UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTORIA SOCIAL
A MORAL DA HISTÓRIA
A produção humorística de Millôr Fernandes na revista Veja (1968-1982)
TIAGO P. FERRO ESPILOTRO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História Social da Faculdade de Filosoia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História.
ORIENTADOR: PROF. DR. ELIAS THOMÉ SALIBA
Tu não és menos tolo do que os abderitas.
Resumo: Este projeto pretende analisar a produção humorística de Millôr
Fernan-des na revista Veja entre os anos de 1968 e 1982. A partir da interpretação Fernan-desse
material, apontar novos subsídios para futuras pesquisas sobre humor e história
cultural durante a última ditadura brasileira.
Abstract: This project aims to analyze the humorous production of Millôr
Fernan-des in Veja magazine between 1968 and 1982. The proposal is from the
interpre-tation of this material to point new subsidies for future research on humor and
Sumário
Capítulo 1 – Mil tons 6
Capítulo 2 – Teoria 11
Capítulo 3 – Conteúdo 23
Capítulo 4 – Forma 55
Capítulo 5 – Amoral da história 78
Capítulo 1
Mil tons
1.1
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais, de
Bakhtin, é um livro decisivo para todos os que estudam ou se interessam por cultura popular; é
um livro obrigatório para quem pesquisa o humor. Segundo o crítico russo, durante toda a Idade
Média, a forma predominante de cultura popular foi organizada em torno do carnaval e do riso.
Uma forma de rir radical, redentora, construtora do novo, sublime; e ameaçadora para os que
detêm o poder. Esse riso muito peculiar deu o toque de originalidade à obra de Rabelais e depois
disso foi gradualmente desaparecendo. Em sociedades diferenciadas, rigidamente estratiicadas e sujeitas ao olhar do poder em seus mais ínimos recantos, o riso rabelaisiano não seria mais possível. Revolução burguesa, cânone iluminista (que, aliás, rebaixou o humor deinitivamente
a uma categoria menor de arte), sociedade de consumo e de massa impediram que essa forma
radical de riso surgisse novamente. Restou a nós, os modernos, o riso amargo da ironia e do
sarcasmo. Um riso que apenas destrói.
1.2
Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923. Carioca do Méier, perdeu o pai aos
dois anos de idade e a mãe aos doze. Obrigado a morar com os tios maternos e quatro primos,
sentiu todo o desamparo de se ver privado do convívio de sua família nuclear. Privação afetiva e
material. Já adulto, olhando retrospectivamente sua infância, airmou que adquirira desde muito
cedo certa “paz da descrença”. Isso se deve não apenas ao fato de o mundo ter se mostrado tão
injusto e sem sentido a uma criança, mas também por conta de o jovem Millôr ter sido criado
sem algumas típicas obrigações impostas às crianças daquela época, como a educação religiosa
centrada na participação em diversos rituais na Igreja. Essa paz da descrença irá se manifestar
reiteradamente, seja em entrevistas ou em sua obra, em absoluta rejeição: a qualquer
interfe-rência divina na vida dos homens, a qualquer discurso transcendente e, de forma mais ampla (e
algumas vezes velada), a toda forma de poder. Portanto, em sua infância estão algumas chaves
preciosas para a compreensão de muitos de seus desenvolvimentos (e impasses) futuros.
1.3
como contínuo em um consultório médico e na então pequena revista O Cruzeiro, do poderoso
grupo dos Diários Associados. Ainda em 1938 iniciou seus estudos no Liceu de Artes e Ofícios.
Até 1963 trabalhará para diversas revistas do grupo. Mas é em O Cruzeiro que fará fama
nacional. Sua subida dentro do grupo é meteórica. Aos vinte anos já era dono do maior salário
da imprensa. Fruto inquestionável de seu talento. Mas também de sua relação de amizade
pro-funda, desde os primeiros dias no grupo, com Frederico Chateaubriand, sobrinho de Assis, o
mítico Chatô. Precisar o quanto essa amizade favoreceu sua carreira seria irresponsabilidade.
Mas ignorar essa relação, principalmente no caso brasileiro, em que o espaço público,
teorica-mente o local das relações impessoais, é de forma abrangente contaminado pelas relações de
favor, seria omitir um fato relevante para a construção deste peril.
Sem dúvida, por conta dessa acolhida de cunho bastante pessoal que recebeu no maior
gru-po de comunicação do Brasil da égru-poca, o golpe da demissão sumária – em 1963 – sem direito
a resposta deve ter sido sentido de forma violenta. Perdera sua “família” pela segunda vez. A
demissão fora motivada pela reação dos leitores de O Cruzeiro contra a historieta A verdadeira
história do paraíso. Nela, Millôr atacava o poder divino com muita ironia. Mas foi o poder
ter-reno (o conservadorismo da sociedade brasileira) que lhe deixou sem emprego.
Quando em 1964 decide criar um jornal independente que leva o mesmo nome de sua
famo-sa seção na revista O Cruzeiro, Pif-Paf, vemos aí certo desejo de vingança dos antigos patrões.
O jornal não passou de oito edições. Apesar do fracasso empresarial, esse pequeno pasquim
pode ser considerado o germe de parte da imprensa alternativa que surgirá no período posterior
à promulgação do AI-5, em dezembro de 1968.
E é em 1968 que Millôr inicia sua contribuição com a revista Veja, do grupo Abril de São
Paulo. Nessa época sua fama já era nacional, daí ter sido escolhido para semanalmente criar as
páginas humorísticas daquela que seria a grande aposta do grupo para substituir a já incômoda
revista Realidade. A aposta funcionou. Veja se tornou a mais importante revista semanal do
país, catalisando os anseios e receios de boa parte da burguesia urbana brasileira, e a fama de
Millôr aumentou exponencialmente durante os quatorze anos de colaboração.
Em 1969 Millôr participou do grupo criador de O Pasquim. Durante todo o período em que
esteve na semanal da Abril, colaborou com o jornal alternativo carioca. Manteve assim um pé
na imprensa convencional e outro na alternativa. Um equilíbrio difícil.
Se olharmos sua trajetória a partir da orfandade até a década de 1970, podemos enxergar
um caso típico de um outsider (até quando o exílio será a forma privilegiada de se entender o
totalmente aceito.1 Millôr airmará em sucessivas entrevistas, explícita ou tacitamente, seu hor -ror ao poder. Acreditamos que muito desse sentimento venha justamente de sua tensa relação
com o grupo de estabelecidos com o qual interagiu diretamente.
A experiência como empresário durante a criação de seu Pif-Paf lhe mostrou a necessidade
de estar na imprensa convencional para conseguir produzir seu trabalho. Mas a consciência de
ser mais capaz do que o grupo que detém o poder nunca o deixou em paz. Diversas de suas
de-missões e rompimentos se deram de forma violenta. Podemos ver em sua trajetória proissional, sempre em grandes grupos, mas lertando com a contracultura dos jornais alternativos, a relação
tensa e ambígua do outsider que sabe que precisa da aprovação e do apoio dos estabelecidos,
mas entende que esse apoio exige certa adequação ao gosto dos patrões.
Se não fossem o bastante todos os conlitos gerados por sua personalidade e posição na so -ciedade, é da natureza do humorista sabotar qualquer discurso coerente, até mesmo quando põe
em risco seu próprio emprego. O humorista é um outsider por natureza. E por diversas vezes
Millôr pagou caro por ser quem era e pelas escolhas que havia tomado.
1.4
Se procurarmos mais sobre a personalidade de Millôr em sua obra, nos depararemos com
uma armadilha. Há uma peculiaridade do discurso humorístico milloriano (e talvez a grande
ar-madilha aos seus intérpretes): a metalinguagem, ou, a metapiada, se preferirmos. Peculiaridade
já que estranha à obra de outros humoristas famosos. Millôr a todo instante está nos
posicionan-do, direcionando e induzindo para determinadas leituras. Ele se coloca como personagem e nos
diz como devemos entender o que ele escreve. E isso, vindo de um humorista, nem sempre é
coniável. Na primeira edição da revista independente Pif-Paf2 Millôr escreveu o famoso decá-logo do humorista para orientar seus leitores. Eis aqui um trecho: “Humorismo não tem nada a
ver e não deve absolutamente ser confundido com a sórdida campanha do Sorria Sempre. Essa
campanha é anti-humorística por natureza, revela um conformismo primário, incompatível com
a alta dignidade do humorista. Quem sorri sempre ou é um idiota total ou tem a dentadura mal
ajustada”. Analisar Millôr Fernandes é participar de um jogo cheio de escaramuças.
1.5
A obra de Millôr é múltipla: poemas, haicais, aforismos, fábulas, desenhos, peças teatrais
e traduções. Ele dizia sobre si mesmo: “enim, um escritor sem estilo!”. A ideia pegou de tal forma, que aceitamos (mais uma de suas armadilhas?) essa airmação sem a devida atenção e
questionamento.
Se a ética de uma obra está em sua forma (no estilo), o que signiica um artista sem estilo?
Justamente nessa ideia pode estar uma pista valiosa para encontrarmos um pouco mais do
ho-mem por detrás da obra.
Millôr não foi um artista sem estilo, mas, sim, um artista de muitos estilos. Figura ímpar no
cenário das artes brasileiras, dominou com precisão diversas técnicas. Todas elas capazes de
ampliicar as formas populares de comunicação (como o fez Rabelais?). O humor milloriano,
dessa maneira, imortaliza em páginas impressas aquilo que é efêmero: a cultura popular mais
cotidiana, a cola que une cidadãos comuns ao luxo da história.3
Para dar conta desse projeto, para ressoar a invenção contínua e rarefeita do cotidiano em
formas elaboradas de arte, Millôr procurou sempre a forma que a mensagem pedia. Encontrou
várias. Fez assim uma obra distante do cânone e do discurso oicial-pedagógico.
Estudar a obra de Millôr é um caminho privilegiado para se encontrar formas de pensar do
brasileiro. Talvez essa seja uma chave preciosa para organizar em um todo as múltiplas facetas
de um autor com muito estilo.
1.6
Millôr morreu aos 88 anos de idade, no dia 27 de abril de 2012, devido à falência múltipla
dos órgãos e parada cardíaca.
A repercussão foi enorme. Até mesmo a presidenta da república, Dilma Rousseff, se
mani-festou: “Brilhante jornalista, com a mesma maestria tornou-se escritor, cartunista e dramaturgo.
Autodidata, traduziu para o português dezenas de obras teatrais clássicas. Atuou em diversos
veículos de comunicação, além de ter sido fundador de publicações alternativas”. Importantes
jornalistas, críticos, diretores teatrais e políticos também exaltaram a destreza multifacetada
de Millôr, bem resumida na nota oicial presidencial. Não faltou quem o chamasse de ilósofo,
frasista genial, grande pensador e até mesmo Deus (doce ironia o homem da paz da descrença
se tornar Deus após a morte). Se os elogios nesse momento de comoção raramente podem ser
contestados, acreditamos que podem ser complementados com uma das tantas deinições que
Millôr fez de si próprio: “Sou apenas um humorista”. Millôr sabia tudo o que está em jogo para
aquele que faz o salto de fé no humorismo.
1.7
Os destroços do riso medieval continuam, aqui e ali, passando por nós. Muitas vezes
desper-cebidos. Robert Darnton encontrou ecos dessa forma de riso em um macabro ritual de
assassi-nato de gatos durante o século XVIII francês.4
Millôr Fernandes se auto-intitulava o criador do frescobol. Um jogo praticado entre duas
pessoas com raquetes e uma bola de borracha. Sem quadra ou juiz. Não há tampouco contagem
de pontos. Não há vencedor ou perdedor, campeonatos, rankings, premiações ou troféus.
Se olharmos com atenção, vemos aí também os destroços do riso rabelaisiano. Perdido para
sempre em todo o seu esplendor, mas ainda sublime em suas raras aparições.
4 DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Graal, 2011. Figura 1
Capítulo 2
Teoria
2.1
Apresentar um quadro teórico sobre o humor é se perder em deinições contraditórias e en
-trar em um espiral de termos e deinições sem im. Para cada teoria que nos pareça acertada,
surge outra que a nega. Fiquemos com a mais categórica, e humorística de todas, e partamos
para os autores e teorias que nos interessam para a nossa pesquisa: “humor, eis uma palavra
indeinível”. A frase é de Paul Valéry.
Seria tentador partir da ideia de cômico elaborada pelo ilósofo italiano Benedetto Croce.
Para ele tudo se passa na esfera estética, portanto seria inútil qualquer tentativa de teorização
sobre o assunto. Apesar da liberdade oferecida ao intérprete do humor nesse caso, a armadilha
ao historiador da cultura estaria montada: ler o objeto a partir de iltros estéticos de sua própria
época, e assim cair no anacronismo.
De alguma forma precisamos nos amparar em uma ou mais teorias. Mas sempre atentos ao
fato de estarmos inseridos na crise das grandes narrativas e modelos explicativos. Para escapar
então desses modelos altamente confortáveis (e na mesma medida suspeitos), uma estratégia
é utilizarmos o procedimento do estranhamento, ou des-familiarização. Tal procedimento foi
teorizado pela primeira vez por formalistas russos e ganhou notoriedade com Bertold Brecht.
Vanguardista em sua época, hoje o chamado “efeito de estranhamento” é bastante comum,
aparecendo com certa regularidade até mesmo na publicidade. Ao estudar as ideias de
estranha-mento em Brecht, Fredric Jameson5 chegou a propor, contra a banalização do procedimento,
que se estranhasse o estranhamento, para demonstrar que o que fora rebaixado a uma técnica,
na verdade seria toda uma visão de mundo. O discurso humorístico se insere no debate na
me-dida em que revela, com maior ou menor facilidade, uma virada no percurso, um outro ponto de
vista, enim, um estranhamento. Sem esquecermos que, como queria Jameson ao tentar salvar a ideia de estranhamento da vulgarização da técnica, o humor deita raiz na cultura popular e oral.
Ao estranharmos a realidade, encontramos algo mais verdadeiro, livre das camadas ideológicas
mais persistentes.
O historiador e antropólogo Michel de Certeau não estudou especiicamente o humor, mas
seus estudos sobre o cotidiano6, se articulados com certa generalização dos estudos sobre o
chiste em Freud, conirmados pelas mais recentes pesquisas da neurociência na área da linguís -tica, podem nos fornecer um aparato teórico rico para lidarmos com os principais aspectos do
humor milloriano.
Certeau demonstrou em suas pesquisas como cada indivíduo em sua vida cotidiana (e aqui
ele nos obriga a correr o risco de abrir mão de todas as generalizações teóricas necessárias para
se estudar o indivíduo como abstração) recebe os discursos e ideologias emitidos pelos grupos
de estabelecidos de forma extremamente criativa. Se esses indivíduos comuns, por conta do
local de onde falam, são incapazes de criar discursos eicientes e ampliicáveis, certamente eles
podem fazer a ordem dominante funcionar em outro registro. Trata-se de certa arte de viver no
campo do outro. Dessa forma, a questão da recepção deixa de ser passiva para se tornar
extre-mamente ativa e até mesmo radical em alguns casos.
Essa criatividade da recepção cotidiana passa por uma revisão das mal compreendidas e
vulgarizadas ideias de Freud sobre o inconsciente. Diferentemente do que certo senso comum
acatou, o inconsciente não é a lata de lixo das experiências desagradáveis do passado. É sim
uma (outra) estrutura de pensamento pronta para entrar em ação, sempre vigilante e à espreita.
Trata-se de um saber não sabido. Ancestral.
Há vários exemplos dessa invenção do cotidiano no livro de Certeau. Um deles é o discurso
cômico. O inconsciente, quando se manifesta através da forma cômica, no momento oportuno,
inverte uma situação. Discurso esse que, para fazer rir, deve fugir da leitura consagrada do
mun-do, mas sempre dependente do contexto (do campo do outro), ou seja, dos discursos e práticas
consagrados. Não era difícil imaginar que Certeau chegaria às formas de humor para
exem-pliicar sua tese, já que a ideia de humor como discurso alternativo, como mudança de rumo e grande desatador dos nós bem dados dos discursos oiciais é quase senso comum.
Para Freud, o chiste7 é um caminho certeiro para se chegar ao inconsciente. Inclusive, há
semelhanças na maneira como se estruturam os chistes e os sonhos. A neurociência8, de certa
forma, conirma as ligações freudianas entre chistes e tabus ou chistes e inconsciência, quando
relaciona as piadas aos locais mais primitivos do cérebro, onde justamente estão localizados
tabus ancestrais e emoções primordiais, como o medo ou a alegria; tabus esses que
reiterada-mente encontram no chiste uma forma de se manifestar.
Até aqui portanto falamos em humor como: chave para o inconsciente; fenômeno estético;
6 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, v 1. Petrópolis: Vozes, 2000.
efeito de estranhamento; invenção do cotidiano; fenômeno relacionado às estruturas mais
pri-mitivas do cérebro humano. De certa forma essas ideias serão usadas de forma conveniente ao
longo desta pesquisa, em maior ou menor grau, de forma pura ou combinada.
Como qualquer produção cultural, as formas de humor são históricas e socialmente
consti-tuídas9. Isso signiica, grosso modo, que o humor é um caminho para se ampliar o conhecimento a respeito de uma sociedade em certo período histórico.
Os historiadores Jan Bremmer e Herman Roodenburg airmam que o humor e as formas de
riso mudam ao longo do tempo. Não há qualquer tipo de essência do riso e de seus gatilhos,
apesar de sua ancestralidade e inalidade primordialmente construtora de laços sociais, como airmam as mais recentes pesquisas da neurociência10. O humor é entendido pela história cul-tural como chave para certas culturas. Os diversos textos selecionados no volume organizado
pela dupla de historiadores, mostra como o humor atravessa as sociedades sempre carregado
de especiicidades que revelam peculiaridades de um determinado grupo em certo recorte tem
-poral. Decodiicar a linguagem do humor é capturar novas dimensões de sociedades históricas.
Vale mencionar ainda que o humor na história brasileira foi criticamente estudado11 e já nos
foi revelada sua importância como elemento fortemente emotivo que serviu de escudo contra
certa modernização compulsória e não inclusiva e como uma das únicas formas seguras de
sol-dar os cidadãos ao luxo da história.
O ilósofo Wittgenstein, além da célebre airmação de que o humor é uma visão de mundo, também disse que a verdadeira função do ilósofo era “mostrar à mosca a saída do vidro”. Po -deríamos acrescentar que cabe ao historiador da cultura, que se arrisca a interpretar o discurso
humorístico, sempre prenhe de signiicados e de desvios de rota, encontrar em sociedades pas -sadas as saídas que a mosca nunca encontrou.
2.2
Para estabelecermos um breve quadro da questão da moral durante o século XX, iremos
partir das seguintes ideias de Weber: desencantamento do mundo12 e autonomia das esferas13. A racionalização moderna se inicia com o desencantamento histórico do mundo, tirando da
9 BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman (Org). Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000. 10 PROVINE, Robert R. Laughter; a scientiic investigation. Penguin Books, 2001.
11 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
esfera religiosa o poder de organizar todos os âmbitos da vida social, ou as demais esferas. Um
dos traços centrais da modernidade, segundo Weber, é a autonomia das esferas moral, estética
e cognitiva, que se constituirão com suas lógicas próprias. O que Nietzsche chamou de forma
dramática como a morte de Deus, nada mais é do que o deslocamento da esfera religiosa e o
esvaziamento da tradição.
De forma generalizada, a sociologia moderna e contemporânea vê o impacto da perda da
tradição sobre a esfera moral como causador de vários dos males do homem moderno. Para agir
eticamente, cada sujeito deve avaliar a posteriori suas condutas. Nada mais é dado a priori. A
imanência venceu a transcendência. O homem moderno se vê perplexo diante de suas escolhas.
E então sofre (ou faz piada).
Mas esse é apenas um lado da moeda, ou uma das diversas faces da questão.
Toda uma tradição da ilosoia contemporânea francesa, fortemente inluenciada pelos estu -dos do psicanalista Jaques Lacan, contestou a visão mais aceita pela sociologia.
Para entendermos essa diferença, vale montarmos um esquema sobre a questão teórica da
moral em tempos modernos. As teorias morais estariam apoiadas em três pilares:
universalis-mo, autonomia e autenticidade. Cada teoria moral irá encontrar seu equilíbrio. Por exemplo, na
visão kantiana de moral, o pilar principal é o universalismo; a autenticidade ica completamen -te fora. Para Kant, a compaixão era um sentimento ruim, já que sempre seria seletiva e nunca
universal.
Mas voltando à ilosoia francesa contemporânea, para autores como Foucault, Derrida e
Deleuze, o mal do homem moderno é ser superdeterminado, justamente o contrário do que diz
a sociologia, tendo a frente Habermas. As exigências modernas de autonomia, liberdade e
au-toidentidade estariam sempre em conlito com essa superdeterminação que advém de diversos discursos de poder que se iniltram até nos menores âmbitos da vida em sociedade.
Foucault, em seus últimos cursos14, sugeriu de forma sutil que a saída moral para o homem
moderno estaria justamente na autenticidade. O homem deveria recuperar certa empatia animal,
que a vida nas sociedades modernas, diferenciadas e industrializadas, havia matado.
Portanto não é possível enquadrar de forma categórica o conceito de moral na modernidade.
A perda da tradição tornou a moral complexa para a vida de todos os indivíduos e para os
estu-dos teóricos sobre o assunto.
2.3
O principal traço da imprensa brasileira durante a última ditadura brasileira, ou para sermos
mais exatos, da promulgação do AI-5 até o im da censura prévia (de 1968 a 1978) é a presença
marcante da imprensa alternativa15. Essas publicações que aparecem por todo o país, com
di-ferentes propostas editoriais e formas de organização empresarial, tornam-se catalisadoras do
debate público que almeja mudanças para o rumo do país. Com peril de contracultura, debate --se de tudo um pouco, na medida do que é possível ser publicado. A universidade, os sindicatos,
as produções culturais mais críticas e a política tradicional haviam sido violentamente calados.
Para aqueles que não partiram para a luta armada, a imprensa alternativa se apresentava como
uma trincheira na batalha contra a ditadura.
Tanto a imprensa convencional, assim como a alternativa sofrem nesse período com a
cen-sura, em todas as suas modalidades: prévia, através de listas e telefonemas avisando o que não
poderia ser divulgado e da autocensura.
Mas aqui cabe uma observação. Apesar de a imprensa convencional ter sofrido com a
cen-sura, inclusive a prévia, devemos notar que em linhas gerais os grandes grupos da imprensa
nacional concordavam com a política adotada pelo governo durante a ditadura16. A política
econômica com a abertura do país para o capital estrangeiro, o abafamento de qualquer projeto
de reforma de base e a postura anticomunista dos militares e de seus ministros civis sempre
esti-veram em sintonia com certa visão liberal e antinacionalista dos donos da imprensa. O ponto de
atrito foi a permanência dos militares no poder além do tempo que esses empresários de
comu-nicação julgavam necessário. E é em 1968 que a divergência chega ao ponto máximo de tensão.
Millôr Fernandes esteve no olho desse furacão chamado imprensa brasileira. Estudar sua
produção nos ajudará a entender melhor os dilemas e ambiguidades do debate público possível
que se dava no período. Vale ressaltar que o debate moral entra em campo fortemente nessa
imprensa, já que é aquele que está sempre fazendo a pergunta: “como queremos viver?”. Vale
também ressaltar que o ponto de atuação de Millôr na imprensa são as páginas de humor. É o
recorte dedicado à diversão. Acreditamos que haja articulação entre o fragmentário do discurso
humorístico, o efêmero das páginas da imprensa e o próprio luxo descontínuo e errático da in
-venção do cotidiano. O problema dessa articulação é justamente encontrar signiicados através
da opacidade típica dos discursos humorísticos modernos. Isso porque, ao contrário do humor
medieval – que teve sua síntese mais bem elaborada em Rabelais –, ao contrário portanto desse
15 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. São Paulo: Edusp, 2003.
humor coletivo e espontâneo, na modernidade o humor passa a ser produzido intencionalmente
por proissionais. Cabe ao intérprete decodiicar o que está latente nessa produção que nos é
apresentada como mera diversão.
2.4
O país que está em questão para nossa pesquisa é o “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A expressão
foi criada pela máquina de propaganda do governo durante os anos Médici e acabou por se
tornar o slogan mais usado por aqueles que apoiavam o governo. Não era incomum encontrar
adesivos com a frase grudados em janelas de casas e veículos. A frase nos é cara porque
enten-demos que ela representa a oicialização da divisão do país, algo que os governos anteriores sempre procuraram negar para camular conlitos, latentes ou não, que pipocavam pelo país. É o Brasil no qual os estabelecidos inalmente mostraram suas armas e partiram para a luta aberta
contra seus inimigos internos, receosos de perderem privilégios historicamente constituídos.
Os clichês de paraíso nos trópicos, democracia racial, país da alegria, de uma hora para outra
desaparecem (ou enfraquecem muito). Em nosso entendimento, a marca do período é o corte
abrupto entre dois grupos: os que amavam o país e os que queriam destruí-lo (isso usando os
termos dos estabelecidos). Conciliação icou fora de questão, ao menos até o início das nego -ciações para a abertura.
Se o Brasil já havia percorrido um longo (mas ainda incompleto) caminho rumo às
conquis-tas de direitos civis, políticos e sociais17, com a promulgação do AI-5, setores como a classe
média urbana, perdem garantias que até então se julgava consolidadas. A insegurança jurídica,
que tem na suspensão do habeas corpus o símbolo maior do arbítrio, desfaz o que vinha se
construindo lentamente no país em termos de direitos civis. Justamente os direitos mais básicos:
à vida, de ir e vir, por exemplo, são suspensos quando o governo pode, a qualquer momento,
sem a mediação da lei, agir diretamente sobre a vida dos cidadãos.
Se o uso da linguagem já foi inúmeras vezes comparado a um jogo e se a comunidade
ima-ginada chamada nação em última instância pode ser entendida como estruturada na forma de
uma narrativa, durante a ditadura as regras desse jogo são suspensas e a narrativa se desfaz.
As pessoas tendem a ter receio de se comunicar e as palavras e a própria linguagem passam a
oferecer riscos. Estamos numa espécie de mundo encantado18 no qual realidade e fantasia se
misturam e a linguagem é conspurcada pela tortura que massacra o corpo em busca da palavra
17 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.
verdadeira que não pode ser dita19. Pensar em moral nesse ambiente só é possível se estudarmos
áreas menos explícitas da existência, pois nesse reino mágico da tortura, a moral que pode ser
dita se desfaz nas tramas da linguagem destruída pela constante ameaça à integridade física dos
indivíduos; os canais mais diretos de criação de signiicados estão saturados ou comprometidos.
2.5
Nossa
hipótese de trabalho nasce do conteúdo da obra de Millôr, assim como nossos limitese possibilidades de generalização. Eis a hipótese: o tropo principal (e io condutor e organiza -dor) da obra humorística de Millôr Fernandes é a moral. Entendemos essa hipótese como
pos-sível de veriicação em função de alguns pontos:
- a própria declaração de Millôr sobre o que lhe interessa quando escreve, reforça o quanto a
moral está presente em seu universo: “quando caço o homem, como Nemrod na Bíblia, e
procu-ro alvejar individualmente o mesquinho, o covarde, o safado, o hipócrita, o corrupto, o
incom-petente e, coletivamente, a medicina, a política, a psicanálise, o jornalismo, o economismo, com
suas pretensões, falhas, fraquezas, egoísmos e sandices (que são as minhas, eu nunca esqueço;
só que eu nunca esqueço; a maior parte das pessoas nem se lembra) não estou preocupado com
essas falhas e defeitos insanáveis, mas com o inevitável im a que isso leva – a desumanidade
do homem para com o homem”.20 Por se tratar de Millôr Fernandes, essa passagem é
especial-mente importante pelo fato do autor se incluir no texto. Essa estratégia retórica é central em sua
obra. A todo o momento ele se autoanalisa e, como nesse exemplo, nos dá indicações daquilo
que o move.
- um dos temas recorrentes do humor milloriano são as mulheres. Na maioria das vezes
ridi-cularizando o movimento feminista e reforçando o lugar das mulheres como meros objetos no
mercado das trocas simbólicas21. Um de seus chistes mais conhecidos é “o melhor movimento
feminino ainda é o dos quadris”. Poderíamos citar inúmeros exemplos nessa linha. Vale
ressal-tar que as questões de gênero e toda a organização das mulheres para luressal-tar por direitos é central
para as discussões sobre moral, já que sempre nos lembram da fragilidade de qualquer projeto
universal, e da cidadania incompleta ou sub-cidadania.
- certamente a forma não deine o conteúdo, mas a predileção de Millôr por alguns gêneros literários fortemente identiicados com mensagens e correções morais nos levam a ver nessas escolhas mais um traço conirmador da relevância de nossa hipótese. Podemos destacar os se
-19 FORTES, Luis Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
guintes gêneros: as máximas, os aforismos e as fábulas. Muitas vezes a moralidade é inerente à
forma de tais gêneros, o que resulta em discursos moralizantes que declaram sem persuadir; que
se manifestam de maneira silenciosa ou são silenciados por uma gargalhada;
- apenas poderemos deinir claramente as peculiaridades da moral milloriana ao término de
nossas pesquisas, mas algumas passagens de sua obra e vida nos fornecem pistas: o trabalho
que lhe custou o emprego em O Cruzeiro foi uma grande sátira sobre a criação do universo por
Deus, chamada A verdadeira história do paraíso. Esse exemplo já nos mostra como seu
“proje-to” moral é absolutamente laico, e, portanto, em sintonia com as questões mais relevantes para
o entendimento da moral no século XX;
- entre as principais inluências de Millôr, além de diversos humoristas, estão alguns mora -listas historicamente consagrados: o francês das máximas implacáveis contra a corte do século
xvii, La Rochefoucauld; um dos nomes centrais do humor-negro (moralizante), Jonathan Swift;
os fabulistas La Fontaine, Esopo e Chanfort;
- Henri Bergson – autor de um importante tratado sobre o riso22 –, airmou que todo humo
-rista é um moralista. O ilósofo não está apenas reairmando um lugar comum secular que diz
“castigat ridendo mores”. A crise moral durante a modernidade vem acompanhada por uma
cri-se da linguagem pública. Uma vez que as normas morais não estão mais ancoradas na tradição
e, o local dos conlitos passa a ser o espaço público, que na modernidade vai ter uma lógica de
funcionamento diversa do privado, o humorista-moralista não vai apenas tentar corrigir os
des-vios morais ao fazer rir, mas sim, ao contrário, acentuar a fragmentação das regras morais que já
sobrevivem mínimas e aos farrapos. Portanto, apesar de vir de longe a relação entre moralismo
e humorismo, há uma grande mudança nessa relação a partir do estabelecimento do espaço
pú-blico moderno e do principal instrumento de comunicação nesse novo espaço: a imprensa, com
sua já conhecida linguagem fragmentada e efêmera. Esse pressuposto não antecipa o resultado
da pesquisa, já que, como airmamos, a moral é ambígua na modernidade. Cabe ao pesquisador
investigar como Millôr atuou nesse jogo moral complexo.
Acreditamos que a articulação teórica e histórica entre humor, moral e a obra de Millôr
Fernandes, ganha complexidade no luxo e reluxo histórico do recorte temporal proposto, e
enquadrada pela moldura da imprensa sob censura no Brasil.
2.6
Nosso objetivo principal é: indicar subsídios para se entender qual seria a especiicidade da
moral transmitida através do discurso humorístico milloriano. Atingido esse objetivo,
podere-mos apontar e entrever caminhos para se entrar de forma oblíqua em debates mais amplos: a
moral durante a modernidade; o papel do humor durante o período estudado no Brasil; a
crista-lização de categorias na história cultural.
As principais pesquisas sobre Millôr Fernandes consultadas para a elaboração desta
pes-quisa, via de regra optam por um escopo mais fechado para se pensar a obra. Elegem questões
monotemáticas, como, por exemplo, a ideia de liberdade na obra milloriana23. Apesar de
extre-mamente válidas, deixam muita coisa de fora e nos incentivam a buscar um quadro ampliado de
inserção dessa produção extremamente variada e complexa. Não é nosso objetivo esgotar o que
se tem a dizer sobre Millôr, mas sim, inseri-lo num quadro mais amplo dentro dos paradigmas
da história da cultura.
Aprofundemos os objetivos. Já apresentamos um resumo das questões teóricas que dizem
respeito aos estudos sobre a moral durante o século xx. Se o homem não tem mais uma “cartilha
moral” para orientar suas ações, nem por isso o desejo de saber se uma ação é correta ou não
desapareceu do horizonte humano. Acreditamos que estudar a relação entre humor e moral pode
jogar uma luz criativa sobre o assunto. Isso por conta das próprias peculiaridades do discurso
humorístico; mas não apenas, já que nesse momento histórico, a ilosoia moral e até mesmo
o papel dos intelectuais como um todo, está sendo questionado. Todo tipo de discurso parece
desmanchar no ar. Se, como disse em sua autobiograia o humorista Saul Steinberg24, a função do humor é desnudar o homem para em seguida perdoá-lo, acreditamos que nessa forma tão
peculiar de narrativa, opaca e fragmentada, cheia de incertezas e com a realidade cotidiana e
pedestre como estofo principal, há características para ajudar a desfazer o impasse que as
cor-rentes teóricas que estudaram a moral nos deixaram. Baixar o voo teórico dos grandes nomes
da ilosoia para ouvir o rumor das ruas, contraditório e agônico, é o que pode tornar a discussão
mais complexa. Se a comunicação está no centro da elaboração das sociedades modernas, se o
discurso passa a ser fragmentário e as incertezas morais sentidas por todos, acreditamos que faz
sentido buscar um melhor entendimento dos dilemas morais, justamente em um tipo de discurso
elaborado no luxo e reluxo da vida cotidiana; um discurso ele também fragmentário, incerto e
fortemente relacionado calcado no dia a dia.
23 CORDOVANI, Glória Maria. Millôr Fernandes, uma voz de resistência. Tese de doutorado em literatura brasileira. Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências humanas da Universidade de São Paulo, 1997.
O humor de Millôr no contexto da última ditadura brasileira é especialmente interessante.
Isso por conta das peculiaridades do “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Todo um rescaldo de moral
cristã conservadora é reativado após o golpe, e passa a ser missão de cada indivíduo salvar a
si próprio e ao seu país. Moral cristã que, diga-se de passagem, abafava os conlitos de um
Estado que torturava e matava e que não fora capaz de levar por muito tempo uma promessa
de consumo feliz para a classe média urbana. É nesse caldo conlituoso de ideologias e receios que a moral de um humorista pode nos revelar as diiculdades pela qual passava a consciência
dos brasileiros. A pergunta dos primeiros modernistas: “quem nós somos”, deixa de ser central.
Agora o que importa é: “como queremos viver”, simplesmente a pergunta chave da moral
mo-derna. Essa tentativa de se deinir um projeto num ambiente encantado pela ditadura e pelo im de qualquer garantia civil precisava de meios diferentes do discurso militante ou oicial para
penetrar no âmago dos desejos e medos dos brasileiros. O estranhamento humorístico pode nos
dar pistas para isso.
Nunca podemos nos esquecer de que toda essa produção que será analisada se deu dentro da
imprensa. E mais, as páginas semanais de Millôr na revista Veja têm a função de fazer o leitor
rir. Ninguém lê as páginas de humor de um jornal ou revista querendo entender as notícias do
dia ou se informar sobre o mundo que o circunda. O objetivo é se divertir. Claro que há muito
mais em jogo, caso contrário, não haveria sentido nesta pesquisa, e não teria sido justamente
graças às páginas de humor de Millôr que, pela segunda vez, seria decretada a censura prévia
sobre a semanal da Abril. Há muito mais em jogo do que apenas se posicionar contra ou a favor
do regime. E esse é o ponto: quebrar essa visão dualista do período. No âmbito da história da
cultura, prestar atenção nos marginais e outsiders, no cidadão comum e nas piadas, é
compreen-der a própria reação multifacetada dos brasileiros diante do regime ditatorial.
Essa visão dualista de pares antagônicos que marca a memória social dos brasileiros em
re-lação ao período em questão, acabou por contaminar também os estudos culturais que olharam
para aquela época. Se num plano mais geral a sociedade foi dividida pelo discurso militante e
pelo discurso oicial, em mocinhos e bandidos (conforme o lado, o bandido é sempre o outro),
no plano cultural acontece algo semelhante, mas com um leve matiz que não deixa de ser ainda
empobrecedor. A cultura ou é “de direita” ou é “de esquerda”, ou, em outros termos, crítica ou
favorável ao regime. Em raros casos abre-se uma exceção e cria-se uma coluna do meio que,
na maioria das vezes, é preenchida pelo movimento tropicalista. Isso acontece não apenas por
conta dessa divisão mais geral, fruto de analistas e estudiosos que viveram intensamente o
pe-ríodo e trouxeram para o campo da pesquisa acadêmica seus dramas e preconceitos (e também
pelas produções que aconteciam nos principais centros urbanos e provocavam certo gozo
estéti-co ao espectador atualizado estéti-com as principais estéti-correntes culturais europeias e norte-americanas.
Trabalhar “a vida cotidiana, no seu misto de inércia e rotina”25, é enfrentar a cultura que
normalmente ica de fora dos estudos das humanidades. É se arriscar para além das abstrações teóricas generalizantes. É, enim, tentar encontrar o luxo cultural denso e silencioso que fala
alto a respeito dos desejos e medos de um grupo de indivíduos lutando para articular sua
comu-nidade imaginada com a passagem da história. O humor milloriano, esse amontoado de chistes,
aforismo e desenhos, veiculados na imprensa para diversão do leitor, apresenta-se como fonte
para essas expectativas, já que não se separa das questões pontuais que iam marcando o dia a
dia daquela época, sem no entanto ser direto como o discurso jornalístico das páginas sérias; é
fragmentado e relacionado com questões do inconsciente coletivo, como demonstramos
ante-riormente nesta pesquisa.
2.7
Por se tratar da obra de um humorista, e a chave do humor estar justamente no repentino, no
relâmpago, no efêmero, no susto, teremos que acabar com a graça das piadas para podermos
sistematizar num corpo coerente a linha de conteúdo que estamos buscando. Ou seja, como a
produção humorística não forma uma narrativa linear (muito pelo contrário, tende a fragmentar
esse tipo de narrativa), teremos de fazer artiicialmente essa ordenação, tirando da piada a sua
graça. Cabe ao intérprete recolocar essa produção risível em seu contexto próprio.
Procuraremos nas páginas analisadas selecionar os principais conteúdos trabalhados por
Millôr, bem como a forma como esses conteúdos eram apresentados. Uma vez selecionados e
analisados poderemos buscar respostas para as nossas questões.
2.8
Tivemos o privilégio de trabalhar com fontes bem organizadas, datadas e de fácil consulta.
Usaremos em nossa pesquisa as edições da revista Veja de ins de 1968 (quando Millôr inicia sua colaboração com a semanal) até 1982 (quando encerra os trabalhos em meio a fortes
polê-micas). A vantagem para a pesquisa também está na uniformidade do material, já que
tratare-mos do que foi publicado numa única revista.
A escolha da revista Veja não se deu apenas por sua facilidade de consulta. Tratar da moral
milloriana, no período da última ditadura e no contexto da imprensa, nos levou a escolher
peciicamente a polêmica revista Veja. Polêmica porque, apesar de ter sido criada para estancar certo radicalismo e autonomia dos jornalistas da revista Realidade, nunca foi uma publicação
totalmente enquadrada pela racionalidade do empresário brasileiro, que sempre tirou proveito
de relações perigosas com o governo. Tendo sido criada e comandada pelo combativo Mino
Carta, podemos dizer que, ao menos enquanto teve o jornalista genovês no comando, mostrou
características da imprensa convencional imbricadas com a alternativa. Por conta dessa indei -nição e ambiguidade de discurso, escolhemos Veja. Talvez a escolha mais óbvia fosse O
Pas-quim, por conta de seu caráter radical e contestatório escancarado. Mas por querermos entender
a obra de Millôr justamente em seus dilemas e diiculdades de criação de signiicados é que
Capítulo 3
Conteúdo
3.1
Do que trata Millôr Fernandes em sua coluna mensal na revista Veja? Eis uma pergunta de
difícil resposta. Millôr tratou de uma ininidade de assuntos (tema deste capítulo) e de muitas
formas (tema do próximo capítulo).
Propor uma taxonomia milloriana é uma tarefa arriscada e fadada ao fracasso. Não é possível
estabelecer uma corrente humorística principal para deinir a produção de Millôr (como é pos -sível fazer com outros grandes humoristas): humor político? sim; comédia de costumes? sim;
nonsense? sim; humor negro? também.
O próprio Millôr criou algumas classiicações muito divertidas. Na edição de Veja de 1º de setembro de 1971, uma grande tabela ocupa ¾ da página dupla com o tema “Pontos de vista”.
Diversos assuntos – de “sapatos” até “controle de tempo”, passando por “domingo” e “acidente
mais comum” –, são vistos sob o ponto de vista do “proleta”, do “classe-média”, do “rico” e do
“intelectual”. A classiicação é toda caótica e divertida. Por exemplo, há a esquisita categoria
“tecla de máquina favorita”. Enquanto o “proleta” prefere “xxxxxxx”; o “classe-média” gosta
mais do “%%%%%%”; o “rico”, obviamente, do “$$$$$$$$”; e o “intelectual”, sempre cheio
de dúvidas, do “?????????”. O alvo principal da piada é a própria ideia de se classiicar. Ideia
essa que está apenas no centro do conhecimento cientíico moderno.
Se o próprio Millôr nos alerta sobre o ridículo das classiicações, também não deixa por
menos a estatística (prima-irmã de qualquer organização de dados): “As estatísticas provam: as
estatísticas não funcionam”26.
Seja como for, desaio posto, classiiquemos Millôr.
Um atalho que se apresenta ao leitor de primeira viagem (mas que logo o deixa num beco
sem saída), é usar as próprias divisões de seções criadas pelo autor. “Livre-pensar é só pensar”;
“Fábulas fabulosas”; “Retratos em 3 x 4 de alguns amigos 6 x 9”; “Hai-kai”. Eis algumas
se-ções. O problema é que não só elas surgem tão inesperadamente quando desaparecem ao longo
da produção de Millôr, como o conteúdo dessas seções é pouco homogêneo. Talvez a seção
mais famosa e duradoura – “Livre-pensar é só pensar” –, é uma coleção gigante e
espantosa-mente variada de aforismos. O mesmo vale para os haicais. Se já em “Retratos em 3 x 4...” o
assunto é recorrente (textos homenagem-sacanagem), a pouca incidência dessa seção, se
com-parada ao tamanho da produção, não revela muito sobre o conteúdo da produção em questão.
Selecionamos dentro do universo proposto, neste capítulo ignorando ainda a forma como
o conteúdo se apresenta, assuntos que de alguma maneira nos ajudam a entender do que trata
(principalmente) Millôr.
3.2
O tema espinhoso por excelência, porque inaceitável para os nossos tempos, é o machismo.
As piadas machistas atravessam do início ao im a produção estudada nesta pesquisa.
Piadas que rebaixam um grupo especíico são encontradas em todas as sociedades em qual -quer época. São as chamadas piadas contra stupid person. Desqualiicam um grupo e servem
para reairmar a dominação sobre ele. São muito comuns contra países desafetos e tiveram
alguma importância para a criação das consciências nacionais. Ao seguirmos esse esquema,
acabaremos concluindo que, em plena década de 1970, Millôr Fernandes não aceitava as
con-quistas da mulher que se emancipava. Ridicularizava para manter a dominação masculina.
Es-sas questões nascem de um esquema teórico aliado à um anacronismo; ou seja, são questões que
não se colocavam naquela época, ou ainda, apenas começavam a surgir. O antídoto possível é
irmar os pés no chão da realidade.
Aterrissamos nas areias escaldantes de Ipanema de quarenta anos atrás. E para fazer essa
viagem no tempo (e no espaço) vamos buscar o grupo geração de Millôr nas páginas do
ca-rioca O Pasquim. Ali Millôr está em casa. As piadas machistas nas páginas da (paulista) Veja
nos espantam porque formam um corpo estranho, parecem não pertencer aquele mundo. Já nas
páginas d’O Pasquim, fazem sentido dentro de um projeto editorial bastante coerente.
O Pasquim encontrou no deboche, no sexo, na tirada sacana, no palavrão, uma saída para a
diiculdade de criação de signiicados em um período marcado pela dicotomia política-cultural
e pela censura. Chamar outro colunista do jornal de bicha, ou uma mulher de gostosa, foi uma
estratégia desses jornalistas para escancarar o falso moralismo cristão daqueles tempos.
Tam-bém acabou por revolucionar toda a forma de se escrever jornalismo no Brasil. Muito longe dos
manuais tradicionais com suas regras gramaticais e de estilo. Revolucionado a forma, atingiram
o conservadorismo da imprensa tradicional e também o conservadorismo de costumes da
socie-dade daquela época.
Contra as senhoras das Marchas, o assobio cafajeste para as garotas de biquíni. A estratégia
das piadas machistas de Millôr é basicamente a mesma: airmar e reairmar o lugar da mulher
ho-mens só as desejam sem?”27; “Mesmo a mulher mais honesta do mundo gostaria de saber
quan-to vale se um dia resolvesse valer.”28; “Como sexo as mulheres são insuportáveis. Mas na hora
do sexo não tem nada melhor.”29
A famosa entrevista com Leila Diniz, na edição de novembro de 1969 de O Pasquim,
con-irma essa espécie de “sacanagem em piloto automático”. Os entrevistadores não a julgam ou
a rebaixam. Eles parecem enfeitiçados pela liberdade sexual e de linguajar de Leila. Não há
qualquer traço de machismo em relação à ela. O grupo geração de Millôr idolatra Leila Diniz.
Essa passagem nos esclarece que as piadas machistas são na verdade tão vazias quanto os
xingamentos e provocações que muitas vezes um deles dirige ao outro. O que nos parece estar
em jogo com essas piadas é a estratégia de escancarar o machismo violento (mas fechado entre
quatro paredes) que se apresentava como virtude em toda a sociedade brasileira. A moral
domi-nante mantinha a mulher como propriedade privada dos homens, indignava-se contra a cultura
bossa-nova de Ipanema, representada por Leila Diniz. Os homens de O Pasquim erguiam Leila
como um troféu.
As mulheres da família brasileira virtuosa:
27 Veja, 10 jun. 1970. 28 Veja, 8 jul. 1970. 29 Veja, 13 set. 1972. Figura 2
As mulheres d’O Pasquim:
Se voltarmos à revista Veja sob essa nova perspectiva, poderemos entender que as piadas
machistas faziam parte do oxigênio mental do grupo geração de Millôr. Dentro do contexto
correto, elas reairmam um impulso modernizante na obra milloriana.
A defesa vai bem até aqui. O machismo do autor estaria plenamente entendido. Mas e
quan-do o humor vai icanquan-do mais pesado? Incômodo? Mas só é incômodo para o intérprete, e não para o cidadão do passado. Se o humor é um espelho menos ou mais embaçado da sociedade, as
piadas que soam hoje para nós como incômodas, aparecem assim por conta do distanciamento
temporal. No entanto, reletiam para os leitores de Veja do período da ditadura, uma imagem de
sociedade que eles identiicavam, de forma crítica ou não.
“Estava muito triste. Tinha morrido a mulher do seu melhor amigo. E a dele, bem, a dele
continuava cheia de vida.”30
Neste tipo de encruzilhada, o humor, “uma das substâncias mais instáveis e corrosivas que
30 Veja, 25 jun. 1975. Figura 3
há na natureza”31, deixa o intérprete sem chão. O parodoxo é que, se por um lado o humor
cor-rige ou fragmenta ainda mais os vícios morais, não deixa de ser um espelho da sociedade.
Em 8 de outubro de 1975, uma crônica que ocupava a metade de uma das duas páginas
se-manais de Millôr, pode ser a chave (ao menos uma chave já seria bom) para o humor machista
do autor. Trata-se de uma (falsa) enquete que perguntava: “O homem deve bater na mulher?”.
Millôr cria 8 personagens para responder essa que é a questão central do movimento feminista:
a violência contra a mulher. Francisco Nerlan Dureza, 75 anos, negociante, airma que tem que
bater mesmo por direito e obrigação do homem, para que elas saibam quem manda. O objeto da
violência aqui desaparece, o que importa é o direito do homem de bater, inclusive em crianças
e cachorros. O segundo, Jorginho da Cuíca, 44 anos, gerente de supermercado, também diz que
sim. Mas faz uma suave passagem para uma reação da mulher: “Eu já tive sete mulheres, três
gostavam de apanhar, três apanhavam sem gostar e uma reagia à altura e mandava ver.” Rélson
Nodrigues, idade irrevelada, teatrólogo, é o terceiro a responder a enquete. A referência é por
demais óbvia, e a resposta bastante engraçada: “Pergunta simplória de resposta óbvia e
ululan-te”. Agora é a vez de uma mulher responder, uma “socióloga especializada em aparecer na TV”.
Surge o relativismo típico dos intelectuais: “Depende do approach antropológico.” E ainda,
“Dever ou não dever aí é uma questão de época e costume”. João Torquato, arquiteto, airma que sim, ainal como saber se deve ou não deve sem tentar. E conclui que “Em última análise o ego dele ica mais seguro.” Teda, atriz de underground, começa dizendo que não há nada a fa -zer, já que todo homem irá bater na mulher, e para defender a “feminilidade e delicadeza
amea-çadas”, sugere como saída para as mulheres “aprender caratê, hai-kidô, jiu-jitsu e ter também
em casa pelo menos um cassetete de ferro e um soco inglês.” E por último, Gilda Trevisso, 32
anos, cantora do grupo Las Três Demissionárias, reclama que os homens nem para isso servem
e que a maior surra que ela levou na vida “foi de uma companheira de quarto e de trabalho.”
A opacidade do objeto distante e intrinsicamente fragmentado, vai tomando forma
com-preensível. Salvo engano, o machismo representado nessa enquete, em sua expressão mais
rude, grosseira e escancarada, é principalmente ridículo! Essa é, no inal das contas, a bandeira
principal do humor machista (feminista?) de Millôr Fernandes.
Neste início de século XXI, dominado pelo politicamente correto (fruto de identidades
for-jadas no atropelo de conquistas valiosas de diversas minorias, entre elas as mulheres), o humor
machista de Millôr não pode mais ser aceito (nem plenamente compreendido). Talvez não seja
mais necessário também. Não sabemos. Quando surge, qualquer piada machista é rapidamente
desmontada e destruída. Millôr, em 30 de setembro de 1970, intuía o que estava por vir nessa
seara que, ao que tudo indica, nunca será apaziguada, com este belo desenho do machismo nos
tempos do politicamente correto:
3.3
No ano de 1969 um tema esteve bastante presente nas páginas de humor de Millôr na Veja:
a chegada do homem à Lua.
O assunto catalisava uma serie de questões fundamentais: o triunfo da ciência e da técnica;
uma vitória simbólica importante dentro dos termos da Guerra Fria; e toda uma série de
assom-bros que calavam fundo ao homem, fruto de todo tipo de icção que imaginou e representou a
imensidão do espaço, viagens interestelares, naves espaciais e vida fora da Terra.
Ninguém icava indiferente ao tema. Basicamente havia os que acreditavam no feito e os que
achavam que aquilo tudo era uma grande mentira. Millôr não entrou nesse debate. Encontrou
uma forma de olhar toda a humanidade de uma vez, sem distinções de nacionalidade, gênero,
cor ou qualquer outra divisão. Olhou a Terra de uma perspectiva que agora se tornara possível:
de uma só vez e inteira. E riu de toda a humanidade!
Na edição especial comemorativa do feito, de 23 de julho de 1969, Millôr foi categórico:
Figura 4
“Ainal o homem botou o pé na Lua. Agora a Lua também é aterradora.”32 Criou também uma longa “Balada para o primeiro pedestre lunar vivo ou morto”. A balada enaltece e vibra com
o feito desse herói, para quase no inal surpreender o leitor (e fazê-lo rir) arrematando assim:
“Para não ser esquecido / ofendido, humilhado, / só te resta ser / politicamente assassinado. /
Antes que alguém, / pisando em Marte / (pisando em ti) / te traga o enfarte.”
Ainda em 1969, Millôr seguia com a mesma fórmula: “Tem gente aí vibrando porque dois
homens foram à lua. Eu só vou vibrar no dia em que forem todos.”33
Mas o momento mais rico dessas crônicas lunares é um desenho de 25 de dezembro de 1968.
Em primeiro plano, com traços e cores cheios de fúria, um magníico desenho de São Jorge
matando o dragão na Lua. Imagem mítica e bastante presente na cultura popular brasileira. A
donzela esperando para ser salva já está nua. E ocupando um espaço bastante secundário no
desenho, apenas composto por traços, estão dois astronautas e a nave com a bandeira americana
no topo. Num balão de diálogo está escrito “JOHN OLHA SÓ”. Em uma única imagem Millôr
condensa temporalidades distintas e formas de pensamento incompatíveis. Dois elementos que
não cabem numa mesma categoria de ordenação nos remetem ao riso nervoso e perturbador de
Foucault diante do texto borgiano34. Quando lemos o balão com o diálogo, com muito esforço
já que bastante reduzido, com o desenho expressionista prendendo nossa atenção, o riso que
irrompe da piada é o riso do não-entendimento; o riso que revela, sem explicar, a existência de
outra forma de pensar. É o riso da incapacidade de ordenar logicamente o mundo.
Millôr mostra estar atento para os acontecimentos do momento (ponto no tempo e no
espa-ço), sem deixar de entender durações mais longas (eixo horizontal) e pensamentos profundos
(eixo vertical): todas as coordenadas expressas num único desenho de uma revista semanal
brasileira.
32 Veja, 23 jul. 1969. 33 Veja, 6 ago. 1969.
Figura 5
Outra vez surpreendente, enquanto todos se encantavam com as imagens da Terra vista da
Lua, Millôr apresenta, em um único desenho ocupando a página dupla da edição da Veja de
18 de junho de 1969, a “Primeira audição da Terra”. Longe da paz azul do planeta que lutua
em silêncio na escuridão, temos o caos multicolorido da completa e total impossibilidade de
acordo entre os homens. Se vista desse nova perspectiva, a imagem oicial oferecida a todos era a de um local pacíico e lírico. Já a representação milloriana não perdoava: “ladrão”, “rato”, “te odeio!”, xingamentos, ofensas e discórdia; “topogígio é bicha”, “classe média go home!”,
xingamentos, ofensas e discórdia, mas sempre com muita graça.
De longe ou de perto, o planeta era inviável. Eis a lição tirada por Millôr dessa grande
aven-tura da humanidade.
Figura 6
3.4
A versatilidade de temas tratados por Millôr, como já foi dito, mas não demonstrado até
aqui, espanta. A psicanálise foi um assunto muito abordado nas páginas da Veja. Assunto central
para diversas correntes de pensamento e áreas de atuação durante todo o século XX (e ainda no
XXI), mas também uma espécie de chave-mestra para leigos resolverem qualquer problema, a
psicanálise, a partir da década de 1960, passa a ser comum no Ocidente para cidadãos urbanos
de classe média. Todos tinham um problema (complexo) que poderia ser resolvido no divã, ou
como mordazmente airmou Foucault, nos taxímetros freudianos35.
Os desenhos de Millôr representando o momento da análise são magníicos, principalmente
se vistos em sequência. Vale fazer essa viagem pelos divãs millorianos:
35 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Graal, 2007. Figura 7
Fonte: Veja, 8 out. 1969.
Figura 8
Figura 9
Fonte: Veja, 16 set. 1970.
Figura 10
Figura 11
Fonte: Veja, 2 fev. 1972.
Figura 12
Uma a uma Millôr vai corroendo as certezas da psicologia.
“A psicanálise é apenas um ponto de encontro entre os malucos clientes e os malucos
pro-issionais da maluquice.”36 Esse aforismo de certa forma é a chave interpretativa da série de
desenhos. Se os complexos atravessam a sociedade de cabo a rabo, como acreditar (coniar?) no analista? Um conhecimento que nunca consegue se irmar epistemologicamente, depende
em grande medida da interpretação essencialmente pessoal do analista. Aí a contradição
funda-mental da ciência freudiana, sacada e ridicularizada por Millôr.
O mesmo aforismo, desta vez mais forte: “Entre o idiota que está no sofá e o que possui
diploma, o melhor é não tentar distinguir”.37
3.5
“O que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”38, airmava o então Ministro do
Exterior, Juracy Magalhães, em 1966. Se as relações e a adesão do Brasil aos programas políti -cos norte-americanos nunca foram tão alinhados e automáti-cos como sugere a frase do ministro,
não seria falso airmar que o american way of life, a partir da década de 1960, torna-se o modelo número um do estilo de vida do brasileiro.
Millôr está muito atento a esse processo. Ele estreia sua página na Veja intitulando sua seção
de humor como “Supermercado Millôr”; o título vem diversas vezes acompanhado de um
subtí-tulo que aponta o quanto esse supermercado tem um tom crítico-irônico em relação ao desejo de
consumo idealizado na terra de Tio Sam. Alguns exemplos: “Marketing is Faith”39; “Consumo
é amor”40; “Marketing is all. Consumo é fé”41.
O desenho abaixo nos ajuda a entender como Millôr não fazia a menor concessão a essa
in-vasão americana. O modelo americano de sedução através da construção de um modo de vida,
que é principalmente armado com o aparato da propaganda, está aqui posto a nu. Escamoteado
na comunicação, um desejo de dominação que, se for preciso, será feito através da força. Ou
melhor ainda, junto com a cultura vem implícita uma mensagem ameaçadora.
Inimigos são decapitados com uma guilhotina sem im. A piada é que a lâmina da guilhotina
é uma lâmina da marca Gillette (sabemos disso porque o carrasco anuncia o slogan da marca
como se desejasse vender o produto e sua eiciência). Cabeças decapitadas com expressão idio
-36 Veja, 7 abr. 1976. 37 Veja, 3 jan. 1973.
38 GASPARI, Ellio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 39 Veja, 25 dez. 1968.
ta vão se acumulando em baldes cheios de sangue. O sangue e a Gillette ganham destaque. O
restante do desenho é todo feito apenas com traço preto no fundo branco do papel. O título da
seção, dessa vez incorporado ao desenho, ganha um tom ainda mais irônico. E não contente,
Millôr ainda nos brinda com um chiste que brinca com o nome completo dos dois países.
Tudo misturado: Brasil e Estados Unidos. Tudo consumo. Tudo produto. Tudo conlito. Eis o
humorista ultrapassando o debate cultural mais tolo da época, que discutia se o uso da guitarra
elétrica na música brasileira era ou não correto, para nos apresentar o quanto esse jogo já estava
deinido. Figura 13
Novamente em um desenho, Millôr consegue criticar o modelo de vida livre vendido ao
mundo pelos Estados Unidos, não usando qualquer imagem das batalhas em terra estrangeira, já
tão questionáveis naquele momento, mas sim um episódio da política doméstica
norte-america-na. A rebelião no presídio de Attica, estado de Nova York, em 1971, durou 4 dias, foi duramente
reprimida e deixou um saldo de 39 mortos. Uma imagem muito mais forte do que qualquer
instantâneo da Guerra Fria porque escancara as contradições e violências daquele país de uma
forma inédita. Dessa vez as vítimas eram cidadãos americanos vivendo em solo nacional.
O título do desenho é “Ilusão de óptica – efeitos de Attica-1971”. Em ¾ de uma página
in-teira, a sombra da Estátua da Liberdade está projetada na parede escura de uma cela. A janela é
diminuta em relação à parede. Na faixa da base do desenho que sobra estão os mortos
enchar-cados em sangue. Ainda em pé, um único preso com um dos braços levantados e na outra mão
um papel escrito “lista de mortos”, é na verdade o objeto que projeta a sombra na parede. Um
desenho soisticado, tecnicamente elaborado e que, sem ter que nos contar toda uma história
narrativa, resume a essência da contradição moral que envolve o episódio. Aí estava
represen-tada toda a grande ilusão da “terra dos livres e lar dos bravos”.
3.6
A TV foi um dos elementos que marcou e deiniu época no Brasil (e no mundo). Foram
inúmeras as piadas de Millôr desmoralizando a TV em todos os seus aspectos: desde a produção do conteúdo até o telespectador.
Em 1960 eram 760 mil televisores no Brasil; em 1970, 4.931 milhões; e 19.602 milhões
em 1980. Em relação ao principal período estudado nesta tese, Marcelo Ridenti airma: “Na
década de 1970, a televisão consolidou-se como principal veículo de comunicação de massas
em âmbito nacional, beneiciando-se do avanço tecnológico, como a retransmissão por rede de
micro-ondas e satélite”42.
O avanço tecnológico mencionado acima, que permite à TV consolidar-se de forma maciça nos lares brasileiros, é representado neste desenho de Millôr como poluição. Ele materializa
as ondas através de uma apurada técnica de colagem, para ampliicar de forma assustadora o impacto do conteúdo. A cidade ica esmagada no desenho pelas ondas. Único elemento colorido,
mas bastante reduzido em relação aos heróis das telas, o cidadão assisti a programação sem a mediação do aparelho. Não pode reagir àquela invasão de “poluição eletrônica”.
42 RIDENTI, Marcelo. “Cultura” In: Modernização, ditadura e democracia. 1964-2010. Volume 5. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. Figura 15
Ainda questionando a qualidade da programação, numa loja de televisores, com vários deles ligados em diferentes programas, o cliente pergunta ao vendedor: “O senhor não tem
uma com programas melhores?”43 Aqui novamente a graça vem de um deslocamento. Em
uma passagem do material do aparelho para o imaterial da programação. Todos querem esse aparelho. Todos precisam tê-lo. Mas será que ele não poderia ter uma programação melhor? E novamente aqui ele brinca com a mistura entre suporte e conteúdo, tecnologia e cultura: “Dizem que o desenvolvimento técnico da televisão ainda está na infância. Que dizer então da programação?”44. E mais uma vez: a representação de um apresentador de tv, num desenho de raro manejo de cores, no qual cenário, personagem e aparelho se fundem, diz: “– Pedimos as mais veementes desculpas aos telespectadores, mas, devido a um defeito em nossas instalações, acabamos de transmitir um programa cultural...”45.
Em um desenho intitulado ironicamente “Millôr e a superioridade tecnológica”, um macabro técnico de TV, diante do aparelho, informa a imbecilizada dona do aparelho que “A televisão tá perfeita, madame. A realidade que enguiçou”46.
43 Veja, 10 nov. 1971. 44 Veja, 9 fev. 1972. 45 Veja, 1º nov. 1972. 46 Veja, 8 ago. 1973. Figura 16
Aqui a crítica torna-se mais complexa. Millôr usa o meio mais difundido de representação para questionar não a qualidade da programação ou a superioridade do avanço tecnológico,
como airmado no título, mas a realidade em si. A vida. Todo o teatro de bobagens apresentado
pela TV desta vez deixa de ser um problema de programação para ser uma fatalidade do que
há para ser representado. Não é para menos que as duas iguras principais têm ar fatalista,
mórbido. O técnico não tem pupilas; morto-vivo no beco sem saída do jogo da representação. Um aforismo, alguns meses depois, em 28 de novembro de 1973, inverte a questão acima: “Cada dia há mais gente assistindo televisão para escapar à realidade. E eu, que desejo apenas escapar da televisão?”
Num ataque menos soisticado, mas dessa vez cerrando fogo contra os telespectadores e
suas certezas baseadas no hábito da maioria: “Os que vivem combatendo a televisão deveriam
ser mais humildes no seu juízo crítico: ainal, 3 milhões de idiotas não podem estar errados.”47 Nesta frase com desfecho típico do humor milloriano, o autor desta vez coloca o telespectador como vítima de um mundo manipulado pela possibilidade tecnológica da TV de trocar a programação: “O que salva a televisão é que, se o espectador não gosta do programa, sempre tem a possibilidade de virar o botão e ligar prum programa pior”48. Na mesma linha:
“Faça como o avestruz: quando não quer tomar conhecimento da realidade, ele enia a cabeça
na televisão”49.
A alienação promovida pela TV numa frase de estrutura elementar, mas de crítica cortante: “A televisão aumenta o número de telespectadores na proporção em que diminui o número de cidadãos”50.
Em 26 de janeiro de 1977, Millôr dedica sua página dupla inteira ao tema TV. Ali estão reunidos os diversos pontos de vista usados pelo humorista (apresentados acima) em 15 frases curtas que vão, ponto por ponto, demolindo o universo televisivo. Millôr se auto-representa quixotescamente, em um desenho que domina a página, munido de uma enorme caneta de pena embebida em tinta vermelha (sangue?), atacando impávido não moinhos, mas um exército de televisores que cercam uma antena de transmissão. A pena versus a TV. Junto ao seu nome que
assina a página, sua proissão de fé (e humor) na resistência ao mundo televisivo: “Ao vivo
(ainda) / Em cor (pálido de medo) / Mas (graças a deus) / sem controle remoto”.