Documento de Posição Conjunta da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC) sobre a prescrição dos anticoagulantes orais directos (DOACs/NOACs) para a fibrilhação auricular em receita renovável.
ENQUADRAMENTO
Os Anticoagulantes orais directos (do inglês Direct Oral anticoagulants – DOACs) ou Anticoagulantes Orais Não Antagonistas da Vitamina K (do inglês Non‐vitamin K antagonist oral anticoagulants – NOACs) correspondem ao conjunto de fármacos compostos por apixabano, dabigatrano, edoxabano e rivaroxabano. Apesar de terem efeitos farmacodinâmicos diferentes (dabigatrano com efeito anti‐IIa; apixabano, edoxabano e rivaroxabano com efeito anti‐Xa), estes fármacos partilham um conjunto de características comuns que os diferenciam dos antagonistas da vitamina K (AVK)1, nomeadamente: efeito anticoagulante previsível com doses fixas; ausência de necessidade de avaliação periódica de parâmetros hemostáticos; menor risco de interacções com outros fármacos ou alimentos; e uma maior segurança com menor risco de hemorragia major com redução substancial do risco de hemorragia intracraniana.1
Os primeiros DOACs/NOACs foram aprovados em 2008, obtendo autorização de introdução no mercado no mesmo ano. A indicação inicial foi a prevenção primária do tromboembolismo venoso em adultos submetidos a artroplastia eletiva total da anca ou do joelho. O período desta tromboprofilaxia estava limitado a um máximo de 2 semanas na indicação da artroplastia do joelho e 5 semanas na artroplastia da anca. A comparticipação destes fármacos pelo Serviço Nacional de Saúde para estas indicações começou em 2010. No entanto, estes fármacos expandiram as suas indicações e comparticipações, e desde Agosto de 2014, que 3 dos DOACs/NOACs a ser comparticipados pelo SNS para a prevenção de eventos tromboembólicos em doentes com fibrilhação auricular não‐valvular (apixabano, dabigatrano, rivaroxabano;
edoxabano desde 2017). Nesta indicação, diferentemente das indicações iniciais, está recomendada a manutenção da terapêutica anticoagulante oral de forma indefinida.2 Pela expansão das indicações e comparticipações a prescrição de NOACs tem aumentado substancialmente.
O tipo de receita médica disponível para a prescrição dos DOACs/NOACs, à data desde documento, está confinado às receitas não‐renováveis com duração de 1 mês. Estas seriam adequadas para as indicações iniciais, mas para as indicações mais recentes como a fibrilhação auricular não‐valvular, este tipo de receita torna a prescrição destes fármacos mais burocrática necessitando de um maior número de actos médicos para prescrever mais receitas num curto espaço de tempo, comprometendo também o acesso ao medicamento por parte dos doentes.
POSIÇÃO
A FMUL e SPC em posição conjunta, consideram que os DOACs/NOACs devem ser prescritos em receita médica renovável, uma vez que as suas indicações incluem doenças que carecem de tratamentos prolongados, podendo, sem prejuízo aparente da segurança sua utilização se adquiridos mais do que uma vez, de acordo com Artigo 117º. Decreto‐Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto 2006.3
ARGUMENTOS
1. A prescrição de anticoagulantes orais, em particular dos DOACs/NOACs, tem aumentado nos últimos anos.4 A fibrilhação auricular é provavelmente a patologia mais prevalente com indicação para anticoagulação oral. Neste contexto clínico, comparativamente com os antagonistas da vitamina K, os DOACs/NOACs mostraram uma redução significativa do risco relativo mortalidade, e acidente vascular cerebral (AVC) ou embolia sistémica, em meta‐análises de ensaios clínicos.5
2. Os DOACs/NOACs também mostraram ser mais seguros no que diz respeitos ao risco de hemorragia major, demonstrando uma redução significativa do risco destes eventos, em particular do risco de hemorragia intracraniana, com redução do risco relativo foi cerca de 50% comparativamente com os antagonistas da vitamina K.6
3. A avaliação dos dados de “mundo real” mostram que os DOACs/NOACs estão associados a uma performance clinica similar à dos ensaios clínicos.1,7,8
4. Todos os DOACs/NOACs foram avaliados pelo INFARMED, tendo‐se verificado a existência de valor terapêutico acrescentado, sendo todos eles medicamentos custo‐
efectivos para a realidade portuguesa. 9‐12
5. Em Portugal, nos últimos anos tem‐se observado uma diminuição da mortalidade por AVC, tendo sido reconhecido pelo relatório de 2017 do Programa Nacional para as Doenças Cérebro‐Cardiovasculares, que esta melhoria dos resultados estava associada a um alargamento das indicações de prescrição dos DOACs/NOACs para a fibrilhação auricular.13
6. O comparador nas avaliações dos DOACs/NOACs, para a indicação fibrilhação auricular, foi grupo dos antagonistas da vitamina K, nomeadamente a varfarina. Para este grupo farmacológico, há a possibilidade de prescrever em receita renovável.
7. A literatura científica sugere que o formato de receita médica não‐renovável com validade de 1 mês (30 dias) está associado a uma menor adesão terapêutica comparativamente com receitas renováveis duração maior.14 Verificou‐se uma redução significativa no risco de não‐adesão terapêutica, com odds ratio que variaram entre 0.55 e 0.65.
8. Uma menor adesão terapêutica promovida pelo tipo receituário actualmente disponível para os NOACs/DOACs, aumenta a probabilidade de formação de trombos, sendo neste contexto um fator de risco documentado para AVC e mortalidade, comprometendo o prognóstico dos doentes com fibrilhação auricular.15‐17
CONCLUSÕES
A prescrição de DOACs/NOACs está indicada nos doentes com fibrilhação auricular sem contraindicação para estes fármacos, devendo a administração ser continuada cronicamente.
São fármacos eficazes, e mais seguros que os antagonistas da vitamina K (fármacos com possibilidade de prescrição em receita renovável) em contexto de ensaio clínico e em estudos de “vida real”. Devido a este perfil, os DOACs/NOACs deverão ser prescritos em receita renovável, sem prejuízo da segurança pela possibilidade de aquisição múltipla sem actos médicos intermédios. Para além disso, a possibilidade de prescrição em receita renovável facilita o acesso ao medicamento por parte do doente, podendo diminuir a frequência de não‐adesão terapêutica no que diz respeitos a fármacos de utilização crónica, como é o caso dos DOACs/NOACs na fibrilhação auricular.
Relatores: Prof. Doutor Daniel Caldeira; Prof. Doutor Fausto J. Pinto // Novembro de 2020
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3. Artigo 117º. Decreto‐Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto
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9. Relatório de Avaliação de Pedido de Comparticipação de Medicamento para uso humano ‐ Dabigatrano (Pradaxa). 2014.
10. Relatório de Avaliação de Pedido de Comparticipação de Medicamento para uso humano ‐ Rivaroxabano (Xarelto). 2014.
11. Relatório de Avaliação de Pedido de Comparticipação de Medicamento para uso humano ‐ Apixabano (Eliquis). 2014.
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