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A forma da metafísica: sobre a história na obra tardia de Heidegger

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Academic year: 2021

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Maria Manoella Beaklini Baffa

A forma da metafísica:

sobre a história na obra tardia de Heidegger

Tese apresentada ao Programa de

Pós-graduação do Departamento de

Filosofia da PUC-Rio como parte dos

requisitos para obtenção do título de

Doutor em Filosofia.

Orientador: Eduardo Jardim de

Moraes

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Maria Manoella Beaklini Baffa

A forma da metafísica: sobre a história na obra tardia de

Heidegger

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Maria Manoella Beaklini Baffa

Graduou-se em comunicação social pela PUC-Rio em 1997. Obteve, em 2001, o título de mestre em filosofia, com uma dissertação intitulada “Heidegger e o sentido da história”. Participou de diversos congressos, colóquios e seminários, abordando temas ligados à fenomenologia e à filosofia da história moderna e contemporânea. Tendo recebido uma bolsa sanduíche da Capes, realizou pesquisas na Universidade de Nice entre 2002 e 2003. Obteve, nesta mesma universidade, um Diplôme d’Etudes

Approfondies em filosofia e história das idéias, sob a orientação da

Profa. Françoise Dastur. É professora dos cursos de especialização em filosofia da PUC-Rio.

Ficha Catalográfica

Baffa, Maria Manoella Beaklini

A forma da metafísica: sobre a história na obra tardia de Heidegger / Maria Manoella Beaklini Baffa ; orientador: Eduardo Jardim de Moraes. – Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 2005.

188 f. ; 30cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia.

Inclui bibliografia

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Agradecimentos

Ao Eduardo Jardim.

Aos professores do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ao CNPq, pela bolsa de doutorado concedida.

À Capes, pela bolsa “sanduíche” concedida entre 2002 e 2003.

Aos amigos Edgar Lyra, Andrea Bieri, Filipe Ceppas, Tito Marques Palmeiro e Pedro Duarte.

A Françoise Dastur e Eliane Escoubas. Ao André Duarte.

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Resumo

Em 1927, Heidegger dedica um dos capítulos finais de Ser e tempo a mostrar o “nexo” entre a sua exposição do problema da historicidade e as pesquisas de Wilhelm Dilthey. O capítulo consiste numa série de citações de trechos da correspondência entre Dilthey e um certo Conde Yorck, em que as cartas citadas, curiosamente, são apenas as deste último. O que Heidegger encontra nessas cartas é a afirmação de que o pensamento histórico tradicional se atém, “com imensa força, a determinações puramente oculares”. O que ele descobre na crítica do Conde Yorck à tradição da historiografia é que o figurável, o imagético, o “esteticamente construído”, literalmente, o espetacular, são o objeto historicamente privilegiado da reflexão – histórica ou filosófica – sobre a história. Cerca de trinta anos mais tarde, é Heidegger quem escreve uma carta a Ernst Jünger, dizendo que em seu livro O

Trabalhador Jünger teria dado à forma um “estatuto sagrado”. No intervalo, o projeto

de fundamentar existencialmente a historiografia foi abandonado e Heidegger passa a interrogar o que se decide na história do Ocidente sob o nome de “metafísica”. Nessa nova posição, vemos se elaborar a perspectiva de que uma cumplicidade bi-milenar entre a forma, a idéa e o ser mobiliza o pensar e o fazer ocidentais. Heidegger confiará então a Jünger que a forma é “potência metafísica”. A tese parte dessas duas indicações principais para pensar o que está em jogo nessa potência “ocular” que Heidegger identifica na (e à) história da tradição. Em seguida, ela coloca a questão sobre o sentido e a possibilidade de uma superação do recurso metafísico à imagem.

Palavras-chave

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Résumé

En 1927, Heidegger consacre l’un des derniers chapitres de Etre et temps à exposer le « lien » entre ses propres développements concernant le problème de l’historicité et les investigations menées par Wilhelm Dilthey sur ce même sujet. Le chapitre se compose d’une suite de citations de passages de la correspondance entre Dilthey et son ami le Comte Yorck von Wartenburg, mais les lettres reprises par Heidegger ne sont que celles du Comte Yorck. Il y reconnaît l’affirmation que la pensée historique traditionnelle s’attache encore de façon profonde à des « déterminations purement oculaires ». Ce que Heidegger découvre dans la critique du Comte Yorck à la tradition de l’historiographie, c’est l’idée que le figuratif, l’imaginable, « l’esthétiquement construit », ou littéralement le spectaculaire sont des objets historiquement privilégiés par la réflexion – historique ou philosophique – sur l’histoire. Presque trente ans plus tard, c’est encore dans le contexte d’un échange épistolaire que nous verrons s’élaborer sous la plume de Heidegger une critique au privilège de la figure. Dans une lettre alors adressée à Ernst Jünger, il reprochera à son interlocuteur d’avoir conféré à la forme « un statut sacré ». Entre-temps, le projet annoncé dans Être et temps de fonder l’historiographie sur une compréhension propre de l’existence a été abandonné. Il s’agit alors d’interroger la portée de cette tradition que Heidegger désignera du nom de « métaphysique ». A la base de cette nouvelle position, c’est une complicité fondamentale entre la forme, l’idée et l’être qu’il s’efforcera de montrer, laquelle aurait mobilisé la pensée occidentale depuis deux millénaires. Heidegger le confiera à Jünger : « la forme est puissance métaphysique ». La thèse partira de ces deux indications principales pour penser ce qui est en cause dans cette « puissance oculaire » que, depuis les années vingt, Heidegger semble identifier à l’histoire de l’Occident. Ensuite nous poserons la question sur le sens et la possibilité d’un dépassement du recours métaphysique à l’image.

Mots-clefs

Métaphysique; histoire, Martin Heidegger, modernité, forme

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Sumário

Introdução 11

1. A fabricação da História :

da entronização e do declínio de um conceito 26

Uma idéia da história 30

Para educar a humanidade 34

A Idéia na história 38

Fatos e fontes 44

Crítica da razão histórica 47

Da história à vida 51

Da vida à história 54

Da visibilidade da história 57

2. A forma da metafísica e a travessia da história 67

Do quê e do como 73

A paidéia platônica e o pôr em forma da verdade 75

A metafísica entra em cena 78

Um novo modo de (não) ver 81

Uma marcha, um desvio, uma volta 84

O motu continuum da transcendência 88

Um sistema de equivalências? 91

Uma indecisão originária 93

3. De um extremo a outro da metafísica: “o mesmo

essencialmente transformado” 100

Diferentes posições, novas configurações 102

Breves inventários 109

A verdade imperial 112

Um deus que dá ordens 115

Que a verdade e a justiça... se façam 118

Operari, facere, agere: “o real incluído no procedimento do agir” 123

Uma metafísica da manufatura? 128

Uma dobra sobre si: do apequenamento metafísico do mundo 136

4. O mundo feito imagem 142

Para onde tudo retorna 145

Weltbild e Weltanschauung: a antropologia em sua última forma 148

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Vontade e sistema 158

A fisionomia do novo homem 165

Uma antiga inscrição 173

Considerações finais 181

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“Se a história fosse uma coisa, então seria compreensível que, para reconhecê-la, fosse-nos exigido que nos estabeleçamos ‘acima’ dela.” 1

Se o século XIX constituiu o momento do apogeu do que Foucault chamou de a “Era da história”2, se ele foi de fato, segundo a expressão freqüentemente evocada,

o “século da história”, o século XX talvez mereça ser chamado de o “século da anti-história”. É nele que, com uma força jamais antes vista, o modelo robusto das filosofias da história universal será definitivamente posto à prova. Criticadas ferozmente ao longo das últimas décadas como secularizações de velhos sonhos messiânicos, essas filosofias parecem finalmente ultrapassadas. Caídas não somente em desuso, mas praticamente em desonra, faz muito tempo que ninguém sonha em ressuscitá-las. A História com “h” maiúsculo, o relato da ascensão e declínio das civilizações e das culturas, das grandes obras e feitos da humanidade, já não parece interessar nem mesmo aos historiadores de profissão. Naturalmente, a noção mesma de uma “humanidade” é hoje tão desacreditada quanto a de História. Pode-se dizer que esse descrédito se deu a partir do momento em que se começaram a questionar os pressupostos envolvidos nas concepções excessivamente englobantes, nas “vastas construções abstratas”3 nas quais se enveredaram as filosofias da história do mundo.

O ritmo seguro do movimento histórico, marcado pela promessa de um acontecer eventualmente oblíquo, mas ainda assim infalível das conquistas e progressos da civilização, já há muito deixou de ecoar nos ouvidos dos homens civilizados. Mas se é bem verdade que a noção de uma Weltgeschichte glorificando a marcha do Espírito humano e sua progressiva realização sofreu, ainda no século de Hegel, uma crítica

1 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 202 (tr.fr., p. 162). 2 Cf. FOUCAULT 1966, p. 229.

3 A expressão é de Charles Langlois, historiador francês que viveu a passagem do século XIX ao XX, e

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suficientemente corrosiva, e que foi o próprio século XIX que iniciou o processo de desmoronamento das “metafísicas da história” e sua pretensão de formular a priori as leis que governam o curso dos acontecimentos, é o século XX quem formulará a rejeição ao moderno conceito da história com uma ênfase jamais antes ouvida. Essa rejeição, partilhada e expressa por filósofos das mais diversas correntes, mas também por teólogos, sociólogos, cientistas e intelectuais em geral, operará um corte definitivo no que fora até ali festejado como uma verdadeira revolução: a tomada de consciência que, no seio da modernidade ocidental, havia sido finalmente capaz de reconhecer na “razão histórica” uma chave para a compreensão do universo humano – e justamente nessa “compreensão” (Verstehen), a faculdade capaz de conduzir a História no caminho seguro do conhecimento científico.

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pressuposto fundamental, o fundo sobre o qual repousariam as representações “totalizantes” da história produzidas ao longo da modernidade. O fato é que tanto um quanto o outro, tanto a concepção da história em termos de totalidade quanto o fundo de sentido que a sustentaria serão pouco a pouco convertidos no verdadeiro ponto cego da tradição do pensamento histórico ocidental. E é tomando esta tradição como objeto de análise, questionando suas obras, seus propósitos explícitos e suas entrelinhas, que começa a se construir, menos como um debate e mais como uma discussão difusa, encontrando ecos, criando respostas e polêmicas aqui e ali, a crítica à idéia de “sentido na história”, anunciada com todas as letras por Karl Löwith em seu livro publicado em 1949 nos Estados Unidos, sob o título de Meaning in history4.

Neste livro cuja tese principal teria adquirido, segundo Hans Blumenberg, “valor de dogma”5, Löwith tenta mostrar que o que separa a filosofia da história

moderna (que culmina com Hegel) de uma dita “teologia da história”, é nada mais do que a substituição da problemática da transcendência – ilustrada em Agostinho, por exemplo, pelo tema das duas cidades, a divina e a terrestre – por uma problemática da imanência, isto é, do sentido como imanente ao curso da história humana. Quatro anos após a edição americana da obra, o autor tornará explícita essa posição, adicionando à sua tradução alemã o subtítulo: “as implicações teológicas da filosofia da história”6. Quanto a esta última, sua definição é enunciada logo na introdução, e

ela designa “a interpretação sistemática da história do mundo segundo um princípio diretor que permite pôr em relação acontecimentos e conseqüências históricas e relacioná-los a um sentido último”7. Compreendida deste modo, “toda a filosofia da

história torna-se totalmente dependente da teologia, isto é, da interpretação teológica da história como história da Salvação”8. Assim, para Hegel, a história do mundo é

uma teodicéia e a astúcia da razão é o conceito racional para designar a Providência. O materialismo histórico de Marx, por sua vez, “uma história sagrada formulada em

4 Cf. LÖWITH 1949: Meaning in history, Chicago, Chicago University Press.

5 Citado em MONOD 2002, p. 35. Jean-Claude Monod faz referência à obra de Blumenberg: Die

Legimität der Neuzeit, que discute em que medida as teorias políticas e filosofias da história modernas

podem ser entendidas como simples “secularizações da teologia cristã”.

6 Esta tradução, feita por Hanno Kesting, foi revista e ampliada pelo próprio autor e publicada na

Alemanha como Weltgeschichte und Heilsgeschehen. Die theologischen Voraussetzungen der

Geschichtsphilosophie, Stuttgart, Kohlhammer, 1953.

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termos econômicos” e a fé comunista “uma pseudo-metamorfose do messianismo judaico-cristão”9. De fato, para o autor de O sentido da história, a consciência

histórica moderna poderia ter se despojado da fé cristã num acontecimento central de uma significação absoluta – para os cristãos, a encarnação de Jesus Cristo –, mas ela se manteve fundamentalmente presa a seus postulados e a suas conseqüências. A fé numa revelação progressiva da verdade divina converteu-se em fé num aprimoramento racional igualmente progressivo da humanidade. Assim, “contra a opinião comum de que um pensamento histórico verdadeiramente digno deste nome teria começado apenas no século XVII”10, Löwith não hesitará em sustentar que toda

a moderna filosofia da história tem raízes na crença bíblica na redenção. “A consciência histórica é determinada pelo motivo escatológico, e isto de Isaías a Marx, de Agostinho a Hegel, de Joachim de Fiore a Schelling”11.

O “argumento do sentido”, circunscrito por Löwith basicamente em termos da secularização de concepções históricas oriundas da teologia, passa então a ser perscrutado em obras e períodos os mais diversos. A afirmação de um sentido para a história do mundo, reinando independente e a despeito de toda contigência eventualmente experimentada nesse mesmo mundo, desdobraria o duplo registro implicado no próprio termo “sentido”. Seus críticos mostrarão que um tal sentido, ao se apresentar por um lado como um elo ou vínculo, como causa imanente ou transcendente impondo aos eventos a medida de sua coerência possível, anunciaria por outro lado o objetivo ou fim que, uma vez levado a termo, conduziria o processo histórico à realização de seu significado supremo. Através dessas duas dimensões supostamente complementares, a certeza de um sentido, além de poder dotar de significação o curso confuso dos acontecimentos mundanos, seria a prova de que estes rumam, a despeito de todo eventual obstáculo, de possíveis acasos e contingências, em direção a um fim devido e esperado. Falando em termos mais tradicionais, é como se o sentido, enquanto causa eficiente ou motriz operando na história, como uma espécie de força atuando e dirigindo as diferentes etapas de seu devir, fosse o elemento capaz de conduzi-la à sua realização última, a seu télos

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específico, ou seja, à causa final de todo o processo. E os indícios mais visíveis dessa espécie de permuta lingüística se encontrariam no próprio vocabulário de nossas línguas ocidentais, em que a palavra “sentido”, guardando a dupla acepção de finis e

télos, comportaria tanto a noção de “significação” (Sinn, sens, sense) como a de

“objetivo” ou “propósito” (Ziel, but, purpose), termos que em sua utilização corrente se revelam, de fato, freqüentemente equivalentes ou intercambiáveis.

A posição apresentada pelo livro de Karl Löwith pode ser vista como o exemplo mais nítido de uma certa percepção da história que começou a ser encampada relativamente cedo pelo século XX, em meio às querelas em torno do historicismo e da sua “crise”12. Mas o que ela parece trazer à tona pela primeira vez

de modo realmente explícito é o momento de uma convergência definitiva entre dois diagnósticos: de um lado, uma crise efetiva da tradição, que há muito havia extrapolado os circuitos acadêmicos e o campo cerrado das discussões puramente metodológicas e se incorporado em diversos tipos de visões de mundo; do outro, a idéia ou o conceito da história por meio dos quais o homem moderno durante séculos se auto-representou ou projetou. Embora nenhum dos autores contemporâneos sensíveis ao argumento do sentido na história tenha se preocupado, como Löwith, em justificar seus resultados por meio de uma cronologia invertida, era a tese da secularização que ele explicitamente punha em jogo que acabaria por marcar um ponto de confluências entre eles. Verificar a existência, senão de um motivo comum, ao menos de uma estrutura formal muito semelhante nas diferentes e mais distantes concepções da história ocidentais tornou-se um exercício aparentemente incontornável a todos os que pretendiam se confrontar com o problema. Sem entrarmos na questão de saber até que ponto essas aproximações entre universos e épocas tão distantes e diversos — e Löwith não faz outra coisa ao longo das quase duzentas páginas de sua obra — não equivale a repetir um dos gestos característicos do discurso dos mesmos teólogos e filósofos da história por ele “revisitados”, o fato é que tais críticas num certo sentido contribuíram para circunscrever o horizonte disto que ainda hoje é chamado, de forma mais ou menos problemática, de “filosofia da

12 Cf. a esse respeito BAMBACH 1995: Heidegger, Dilthey and the crisis of historicism, Ithaca,

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história”. Paralelamente a isso, contudo, o maior efeito produzido por essas contendas, pela discussão em torno do tema da secularização – Hannah Arendt, por exemplo, jamais aceitou a tese de uma secularização de conceitos, afirmando que o termo corresponde a um evento na história do mundo, e não a uma suposta conversão de pontos de vista teológicos em pontos de vista racionais ou mundanos –, o maior efeito, nós dizíamos, talvez tenha sido o de “tornar muito difícil, no século XX, não sorrir diante das pretensões daqueles que ousavam ainda falar do sentido da história”13. Num artigo escrito em 1944, um ano antes de sua morte, Ernst Cassirer

resume a atmosfera intelectual dessa época dizendo que “um dos problemas mais difíceis e mais controvertidos do pensamento filosófico contemporâneo é o problema da filosofia da história”14. Vindo de alguém que praticamente atravessou o século XX

tentando dar nova luz a questões que inflamaram a filosofia e a ciência dos tempos modernos – dentre as quais a de como filosofar sobre a história constituiu um marco definitivo –, a declaração aparentemente circunstancial pode comportar algo de dramático.

Em História e verdade, Ricoeur declara que a sua geração era “sem dúvida mais sensível que as precedentes a uma certa ambigüidade do desenvolvimento histórico”15. Mas parece pouco dizer que os pensadores do século XX, e

especialmente aqueles da geração de Ricoeur, tenham somente hesitado mais do que seus antecessores em sugerir que a história em todo seu conjunto pudesse ter algum sentido. Mais do que ambigüidade, do que hesitação ou aporia, a tonalidade que marcou a reflexão histórica do século XX foi a da perplexidade, a de um embaraço radical. Num ensaio escrito em 1952, o historiador Henri-Irénée Marrou, para quem filosofia da história era também sinônimo da “laicização de uma teologia”, de um “dogmatismo ingênuo”16, declara:

A noção de um sentido da História tornou-se uma noção corrente entre nossos contemporâneos, um tema de propaganda política, um princípio de ação: é em nome

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do sentido da História que agem nações e partidos, que em países totalitários ‘liquidam-se’ adversários, convencidos de que eles se opõem à marcha da História.17

A partir do momento em que a censura às filosofias especulativas da história tornou-se uma espécie de parti pris, pareceu natural a muitos autores que qualquer pensamento ainda interessado em que a história “fizesse algum sentido” revelasse, de antemão, um certo comprometimento. Falar em sentido da ou na história tornara-se a marca registrada, seja dos que tinham uma compreensão limitada e no melhor dos casos ingênua do colapso histórico e político do mundo contemporâneo, seja dos que buscavam justificar esse colapso a qualquer custo em nome de sabe-se lá que interesses ideológicos.

Recentemente, o canadense Maurice Lagueux, autor de um livro sobre a

Atualidade da filosofia da história, propõe a seus leitores levar em conta “a

possibilidade de que haja algo de um pouco excessivo na condenação geral de que foram vítimas as filosofias especulativas da história”18. Anunciando de saída que seu objetivo é tentar esquivar tanto o elogio indulgente quanto a denúncia indignada, ele afirma que uma tal condenação parece tão mais questionável quanto as impugnações freqüentemente dirigidas às teorias especulativas do sentido histórico tinham como propósito pôr em questão as pretensões, elas mesmas tidas como “excessivas”, dos filósofos da história19. Quanto aos motivos prováveis dessa crítica generalizada, Lagueux propõe algumas pistas. A questão é formulada logo na segunda página do livro mais ou menos nesses termos: o descrédito que sofrem hoje as filosofias da história não teria como base o fato de que elas serviram como uma espécie de bode expiatório a ideologias pretensamente oriundas da história intelectual ocidental, sendo ligadas, direta ou indiretamente, às aberrações políticas mais funestas que se produziram no século XX? Não é assim que boa parte dos intelectuais que testemunharam os eventos catastróficos da história recente buscaram a todo custo se dissociar das reflexões que, nesse domínio, não tinham como critério primeiro uma sóbria metodologia científica?20

17 MARROU 1952, p. 5. 18 LAGUEUX 2001, p. viii. 19 Ibid., p. xiii.

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A pista fornecida em forma de questão pelo escritor canadense toca o cerne do nosso problema. Ela aponta para o pano de fundo sobre o qual, de uma maneira ou de outra, parece se mover boa parte dos juízos que o século XX emitiu acerca das filosofias da história, seja contra os atalhos e as “sínteses audaciosas”21 por elas

produzidos, ou contra a ilusão e a arbitrariedade vistas como inerentes a seus propósitos. Para os que conheceram os horrores associados às duas grandes guerras, à grande crise que explodiu no intervalo, aos campos de concentração e, sobretudo, aos genocídios que atravessaram o século, prover fundamentos para a “marcha” da história já não era indício de ingenuidade, mas, sim, de temeridade. Que tais filosofias fossem vistas como meros delírios teóricos destituídos de qualquer força persuasiva no mundo das ações e decisões políticas, ou como graves equívocos ideológicos dotados de uma retórica perigosa capaz de engendrar criaturas em forma de regime político, a crítica ao “sentido da história” era uma forma de defrontar os eventos brutais que haviam marcado a história recente. Se a idéia da história como o processo que conduz a humanidade à plena possessão da razão (e desta à conseqüência aparentemente evidente de uma organização melhor e mais justa da sociedade) já havia perdido toda e qualquer evidência, é porque, ao contrário, nada parecia mais evidente do que a total ausência de sentido na qual desaguava enfim toda uma tradição. Para a geração que se queria definitivamente dissociada das ilusões da razão e do progresso, tanto o otimismo racional das Luzes quanto o voluntarismo político das teorias do idealismo precisavam ser revistos. O misto de melancolia e esperança de um Kant refletindo “como se” a espécie humana seguisse um plano racional traçado pela Natureza, o entusiasmo quase trágico de um Condorcet ao resumir em dez épocas a marcha en avant do espírito humano, as viravoltas de um Schiller tentando conciliar liberdade e beleza com o intuito de educar a humanidade, a coragem intelectual de um Fichte reivindicando liberdade de pensamento “para os doutos”, os arroubos identitários de um certo romantismo político conscientemente carregado de contradições, isso sem nada dizer de Hegel, cujo projeto monumental de reconstruir a História do mundo sobre o solo do Espírito Absoluto seguia sendo o símbolo mais eloqüente das pretensões “totalizantes” das metafísicas modernas –

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tudo precisava ser revisto, como se o inimigo estivesse escondido em qualquer esquina e por onde quer que se espreitasse o vasto conjunto de doutrinas políticas, históricas e filosóficas produzidas no Ocidente. Tal exercício de vigilância foi a tônica dominante de boa parte da produção intelectual surgida a partir dos anos quarenta e, se o clima de crise era apenas sacramentado, a crítica dessa vez se via forçada a não negligenciar qualquer um dos seus alvos possíveis. De lá até aqui, pode-se dizer que tanto um quanto o outro reinaram praticamente absolutos. “Crítica e crise”, parafraseando Reinhardt Koselleck, um dos proeminentes teóricos da história do século XX22, se confirmavam finalmente como termos aliados na sua

eterna vocação para a dissolução. Terminado o século XX, não é exagero dizer que qualquer pensador consciente dos percalços políticos de nossa era tenha hesitado em encampar a idéia de que a história possa afinal ter qualquer sentido – que se leia isto como a obediência a um suposto desígnio a priori e transcendente ou como a realização de uma tendência imanente, latente no próprio fluxo dos acontecimentos.

* * *

Mas o que tudo isso tem a ver com o nosso tema? Qual o lugar de Heidegger dentro desse quadro já inúmeras vezes reconstituído da crise de fundamentos do pensamento ocidental e perda das referências tradicionais que marcou, de uma forma geral, a história do século XX?

Heidegger pode ser contado entre os autores para os quais pensar a crise da tradição é ao mesmo tempo questionar a auto-interpretação do homem moderno em relação a sua história. Desde o início dos anos vinte, quando vinha tomando forma em seus cursos o que Ser e tempo nomeou como o projeto de uma “ontologia fundamental”, se impunha a necessidade de pensar a história (Geschichte)como uma

22 “Kritik und Krisis: ein Beitrag zur Pathogenese der burgerlichen Welt” é o título de uma obra

publicada em 1979 por Koselleck, que se tornou uma referência importante no estudo da história das idéias políticas modernas. Na tradução brasileira: Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do

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estrutura constitutiva de nosso próprio modo de acesso ao mundo. Heidegger se perguntava aí sobre a possibilidade de se manter com a tradição uma relação viva e questionadora, de se franquear um caminho para um encontro fecundo do passado. Segundo a conhecida formulação do parágrafo 6 de Ser e tempo, tratava-se de realizar, através de um “retorno positivo”23 à tradição do pensamento filosófico, uma

“destruição” (Destruktion) capaz de liberar os conceitos e categorias tradicionais das múltiplas camadas de sentido que séculos de história lhes haviam sucessivamente atribuído. O caráter negativo dessa destruição, Heidegger insistia, “era apenas implícito e indireto”24. Ao constatar no presente, “através de muitas filiações e

distorções”25, a permanência do aparato conceitual da ontologia grega, seu intuito era

o de chegar às experiências originárias em que tais conceitos e categorias haviam sido obtidos. A tradição, Heidegger afirmava então, pode desarraigar de tal modo o homem de sua história que este, em meio a todo o interesse por fatos históricos e por interpretações objetivas, acaba sendo incapaz de compreender as condições de um retorno a à história no sentido de sua “apropriação produtiva” (produktiven

Aneigung).26

Seja como for, a crítica a um conceito da história por demais petrificado, fundado numa compreensão equivocada, espacializada do tempo, nem sempre coincidiu, em Heidegger, com a total supressão da possibilidade de pensar um sentido para a história como um todo. E isto valerá ainda mais para a obra posterior a

Ser e tempo. Nesse momento mais tardio, numa perspectiva que começa a ganhar

corpo após os anos trinta, é precisamente o contrário que parece se dar. Ao trazer ao centro do seu questionamento da tradição a enigmática expressão “história do ser” –

Seinsgeschichte –, Heidegger passa a ler a história do pensamento ocidental em

termos que, segundo muitos intérpretes, não fariam senão reeditar o modelo das grandes filosofias da história do mundo. A Seinsgeschichte constituirá daí em diante um dos termos-chave do pensamento heideggeriano. Através dela, Heidegger se lança numa espécie de travessia da história da filosofia ocidental, buscando nela os

23 Cf. HEIDEGGER 1927, I, p. 23 (tr.br., p. 51). 24 Ibid.

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indícios de uma forma de pensar e experimentar as coisas e o mundo que teria selado a posteridade do Ocidente. Tal pensamento e experiência ele chamará então de “metafísica”. De Platão a Nietzsche, e se estendendo à ciência e à técnica contemporâneas, de um extremo a outro de um trajeto permeado de figuras do ser capazes de “fazer época”, Heidegger mergulhará durante anos numa leitura dos clássicos da tradição filosófica, acenando a partir de cada uma delas para a formação de um mundo destinado a vigorar. O fato é que em nenhum momento ele se recusará a interrogar essa história do ponto de vista de uma unidade profunda. O estatuto dessa unidade, que ele diz ser historial (geschichtlich) e não simplesmente histórica (historish)27 – não é como produto de uma coesão metodológica ou narrativa fundada

em eventos passíveis de demonstração que ela se constitui –, alcançará no pensamento de Heidegger uma dimensão absolutamente crucial.

É aqui mesmo que um certo traço paradoxal da nossa discussão pode ser entrevisto. Na verdade, com a idéia de uma história filosófica que se confunde com o próprio mundo ocidental, não somente Heidegger se dispõe a produzir um pensamento sobre o sentido essencial da história, mas ele sublinha ainda que, desde o seu início e ao longo de todo o seu desenvolvimento, essa história é atravessada por uma mesma forma de determinar o sentido daquilo que é. Em vez de se perguntar se é legítimo ou não falar de um sentido para a história como um todo, ou, o que dá no mesmo, se a história pode ou não ter algum sentido, Heidegger levanta de antemão a questão do estatuto disto que a tradição filosófica nomeou sob a idéia de “sentido”. Nesse recuo característico, é como se ele acabasse por converter a questão sobre o sentido da história na questão sobre a história de uma determinada

27 Embora a questão da história sofra quebras importantes ao longo do percurso filosófico de

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decisão pelo sentido, em uma questão sobre essa história, a da “metafísica” justamente, em que se teria decidido que o ser mesmo, e os seus diferentes sentidos, deveriam valer como medida ou critério último da verdade das coisas. Ao pôr as coisas nesses termos, Heidegger parecia convencido de que as críticas às filosofias da história não avançariam sequer um passo se elas não estivessem à altura de questionar o que aí permaneceu precisamente não questionado, ou seja, o fundo subjacente à histórica determinação do sentido histórico em termos de lei ou fundamento, de orientação ou fim previamente impostos aos acontecimentos. Assim, é como se a história do ser heideggeriana invertesse os termos do problema, mostrando que, antes de discutir a idéia de “sentido da história”, seria necessário se perguntar pelo sentido ou pela verdade desse “ser” que, no curso da tradição ocidental, se revelou sob as mais diversas figuras históricas, entre elas sob a de leis regendo o processo histórico como um todo, sob a de fins encadeando e motivando o movimento da história universal. O que ele então acabou por sugerir, implícita ou explicitamente, é que toda tentativa de compreender o sentido da aventura humana no mundo, que ela tenha ou não em vista desvendar um significado geral subjacente aos fenômenos e ocorrências particulares, supõe a abertura de um mundo já amplamente dotado de sentido, e que é no interior desse espaço e dessa abertura que a própria história pode também ter um. Se a história não é um palco sobre o qual fatos e obras humanas vêm um por um linearmente se suceder, é preciso pensar isso mesmo que vincula a história a seus sentidos possíveis, isso que faz com que os homens possam se dizer e se pensar como entes privilegiadamente marcados pelo histórico, isso que faz com que sejam os homens, afinal, aqueles para quem unicamente algo como uma história pode se tornar digno de questão.

(23)

recente instituiu –, é discutir essa série de questões seguindo o modo como elas foram encaminhadas por Heidegger, sobretudo na sua obra mais tardia.

* * *

No primeiro capítulo da tese, intitulado “A fabricação da história: da entronização e do declínio de um conceito”, buscamos apresentar o amplo contexto em que começa a se produzir um tipo de abordagem da “esfera dos negócios humanos”28 – a história, a política, a moral, a cultura – que, sob a fórmula “filosofia

da história”, nasce de certo modo já destinada à controvérsia. A idéia de percorrer uma determinada história do conceito de história surgiu da necessidade de perguntar pelo quê afinal motivaria esse “projeto”, abraçado por alguns dos autores mais eminentes da tradição moderna, de justificar filosoficamente – de modo sistemático ou não – o conjunto da aventura humana dos seus primórdios às suas realizações mais recentes. Mas essa necessidade se explica também por outras razões. Ao longo de nossas pesquisas em torno do pensamento histórico moderno, a questão que acabou por se colocar foi a de saber qual é o interesse e a atualidade que uma reflexão filosófica sobre a história pode reivindicar no momento em que estamos. No panorama que buscamos reconstituir neste primeiro capítulo, o surgimento da moderna concepção da história é abordado através de três momentos principais. No primeiro deles, as perspectivas de Kant, Herder e Hegel vêm situar as diferenças entre uma visão da história orientada pela busca de princípios racionais suficientemente estabelecidos e a tentativa, levada a cabo especialmente por Herder, de lançar um olhar sobre os diferentes povos ou culturas históricas que seja capaz de se orientar pela singularidades que os constituem. Num segundo momento, trazemos à discussão as críticas dirigidas à filosofia da história ainda no século XIX, tomando como exemplo o programa elaborado por Leopold von Ranke, um dos principais representantes da Escola Histórica. É no seio dessa crítica a uma história

28 A expressão é de Hannah Arendt, que a têm como um conceito diretor para pensar tudo o que

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sobredeterminada filosoficamente, da qual o maior alvo foi Hegel, que se prepara a “virada” metodológica do início do século XX, a qual termina por reconduzir a história para o terreno da reflexão filosófica. O terceiro momento considera a importância atribuída ao método nessa nova reivindicação do “histórico” pela filosofia. Restituindo brevemente a démarche elaborada pela escola neo-kantiana de Baden, começamos a nos aproximar do contexto em que inicialmente se elabora o pensamento de Heidegger sobre a história. É a partir daí, e tomando como eixo os motivos que levam o Heidegger de Ser e tempo a situar a sua própria tematização da história em termos de um diálogo com a filosofia da vida de Dilthey, que a nossa questão começa a se explicitar. O problema da história analisado em Ser e tempo – que a analítica visava a reconduzir à sua origem existencial – aparecerá curiosamente associado a uma crítica do “ocular” como modo preeminente de referência ao mundo histórico. Ao mostrar o “nexo” da sua própria exposição do problema da história com as pesquisas de Dilthey e do Conde Yorck, o que Ser e tempo termina por sugerir é que o pensamento sobre a história, filosófico ou historiográfico, é dominado por uma referência ao olhar – à forma, à figura, ao tipo, à imagem – cujos pressupostos parecem determinar a sua própria história.

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para pensar o que se passa nesse começo: o primeiro deles é o texto-resposta que Heidegger dedica a Jünger em 1956, Contribuição à questão do ser (Zur Seinfrage); o segundo é o artigo sobre a doutrina platônica da verdade.

No terceiro capítulo, “De um extremo ao outro da metafísica: ‘o mesmo essencialmente transformado’”, buscamos acompanhar a interpretação heideggeriana dos desdobramentos da metafísica e sua história. A questão determinante é a de saber em que medida os reinícios, que Heidegger não cessa de nomear como “transformações” (Wandlungen) – da essência da verdade, do ser, da relação do homem ao ente, da referência ao pensar e aos deuses –, constituem verdadeiras mudanças ou apenas reformulações da forma metafísica inaugural de recurso à presença. Uma atenção especial será dada ao texto do curso de 1942/43 intitulado

Parmênides. Nesse texto, que de certo modo amplia o motivo inicial da mudança na

essência da verdade, Heidegger se propõe a refletir sobre a passagem da metafísica grega por Roma e os deslocamentos que essa passagem inscreve na história ocidental.

No quarto e último capítulo, “O mundo feito imagem”, tratamos do processo descrito por Heidegger como a entrada da metafísica na sua configuração moderna. Essa entrada assinala, porém, uma nova série de transformações e deslocamentos. Para pensar em que consistem essa entrada, os deslocamentos que ela opera, as mudanças que ela faz surgir, partimos do texto de 1938, A Época das imagens do

mundo (Die Zeit des Weltbildes). Nele, ao articular o início da modernidade à idéia de

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“Nós jamais encontraremos na história mais do que aquilo que nós mesmos nela de antemão colocamos (...)” 29

“A ‘modernidade’ não traz casualmente a ciência histórica (Historie) ao verdadeiro domínio.”30

“O ente torna-se objeto, seja (aspecto, imagem) para o olhar, seja como produto e coisa calculada para o fazer.”31

Uma questão parece de saída dificilmente contornável: confrontar o problema da história nos dias de hoje não é o indício claro de um anacronismo? Ainda que evitemos assumir, precipitada ou mesmo pretensiosamente, uma posição epigonal, ou que evitemos caracterizar como “pós-metafísica” ou como “pós-moderna” a situação em que nos encontramos, é impossível passar ao largo dos diversos diagnósticos contemporâneos, e sobretudo dos mais sérios deles, acerca do esgotamento de toda uma tradição de pensamento, filosófico, político ou propriamente histórico. Um jeito talvez mais honesto de não dar por simplesmente decidida a questão acerca do sentido da história, que para nós consiste de fato em uma, um modo de não decretar de antemão obsoleto qualquer questionamento sobre o sentido que pode ainda haver em se falar de “uma história” e sobre a possibilidade de pensá-la filosoficamente, seria percorrer, ainda que nas suas grandes linhas, a história ao longo da qual se originou e formou isto a que nos referimos hoje como sendo o conceito moderno da história. A suspeita mesma de anacronismo supõe uma determinada relação com a história que nos precede e, mais do que isso, uma interpretação, explícita ou não, da presença ou

29 FICHTE 1795, p. 79.

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da ação do passado sobre a experiência, a linguagem e o pensamento que, queiramos nós ou não, continuam em grande parte a nos servir de referência. Por essa razão, parece-nos fundamental a tentativa de compreender os motivos prováveis seja da vigência, seja da ulterior falência do tipo de abordagem da história que se produziu ao longo de pelo menos dois séculos de pensamento moderno. Retraçar o processo de formação de um discurso de cunho deliberadamente filosófico sobre a história, tomar em conta o “pathos intelectual” que se encontra na base das primeiras filosofias da história talvez seja o único meio de precisar os contornos de uma época em que se criam as condições para essa tomada de consciência do mundo histórico anunciada como uma das grandes conquistas da modernidade ocidental – e em seguida quase inteiramente relegada à condição de exercício teórico de sublimação e totalização do múltiplo, de redução da realidade e de sua pluralidade a conceitos oriundos da pura especulação.

* * *

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humano, o tempo interpretado em função das perspectivas limitadas dos homens, significaria destruição e dissolução, o tempo cósmico, ao contrário, o tempo da periodicidade celeste, que retorna incessantemente sobre si mesmo, seria considerado como o único símbolo da eternidade. Não é o nosso objetivo aqui perguntar que razões exatamente teriam interditado aos gregos produzir um conceito de história. O fato é que se a organização da “cidade terrestre” esteve sempre no centro das reflexões dos poetas e filósofos gregos, assim como de seus educadores e legisladores, em nenhum lugar há um indício de que a História seja, assim como chegamos a compreendê-la na modernidade, um processo abrangente capaz de justificar a fragilidade da condição humana, subordinando-a a algo que a transcenda. Como lembra Hannah Arendt num importante ensaio de 1954 sobre “O conceito de história”, o próprio Heródoto, batizado por Cícero de paeter historiae, não dispunha previamente de um termo quando decidiu “preservar aquilo que deve sua existência aos homens”32. Qualquer que tenha sido o entendimento grego da história, o seu

pressuposto básico era “a distinção entre a mortalidade dos homens e a imortalidade da natureza, entre as coisas feitas pelo homem e as coisas que existem por si mesmas”33. Como nos mostra Arendt, a tarefa da história grega – salvar os feitos e as

palavras humanas da futilidade e do esquecimento – tem raízes na experiência grega, não da história, mas, antes, da natureza.

Por outro lado, por mais lugar comum que ela possa parecer, é difícil recusar a afirmação de que a concepção do progresso em sentido lato, em termos de uma progressão do tempo e da vida humana no mundo, só foi introduzida na filosofia com o cristianismo.”34 A idéia de apreender a história da humanidade como uma história,

isto é, como uma totalidade que tem um começo e um fim, tem de fato raízes na noção de criação consagrada por uma longa tradição de pensamento cristão. Essa noção é precisamente a de uma gênese do mundo fundada sobre a boa vontade de uma Entidade pessoal e autônoma e, embora isso não explique tudo, pode-se dizer que o princípio de um mundo criado e do homem como parte dele, a convicção de que todas as criaturas deveriam encontrar um lugar no único cenário que seu criador

32 ARENDT 1954, p. 70. 33 Ibid., p. 72.

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concebeu ao criá-las, está presente não apenas na historiografia cristã, mas também nos primeiros discursos propriamente filosóficos sobre a história. Se o mundo é o produto de um grande projeto divino, como negar que os homens se encontram engajados no curso de uma história comum a toda a humanidade? E se ao homem é dado conhecer ao menos certos desígnios do seu Criador, estes não poderiam conter algumas chaves decisivas para a compreensão da história do mundo?35 Qualquer que

seja a forma exata com que se represente essa entidade divina, a idéia de associar a sua realização à realidade da própria história humana dificilmente teria sido concebível se numerosas gerações não houvessem meditado sobre a existência no tempo como uma espécie de plataforma para o “além-mundo”, como exercício preparatório para a redenção, para a salvação futura.36

Mas se tomamos como válida essa perspectiva, a de que a História despontou no horizonte da reflexão ocidental como algo já de antemão ultrapassável, que desdobramentos e transformações lhe possibilitaram ressurgir como essa espécie de objeto privilegiado, quase como um objeto de culto para o pensamento moderno tardio? Como se deu essa consagração, preparada pelas grandes sínteses especulativas do Idealismo alemão e consumada mais tarde, em oposição a estas, com a guinada metodológica das últimas décadas do século XIX? De que modo a filosofia pôde chegar à compreensão de que o ser histórico é o caráter verdadeiramente distintivo da humanidade do homem, à idéia de que “o gênio do homem, seu dom naturalmente a-natural ou sobre-a-natural”37, é a tekhne, e não a natureza, sendo a cultura justamente o

seu elemento original? De onde, enfim, veio a convicção, explícita ou implicitamente reiterada pela tradição do pensamento histórico no Ocidente, de que sendo essencial ao ser humano o poder de criar obras e conceber mundos, é fazendo a sua própria história que o homem realiza a sua natureza mais íntima? Embora não pretendamos encontrar uma resposta definitiva a todas essas questões, tentemos nos aproximar delas explorando o próprio contexto no qual elas começam a ganhar maior relevo e uma melhor visibilidade.

35 Cf. LAGUEUX, p. 39 36 Ibid., p. 44.

(30)

Uma idéia da história

É verdade que a emergência das filosofias da história deu-se um tanto tardiamente na história do pensamento ocidental. Em geral, todos parecem reconhecer que, antes da época moderna, nesse caso mais especificamente antes do século XVII, não há verdadeiramente exemplos de filosofias do gênero. O acordo é bem menos evidente quando se trata de situar com precisão, no seio dos tempos modernos, o lugar e o momento de nascimento das filosofias da história. Um exemplo curioso disso pode ser visto no livro Origens da filosofia burguesa da história (Anfänge der

bürgerlichen Geschichtsphilosophie), de Max Horkheimer. No espaço de pouco mais

de cem páginas, Horkheimer afirma que Machiavel foi “o primeiro filósofo da história da época moderna” para em seguida dizer que Vico, através de sua Scienza

Nuova, de 1725, foi “o primeiro verdadeiro filósofo da história”.38 Mas a hesitação é

nesse caso extremamente significativa. Por trás da simples periodização está a questão de saber que elementos teriam sido necessários para caracterizar uma “verdadeira filosofia da história”. Para isso não parecia suficiente o fato de abrir uma brecha num discurso filosófico para uma reflexão sobre a história. Como o próprio Horkheimer ressalta, no que hoje se tornou a definição mais ou menos aceita do empreendimento levado a cabo pelas modernas filosofias da história, “a essência de toda filosofia da história autêntica” reside na convicção de que “atrás da confusão vivida da vida e da morte” se possa “reconhecer uma intenção velada e benevolente, no interior da qual o fato individual, aparentemente incompreensível e absurdo, tem um lugar e um valor determinados”.39

Talvez mais importante do que situá-las (em Vico ou em qualquer outro autor) seja compreender as razões do surgimento relativamente tardio dessas tentativas de aplicar a razão à história. Por um lado, é inegável que a idéia de uma racionalização do processo histórico supõe a perspectiva de uma racionalização do mundo fenomenal tout court. O projeto de encontrar o princípio a partir do qual a realidade histórica se move, respondendo a relações ou leis presumidamente universais, pertence à posteridade desse legado moderno que é a “descoberta” do homem como

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sujeito capaz de interpelar o mundo, perguntando de saída por que meios esse mesmo mundo se torna a ele acessível. A pergunta na base das filosofias da história: de que modo a história se produz, que princípio serve ou pode servir como fio condutor para explicar o seu movimento e o sentido desse movimento, suporia, sob esse aspecto, o “momento cartesiano”, a saber, a figura do homem que quer conhecer as leis que regem o funcionamento das coisas para delas poder se apossar. Mas não há dúvida, tampouco, quanto ao fato de que o modelo de racionalidade reivindicado pelas primeiras filosofias da história é bem diverso daquele exigido por Descartes, fundado numa homogeneidade espaço-temporal e na exigência matemática de um raciocínio claro e distinto.

Na verdade, para boa parte da filosofia racionalista dos séculos XVII e XVIII, já a própria noção de uma “filosofia da história” deveria se afirmar de maneira contraditória. A associação dos dois termos e das duas disciplinas não tinha nada de evidente, muito pelo contrário – e é isso o que demonstra a distinção estabelecida por Wolff entre uma cognitio philosophica, clara e intemporal, e uma cognitio historica, confusa e passageira. A distinção de Wolff data do início do século XVIII, uma época em que ainda não convinha à filosofia se misturar com a contingência histórica.40

Encontrar regularidade na esfera essencialmente arbitrária das ações e dos valores humanos, nesse âmbito visivelmente condicionado por todo tipo de interesses, por conflitos de ordem prática, política ou psicológica, seria no melhor dos casos uma hipótese41. Nem é preciso dizer que, sob a pressuposição de um mundo humano

movido essencialmente pelo arbítrio, as obras de história são consideradas infinitamente inferiores a qualquer tratado filosófico.

Mas, então, tornemos a perguntar: como é que pôde se desenvolver no Ocidente uma reflexão sobre a história de cunho deliberadamente filosófico, e isto precisamente na época da Aufklärung? Como se deu, em plena era das Luzes, a passagem de uma atitude de suspeita em relação à fragilidade dos relatos históricos à

40 Wolff distingue na verdade três espécies de conhecimento: o histórico, o filosófico e o matemático.

O conhecimento histórico constitui o degrau mais baixo de todos eles.

41 É o caso explícito e suficientemente conhecido de Kant no clássico Idéia de uma história universal

de um ponto de vista cosmopolita (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht),

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convicção de que “a história deve ser aclarada pela chama da filosofia”42? Como se

operou a mudança de estatuto desse objeto que, até então relegado à crônica, permanecia inteiramente dependente da experiência parcial e das preferências do sujeito que o relata? Como pôde surgir a vontade de que o historiador, confrontado a uma enorme variedade de figuras humanas, fosse doravante guiado pelo “homem do filósofo”, isto é, precisamente, por uma idéia acerca da natureza humana?

A busca de um lugar a partir do qual escrever a história condicionou o aparecimento disto que Voltaire foi o primeiro a propriamente nomear com a expressão “filosofia da história”.43 Mas o que se dá nesse primeiro momento não é mais do que a transposição de um domínio do saber, naturalmente mais incerto, a um outro mais certo, cuja função é a de subordiná-lo. O que interessa aos autores dessa recém vislumbrada forma de filosofia é mais uma idéia possível da história do que a massa de eventos isolados que a história pode oferecer. A “idade de ouro” sendo projetada como uma realização futura, o passado torna-se, no máximo, um objeto de erudição. “Meu livro só deve conter a metafísica da história (...) e jamais tratar a história ela mesma”, afirma Isaac Iselin, um dos primeiros filósofos a propor uma obra “sobre a história da humanidade”44. Aqui é a filosofia, e com ela a razão, que esclarecem a história com a ajuda de uma concepção cultivada do homem. Essa concepção e a razão que possibilita a sua compreensão são precisamente o lugar de onde o filósofo ilustrado assiste ao espetáculo da história.

Desde o seu surgimento, portanto, a história “de um ponto de vista filosófico” é posta sob o jugo de uma certa concepção da racionalidade. Se tal subordinação repousa sobre a clássica superioridade concedida à razão em detrimento da experiência sensível da realidade, o fato é que mesmo lá onde sensibilidade e experiência passam a ser vistas como elementos imprescindíveis no processo de conhecimento das coisas deste mundo, uma atitude de reserva se manterá quanto à possibilidade de conhecer a história, que permanece sendo vista como o “mundo” confuso e desordenado das ações e dos feitos humanos. Isto é flagrante em Kant, que

42 Cf. LE BLANC, MARGANTIN, SCHEFER 2003, p. 631.

43 No título da obra Philosophie de l’histoire par feu l’abbé Bazin, publicada em 1765.

44 Cf. LE BLANC, MARGANTIN, SCHEFER 2003, p. 632. É o filósofo Isaak Iselin, que publica em

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no famoso opúsculo Idéia de uma história universal de um ponto de vista

cosmopolita (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht), de

1784, reconhece ser necessário ir além da contingência das ações e dos propósitos humanos para entrever o trabalho lento mas progressivo de um desígnio racional na história. Frente à “melancólica casualidade” (trostlose Ungefähr)45 com a qual a

história nos confronta, às imensas contradições a que está sujeita a existência finita dos homens, o filósofo não tem outra escolha senão “tentar descobrir, no curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite uma história segundo um determinado plano da natureza”46.

Embora em contextos intelectuais bem diversos, um elemento comum às filosofias da história do iluminismo foi a tendência a universalizar os padrões de racionalidade que lhes eram contemporâneos, utilizando-os para explicar o curso de toda a história passada e presente. Voltaire com a sua certeza de um avanço no esclarecimento racional da humanidade, Hume com o postulado acerca do progresso dos sentimentos humanos (tutelados por uma apreciação racional universalmente válida da utilidade das virtudes sociais), Iselin com a sua identificação de um princípio universal no “fervor de fazer o bem e de tornar-se útil”47 – para cada um

desses autores, conceder à história um significado dependia da possibilidade de trazer à inteligibilidade a vitória progressiva alcançada pela civilização sobre as forças cegas e desregradas que atuam no mundo social, cultural ou político. À sua maneira, também Kant abraçou a fé iluminista no progresso da humanidade, propondo que se considerassem todas as épocas como etapas no processo infinito que orienta todos os sistemas políticos rumo à sua realização final: a constituição republicana. Também ele defendeu a idéia de que o fim de cada existência particular, individual ou coletiva, está para além dela mesma, no desenvolvimento completo de todas as disposições da espécie humana. Assim, por exemplo, partindo do modelo do Estado grego, da sua influência sobre a formação política do povo romano, passando pelos povos bárbaros que o destruíram e até chegar à época atual, Kant afirmou que é possível descobrir

45 É Hannah Arendt quem retoma essa expressão, utilizada por Kant na terceira parte de O Conflito das

faculdades, para falar da “grande hesitação com que Kant se resignou a introduzir um conceito de

História em sua filosofia política”. Cf. ARENDT 1954, p. 117 e 120.

46 KANT 1784, p. 33.

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“um curso regular no melhoramento da constituição política sobre o nosso continente (o qual, segundo tudo indica, fornecerá um dia leis a todos os outros)”48. Sem deixar

de levar em conta “episodicamente a história política de outros povos”49, Kant

afirmava a necessidade de constatar que o conhecimento que se tem deles foi precisamente alcançado por intermédio das nações esclarecidas. Mesmo que a dimensão teleológica da leitura kantiana tivesse um caráter apenas regulador, e que o fio condutor da razão não garantisse que haviam sido estes o sentido e a função de cada época considerada, a démarche de Kant acabava por nivelar as diferenças entre os povos e culturas históricos em função de uma suposta finalidade para a qual todos eles estariam igualmente orientados. A história de um ponto de vista cosmopolita, para abranger universalmente a humanidade, reduzia a pluralidade dos homens, assim como os diferentes universos históricos a um pressuposto racional normativo que deveria lhes servir de regra. Um cosmopolitismo que, a despeito das boas intenções do seu autor, poderia se revelar um tanto uniformizante.

Para educar a humanidade...

É Herder quem pela primeira vez põe seriamente em causa a pretensão da filosofia de subordinar o mundo histórico a um fio condutor racional. Na sua crítica das concepções iluministas da razão e do progresso, ele ataca o modo filosófico de proceder em relação à história, que é o de submeter as diferenças entre épocas e culturas do passado a uma idéia de como deve se dar (e ter se dado) o desenvolvimento de toda a espécie humana. Num escrito com forte tom panfletário publicado em 1774 sob o título Ainda uma filosofia da história para contribuir para

a educação da humanidade (Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit), Herder tomará partido contra a filosofia das Luzes, endereçando

diretamente as suas críticas a Voltaire e aos que ele chama aí ironicamente de “filósofos de Paris”50. Opondo-se abertamente à crença numa progressão incessante

da humanidade, Herder dirá que a concepção do progresso como aumento gradual da

48 Ibid., p. 47. 49 Ibid.

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racionalidade e da liberdade não pode deixar de negligenciar a especificidade de cada época histórica e a equivalente dignidade de todas as suas instituições. À pretensão de superioridade de um século que se auto-proclama “esclarecido”, Herder vai opor então o seu princípio metodológico: nenhuma época, assim como a cultura que a encarna, pode ser avaliada a partir de critérios retirados de uma outra época ou de uma outra cultura. Contra a idéia de que os períodos históricos se aperfeiçoam gradualmente na mesma medida em que se sucedem cronologicamente, ele afirmará que as contribuições dos tempos mais recentes são compensadas por perdas irremediáveis em relação ao que havia sido conquistado em tempos anteriores.

Ao chamar a atenção para os preconceitos característicos da filosofia de sua época, Herder mostra que somente uma visão capaz de perscrutar a dinâmica interna de um povo ou cultura do passado, de literalmente sentir, ao observá-la, o pathos que a sustém e conduz em cada uma de suas realizações, pode atentar para o sentido profundo que acompanha os diferentes momentos da história da humanidade. O método de Herder pode ser traduzido nesta única palavra: empatia (Einfühlung). Seu objetivo: compreender o caráter singular de cada fenômeno, todo o quadro vivo (das

ganze lebendige Gemälde) do modo de vida, dos hábitos, das necessidades, das

particularidades do país e do céu”51. É necessário, ele escreve, “começar por simpatizar (sympathisieren) com uma nação para sentir somente uma de suas inclinações mais íntimas, somente uma de suas ações e todo o seu conjunto”52.

Em suas investidas contra “os filósofos do século XVIII”53, contra a pretensão

de seus contemporâneos que acreditavam representar o “apogeu e o fim de toda cultura humana”54, Herder mostrava que o espírito moderno das Luzes, ao ignorar as

forças que estão em jogo nos fenômenos históricos, não fazia mais do que projetar um esquema linear e artificial lá onde, no fundo, o que existe é uma realidade movente, cambiante, dinâmica. Mantendo o passado à distância como algo de ultrapassado e superado, a visão racionalista da história, que Herder não hesita em chamar de

51 Cf. HERDER 1774, pp. 167-169. 52 Ibid.

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“mecânica”55, deixava para trás a possibilidade de vivificá-lo. Julgando todas as

coisas segundo os seus próprios padrões de beleza, de justiça, de moral e de felicidade – “cada um no uniforme de sua condição, máquina” (jeder in der Uniform

seines Standes, Maschiene) – “viu desaparecer o desejo de viver, de agir, de viver

humanamente”.56 Alguns anos mais tarde, nas Idéias para a filosofia da história da humanidade (Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit), é contra a

teleologia kantiana da história que Herder se voltará. Neste livro, cuja primeira edição data de 1884, mesmo ano de publicação do escrito de Kant sobre a história universal, Herder mais uma vez afirma que cada realidade histórica é um fim em si mesmo, e não um simples meio para a realização de desígnios a ela alheios.57 Sem citar o antigo

mestre, mas numa alusão bem clara a suas proposições sobre o aperfeiçoamento progressivo dos sistemas políticos na história do mundo, ele se pergunta se não “seria de um orgulho insensato pretender que os habitantes de todas as partes do mundo deveriam ser Europeus para viverem felizes”58. Nas conjeturas que ele propõe em

seguida fazer a respeito da destinação do gênero humano, lemos que, se assim fosse, se o homem estivesse, por exemplo, destinado a um crescimento indefinido de suas faculdades, ou ao Estado como fim de sua espécie, então todas as gerações teriam sido feitas apenas em vista da última, que reinaria soberana e solitária “sobre as fundações em ruínas da felicidade de todos os povos”59. Ao fim do livro VIII das Idéias, num estilo ainda mais corrosivo que o utilizado no escrito anterior, Herder

lança uma espécie de manifesto em nome dos “homens de todos os continentes,

55 Cf. por exemplo, HERDER 1774, p. 240-241 “(...) uma grande parte disto que se convencionou

chamar de civilização nova (dieser sogennanten neue Bildung) é ela própria, na verdade, algo de mecânico (Mechanik); quando se a olha de um pouco mais perto, é o caráter mecânico que constitui o nosso espírito moderno!”. Ver também pp. 242-249, 252-255.

56 Cf. Ibid., pp. 252-253

57 HERDER 1784/91, p. 188: “O fim de uma coisa que não é simplesmente um meio sem vida deve

necessariamente se encontrar nela mesma”. Em Ainda uma filosofia da história... Herder escreve essas palavras tornadas emblemáticas: “Mas eu não posso persuadir-me de que qualquer coisa no reino de Deus seja unicamente um meio – tudo é a um só tempo meio e fim, e o mesmo se dá também para esses séculos.” (Cf. HERDER 1774, p. 224-225)

58 1784/91, p. 136-137. A resposta de Kant a essas alusões virá logo em seguida, numa resenha

publicada em 1785 sobre as Idéias de Herder. Já nas primeiras páginas, Kant fará questão de notar o caráter poético, e “não científico”, do método utilizado por seu autor. Além disso ele chama a atenção do autor do livro pela falta de clareza de sua argumentação, que torna suas idéias “menos aptas a ser comunicadas”. Para além do aspecto irônico da caracterização, ao qualificar o antigo aluno de “filósofo-poeta”, Kant o exclui não somente do campo da filosofia crítica, mas do da ciência em geral.

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desaparecidos desde eternidades”, perguntando-se se eles não teriam vivido e enchido a terra com suas cinzas simplesmente para que no fim dos tempos seus descendentes encontrassem a felicidade na civilização européia.60

A convicção de Herder de que a civilização avança, mas não se torna por isso mais perfeita, fundou as bases de uma concepção da história segundo a qual cada individualidade é uma expressão possível do conjunto da humanidade. É aliás essa solidariedade entre o indivíduo e o todo – entre a originalidade de cada cultura, totalidade fechada sobre si mesma, e a idéia de que cada uma delas é um “espelho do universo”, refletindo à sua maneira o sentido do todo – que Herder busca caracterizar, para isso servindo-se freqüentemente de metáforas orgânicas. Pensados como organismos históricos, cada povo ou nação, cada comunidade e cada época é uma unidade carregada de formas de expressão tão diversas quanto as crenças e ritos religiosos, as leis e instituições políticas e sociais, a organização familiar e suas tradições, suas diferentes manifestações folclóricas e artísticas. Precisamente essa visão “orgânica” do universo humano constituirá o legado mais duradouro da filosofia da história de Herder. Se ela encontrará ecos imediatos na primeira geração de românticos de Iena, sua influência pode também ser identificada, mais de um século depois, na imbricação de consciência histórica e experiência da vida tão cara a um autor como Wilhelm Dilthey. Novalis, por exemplo, que possuía em sua biblioteca todas as obras publicadas por Herder em vida, dará voz a algo de muito parecido ao afirmar que é preciso “animar” a matéria histórica, colocá-la em contato com os órgãos do próprio indivíduo que a estuda de modo a transformá-la em uma

60 Ibid., pp. 146-147. Seria interessante se perguntar em que medida a posição de Herder é aquela

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