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11 - Mulheres sensíveis e homens racionais

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Academic year: 2022

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FRANÇA, J. M. C. Mulheres sensíveis e homens racionais. In:

Ilustres ordinários do Brasil [online]. São Paulo: Editora Unesp, 2018, pp. 71-75. ISBN: 978-85-95462-80-9.

https://doi.org/10.7476/9788595462809.0012.

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11 - Mulheres sensíveis e homens racionais

Jean Marcel Carvalho França

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m ulhereS SenSíveiS e

homenS rAcionAiS

O escritor José de Alencar, logo nas primeiras páginas de um de seus romances mais célebres, Senhora (1875), conta-nos que a sua heroína, Aurélia Camargo, moça que enriqueceu subitamente e que viveu uma grande e mar- cante decepção amorosa, acabou por herdar dos tempos difíceis um grave desvio de caráter. Aurélia, depois de perder o amado para uma moça mais bem posicionada socialmente, passou a cultivar o estranho hábito de racio- cinar como um homem, contrariando a natureza sensível e emocional da mulher. A certa altura do livro, comenta o narrador: “Mas no lampejo dos seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência. Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem”.

A perspectiva do romancista Alencar, convém dizer, não é lá muito original no seu tempo. A bem da verdade, a esmagadora maioria dos homens de cultura do Brasil oitocentista pensava exatamente como o autor de Ira- cema: mulheres são mais sensíveis, homens, mais racio- nais; mulheres agem movidas pelo coração, homens, pelo

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cérebro. O tema mereceu, inclusive, ampla atenção da inte- lectualidade do período, sobretudo de médicos e escri- tores, cujas teses e romances, os urbanos especialmente, discutiram à exaustão a natureza sensível da mulher e a melhor maneira de preservar, numa sociedade repleta de excitações, o seu frágil equilíbrio físico e mental.

O raciocínio desenvolvido por esses pensadores da condição feminina, raciocínio cujos traços centrais ainda podem ser encontrados no quadro de referências de que o brasileiro lança mão para construir socialmente as mulhe- res, variou muito pouco ao longo do Oitocentos e uniu, numa só voz, médicos e beletristas. O seu núcleo é muito bem sintetizado pelo doutor Antonio Gonçalves de Lima Torres na tese Breves considerações sobre o físico e o moral da mulher nas diferentes fases da sua vida, apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1848.

Explica-nos o ilustre doutor: “A debilidade moral ou do sistema nervoso da mulher a torna susceptível de tão pro- fundas e extraordinárias excitações. Enquanto o homem refreia o fogo desabrido das suas paixões com a força da sua razão, iluminada pela filosofia, único santo elmo nos embates, trabalhos e revezes da vida; a mulher, sempre tiranizada pela sua sensibilidade, não as pode dominar, nem ao menos evitá-las; e aquela que conserva mais razão e força experimenta, muitas vezes, por certos estados do corpo, uma infinidade de caprichos e as mais extravagan- tes irregularidades nos seus sentimentos”.

Vê-se que para o doutor Torres, bem como para boa parte da inteligência brasileira do Oitocentos (médicos, escritores, pedagogos etc.), a mulher é, sem sombra de dúvidas, um ser bem mais sensível do que o homem, mas é também, e esse é o preço a pagar por tamanha sensibili- dade, um ser mais instável e dotado de menos razão. Daí a proposição médica, proposição que rapidamente se espa- lhou pelos romances da época e deitou raízes profundas

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no senso comum nacional, de que o exercício das faculda- des intelectuais é não somente inútil para a mulher, como também nocivo. Os romances oitocentistas estão repletos de mocinhas que, dotadas de conhecimentos que excedem a bitola do intelecto feminino, perdem a sua estabilidade emocional e enveredam pelos caminhos do vício. Dois exemplos são especialmente interessantes.

O primeiro deles vem do romance A carne, de Júlio Ribeiro. Encontramos, aí, Lenita, moça criada por um pai viúvo que, ansioso por dotar a filha de uma cultura extraor- dinária, acabou por transformá-la numa mulher devassa e avessa à ideia de contrair matrimônio. O pai desolado, can- sado das cabeçadas da filha, a certa altura lamenta: “estou quase convencido de que errei e muito na sua educação:

dei-te conhecimentos acima da bitola comum e o resul- tado é ver-te isolada nas alturas a que te levantei”. Outro que cometeu o mesmo erro do pai de Lenita foi o também viúvo Jorge, do romance O moço loiro (1845), de Joaquim Manuel de Macedo. Sua filha Raquel recebera uma edu- cação singular e nova, recheada de conhecimentos inade- quados à inteligência de uma moça. Os resultados não poderiam ser piores: a rapariga tornou-se cética e descon- fiada em relação aos homens, tornou-se despreparada para cumprir, como se dizia no século XIX, com suas obrigações de mulher: casar, procriar e bem educar a sua prole.

Em regra, defendem médicos e romancistas, a inteli- gência limitada do sexo feminino apresenta maior compa- tibilidade com as atividades que exigem mais da intuição e da sensibilidade do que das capacidades intelectuais, do raciocínio lógico. Daí a inclinação da mulher para a música de sala, para o canto, para o desenho, para o bordado, para a decoração ou mesmo para o magistério das primeiras letras. É ao piano e ao canto que se dedicam Carolina (A moreninha), Honorina (O moço loiro), Helena (Helena), Iaiá Garcia (Iaiá Garcia) e muitas outras moças de família

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que figuram nas páginas da ficção brasileira oitocentista.

Emília, do romance Diva, de José de Alencar, além des- sas prendas, cultivava o desenho, e Aurélia Camargo (Senhora), antes de receber uma polpuda herança do avô paterno, pensava sobreviver ensinando as primeiras letras num colégio ou numa casa de família. Recordemos ainda do ilustrativo caso de Olímpia (O livro de uma sogra, de Aluísio Azevedo), mulher equilibrada, boa esposa e boa mãe, que se gabava de ter tido uma educação ideal, uma educação totalmente afinada com os anseios médicos:

“Eu, pelo meu lado, – inocente e pura, educada sob os mais austeros exemplos da moral e virtude, tendo feito a minha aprendizagem doméstica sem prejuízo dos meus pequenos dotes sociais; sabendo coser, como sabendo bordar; dirigir o serviço dos criados, governar uma casa, como sabendo piano, receber visitas e dançar uma valsa;

e mais: tinha boa ortografia, alguma leitura, que não era composta só de maus romances, um pouco de francês, um pouco de inglês, um pouco de desenho, [...] princípios reli- giosos bem regulados, caráter sereno, [...] seguros hábitos de asseio, alinho e gosto no vestir [...]”.

É certo que tais construções dizem respeito ao século XIX e que, quando em pleno alvorecer do século XXI, se apela para as potencialidades de uma suposta sensibilidade feminina, apresentando-a como um traço de distinção e de superioridade em relação ao sexo oposto, as relações anteriormente apontadas não são, em geral, nem mesmo supostas. Ocorre, porém, que as construções coletivas são por vezes persistentes e, quando repetidas ao ponto de se transformarem numa quase cantilena, resistem obstina- damente à mudança. Por quase dois séculos habituamo- -nos, com mais ou menos consciência, a associar o tal quantum a mais de sensibilidade da mulher a um déficit de razão, de inteligência. É, pois, pouco provável que, de uma hora para outra, tal associação desapareça do senso

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comum do brasileiro. Por enquanto, aquele que lança mão do estereótipo da mulher mais sensível como um trunfo do sexo feminino, queira ou não, lança mão tam- bém dos pequenos inconvenientes que lhe estão associa- dos: a histeria, o descontrole emocional, a impulsividade e, sobretudo, o uso limitado do intelecto. Resta avaliar se as vantagens da intuição privilegiada compensam o ônus da razão minguada.

Referências

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