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45º Encontro Anual da Anpocs. GT29 - O cuidado na agenda política

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45º Encontro Anual da Anpocs

GT29 - O cuidado na agenda política

Entre o Assistencialismo e o Cuidado como Direito: práticas argumentativas dos cuidadores sociais de pessoas com deficiência no Sistema Único de Assistência Social

(SUAS)1

Edgilson Tavares de Araújo (Universidade Federal da Bahia)

1 Esse texto traz parte dos resultados da pesquisa “Tecnologia de formação para cuidadores de pessoas com deficiência no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)”, apoiada pela Chamada CNPq Nº 09/2017 – Bolsas de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora – DT.

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RESUMO: O SUAS, a partir de 2012, cria instrumentos de políticas públicas de cuidados para pessoas com deficiência e suas famílias, ofertando serviços especializados em Centros-dia (CD) e Residências Inclusivas (RI). Visam diminuição do ônus do cuidador familiar, aumento da autonomia e melhoria dos vínculos e interdependência. Os argumentos sobre essas políticas estão presentes no discurso e em práticas que se moldam à medida que vão sendo implementadas, principalmente, por cuidadores sociais. Para além da institucionalização e dos recursos para a viabilidade da policy, é preciso a incorporação de novas gramáticas que compreendam o modelo social da deficiência e o cuidado como direito. É preciso avançar nas análises além dos aspectos normativos e prescritivos, compreendendo as condições nas quais os CD e RI têm atuado e como cuidadores sociais têm entendido os problemas públicos, qual o rigor do engajamento destes, quais racionalidades e fontes de preconceitos que existem.

PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas de cuidados; pessoas com deficiência; SUAS;

cuidadores sociais 1. Introdução

O cuidado enquanto objeto interdisciplinar de política pública vem ganhando relevância nas agendas políticas e institucionais, na pesquisa científica e nos processos de formação/capacitação no Brasil. Tem-se aprofundado o tema associando-o, principalmente, as questões de gênero, juventudes e idosos. É apresentado em diferentes contextos e enfoques teórico-práticos que, embora possam ter algumas similaridades, exige pensar nas distintas situações de vulnerabilidades e necessidades existentes dos que demandam por cuidados (TAMANINI et. all. 2018), atentando a questões relacionadas a equidade, interseccionalidade e intersetorialidade. Ao pautar tais agendas, deve-se atentar para que não haja reprodução preconceitos sobre as pessoas com marcadores sociais de diversidades e os paradigmas sobre o cuidado.

Os disability studies vem dando especial atenção ao tema, a partir novas gerações de análises sobre o modelo social da deficiência, para além da lógica biomédica que se apoia num discurso negativo de uma ideologia corponormativa, gerando a segregação em função das funcionalidades corporais, habilidades e estilos de vida. Tais estudos buscam avançar ainda quanto as lógicas sobre as opressões exercida pelos saberes biomédicos e por estruturas sociais cabendo, assim, ações públicas e intervenção do Estado, bem como, sobre as concepções de participação, autonomia e (inter)dependência das pessoas com deficiência e suas famílias (DINIZ, 2007; SHAKESPEARE, 2018; SHAKESPEARE, WATSON, 2006).

No campo dos policy studies a questão central tem sido como o cuidado é entendido enquanto direito, um dever e uma profissão no âmbito da proteção social. Ou seja, deixar

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de ser algo referido a esfera privada da família, passando a compor um tema prioritário para a esfera pública, no âmbito do Estado e da sociedade civil. O cuidado, portanto, diz respeito ao conjunto de bens, serviços, benefícios, valores e afetos envolvidos na atenção as pessoas que possuam algum tipo de dependência, em diferentes idades (ARAÚJO, 2018;

CEPAL, 2015; VENTURIELLO, 2016). Ressalta-se, assim, que a dependência de cuidados de terceiros é um problema público emergencial na América Latina e, em especial no Brasil, uma vez que, além de termos políticas de cuidado neófitas, não temos uma cultura e responsabilidade pública voltada para tal compreensão. Além disso, carecemos entendimentos sobre a dependência como fenômeno multidimensional, complexo e relacional, que envolve questões estruturais e intersetoriais, variando conforme marcadores interseccionais de gênero, classe, raça, idade, sexualidades, tipo de deficiência, entre outros. Defendo que ausência ou precariedade nas ofertas públicas de cuidados aumenta os riscos e vulnerabilidades das famílias, constituindo barreiras e violações de direitos sociais.

Em termos normativos, o direito ao cuidado para a pessoa com deficiência passa a ser evidenciado a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), da ONU, assinada em Nova York, em 30 de março de 2007, e seu protocolo assinado pelo Brasil, por meio do Decreto Legislativo no 186/2008 e o Decreto nº 6.949/2009; e da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) (Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015) (ARAÚJO, 2015, 2017, 2018; ARAÚJO, BOULLOSA, 2017). Estas deram o impulso definitivo para as mudanças do paradigma médico-assistencialista para o paradigma social para as políticas públicas sobre deficiência, tendo como pilar a lógica dos direitos humanos (ANAUT-BRAVO, URIZARNA, VERDUGO, 2012), dos cuidados e da proteção social.

Cria-se, assim, uma “janela de oportunidade” para iniciarem argumentações em torno do desenho e implementação ofertas públicas de cuidados para pessoas com deficiência e suas famílias.

Esses e outros instrumentos legais, além da implementação de serviços pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e pelo Sistema Único de Saúde (SUS) vem, de certo modo, criando uma nova organização social do cuidado voltado as pessoas com deficiência. Alguns instrumentos de policy foram desenvolvidas com o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver Sem Limite (Decreto nº 7.612, de 17 de novembro de 2011) que estabeleceu 38 metas interinstitucionais para serem alcançadas entre 2011 e 2014. com investimento total de R$7,6 bilhões, e previam a integração,

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transversalização e matriciamento das ações em quatro grandes eixos: educação, saúde, acessibilidade e inclusão social. Esse plano desencadeou ações voltadas para cuidados no âmbito SUS como, por exemplo, a instituição da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência (Portaria n° 793/2012), tendo como objetivo geral a ampliação do acolhimento, classificação de risco e qualificação do atendimento às pessoas com deficiência, com foco na qualificação do acesso e a oferta de serviços e ações de saúde no sentido de integralidade do cuidado. Assim, ampliou-se a criação de Centros Especializados em Reabilitação (CER), equipamentos ambulatoriais especializados em reabilitação que realiza diagnóstico, avaliação, orientação, estimulação precoce e atendimento especializado em reabilitação, concessão, adaptação e manutenção de tecnologia assistiva2, constituindo-se em referência para a rede de atenção à saúde no território. No SUAS, pode-se destacar a implementação das alterações do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e implementação do Programa BPC Trabalho3, além da criação de dois novos serviços socioassistenciais para oferta de cuidados em equipamentos públicos da proteção social especial para pessoas com deficiência e suas famílias: 17 (dezessete) Centros-dia para Jovens e Adultos com Deficiência (CD-JA)4; 07 (sete) Centros-dia para Crianças com Microcefalia (CD-M) 5, e 108 Residências Inclusivas (RI)6. Seguindo as prerrogativas da LBI, em seu Art. 39, §2º, a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos/SUAS (NOB-SUAS) e a Resolução CNAS nº9/2014, tais serviços socioassistenciais devem

2 Tecnologia assistiva ou ajuda técnica são: “produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias,

estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social” (BRASIL, 2015, p. 2)

3 Ver Portaria Interministerial nº 2, de 02 de agosto de 2012

4 O Centro Dia Jovem e Adulto oferta serviços de cuidados para pessoas de 16 a 59 anos com qualquer tipo de deficiência e suas respectivas famílias, em situação de dependência, como equipamento da Proteção Social Especial do SUAS tendo como objetivos o desenvolvimento da convivência; fortalecimento de vínculos familiar, social e grupal; aprimoramento dos cuidados pessoais; desoneração do cuidador familiar.

Atualmente, existem cofinanciados 17 (dezessete) Centros-dia para Jovens e Adultos com Deficiência.

5 Em 2017, no governo Michel Temer, dado o aumento de casos de microcefalia, a partir da Síndrome Congênita do Zika Vírus, e a realização de busca ativa das famílias para acesso a serviços e benefícios por parte dos Centros de Referência em Assistência Socia (CRAS) e Centros de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS) e com o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13257/2016), em 2017, o Ministério da Cidadania, houve uma mudança de rota, definida como expansão do cofinanciamento federal do Serviço de Proteção Social Especial na Unidade Centro-dia, criando novos equipamentos voltados para Crianças com Microcefalia e outras Deficiência, prioridade 0 a 6 anos. Existem 07 (sete) Centros-dia para Crianças com Microcefalia cofinanciados pelo governo federal, estaduais e municipais (ARAÚJO, 2019),

6 A Residência Inclusiva é uma unidade que oferta Serviço de Acolhimento Institucional, no âmbito da Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS, voltada aos jovens e adultos com deficiência, com direitos violados, que não disponham de condições de autossustentabilidade ou de retaguarda familiar (BRASIL, 2012 apud ARAÚJO, 2018). Existem 108 Residências Inclusivas cofinanciadas, atualmente (ARAÚJO, 2019)

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contar com profissionais de nível médio, denominados cuidadores(as) sociais para prestar cuidados básicos e instrumentais para as pessoas com deficiência. Estes têm atuado nos serviços sem que haja, por exemplo, formações básicas exigidas (ARAÚJO, 2017, 2018).

Tais fatos mostram a emergência da dimensão política do cuidado, criando arenas em torno dos problemas públicos que envolvem a sua organização social demandando as chamadas “políticas públicas de cuidados”. De modo explícito ou implícito, estão presentes no discurso e em algumas práticas que se moldam à medida que vão sendo implementadas. Isso é algo que parece ser recorrente no Brasil: desenhar políticas a partir das alternativas, mesmo sem ter clareza sobre quais são os problemas públicos que as originam (ARAÚJO, 2018). Assim, tem sido criados os chamados serviços de cuidados para pessoas com deficiência, que compartilham os ônus dos cuidados familiares com cuidadores sociais profissionais.

Ao que parece, a prerrogativa de desenho e implementação das políticas de cuidados é baseada em duas variáveis, recursos e instrumentos; além de um valor buscado, a viabilidade (BOULLOSA, 2013). Quando analisadas quanto ao não atingimento das metas previstas, coloca em questão além do grau de complexidade e tratabilidade do problema público, o nível de inovação dos serviços socioassistenciais de cuidados, os subsistemas políticos envolvidos e a capacidade técnica instalada ou não para tratar da questão da oferta de cuidados sociais para a pessoa com deficiência e suas famílias.

Pressupõe-se, assim, que para a implementação desses instrumentos de política pública do SUAS, é preciso se efetivar a institucionalização (esforços descritivos e depois experenciados de definição e encaixe de novos serviços em um contexto precedente de outras institucionalidades, normas, procedimentos etc.), e que existam recursos (cognitivos, econômicos, financeiros, pessoais, organizacionais que se esperam ativar) disponíveis que, neste caso havia. Por isso, Araújo e Boullosa (2018) ressaltam que para além destas variáveis, depende-se da incorporação de novas gramáticas (conjuntos de definições, de práticas, de rotinas que são, quase sempre primeiramente, descritas e, posteriormente, vividas, experenciadas). Nesse caso, gramáticas relacionadas a incorporação de novos sentidos e paradigmas sobre as pessoas com deficiências e os cuidados que demandam e que criam argumentações práticas.

A argumentação é uma prática comunicativa e política que se refere a construção e reflexão de realidades sociais por meio de ações baseadas em crenças, ideologias, identidades e poderes. Assim, as práticas argumentativas envolvem não apenas a produção

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de significados por meio de recursos verbais, não verbais e interacionais que comandam, mas a atenção a como o emprego desses recursos criam processos e significados (FISCHER, GOTTWEIS, 2012), nos espaços de implementação das políticas públicas de cuidados.

O objetivo desse paper é analisar a construção dos argumentos e práticas argumentativas dos(as) cuidadores(as) sociais dos Centros-dia e Residências inclusivas do SUAS, a partir das narrativas destes(as). A análise é feita a partir da abordagem da Virada Argumentativa em políticas públicas (Argumentative Turning) (FISCHER, FORESTER, 1993, 2002; FISCHER, 2007; FISCHER, GOTWEISS, 2012; HANSSON, HADORN, 2016) e das contribuições sobre o cuidado nos disability studies (SHAKSPEARE, WATSON, 2001; OLIVER, 1996; KITTAY, 1999 [2020]; DINIZ, 2007). Assim, pretende-se avançar nas análises sobre as condições nas quais os Centros-dia e Residências Inclusivas têm sido cotidianamente implementados, como os(as) cuidadores sociais entendem e enquadram os problemas públicos que tratam, qual o rigor o engajamento destes profissionais, quais racionalidades e fontes de preconceitos que existem (FISCHER, FORESTER, 2002).

Foi realizada uma breve revisão bibliográfica sobre o cuidado a partir do modelo social da deficiência e sobre Argumentative Turning que embasam a pesquisa de campo que foi realizada em duas etapas. A primeira consistiu na realização 12 (doze) entrevistas semiestruturadas com cuidadores profissionais dos CD e RI, a partir de indicações de órgãos gestores locais do SUAS, em cidades de diferentes portes em todo o Brasil. Foram 08 (oito) mulheres e 04 (quatro) homens, sendo todas as entrevistas realizadas por chamada de vídeo via GoogleMeet ou WhatsApp, mediante de Termo de Consentimento Livre e Informado, com duração que variou de 38 minutos a 1 hora e 31 minutos. Todas foram gravadas e transcritas na íntegra, sendo realizada análise de conteúdo dos discursos que fundamentam as argumentações em torno do cuidado às pessoas com deficiência. A análise de conteúdo dessas entrevistas gerou de seis categorias analíticas que emergem dos discursos: prevalência de visões biomédicas e assistencialistas sobre as pessoas com deficiência; cuidado assistencialista, capacitista e “angelical” versus cuidado social;

necessidade de capacitação específica para cuidar; aprender a cuidar pela prática;

autonomias e (inter)dependência do cuidado; gestão desintegrada do serviço de cuidados.

Essas categorias serão apresentadas ao longo do texto. A partir delas foi elaborado o instrumento aplicado na segunda etapa da pesquisa, que consistiu numa pesquisa survey

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com aplicação de questionário contendo perfil socioeconômico e cultural de 248 (duzentos e quarenta e oito) cuidadores(as) sociais atuantes em CD e RI, em todo o Brasil. Nesse artigo, apresento apenas a análise de duas das três questões qualitativas contidas nesse instrumento, no intuito de evidenciar algumas práticas argumentativas dos(as) cuidadores(as).

Além dessa introdução, o texto está dividido em mais quatro partes. Na segunda abordo aspectos teóricos sobre o a compreensão do cuidado a partir do dos disability studies. Na terceira trago alguns fundamentos sobre as políticas de cuidados e aspectos teórico-metodológicos da Argumentative Turning e sua aplicação na pesquisa. Após isso, evidencio algumas das análises realizadas a partir da pesquisa empírica enfatizando categorias analíticas que surgiram dos discursos dos cuidadores entrevistados e dados da pesquisa survey. Por fim, são tecidas algumas considerações finais.

2. O cuidado nos Disability Studies

Construir uma perspectiva emancipatória da deficiência tem sido um desafio para a produção do conhecimento (GESSER, MORAES, BOCK, 2020) e impacta diretamente nas lógicas do cuidado e das políticas públicas. Isso pressupõe compreender que o problema público não é a deficiência, mas as lógicas corponormativas que embasam o capacitismo, neologismo usado para designar o preconceito, discriminação e violências estruturais contra pessoas com deficiência) e que constroem barreiras que impedem a plena participação social destas pessoas na sociedade. O capacitismo diz respeito a um processo de hierarquização das pessoas em função da adequação de seus corpos a um ideal de perfeição e capacidade funcional, gerando preconceitos, discriminação e exclusão, relacionadas a padrões de beleza e capacidade funcional, diante de um ideal corpo- normativo (MELLO, 2016).

Na década de 1970, surge no Reino Unido, novos paradigmas em torno do chamado modelo social da deficiência. Torna-se um referencial para os direitos humanos tratando a pessoa com deficiência como um sujeito e não só um objeto de direito, um cidadão e não um problema. Este modelo contrapõe o paradigma biomédico, no qual a deficiência estava associada apenas a uma disfunção do corpo que se tornava imperfeito, frente a um padrão de normalidade, na qual deveria se intervir sobre o corpo para promover melhor

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funcionamento quando possível, buscando reduzir as desvantagens sociais (DINIZ, 2007;

GESSER, MORAES, BOCK, 2020)).

A primeira geração do modelo social surge na UPIAS - Union of the Physically Impaired Against Segregation (Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação), sendo uma organização pioneira formada e gerenciada por pessoas com deficiência na história da civilização. O modelo tornou-se massivamente importante na Inglaterra enquanto uma estratégia política para remoção de barreiras a fim de promover a inclusão, bem como, ao invés de prosseguir numa lógica de cura e reabilitação médica, buscou-se uma estratégia de mudança social, de modo que a deficiência fosse provada como resultado da discriminação social (BARNES, 2003). O percursor na defesa deste modelo foi o antropólogo Paul Hunt (1966) sendo difundido por autores como Vic Finkelstein, Colin Barnes e Mike Oliver. Estes apontam que a deficiência não era um problema em si, mas uma condição humana, uma característica identitária, uma questão sociopolítica.

Questionam e percebem criticamente qual o lugar ocupado por estas pessoas na sociedade, tornando-se, assim, uma nova ideologia para distinguir as organizações, políticas, leis e ideias que são progressivas das que são inadequadas. A deficiência passa a ser vista como

“opressão social” frente às barreiras físicas e sociais impostas na sociedade (SHAKSPEARE, WATSON, 2001; OLIVER, 1996). Portanto, diferente das abordagens biomédicas, não se trata de “um problema individual”, “uma tragédia pessoal”, mas uma questão eminentemente social (OLIVER, 1996).

Na década de 1980, Abberley apud Diniz (2007) busca diferenciar opressão de exploração e apresentar a lesão como uma consequência perversa do capitalismo, já que para o modelo biomédico a lesão levava à deficiência, e para o modelo social, os sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência. Buscou explicar a deficiência pelo contexto socioeconômico que as pessoas vivenciam, bem como, que outros grupos sociais, como idosos, também experienciam a lesão e a deficiência.

Desse modo, agregam-se elementos a tal paradigma de modo a reconhecer desvantagens sociais, econômicas, ambientais e psicológicas, enfatizando como as pessoas com deficiência resistem a estas; a produção histórica das deficiências e não apenas das lesões como resultados naturais; o reconhecimento do valor da vida; a adoção de uma perspectiva política para a justiça social.

Apesar do avanço desta primeira geração de estudos da deficiência na construção do modelo social, tendo como foco o reconhecimento das opressões e que sendo retiradas

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as barreiras sociais as pessoas com deficiência seriam independentes, nos anos 1990 e 2000, surge uma segunda geração. Trata-se das críticas feministas que fez analogias entre o corpo deficiente e o sexismo, apontando paradoxos que acompanhavam os pressupostos criados pelos primeiros teóricos do modelo social (todos homens brancos, com lesão medular). Na primeira geração, criticava-se o capitalismo, mas, por outro lado, lutava-se pela inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, a partir da eliminação de barreiras. As teóricas feministas, mulheres com deficiência e/ou cuidadoras, trouxeram à tona questões referentes a subjetividade do corpo lesado, bem como, as intersecções entre as opressões pelo corpo deficiente com a raça, gênero, orientação sexual ou idade. Essas

“variáveis de desigualdade” (DINIZ, 2007) ou “marcadores sociais da diferença” (BILGE, 2009; HENNING, 2015 apud MARTINS, MONTEIRO, 2020) são afetadas por ações discriminatórias, opressivas e atitudes preconceituosas que geram, na perspectiva da interseccionalidade, sobreposições de opressões que se cruzam (CRENSHAW, 2012).

Enfim, nessa segunda geração, há uma série de conquistas argumentativas do modelo social, reforçando a tese original deste e acrescentado: “1) a crítica ao princípio da igualdade pela independência; 2) a emergência do corpo com lesões; e 3) a discussão sobre o cuidado” (DINIZ, 2007, p.27).

Graças a ética feminista do cuidado, defendida por autoras como Eva Kittay (1999, 2020), filósofa e cuidadora de uma filha com deficiência, passa-se a evidenciar a interdependência como um valor humano que se aplica a pessoas com e sem deficiência, considerando que as relações de dependência são inevitáveis na vida social. A autora faz uma crítica feminista a lógica tradicional de igualdade na qual afirma que quando uma sociedade é vista como uma associação de iguais, ela mascara dependência inevitáveis ao longo da vida, que podem ser marcadas por deficiências e doenças. Quem cuida de pessoas com deficiência com algum tipo de dependência acaba colocando os seus interesses pessoais de lado para poder cuidar de alguém em situação de extrema vulnerabilidade.

Nesse sentido, a igualdade seria ilusória para as mulheres, ao menos que estas tenham apoios institucionais que as permitam deixar o ônus exclusivo do cuidado. Nesse sentido, na obra Love’s Labor, de Eva Kittay, publicada em 1999 e reeditada em 2020, busca inserir a noção de dependência e interdependência numa nova teoria de igualdade. O argumento central é que ao não considerar a dependência como preocupação social e política, passamos a fingir que somos independentes e que a cooperação entre as pessoas interdependentes é simplesmente algo mútuo e voluntário. Ocorre que a dependência

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mútua não pode ser eliminada sem excluir partes significativas de nossas vidas e grandes porções da população do domínio da igualdade.

Essas questões trouxeram grande avanço para a compreensão do modelo social da deficiência, uma vez que ao passo que se fortalece as noções sobre opressões que impedem a participação social, também não se romantiza as condições de vulnerabilidade das pessoas com deficiência e de suas(seus) cuidadoras(es) familiares. O cuidado passa a ser compreendido como um direito fundamental à vida e à dignidade humana e por isso deve ser compartilhado pelo Estado e pela sociedade, reconhecendo “a deficiência (incluindo aí a dependência) como condição inerente à diversidade humana” (MELLO; NUERNBERG, 2012, p. 642). Diante disso, entendo que o cuidado deve ser considerado como um direito universal de cidadania e, assim, tem de ser entendido a partir de várias dimensões: a material, do trabalho em si; a econômica, por implicar em custos; a psicológica, por estar relacionada a criação de vínculos afetivos, emocionais e sentimentais; a simbólica, por refletir traços culturais das famílias e sociedades. Trata-se de compreender um sistema/regime sobre quem cuida, onde e quem paga os custos do cuidado (CEPAL, 2015;

VENTURIELLO, 2016).

3. Políticas públicas de cuidados: entre normas, prescrições e argumentos

Cuidar vem sendo reconhecido como um direito, um dever e uma profissão no âmbito das políticas públicas de proteção social (CEPAL, 2015). Na complexidade e polissemia sobre o cuidado às pessoas com deficiência, deve-se compreender as relações de interdependência, as lógicas de igualdade de oportunidades, e o tratamento e o respeito as trajetórias pessoais e familiares, num contexto de ampliação de direitos de cidadania (ARAÚJO, 2015, 2018).

Em que pese os avanços com relação aos marcos normativos no campo das pessoas com deficiência, implicando numa revisão do entendimento sobre como as sociedades lidam com o cuidado para com estas, por meio da ação pública articulada entre Estado, famílias e mercado, ainda é preciso situar o cuidado na reprodução cotidiana da vida, reconhecendo-se a injustiça e a reprodução das desigualdades, a partir da divisão das atribuições por cuidar de alguém (ENRIQUEZ, 2018). Por razões culturais, historicamente, a questão da organização social do cuidado esteve confinada ao espaço privado (KARSH, 2013), da casa, da mulher, numa lógica restrita, caritativa e moral,

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carregada de preconceitos de gênero, atribuindo a figura feminina, uma “vocação nata”

para cuidar (ARAÚJO, 2017), que faz com que as mulheres tenham um alto ônus da responsabilidade do cuidado informal. Diante da ausência de ofertas públicas, cuidar torna- se cada vez mais oneroso, levando a questão de que quanto maior o nível de dependência de cuidados de terceiros, maior a possibilidade de aumento de riscos e vulnerabilidades para a pessoa com deficiência e suas famílias. O alto ônus familiar para cuidar, dada a ausência ou precariedade de políticas públicas, pode gerar violações de direitos (ARAÚJO, CRUZ, 2012; SHAKSPEARE, 2018).

Transita-se de um paradigma do “cuidado caritativo-filantrópico” para o para o

“cuidado como direito social”. O primeiro, vê as pessoas com deficiência como problema para a família e sociedade, tendo foco nas ações privadas e isoladas voltadas a benesse, caridade e filantropia. O segundo entende que o cuidado deve ser garantido pelo Estado, promovido conjuntamente com e para a família, ofertado de modo profissional por meio de ações públicas integradas e intersetoriais voltadas para o aumento da autonomia das pessoas com deficiência, enquanto um eixo fundante (ARAÚJO, 2018). Neste caso, demanda conhecimentos técnicos e culturais, sensibilidades e afetos por parte dos cuidadores que propiciem à pessoa com deficiência experiências efetivas e afetivas quanto a sua autonomia, respeito aos seus desejos e capacidades de decisão. Isso implica em ressignificar a compreensão do que vem a ser o processo de cuidar de alguém que possui dependência, implicando também em rever os papéis dos cuidadores familiares ou profissionais (ARAÚJO, 2018). O cuidado social reflete para as alternativas para o desenvolvimento da convivência, fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, aprimoramento de cuidados pessoais, aumento da autonomia/independência e desoneração do cuidador familiar.

O cuidado familiar deve sempre ser analisado a partir dos cruzamentos de marcadores de classe, gênero e raça; da compreensão sobre o acesso (ou não) a serviços de proteção social e garantia de direitos; do stress e sobrecarga da cuidadora familiar; do envelhecimento familiar e das pessoas com deficiência etc. Isso leva a identificar, por exemplo, o porquê de algumas cuidadoras familiares exercerem lógicas protecionista que impede a construção da autonomia da pessoa com deficiência, gerando uma relação de maior dependência entre quem cuida e quem recebe o cuidado. Muitas mães de pessoas com deficiência reforçam a ideia de que sequer têm o “direito a morrer”, dada à incerteza sobre quem assume as responsabilidades pelos cuidados de seus filhos e parentes em caso

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de morte (ARAÚJO, 2017). Neste sentido, é fundamental entender que o cuidado para pessoas com deficiência deve ser uma diretriz para a ação pública e que isso é algo muito recente que está relacionado a estabelecer um novo paradigma quanto à atenção e proteção social para este grupo da sociedade a partir do modelo social da deficiência e do respeito às diversidades de corpos, enquanto pressupostos éticos (ARAÚJO, 2015, 2017).

As políticas públicas de cuidados para pessoas com deficiência podem compreendidas como:

diretrizes para a ação pública que, de modo multiatorial e intersetorial, criem instrumentos para diminuir os níveis de dependência das pessoas com deficiência e suas famílias, com suas consequentes vulnerabilidades, buscando ampliar a autonomia e independência por meio da oferta de bens e serviços públicos que gerem proteção social” (ARAÚJO, 2017, p. 111).

É urgente que os formuladores e implementadores de policy compreendam que a deficiência em si é um marcador de vulnerabilidade que pode ser agravante de situações de risco, principalmente, a depender do nível de dependência de cuidados que se tenha. Tal situação de vulnerabilidade pode conduzir a uma forma de dependência mútua entre quem cuida e quem recebe os cuidados. Para cuidar depende-se, além de competências individuais e dedicação do familiar, de condições garantidas pelo Estado e pela sociedade, por exemplo, sobre as condições de acessibilidade num dado território. A ausência de políticas públicas, redes sociais e comunitárias aumentam as relações assimétricas do cuidado familiar que são estabelecidas a partir de uma lógica moral do afeto e da confiança (VENTURIELLO, 2016).

No âmbito do SUAS, lócus desse estudo, existem como equipamentos públicos para ofertas específica de serviços de cuidados para pessoas com deficiência e suas famílias nos Centros dia (jovens e adultos e microcefalia), no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade, tendo em vista que se trata de um público sob risco agravado por violações de direitos, mas que existem vínculos familiares. O CD-JA oferta serviços de cuidados para pessoas de 16 a 59 anos com qualquer tipo de deficiência e suas respectivas famílias, em situação de dependência, sendo caracterizado como um novo equipamento da Proteção Social Especial, vinculado ao Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS). Nesta perspectiva, os serviços realizam atividades para o desenvolvimento da convivência; fortalecimento de vínculos familiar, social e grupal;

aprimoramento dos cuidados pessoais; desoneração do cuidador familiar. Já os CD-M ofertam serviço de cuidados para crianças com microcefalia decorrentes da Síndrome

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Congênita do Zika Vírus, tendo ampliado para outras deficiências também. Ambos funcionam em dias úteis no período diurno, atendendo no máximo 30 (trinta) usuários por turno e tendo em média de 10 cuidadores sociais. (BRASIL, 2012 apud ARAÚJO, 2018).

Na Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS, os serviços são ofertados para pessoas com deficiência com direitos violados e sem vínculos familiares, por meio de Residências Inclusivas. Estas são unidades que ofertam Serviço de Acolhimento Institucional, voltada aos jovens e adultos com deficiência, com direitos violados, que não disponham de condições de autossustentabilidade ou de retaguarda familiar. São locais de moradia com acessibilidade, com estrutura física adequada, localizadas em áreas residenciais na comunidade. Funcionam 24h por dia, com no máximo 10 (dez) usuários por equipamento, contando com um cuidador e um auxiliar de cuidador para cada 06 (seis) usuários (BRASIL, 2012 apud ARAÚJO, 2018).

Estes serviços foram desenhados para serem cofinanciados pelos entes federativos e têm um caráter inovador na oferta de cuidados sociais e, por isso, são pautados na interdisciplinaridade das equipes técnicas que possuem além de profissionais de nível superior, cuidadores sociais profissionais que podem apoiar as pessoas com deficiência no desenvolvimento de atividades básicas (higiene pessoal, locomoção, vestir-se, comer etc.) e instrumentais (voltadas para o desenvolvimento pessoal e social que favorecem a participação social, tais como usar meios de transporte, cozinhar, comunicar-se, reconhecer moedas e saber usá-las, cuidar da saúde, entre outras (BATISTA et all, 2018;

ARAÚJO, 2018).

É importante ressaltar que, historicamente, no Brasil, a noção de cuidador profissional esteve intimamente atrelada apenas aos profissionais de enfermagem, por possuírem conhecimentos técnicos na área de saúde. Além disso, como já tratado, possui um forte viés associado a figura feminina, por compreender que esta possui uma vocação nata para cuidar. Deve-se salientar que a depender dos tipos e níveis de dependência de uma pessoa com deficiência, a atuação de outros profissionais sociais, independentemente de sua formação de nível médio ou superior e de seu sexo, pode ser uma alternativa necessária para a efetividade dos cuidados (ARAÚJO, 2017)

Atualmente, nos CD e RI que são cofinanciados, existem cerca de 456 (quatrocentos e cinquenta e seis) cuidadores sociais profissionais que atuam nos serviços especializado do SUAS, que são municipalizados e recebem cofinanciamento dos três níveis de governo: 17 (dezessete) Centros-dia para Jovens e Adultos com Deficiência; 07

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(sete) Centros-dia para Crianças com Microcefalia, e 108 Residências Inclusivas (ARAÚJO, 2019). Importante ressaltar que esses números dizem respeito apenas aos equipamentos cofinanciados, uma vez que de acordo com dados do Censo SUAS 2019 (BRASIL, 2020), como já existem 1664 Centros-dia, atendendo a 3.818 pessoas com deficiência, sendo que, 1385 (36,3%) atendendo adultos com algum grau de dependência.

70% destes são vinculados a redes de entidades privadas (APAES, Pestalozzi etc.) e atuam nesses serviços 29817 trabalhadores, sendo 1473 cuidadores sociais, 267 auxiliares de cuidador e 3089 orientadores/educadores sociais.

Apesar de não definir claramente o que é o cuidador social, a Resolução CNAS nº 9, de 15 de abril de 2014, define as funções destes e a diferencia dos orientadores/educadores sociais que geralmente são profissionais que estão mais vinculados ao desenvolvimento de atividades socioeducativas tais como oficinas. Cabe, assim, ao cuidador social desenvolver atividades de cuidados básicos essenciais para a vida diária e instrumentais de autonomia e participação social dos usuários; bem como, atividade de acolhimento, recepção no ambiente, proteção integral e promoção da autonomia e autoestima dos usuários (BRASIL, 2014)

A própria Lei Brasileira de Inclusão (LBI), em seu artigo 3º, define como profissionais de cuidados: atendente pessoal (com atribuições similares ao cuidador social), profissional de apoio escolar (que deve atuar em todos os ambientes educacionais formais públicos privados para dar suporte as atividades da vida diária e as atividades escolares) e o acompanhante (que acompanha a pessoa com deficiência, podendo ou não desempenhar as funções de atendente pessoal) (BRASIL, 2015).

Apesar de constarem em lei as atribuições do cuidador e a implementação de uma rede de serviços socioassistenciais em todo território nacional que necessita da presença constante destes profissionais, a oferta destes profissionais ainda é bastante escassa ou inexistente, além de enfrentar dificuldades que vão da ausência de formação ao reconhecimento da categoria profissional. Estes profissionais, que deveria ser de nível médio, dado o perfil das suas atribuições, vêm exercendo suas funções mesmo sem formação/capacitação específica na maioria dos casos (ARAÚJO, 2018). Importante ainda ressaltar que a falta de regulamentação profissional e piso salarial é outro problema que atinge os cuidadores sociais. Muitos projetos de lei têm surgido nesse sentido, tendo inclusive sido aprovado em 2019, projeto de lei que regulamentava a profissão que foi

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integralmente vetado pelo governo federal sob alegação economicista que a regulamentação da atividade fere o livre exercício profissional ao criar condicionantes.

Para além da compreensão dos aspectos históricos e normativos das chamadas políticas públicas de cuidado para pessoas com deficiência no SUAS, é fundamental analisar como se dão a construção de argumentos tanto de forma oral como escrita, é central em todas as fases da policy (MAJONE, 1989 apud FISCHER, FORESTER, 1993).

É preciso compreender que existe uma luta discursiva contínua em torno do enquadramento dos problemas públicos, das questões que os envolve, dos significados compartilhados que motivam as respostas e critérios avaliativos que são usados (STONE, 2002 apud FISCHER, GOTTWEIS, 2012). Por isso, optei nesse trabalho não apenas por uma análise com abordagem empírica das soluções de problema, envolvendo aspectos normativos e prescritivos, mas a inclusão do estudo da linguagem e da argumentação como dimensões essenciais da teoria e análise na formulação e implementação de políticas públicas. Uso a abordagem da Argumentative Turning entendendo que argumentos são produções de práticas que possuem múltiplas funções, inclusive na descrição de problemas, definição de agendas, garantias simbólicas. Sempre os argumentos fazem afirmações que podem ser criticadas ou podem sutilmente moldar sua atenção para os problemas públicos. Com essa abordagem, portanto, estuda-se criticamente a produção das afirmações dos analistas, formuladores e implementadores, não necessariamente como verdades absolutas (FISCHER, FORESTER, 1993). Enfatiza-se análises mais úteis e práticas do que normalmente as análises racionalistas e prescritivas fazem, chegando a lógicas simplistas como “existem as leis e estas não são cumpridas”. Assume-se que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas constitutiva de políticas públicas e, sendo assim, não existe neutralidade seja na observação, seja no campo teórico (GOTWEISS, 2006).

As narrativas podem funcionar como “redes de significado”, problematizando e mobilizando diferentes atores de políticas públicas, procedimentos, artefatos e representados na busca do objetivo destas. Narrativas dependem de textualidade, por meio de interatividade voluntária ou involuntária dos diferentes atores que emergem no discurso da política pública com metanarrativas e narrativas de políticas públicas (GOTTWEIS, 2006; FISCHER, 2003; STONE, 1997). As metanarrativas descrevem conceitos e suas estruturas a um sistema político situando identidades coletivas dos sujeitos que atuam na policy, podendo abranger conteúdos mais gerais e específicos, sendo performadas, lidas,

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(re)escritas e (re)interpretadas. Já as narrativas políticas são mais específicas e descrevem tramas ou quadros da construção social dos campos de ação da policy, conferindo significados contidos nos relatos dos atores. Ambas vinculam a policy a sistemas de valores e código de identidade (GOTTWEIS, 2006). Nesse sentido, entender tais questões no campo das políticas de cuidado para pessoas com deficiência, compreender narrativas e discursos dos diferentes atores em torno do que é a deficiência e o cuidado, levam a ações mais assistencialistas-caritativas-segregadoras e/ou a lógicas mais emancipadoras-direitos- inclusivas. Embora haja certa gradualidade nas mudanças das práticas discursivas nos últimos anos, inclusive motivadas pelos referenciais normativos nacionais e internacionais, ainda não se percebe uma coalização em torno da lógica do modelo social seja pelo Estado, sociedade civil e famílias. Infelizmente, nas múltiplas arenas7 políticas existentes, no Brasil, ainda prevalecem as lógicas biomédicas, inclusive no âmbito das políticas de proteção social (DINIZ, 2017).

No caso das políticas implementadas no SUAS tem-se uma grande inovação da incorporação das pessoas com deficiência e suas famílias como público prioritário de atendimento, com a distinção dos serviços que prestam enquanto cuidados sociais, para além da lógica prevalente de que estas pessoas precisam precipuamente apenas de educação, reabilitação e trabalho. O Estado assume a responsabilidade direta por ofertas de serviços socioassistenciais para este público, tendo em vista o entendimento que passam por situações de risco e vulnerabilidade social. Importante lembrar que, historicamente, foram as entidades privadas da assistência social, muitas enquanto “instituições totais”, com fortes vieses assistencialistas e caritativos que prestavam “mix de serviços”

mesclando de tudo um pouco (educação especial, saúde, trabalho, cultura etc.), numa perspectiva de “concertação”, intervenção e reabilitação do corpo deficiente. Mesmo que

7Exemplos dessas arenas ocorrem, por exemplo, ao tratar da concessão do BPC ou outros benefícios é preciso que se tenha um laudo médico de um perito. No âmbito das políticas de saúde estas são mais voltadas para o diagnóstico e reabilitação que para as tecnologias assistivas e ajudas técnicas que melhorem a autonomia e qualidade de vida. Na educação, apesar dos avanços com relação a chamada educação inclusiva, recentemente o governo federal Decreto nº 10.502/2020, que institui a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida” que trazia um desvirtuamento conceitual-ideológico “como forma de cooptar parte dos movimentos de pessoas com deficiência e seus familiares mobilizados em históricas organizações especializadas, bem como atender a interesses do mercado” (ARAÚJO, 2020. p. 1). Esta após uma série de mobilizações por parte da sociedade civil gerou a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) como sendo inconstitucional, mas, mesmo assim, o Ministério da Educação (MEC) segue tentando criar argumentos vantajosos para a expansão das escolas especiais a serem implementadas principalmente no âmbito privado.

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na atualidade existam algumas dessas instituições que vêm mudando suas formas de trabalho, reordenaram suas ofertas de serviços e compreenderam que a inclusão vai além da escola comum e do mercado de trabalho, percebe-se resquícios da cultura assistencialista que interfere inclusive nas possibilidades de coprodução das políticas públicas do SUAS. Infelizmente, ainda é comum ouvirmos enquanto “argumentos retóricos”8 nestas entidades e nos governos, que se promove a inclusão, o empoderamento e a autodefesa (self advocacy) das pessoas com deficiência, embora com vícios de linguagem e práticas carregadas de capacitismo que colocam estas enquanto “heroínas”

que “superam” (barreiras ou mesmo seus corpos). A retórica, assim, é um aspecto essencial e inevitável para compreender a argumentação, uma vez que pode trazer distorções e manipulações nos processos dialógicos com os públicos na construção de “situações argumentativas”, nas quais o argumentador presta atenção especial àqueles com quem está falando, suas crenças, experiências, estilos intelectuais e estratégias comunicativas.

5. Os cuidadores sociais no SUAS e suas práticas argumentativas

Após trazer alguns aspectos teóricos fundamentais para esse estudo, apresento aqui como aparece a construção dos argumentos sobre os cuidados para pessoas com deficiência a partir dos discursos que emergiram nas entrevistas com12 (doze) cuidadores profissionais que atuam nos serviços socioassistenciais do SUAS. Além disso, são analisadas duas questões qualitativas da pesquisa survey que contou com 248 respondentes.

Importante ressaltar que metodologicamente na análise argumentativa, os pesquisadores podem identificar instâncias particulares da realidade empírica como exemplares de alguma categoria conceitual de fenômenos sociais, amarrando-os em um nível superior de abstração. Sendo assim, trata-se de uma abordagem de análise de políticas públicas fundamentada para gerar teoria indutivamente a partir de corpus de dados (“grounded theory”) dentro de um dado contexto (GOTTWEIS, 2006)

Entende-se aqui que argumentos e discursos são conceitos inter-relacionados, mas diferentes em suas características e funções. A argumentação tem forte relação com o discurso, deliberação e retórica. Tradicionalmente se refere ao processo pelo qual as pessoas buscam chegar a conclusões por meio da razão. Embora influenciado e moldado

8 Argumentação retórica procura combinar a argumentação lógica e proposicional com uma apreciação do argumentador e do público, bem como o papel da emoção no processo persuasivo (FISCHER, GOTTWEIS, 2012).

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pela lógica formal, se volta para a lógica informal e da razão prática. Assim, explora a maneira como as pessoas se comunicam no debate civil e se envolvem em diálogos persuasivos e de negociação, bem como em conversas normais. Os argumentos, portanto, concentram-se na maneira como as pessoas alcançam e justificam decisões mutuamente aceitáveis. Já os discursos, são usados aqui no sentido de significar um corpo de conceitos, ideias e categorizações que circunscrevem, influenciam e moldam a argumentação (FISCHER, GOTTWEIS, 2012). Assim, é por meio dos discursos dos cuidadores sociais entrevistados que busquei categorizações sobre entendimentos destes sobre as pessoas com deficiência e as políticas de cuidados, já que circunscrevem vivências desses profissionais, situando com percebem e os problemas públicos e praticam as alternativas a estes. A argumentação, de primeira ordem, leva a questões de validação, não apenas quanto a relevância ou cumprimento objetivos das políticas públicas, mas, de por meio da linguagem, da lógica informal, entender a relevância situacional e examinar as conceituações e os pressupostos subjacentes a situação problema (FISCHER, 2007;

FISCHER, FORESTER, 2002) em que, neste caso, os CD e RI foram concebidos para influenciar.

Todas os cuidadores entrevistados foram indicados pelos órgãos gestores locais como sendo bons profissionais que atuavam nos serviços. Nesse sentido, considerando o caráter qualitativo, esse critério foi fundante, mais que o quantitativo de representatividade do por equipamento, como se desejava inicialmente. Vale salientar que alguns dos municípios possuem dois dos serviços e, apesar de entender as especificidades dos cuidados nestes, o que prevaleceu foi a lógica da indicação. Foram entrevistados 05 (cinco) cuidadores de Centros-dia Jovens e Adultos, 03 (três) de Centros-dia Microcefalia e 04 (quatro) de Residências Inclusivas. Todas as entrevistas foram realizadas virtualmente, de julho de 2019 a março de 2020, sendo gravadas e transcritas, mas mantida o sigilo quanto a identidade dos entrevistados.

Dos 12 (doze) entrevistados, 4 (quatro) eram do sexo masculino. Outro fator que chama a atenção é que apesar do cargo ser desenhado para profissionais de nível médio, 10 (dez) dos cuidadores afirmaram ter nível superior e que estavam exercendo tais funções pois era o que tinha para o momento motivado pela ausência de emprego e precariedade das relações de trabalho. A idade variou de 24 a 54 anos, sendo a maioria jovens de até 30 anos. O tempo de atuação no serviço no SUAS varia de 7 meses a 3 anos. Apenas 04 entrevistados afirmaram ter alguma experiência anterior como cuidador de pessoa com

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deficiência. Porém, ao que parece não necessariamente desempenharam tais funções e as confundem por terem atuado como educadores em instituições voltadas para pessoas com deficiência, principalmente, com crianças.

Pelas análises dos argumentos recorrentes entre os cuidadores, defini 06(seis) categorizações argumentativas no que diz respeito das pessoas com deficiência, saberes e fazeres profissionais na implementação das políticas de cuidados no SUAS, que serão destacadas a seguir, sendo ilustradas com discursos dos(as) entrevistados, nominados de C1 a C12.

Observa-se a prevalência de visões biomédicas e assistencialistas sobre as pessoas com deficiência atendidas nos serviços que, certamente, são reforçadas pelo capacitismo estrutural presente na sociedade. Exemplos desses discursos são trazidos nas falas de onze dos doze entrevistados. Para C7, atuando no CD Microcefalia: “É alguém com alguma limitação, né? Que ela precise de ajuda em determinada situação”. Na mesma direção, C2 que trabalha com jovens e adultos afirma que: “é não vou dizer só as crianças, são as pessoas que tem algum tipo de... no nosso caso aqui, patologias neurológicas”. Tais falas remetem a lógicas biomédicas em que centram a deficiência na lesão. Isso é ainda mais reforçado pelos cuidadores que atuam nas RI, que tendem a ter pessoas com maior dependência de cuidados, dado inclusive as condições de risco e vulnerabilidade. C11 busca argumentar que: “para definir é complicado porque cada um tem uma coisa. Mas eu acho que sabendo levar eles, eu acho que qualquer pessoa poderia lidar com qualquer um deles de acordo sendo uma deficiência leve, moderada ou grave”.

Na mesa direção C9 afirma que: “são pessoas que por uma infelicidade de destino venha necessitar num período de vida, de ajuda e compreensão, né?!”

Tais crenças limitantes são originadas do capacitismo estrutural, que está para as pessoas com deficiência assim como os racismo para os negros e o sexismo para as mulheres. Isso tem por base a produção de poder relacionada ao ideal de padrão corporal funcional que cria uma rede de crenças, processos e práticas que produzem um tipo particular de self e corpo perfeito, típico de uma espécie, plenamente humano. Logo, a deficiência é considerada um estado diminuído do ser humano, sendo definida pela negatividade (CAMPBELL. 2009). Importante ressaltar que tais opressões passam a ser internalizadas pelas próprias pessoas com deficiência desde que nascem a partir das próprias famílias, que trazem em si dores, medos e confusões decorrentes de autoimagens negativas. Isso mantem tais pessoas em condição de subalternidade reforçada pela lógica

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capitalista centrada na “ajuda” e do assistencialismo para separar a população

“problemática” da população “normal”, sob a justificativa de que aquela parcela precisa de atendimento especializado (CAMPBELL, 2009; ARAÚJO, 2017, 2018)

Apenas o cuidador C5 traz uma fala alinhada com o modelo social da deficiência, afirmando que: “A pessoa com deficiência hoje na sociedade ela já tem um espaço maior de fato. [...] atualmente nós estamos discutindo com eles. [...] Muitos deles não têm essa autonomia de reivindicar, mas a gente trabalha exatamente esse poder”

Essa categoria foi novamente confirmada por meio da pesquisa survey realizada na segunda etapa. Em uma das questões abertas do instrumento, perguntava-se como os(as) cuidadores(as) chamavam as pessoas que prestavam serviços, aceitando múltiplas respostas. Dos 248 respondentes, houve 440 respostas, sendo que a maioria relacionou mais de um termo para se referir as pessoas com deficiência. A seguir apresento uma nuvem de palavras que demonstra que 85 pessoas adotam o termo “pessoa portadora de deficiência”, que é considerando equivocado tanto do ponto de vista legal, quanto conceitual. Mas, 82 pessoas, adotam apenas ou também o termo “pessoa com deficiência”.

Os termos “usuários”, “residentes”, “acolhidos”, são percebidos como uma linguagem de uso mais institucional. Porém, há recorrência de termos como “anjos(as)”,

“meninos(as)” e “especiais” que reforçam lógicas capacitistas, assim como, “pacientes”

que enfatizam a compreensão biomédica, mesmo se tratando de um serviço socioassistencial e não de saúde.

Figura 01 – Nuvem de palavras sobre como os(as) cuidadores denominam as pessoas com deficiência que atendem nos CD e RI do SUAS

Fonte: pesquisa de campo

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Os argumentos levam a compreensão do cuidado assistencialista, capacitista e

“angelical” versus a lógica do cuidado social que é estabelecida. Trata-se de uma consequência sobre a categoria anterior que acaba se assentando num paradigma do

“cuidado caritativo-filantrópico” que vê as pessoas com deficiência como problema para a família e sociedade, tendo foco nas ações privadas e isoladas voltadas para a benesse, caridade e filantropia. Por outro lado, a os serviços ofertados no SUAS devem estar baseados no paradigma do “cuidado como direito social”, ofertado de modo profissional por meio de ações públicas integradas e intersetoriais voltadas para o aumento da autonomia das pessoas com deficiência, enquanto um eixo fundante (ARAÚJO, 2018).

Percebe-se que há uma dualidade de pensamentos sobre o cuidar entre os serviços ofertados por CD e RI. Nas RI nota-se de modo mais presente a perspectiva caritativa, na qual a expressão mais reveladora do cuidado, é o “amor”, aproximando-se de uma lógica

“angelical” do cuidado, como afirma C12 sobre o seu papel de: “dar amor, atenção, carinho principalmente que se tratar eles bem”. Associam o cuidador a “ajuda”,

“piedade”, “algo religioso” e muitas vezes a formação das cuidadoras na área da saúde, com uma postura baseado na perspectiva biomédica, as quais as atividades realizadas por estas visam corrigir uma “imperfeição” do usuário, como se tratasse uma doença como, por exemplo, argumenta C11: “Dar entendimento para ele voltar à vida normal. A independência nós trabalhamos mesmo [eles] sendo dependentes. A gente trabalha para que eles adquiram e voltem a ser independentes[...]” (Entrevista C11)

Para os cuidadores dos Centros-dia, mesmo para os que prevalecem lógicas biomédicas há uma tendência a compreensões um pouco diferenciadas, manifestadas como

“empatia” e “atenção” direcionada para a autonomia das pessoas com deficiência.

Tais argumentações não podem ser generalizadas ou mesmo atestadas como verdades que prevalecem nos serviços, mas como verdades que coexistem nestes, ora como paradigmas em processo de transmutação, ora como prevalecentes concepções equivocadas sobre a deficiência e o cuidado. Isso é reforçado inclusive com relação nas relações entre gênero, faixa etária e cuidado. Para os cuidadores das RI existe quase um consenso que não há diferença entre cuidar de um idoso e uma criança, por exemplo, pois o foco deve ser “na patologia associada”, pois chegam “pessoas como cadeirantes, acamados, entendeu? Então aquele cuidado, daquela pessoa é diferenciado por isso...”

(C10). É importante ainda ressaltar que o cuidado é um conceito intergeracional e, portanto, as ações para cuidar de uma criança com deficiência, obviamente, não pode ser

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a mesma que cuidar de um adulto ou idoso. Tal ressalva se faz necessária, tendo em vista a prevalência dos processos de infantilização das pessoas com deficiência, não respeitando as possibilidades de vida em suas diferentes faixas etárias.

Quando analisada questão na survey, “para você, o que é o cuidado?”, mais uma vez aparece a prevalência do cuidado assistencialista, capacitista e “angelical”, como pode ser observado em respostas como: “Para mim cuidar de pessoas com deficiência está sendo um aprendizado muito grande, uma lição de vida a cada plantão de superação”;

“É poder ver que todos somos iguais, porém, cada um com a sua limitação, que com determinação seguiremos todos juntos”. A figura 2, a nuvem de palavras demonstra quais concepções são fundamentados os argumentos sobre os cuidados.

Figura 02 – Nuvem de palavras sobre as concepções sobre o que é cuidado para os(as) cuidadores(as) sociais dos CD e RI

Fonte: pesquisa de campo

Para elaboração dessa nuvem de palavras foram consideradas 239 respostas válidas, dos 248 questionários, destacando-se a recorrência de 506 repetições de palavras. A associação de cuidado a um ato de “amor” ou a “amar”, aparece em 82 respostas, seguida da palavra “carinho” (41) e “aprendizagem” (31), “gratificante” (29) e “respeito” (27).

De modo geral, as narrativas políticas giram em torno de uma lógica caritativa do cuidado em detrimento da lógica mais profissional. Obviamente, não se trata de entender que esta é uma profissão meramente técnica. Mas chega-se a associar o cuidado a um “dom”, argumentando-se que cuidar é algo “que Deus designou” ou que “cuidar verdadeiramente é o ato de amar uma pessoa que muitas vezes nem conhecemos; é o cuidar de um deficiente,

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de um enfermo. É o mesmo q cuidar das chagas de Jesus”. Mostra-se, assim, uma visão conflitante, do cuidado como “ajuda” e não como “garantia de direito”. A ideia de que ser cuidador é algo “gratificante” e de “aprendizagem” também leva para outros tipos de racionalidade: “A pessoa com deficiência é tão grata a tudo que é feito por ela, que quem sai ganhando somos nós, os cuidadores!”; “Nós profissionais, somos as asas para o voo pra fora do ninho! Um olhar de encorajamento e amor!”

Por outro lado, percebe-se em menor proporção, argumentos que tendem a uma visão mais relacionada ao cuidado social em si, enquanto um direito, considerando relações do desenvolvimento da “autonomia” e as relações de interdependência: “Deve agir naturalmente ao dirigir-se a uma pessoa com deficiência intelectual. Trate-a com respeito e consideração. Se for uma criança, trate-a como criança... Não a ignore. ...”; “Não superproteja a pessoa com deficiência intelectual...”

Outro ponto importante é com relação as compreensões sobre autonomias e (inter)dependência do cuidado, objeto central das ofertas nos CD e RI. Ainda falta de clareza dos cuidadores quanto as relações entre dependência, interdependência e autonomia das pessoas com deficiência. Os argumentos são mesclados por ambiguidades e alguns não conseguem explicar com clareza as diferenças entre os temas. No entanto, a maioria dos profissionais demonstra que nas atividades diárias trabalham com intuito de quebrar as barreiras que geram dependências e desenvolver gradativamente a autonomia das pessoas com deficiência, além de perceberem que os resultados estão sendo positivos aos objetivos da política. Para C5: “a gente tenta trabalhar sua autonomia pra reduzir a dependência tanto aqui quanto em casa.” Já C10 afirma de modo ambivalente que a autonomia é no sentido de “eles tomarem conta das coisas deles quando não tem condições de fazerem só, aí tem que tá em cima para poder ajudar. Mas, a gente faz tudo pra que eles tomem conta das suas próprias coisas e se esforcem para poder fazer tudo só”.

Percebe-se que inda não há clareza sobre a relação dependência de cuidado de terceiros e vulnerabilidade. Nas RI parece ser ainda mais tênue os limites entre o cuidado e o protecionismo: “Para eles [pessoas com deficiência] só existe aquela pessoa e pronto!!!

É uma alegria quando a gente chega. Mas, o cuidado é isso: É amar, é dar carinho... E fora, isso, que eu acho que é o mais importante, né?” (Entrevista C12) Tais discursos mostram que as políticas de cuidados para além de pressupostos racionais subjacentes tem que considerar a compreensão da ação humana como intermediária destas e que não se

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pode negligenciar em sua análise o papel da cultura, dos valores e das ideias (FISCHER, GOTTWEIS, 2012).

Quanto aos fazeres profissionais destacam-se a categoria aprender a cuidar pela prática e que se demanda formações específicas para cuidar de pessoas com deficiência. A maior parte dos cuidadores não possuem experiências na área da cuidados e com a pessoa com deficiência.

A aprendizagem se dá pelas práticas cotidianas, por experiências pregressas com outros públicos, pelos pontuais contatos com os cuidadores familiares e, principalmente, por entender que as funções de cuidar são extremamente simples. Como é relatado por C1:

“a gente foi aprendendo no dia a dia mesmo. Cada um tem o seu ritmo [...] Qual a deficiência de cada um e nisso a gente foi no dia a dia e não foi dado nenhum grau de instrução não, a gente foi aprendendo mesmo com eles”. Nessa direção C6 explica:

“porque tudo que eu sei é baseado na experiência [...], mas, se forem questões teóricas até questões práticas sendo mais profundas voltadas ao ser cuidador eu não detenho conhecimento porque eu não tive nem preparação”

Se por um lado existe uma riqueza para o processo de sensibilização e aprendizagem sobre cuidados, que poderiam ser livres de alguns estereótipos sobre diagnósticos, por exemplo, do ponto de vista profissional, é importante atentar para que sejam promovidos processos de aprendizagem formal sobre questões conceituais e valorativas sobre a deficiência.

Apesar dos relatos de alguns processos pontuais de formação, dado o caráter inovador dos serviços prestados, destaca-se que: “o Centro-Dia é novo aqui e ele não está trabalhando como deveria, porque ainda se espera algumas coisas que estão em falta. Aí a gente tá trabalhando!” (Entrevista C7). Relata-se inclusive que algumas questões burocráticas impedem avanços nos processos formativos e ofertas.

Outra categoria apontada é a gestão desintegrada do serviço de cuidados, prevalecendo a divisão do trabalho interno entre cuidadores e técnicos, bem como, nas pontuais articulações com o trabalho social com as famílias e com as relações intersetoriais.

Os cuidadores não são envolvidos no planejamento dos serviços junto aos técnicos, atuando de modo mais mecânico, operacional, tendo dificuldades de valorar suas atuações profissionais. A ausência de participação dos cuidadores nos planejamentos das atividades junto a equipe técnica é demonstram o nível de tensão: “isso é polêmica dentro do nosso serviço, porque é uma das nossas reivindicações que, nós tenhamos mais direito a

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participação no processo de inclusão do usuário no serviço e da manutenção dele no serviço também. Mas, o nosso contato com essa equipe é muito simplório até demais (C5)”

Essa mesma lógica prevalece com a desintegração relacionado ao trabalho com as famílias no caso dos CD Jovens e Adultos e RI. Aparece maior contato com as famílias nos CD Microcefalia, dada raciocínio mais orientador para as crianças.

Os cuidadores argumentam que por estarem vivenciando o cotidiano com os usuários possuem informações mais específicas sobre os comportamentos e atitudes cada indivíduo cuidado, e que poderiam interagir de modo mais horizontal com equipe técnica, contribuindo na construção de planos individuais de atendimento, conforme previsto nas orientações técnicas do serviço. Isso também contribuiria para os processos de formação coletiva da equipe. Porém, fica bastante evidenciado que os cuidadores fazem apenas os trabalhos mais operacionais que são delegados pelos técnicos: “rotinas diárias de alimentação, higiene...” (C9).

Por se tratar de equipamentos que possuem um caráter inclusivo, estes fatores da divisão do trabalho além do convívio em ambientes com pouca acessibilidade, ausência de formação, podem ampliar a dependência, dificultar a autonomia e a participação social das pessoas com deficiência (ARAÚJO, CRUZ, 2012) implicando assim na efetividade da política pública no SUAS.

6. Considerações finais

A análise argumentativa de políticas de cuidados para pessoas com deficiência no SUAS pode ofertar suporte à decisão além de descobrir falácias e indicar positivamente o que é necessário para fundamentar a implementação de alternativas para o problema público da dependência de cuidados de terceiros (HANSSON; HADORN, 2016). Busquei nesse artigo reconhecer os discursos de cuidadores(as) sociais do SUAS, implementadores(as) desses instrumentos de policy, identificando as práticas argumentativas, para além das prescrições normativas, muitas vezes abstratas e generalistas. Assim, tem-se por meio dos discursos um melhor entendimento que permite certa reconstrução social das estruturas normativas e seus gaps com as práticas de cuidado adotadas, bem como, compreende-se que os problemas públicos contemporâneos são mais incertos, complexos (FISCHER, GOTTWEIS, 2012). Fica evidente que o problema público da dependência de cuidados de terceiros e o alto ônus dos cuidadores familiares, precisa de novas definições e compreensões para além de uma interpretação normativa e

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análise empírica. É preciso somar e cruzar abordagens interpretativas sobre esses para que avancemos na implementação na oferta de cuidados como direito social.

Põe-se como grande desafio, para além da regulamentação, a necessidade de compreensão das gramáticas que compõe o campo das políticas de cuidados por parte dos(as) cuidadores(as), que perpassam pela compreensão integral do modelo social da deficiência e da lógica do cuidado como direito, ofertado de modo interdisciplinar (ARAÚJO, 2015). Isso implica também na existência de formações e vivências adequadas para os diferentes tipos de profissionais de cuidados, de modo que compreendam que cuidam, antes de tudo, de pessoas que são dotadas de sentimentos, desejos e sonhos, em diferentes fases da vida.

Enfim, o estudo contribui para a compreensão de como os(as) cuidadores (as), sociais que prestam serviços às pessoas com deficiência nos CD e RI (re)constroem os problemas públicos e delineiam as alternativas e recomendações em torno das ofertas de cuidados. Enfatiza os quadros de valores e percepções nos quais os CD e RI têm atuado e como cuidadores(as) sociais têm entendido os problemas públicos, qual o rigor do engajamento destes (as), quais racionalidades e fontes de preconceitos que existem

Trata-se de um processo indutivo que pode contribuir para a definição de novas agendas políticas e aspectos teóricos a partir de lógicas indutivas. O foco na argumentação permite entender limites de atuação dos serviços, antecipar ameaças e perigos de modo não neutralizado e compreender as múltiplas linguagens, discursos e molduras em torno dos problemas públicos e suas alternativas. É preciso compreender que o caráter argumentativo gera potencial funções pedagógicas que podem implicar, por exemplo, na melhoria dos processos de formação dos cuidadores e na formação da opinião pública sobre a lógica do cuidado como direito e no fortalecimento da ideologia anticapacitista. Sugere-se, assim, de forma provocativa e produtiva, que análises do tema permite desenvolver melhores informações técnicas e busquem mudar a imaginação moral e ética de todos os envolvidos no processo políticos, para além de linguagens normativas especializadas (FISCHER, FORESTER, 2002; FISCHER, GOTTWEIS, 2012).

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