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Resenha
Rev Psiquiatr RS set/dez 2006;28(3):363-5
Resenha
Affect dysregulation
and disorders of the self
Allan N. Schore
The Norton Series on Interpersonal
Neurobiology
New York, WW Norton & Company,
2003
Maurício Marx e Silva*
* Psiquiatra. Membro aspirante, Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), Porto Alegre, RS. Subeditor para Neurociências, Rev Psiquiatr RS. A l l a n S c h o r e , P h D , é p r o f e s s o r d e psiquiatria e ciências biocomportamentais na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), lecionando também no Instituto de Psicanálise do sul da Califórnia. É editor especial do Infant Mental Health Journal e pertence ao corpo editorial do periódico Neuro-P s y c h o a n a l y s i s . T e m i n ú m e r o s a r t i g o s , capítulos e alguns livros publicados nos campos da psicanálise, neurociências, teoria do apego, saúde mental infantil, psicologia e psicopatologia do desenvolvimento e teoria da regulação do afeto.
Desde o início da década de 90, a “década d o c é r e b r o ” , e s p e c i a l m e n t e a p a r t i r d a publicação do seu livro Affect regulation and the origin of the self, em 1994, Schore vem pesquisando e publicando sobre a integração dos achados das neurociências básicas com a p s i c o l o g i a d o d e s e n v o l v i m e n t o e a psicodinâmica, construindo, paulatinamente, uma teoria muito bem embasada do self e dos afetos como reguladores do self em sua interação com o ambiente, notadamente o ambiente intersubjetivo.
C o m e s t e l i v r o , n o q u a l o a u t o r desenvolve a integração das evidências c o l e t a d a s n o s ú l t i m o s a n o s d e n t r o d o s e n q u a d r e s d e u m a n e u r o c i ê n c i a desenvolvimental dos afetos (parte I) e de uma neuropsiquiatria desenvolvimental (parte II), sua teoria da regulação/desregulação dos afetos ganha um corpo integrado e definido. Juntamente com este, Schore também lançou um outro volume, uma espécie de livro-gêmeo, Affect regulation and the repair of the self, onde desenvolve a proposta de uma psicoterapia embasada na neurociência do d e s e n v o l v i m e n t o e d e u m a p s i c a n á l i s e e m b a s a d a n e u r o c i e n t i f i c a m e n t e ( o q u e atende à proposta do grande neurocientista E r i c K a n d e l , d e q u e a p s i c a n á l i s e s e reconheça como uma disciplina relacionada à n e u r o c i ê n c i a e n ã o a p e n a s c o m o u m a hermenêutica)1.
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Rev Psiquiatr RS set/dez 2006;28(3):363-5 com o sistema de apego, com o registro
mnêmico dos objetos cuidadores primordiais e dos padrões de adaptação a esses objetos. Ou seja, o aparato inato de sobrevivência p r e v ê , p o r a s s i m d i z e r , a p a r t i c i p a ç ã o externa, da mãe e/ou outros cuidadores, dentro desse sistema regulador do afeto, da mesma forma que, em certos animais, o a p a r e l h o d i g e s t i v o d a c r i a i m a t u r a “pressupõe” que parte do processo digestivo será realizado pelo cuidador (analogia do resenhista), contando com o sistema de apego como garantia de que isso irá ocorrer (e é uma questão, literalmente, de “vida ou m o r t e ” ) . T r a t a - s e d e u m s i s t e m a d e r e g u l a ç ã o h o m e o s t á t i c a d e p e n d e n t e d o exterior, do outro.
Fundamental dentro da proposta do autor é a n o ç ã o d e “ p e r í o d o s c r í t i c o s ” d e plasticidade neural para o sistema de apego, o u s e j a , d e q u e a m e s m a e x p e r i ê n c i a acontecendo no início do desenvolvimento deixará marcas diferentes daquela que venha a ocorrer nas relações mais tardias. A bibliografia neurobiológica, sustentando as d i f e r e n ç a s n a s e s t r u t u r a s e n c e f á l i c a s envolvidas no sistema de apego humano em d i f e r e n t e s p e r í o d o s d o p r o c e s s o d e maturação – como, por exemplo, o excesso sináptico ao final do primeiro ano de vida em certas regiões do córtex pré-frontal do bebê humano, à espera da “poda” sináptica que será dirigida pelas experiências na relação de apego –, é amplamente revisada. Essa bibliografia conflui no sentido de demonstrar em humanos o que já era bem conhecido e aceito em primatas não-humanos e outros mamíferos, qual seja, que a expressão das i n f l u ê n c i a s h e r e d i t á r i a s s o b r e o c o m p o r t a m e n t o , v i a d e r e g r a , r e q u e r e depende das transações com o ambiente durante os períodos críticos para o processo de maturação.
Na proposta do autor, desenvolvida na parte II, as experiências de sintonia ou d e s s i n t o n i a a f e t i v a e n t r e m ã e e b e b ê , especialmente durante os três primeiros anos de vida, período crítico para o sistema de apego, serão cruciais na determinação da estruturação das vias neurais subcorticais, aquelas que posteriormente irão “dar o tom afetivo” do funcionamento cortical. A correção de estados tanto de hipoativação quanto de excitotoxicidade autonômicas – por exemplo, durante a emergência das situações de vergonha, entre os 14 e 16 meses de vida
p ó s - n a t a l – é f u n ç ã o d o c u i d a d o r . Experiências traumáticas, especialmente padrões de apego tipo D (desorientado/ inseguro), poderão lesar o desenvolvimento d e n ú c l e o s s i m p á t i c o s n o h i p o t á l a m o v e n t r o m e d i a l e p a r a s s i m p á t i c o s n o h i p o t á l a m o l a t e r a l , c r u c i a i s p a r a u m a posterior propensão à violência, tanto a de “sangue quente”, reativa, impulsiva, típica
borderline, de tônus autonômico simpático, quanto a de “sangue frio”, não-reativa, de b u s c a d e c o r r e ç ã o d e e s t a d o s d e hipoativação, sociopática, bradicárdica, de tônus parassimpático.
Schore enfatiza, em toda essa obra, a l a t e r a l i z a ç ã o à d i r e i t a d o s s i s t e m a s encefálicos envolvidos, tanto a partir dos estudos de neuroimagem quanto por ser esse hemisfério o dominante nos primeiros anos de vida. Uma implicação importante desse f a t o é q u e o s r e g i s t r o s d o s p a d r õ e s intersubjetivos gravados durante o período crítico serão feitos em sistemas de memória implícita, não-episódica/declarativa, portanto não-evocáveis através de verbalização, mas sim verificáveis a partir da conduta, do p r o c e d e r . A m a t u r a ç ã o d o s i s t e m a d e memória declarativa, episódica, dependente do hipocampo e do córtex temporal se dará só a partir do terceiro ano de vida. Essas evidências neurocientíficas são coerentes com a tendência observada, principalmente nas últimas duas décadas, dentro da técnica psicanalítica, no sentido da construção de significados a partir do que é coletado na relação com o analista e da busca da “matriz” intersubjetiva (por exemplo, em Thomas Ogden2), mais do que do resgate de memórias
reprimidas.
E n f i m , d e p r e e n d e - s e d o q u e f o i rapidamente resumido acima que se trata de uma obra fundamental dentro do processo de “ c o n s i l i ê n c i a ” ( E . O . W i l s o n3) e n t r e a
neurociência dos afetos e dos vínculos e as abordagens mais subjetivas do psiquismo, especialmente a psicanálise. Está escrita de forma bastante técnica, tornando a sua leitura um tanto árida, num estilo completamente d i f e r e n t e d e , p o r e x e m p l o , u m A n t ô n i o Damásio; mas a sua importância compensa o esforço.
REFERÊNCIAS
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Rev Psiquiatr RS set/dez 2006;28(3):363-5 2. Ogden T. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do
Psicólogo; 1996.
3. Wilson EO. Consilience - the unity of knowledge. New York: Alfred Knopf; 1998.
Title: Review of the book entitledAffect dysregulation and disorders of the self
Correspondência: Maurício Marx e Silva Rua Mostardeiro, 333/514
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