militares: "homem extraordinário, conjuntamente soldado, pregador, poeta e historiador" (SOUTHEY, v. 2, 1981, p. 59). No entanto, é curioso atentar para a intromissão que faz J. C. Fernandes, anotador da edição brasileira da obra, em duas notas de rodapé com relação a episódios narrados por Southey, copiados de Calado, envolvendo o frade português e João Fernandes Vieira: "Não sabemos como o grave historiador Southey deu crédito a semelhante anedota visivelmente da lavra de Frei Manuel do Salvador". Na página seguinte, diz o anotador: “será bom prevenir o leitor que o acaba de ler é extratado do panegírico de João Fernandes Vieira, escrito por Frei Manuel Calado” (SOUTHEY, 1981, v. 2, p. 44-45). Também o historiador britânico, John Adamson, em Bibliotheca Lusitana (1836) publicado anos depois da obra de Southey, ressalta a dificuldade em ter acesso à obra de Manoel Calado, atentando que este pretendia lançar uma segunda parte da obra, mas que não obteve sucesso, pois morreu em Lisboa em 1654 (ADAMSON, 1836, p. 21).

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O bom frei Manuel fez-me pressentir, graças ao tom de espontaneidade em que está redigido o seu livro, a veracidade de suas afirmações; depois, no que pude confrontar muitas de suas narrativas com documentos holandeses, principalmente as Dagelijksche Notulen31, não tenho dúvida em referir que no Valeroso Lucideno está o mais importante testemunho sob o domínio holandês. (MELLO NETO, 2001, p. 36)

Oliveira Lima, em Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira (1912), afirma que Manoel Calado escreveu sobre a época mais interessante das crônicas, utilizando um “estilo simples, infinitamente agradável, ao lado de tantas produções eivadas de gongorismos”, fato que o diferenciava, de forma positiva, dos demais cronistas (LIMA, 2000, p. 79).

Outro autor a abordar a obra de Manoel Calado foi Mário Neme. Em seu Fórmulas Políticas no Brasil Holandês (1971), faz fortes críticas ao chamado período nassoviano e suas pretensas virtudes democráticas, ideias que, segundo ele, originaram-se em Frei Manoel Calado, “comensal confesso do conde, do homem poderoso do dia” (NEME, 1971, p. 16).

Stuart Schwartz, em livro mais recente, Cada um na sua lei (2009), aponta Manoel Calado como personagem de um episódio escandaloso:

(...) comia e bebia com os holandeses, aconselhava seus fiéis a se adaptar ao domínio holandês, convidava pastores calvinistas à sua casa e se tornou confidente de Maurício de Nassau. Era um sujeito com talento e facilidade para trocar de lado, e seu relato posterior, de um ponto de vista pró-lusitano, ainda é uma preciosidade. (SCHWARTZ, 2009, p. 296)

Diogo Ramada Curto também menciona O Valeroso Lucideno, colocando-o na categoria das estratégias de glorificação individual, bem próxima dos discursos de petições, subscritos pelos pretendentes a mercês régias. Curto acha válido, ainda, que sejam reconstituídos alguns dos argumentos utilizados na obra, no sentido de perceber as estratégias discursivas de reconhecimento de feitos individuais. Atenta também para a “maneira de pensar na época” e a importância da descrição das clivagens entre os grupos envolvidos durante as lutas (CURTO, 2009, p. 273).

31 José Antônio Gonsalves de Mello está a referir-se as "Nótulas diárias do Governo do Brasil", isto é, as atas

(32)

Em Traição, Ronaldo Vainfas encaixa Manoel Calado no rol dos colaboradores (que era diferente da categoria de traidores) e o chama de “terceiro melhor amigo luso-brasileiro de Nassau” (os outros, para Vainfas, seriam João Fernandes Vieira e Gaspar Dias Ferreira32). Assim ele continua, defendendo o frade ao final:

Não causa nenhum espanto, portanto, que tenha ele sofrido muitas denúncias, a começar pelas que lhe fizeram na Bahia, feitas ao bispo d. Pedro da Silva, em 1640, dizendo que era público e notório que Calado andava com os holandeses e que até defendia a superioridade da ‘seita de Calvino em relação à santa fé católica’. Exagero desses acusadores, devo dizer, porque frei Calado era dos que mais zelavam, no plano espiritual, pela sobrevivência do catolicismo sob o domínio holandês, além de convencer muitos cristãos-novos portugueses que haviam apostasiado a regressarem à lei de Cristo. [Encontrei vários casos desse tipo nos papéis do Santo Ofício, onde a atuação de frei Calado foi decisiva na reconversão dos apóstatas, mas que frei Calado andava mesmo com os calvinistas, disso não resta dúvida]. (VAINFAS, 2008, p. 99)

Em outro livro, Jerusalém Colonial, Vainfas denomina Manoel Calado como o maior defensor do catolicismo na região, homem que desde o início revelou dotes de diplomata, afirmando ainda que, com certeza, foi de Calado a ideia de cognominar a insurreição pernambucana de “guerra da liberdade divina”, conferindo à rebelião uma causa maior, uma bandeira ideológica (VAINFAS, 2010, p. 190).

Evaldo Cabral de Mello, em O Brasil holandês, aponta Manoel Calado como um exemplo eminente da utilização da enargeia. Segundo Cabral de Mello, a enargeia advém da retórica clássica e consiste na capacidade de fazer gerar no leitor a revivência de determinado episódio (MELLO, 2010, p. 22-23). Manoel Calado não despreza mesmo nenhum detalhe quando expõe, em seus escritos, a realidade à sua volta. Fosse um banquete no palácio de Nassau, ou a forma pela qual os índios Potiguara seriam mortos – tudo é esmiuçado graças à curiosidade do frade (mesmo os pormenores mais negligenciáveis, como veremos em algumas passagens).

Luís Palacín, em estudo sobre Antônio Vieira, acaba analisando também O Valeroso Lucideno. Segundo o raciocínio do autor, os condicionamentos do contexto social influenciam o pensador e sua visão de mundo. Para ele, tanto padre Antônio Vieira, quanto Manoel Calado, representavam o “barroco português e brasileiro em sua tensão formal entre a herança

32 Gaspar Dias Ferreira, cristão novo e português, aderiu aos holandeses em 1630. Acabou posteriormente

Referências

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