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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

O RAP E O LETRAMENTO:

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E A CONSTITUIÇÃO

DAS SUBJETIVIDADES DOS JOVENS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

ANA CLAUDIA FLORINDO FERNANDES

SÃO PAULO

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ANA CLAUDIA FLORINDO FERNANDES

O RAP E O LETRAMENTO:

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E A CONSTITUIÇÃO

DAS SUBJETIVIDADES DOS JOVENS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação, área de concentração Psicologia e Educação.

Orientadora: Profª Drª Mônica G. T. do Amaral

SÃO PAULO

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a

fonte.

Catalogação na Publicação

Serviço de Biblioteca e Documentação

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

FERNANDES, Ana Claudia Florindo.

O rap e o letramento: a construção da identidade e a constituição das subjetividades dos jovens na periferia de São Paulo. / Ana Claudia Florindo Fernandes; orientadora Mônica G. T. do Amaral. – São Paulo: (s.n.), 2014.

Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, 2014.

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Nome: FERNANDES, Ana Claudia Florindo

Título: O rap e o letramento: a construção da identidade e a constituição das subjetividades dos jovens na periferia de São Paulo

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação, área de concentração Psicologia e Educação.

Aprovada em: _____ / _____ / _____

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. ________________________________________ Instituição:___________

Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr. ________________________________________ Instituição:___________

Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr. ________________________________________ Instituição:___________

(5)

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Mônica G. T. do Amaral, pela rica parceria e partilha de conhecimentos, na longa jornada de pesquisa, reflexão e escrita, que contribuíram, em muito, para o meu crescimento científico e intelectual.

Aos professores que participaram da banca de examinadores, na fase de qualificação, e trouxeram-me contribuições valiosas: Claudemir Belintane e Lourdes Carril.

Aos colegas do grupo de pesquisa, especialmente representados por Valdenor Santos e Raquel Martins, pelos anos inquietos de intenso estudo e companheirismo.

À Irene Luterman, pela leitura atenta dos meus escritos e pela colaboração enriquecedora na fase final de elaboração da dissertação.

À FAPESP, pelo apoio financeiro imprescindível concedido ao Projeto de Políticas Públicas (Processo: 2010/52002-9), do qual participei como pesquisadora colaboradora.

À FEUSP e toda sua estrutura – professores, alunos e funcionários - pela oportunidade de realização do curso de mestrado e por criar as condições de realização da pequisa.

À ONG Casa do Zezinho, por colocar à disposição seu espaço e infraestrutura necessários à pesquisa empírica, e aos jovens que aceitaram participar ativamente das oficinas propostas.

Aos meus pais e ao meu marido, todo o meu amor, toda a minha admiração e gratidão, hoje e sempre, pela compreensão, paciência, afetuosa presença e incondicional apoio durante o processo de construção deste trabalho.

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RESUMO

FERNANDES, Ana Claudia Florindo. O rap e o letramento: a construção da identidade e a constituição das subjetividades dos jovens na periferia de São Paulo. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.

A presente dissertação de mestrado tem como objetivo pesquisar em que medida o rap, música característica do movimento hip-hop, é capaz de possibilitar o processo de letramento de jovens provenientes das classes menos favorecidas, que habitam na periferia de São Paulo, enriquecendo suas experiências linguísticas e subjetivas. A dissertação é o resultado de uma pesquisa-ação realizada na ONG Casa do Zezinho, localizada na região do Capão Redondo, extremo sul da cidade de São Paulo, com jovens entre 13 e 15 anos, regularmente matriculados em escolas públicas do entorno. O trabalho empírico desenvolvido, por meio de oficinas, privilegiou a interdiscursividade do rap para discutir as desigualdades sociais e raciais, às quais está submetida uma importante parcela da população, a fim de analisar a construção da identidade dos jovens urbanos, aproximando a cultura de sua comunidade das intervenções propostas como situações de ensino. Buscou-se, ainda, oferecer por meio do rap e toda sua oralidade formular, situações significativas de letramento para que o funcionamento social da linguagem e os conteúdos relacionados à língua pudessem ser compreendidos em suas dimensões discursivas. Tomando como base as letras de rap e a escuta da imagem sonora da palavra, entendemos que a linguagem adotada pelo rap também possibilitou a reinterpretação das experiências vividas na comunidade, ao dar novos significados ao imaginário do adolescente, conferindo à palavra a força da experiência vivida, individual e coletivamente.

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ABSTRACT

FERNANDES, Ana Claudia Florindo. Rap and literacy: the construction of identity and constitution of subjectivity in youth from the periphery neighborhoods of São Paulo. Dissertation (Masters) - College of Education, University of São Paulo.

This dissertation aims to investigate the extent to which rap, the characteristic music of the hip-hop movement, is able to facilitate the process of literacy in young people who inhabit the low-income periphery neighborhoods of São Paulo, enriching their linguistic and subjective experiences. The dissertation is a result of research conducted at Casa Zezinho, an NGO located in the Capon Redondo region, in the extreme southern area of the city, with young people between the ages of 13 and 15, enrolled in public schools in its surrounding areas. Through workshops, the empirical work focused on the interdiscursivity of rap to discuss social and racial inequality, to which a significant portion of this population is subjected, in order to analyze the nature in which urban youth construct their identities, using the culture of their communities in the aforementioned workshops as teaching tools. We also attempted to offer, through rap and its utterly oral nature, significant focus on literacy so that the social function of language and the content relating to language could be understood in their discursive dimensions. Using rap lyrics as our basis and listening to the sound image of the words, we understood that the language adopted by rap also allows for a redefinition of the experiences of the community by giving adolescents the chance to imagine the world in a new way, giving the word the force of individually and collectively lived experiences.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………. . 10

1. O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA………. . 19

1.1 Uma breve retrospectiva dos conceitos norteadores dos censos de alfabetização no Brasil ... 24 1.1.1 A alfabetização e a questão racial no Brasil ... 33

1.2 Letramento: oralidade e escrita - os distanciamentos e as aproximações... 37 1.3 Griot, o narrador da ancestralidade africana ... 49

1.4 Rappers - os griots da atualidade ... 52

1.5 A relação entre objeto e palavra: imagem acústica e

significação….………59

1.5.1 O inconsciente traduzido em rimas e raps ... 69

2. O LETRAMENTO CULTURALMENTE RELEVANTE: RUMO À PERIFERIA…. . 72 2.1 A estética rap no movimento hip-hop ... 81

2.1.1 A história do hip-hop: da Jamaica aos Estados Unidos ... 82 2.1.2 O surgimento do movimento hip-hop na história da música brasileira ... 93

2.1.3 A estética rap como possibilidade de emancipação política

………..……….….103

3. A PESQUISA DE CAMPO: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE O RAP E

O LETRAMENTO……….. 117

3.1 O caminho da pesquisa empírica: um método em construção .... 124 3.1.1 Primeiras linhas: uma aproximação do contexto da pesquisa de

campo………127

3.1.2 Os embaraços da leitura e da escrita: o começo do desafio ... 128

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3.1.4 Entre a violência dos versos e uma sociedade violenta: o

desenvolvimento da adolescência... 143

3.1.5 A poesia da língua: versos e rimas no discurso ... 155

3.1.6 No ritmo do rap: a linguagem em ação ... 163

3.1.7 No fim do percurso, o recomeço de uma escrita ... 186

CONSIDERAÇÕES FINAIS – O RAP COMO POSSIBILIDADE DE LETRAMENTO……….………... 190

REFERÊNCIAS……….……….. 195

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INTRODUÇÃO

Um ensino de qualidade para todos, que represente os alunos pertencentes às classes menos favorecidas, particularmente em relação ao letramento, é um desafio premente para a educação básica brasileira. São muitos os entraves e bastante insatisfatórios os resultados revelados pelo alunado em avaliações do sistema de ensino nacional, apontando a insuficiência de grande parte das ações educacionais na formação de habilidades relacionadas à linguagem.

A discussão e o questionamento sobre as práticas de ensino, comumente desenvolvidas na escola, relacionadas às situações de ensino da leitura e escrita, torna-se urgente, dado o distanciamento constatado entre o que se pretende propor aos alunos como conteúdos curriculares e acadêmicos e as experiências linguísticas construídas por eles em suas vivências na comunidade da qual participam e interagem como sujeitos do discurso.

Na presente dissertação de mestrado, propomo-nos a pensar sobre outros caminhos do letramento, investigando a possibilidade de trazer para dentro da sala de aula, conteúdos, assuntos e reflexões ligados aos interesses e necessidades demonstrados pelos jovens em suas experiências na periferia, fortemente marcadas pela tradição oral, de modo a tornar relevante e significativo o processo de escolarização.

Com esse intuito, recorremos ao rap, contemplando a música e a poesia do movimento hip-hop, para repensar a cultura hegemônica da escola, buscando contribuir para a construção de novos rumos para a educação pública, na qual a cultura produzida pelos jovens urbanos, bem como as práticas sociais vividas nos

espaços das “hiperperiferias”1 de São Paulo, sejam consideradas e valorizadas pelo

universo escolar. Identificamos no rap um potencial bastante enriquecedor de formação e de educação crítica para os jovens urbanos.

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Consideramos que há espaço para o rap na escola e no currículo, sem que seja necessário forjar condições para que as reflexões em torno do gênero ocorram, dado o envolvimento com o canto falado demonstrado particularmente por jovens e adolescentes moradores das periferias de grandes metrópoles como São Paulo. O entendimento do funcionamento social da linguagem e o conhecimento das diversas dimensões que a compõem - sejam elas de ordem semântica, lexical, sintática, entre outras - constituem-se como um dos objetivos fundantes do ensino da língua.

Partimos da hipótese de que, por meio do rap e da forte presença da oralidade nele contida, torna-se possível alimentar e enriquecer os conhecimentos da juventude urbana a respeito da linguagem, possibilitando uma entrada na escrita mais significativa e relevante do ponto de vista cultural.

A face poética do movimento hip-hop está presente na formação

discursiva dos jovens, especialmente entre os menos favorecidos, uma vez que as letras fazem parte de seu cotidiano, constituindo-se em verdadeiras crônicas que narram situações vividas na comunidade, auxiliando-os a compreender melhor a sociedade em que estão inseridos, além de entremearem as experiências linguísticas construídas nas situações comunicativas concretas. São ritmos, sons, batidas, rimas e poesias que contribuem para a formação e a ampliação do repertório linguístico dos jovens, por meio dos quais é possível interpretar o significado da escolha de cada palavra na composição de um verso e debater temas próximos da realidade de quem mora na periferia, mobilizando-os a interessar-se por outros textos (FONSECA2, 2011).

A escola necessita trazer, para dentro da sala de aula, conteúdos, assuntos e reflexões, vinculados aos interesses demonstrados pelos jovens em suas experiências de constituição identitária e subjetiva na comunidade. O rap, nessa perspectiva, pode ser um dos caminhos de letramento para que os alunos

2 FONSECA, Ana Silvia Andreu da. Versos violentamente pacíficos: o rap no currículo escolar.

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desenvolvam importantes noções sobre interpretação e produção de textos escritos, permitindo um uso mais eficiente dos mecanismos da língua, de modo que possam apropriar-se da linguagem de maneira ampla, com conhecimento, inclusive, da norma “culta” da língua, tão prestigiada no âmbito escolar.

Pensando em toda a contribuição do rap para o processo de letramento dos jovens da periferia, propusemo-nos a realizar a pesquisa empírica3 propriamente dita, para a qual contamos com o apoio e a parceria da ONG Casa do Zezinho, uma instituição filantrópica localizada na região do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, que atende alunos regularmente matriculados nas escolas públicas do entorno. A entidade desenvolve um trabalho de formação nos campos artístico e cultural, há mais de 15 anos, dirigido a cerca de 1700 crianças, adolescentes e jovens entre 6 e 21 anos.

Nosso trabalho de campo consistiu, basicamente, na realização de oficinas junto aos jovens, explorando toda a interdiscursividade do rap - a face poética do movimento hip-hop - bem como sua articulação com o letramento, concebido como um processo sócio-histórico de construção de práticas e usos da língua produzidos em um contexto específico, no qual a escrita e a oralidade são tomadas como atividades centrais na interação verbal. Planejamos 25 encontros, de aproximadamente 1 hora e meia cada um, durante o ano de 2012 (março a novembro), com jovens entre 13 e 15 anos, que cursavam desde as séries finais do Ensino Fundamental II (7º, 8º e 9º anos) até a série inicial do Ensino Médio (1º ano).

No primeiro semestre, foram desenvolvidas atividades relativas à contextualização do hip-hop, enquanto expressão estética de contestação política, social e econômica, abordando desde o percurso histórico traçado pelo movimento nos Estados Unidos e no Brasil, em que ocorreram desdobramentos bastante importantes do ponto de vista cultural e político, particularmente entre os jovens oriundos das regiões periféricas das grandes metrópoles. Além disso, os principais representantes do rap nacional foram apresentados aos jovens e as músicas

3 Como parte do projeto de políticas públicas, sob o título Rappers, os novos mensageiros urbanos

(13)

tornaram-se objeto de estudo e reflexão do grupo, uma prática que revelou o papel essencial do rap na formação dos jovens urbanos, auxiliando-os a compreender o mundo em que viviam.

No segundo semeste, as oficinas tiveram um enfoque mais específico em torno das habilidades de escrita. Para tanto, foram organizados encontros centrados na ampliação do repertório dos alunos a respeito dos recursos estéticos utilizados pelos rappers na composição da música, que tem, entre outras características, um forte apelo político. Os jovens participaram de uma visita ao Museu da Língua Portuguesa, assistiram entrevistas e documentários de rappers brasileiros e construíram um fanzine - revista bastante utilizada pelo movimento hip-hop para a divulgação de ideias, shows, eventos, entre outros -, no qual foram registrados os

raps de autoria produzidos pelos próprios jovens no decorrer dos últimos encontros.

Já nas primeiras oficinas, pudemos observar um descompasso entre a idade e a série que os alunos cursavam, além de importantes defasagens nas habilidades e competências associadas à leitura e à escrita.

A partir do levantamento das principais necessidades apresentadas pelos jovens em relação ao letramento, inspiramo-nos na proposta da pesquisa-ação4 e

nas ideias sustentadas pelo autor norte-americano, Duncan-Andrade5 (2008),

relativas a uma “pedagogia culturalmente relevante”, para planejar as nossas

intervenções. Segundo este, a cultura escolar necessita ser transformada para que os jovens urbanos advindos das regiões periféricas das grandes metrópoles consigam preservar sua identidade. Ao mesmo tempo, pareceu-nos fundamental que seus interesses - estéticos, inclusive - fossem contemplados pelo currículo e pela proposta político-pedagógica desenvolvida no interior da escola.

As atividades em torno da linguagem foram interpretadas de acordo com a perspectiva da análise do discurso. Procuramos estabelecer articulações entre o discurso, o sujeito do inconsciente e a história, partindo do pressuposto de que o

4 THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011.

(14)

fenômeno linguístico é permeado por interpretações que conferem aos enunciados e enunciações, efeitos de sentidos, que dizem respeito ao lugar social ocupado pelo sujeito e a representação construída por ele em relação ao seu interlocutor, no processo de interação verbal.

Sobre isso, Pêcheux (2006) salienta que não há descrição objetiva de fatos ou acontecimentos, mas sim um arranjo discursivo-textual, o que significa dizer que todo enunciado pode converter-se em outro enunciado e deslocar-se ideologicamente, abrindo espaço para interpretação. Uma interpretação que considera o entremeio da linguagem, uma região discursiva intermediária, que oscila entre o lugar do não-dito e do já-dito, sendo perpassada pelo simbólico e pela ideologia na construção de sentidos.

A ênfase dada à psicanálise pela análise do discurso francesa nos levou a retomar a relação entre a associação de objeto e a representação da palavra, tal como teorizada por Freud6 (1915/2003) a propósito das afasias e cuja síntese fora acrescentada à edição do artigo O Inconsciente (Apêndice C)7.

Recorremos, assim, aos estudos freudianos como forma de fundamentar a nossa leitura a respeito das associações simbólicas e imaginárias feitas pelos jovens em suas experiências na comunidade, tanto na infância como na adolescência, estimuladas pelas músicas dos raps escutados. A ideia era entender em que medida o ritmo, as marcas sonoras e a poesia como gênero auxiliariam, não apenas a atribuir novos sentidos a suas vivências, servindo como elemento de ampliação do léxico referente aos aspectos linguísticos, como também seriam fundamentais para conferir às palavras o peso das experiências profundas vividas individual e coletivamente.

Percorrendo as tramas dessa articulação entre a palavra entendida em sua discursividade, as representações inconscientes que perpassam a narrativa do rap e

6 FREUD, Sigmund (1915). Apéndice C. Palabra y cosa. In: Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico: trabajos sobre metapsicología y otras obras (1914-1916). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.

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todo o contexto histórico, político, social e cultural no qual este gênero se inscreve, buscamos construir um processo de reflexão sobre o letramento de jovens da periferia, enfrentando os desafios relacionados à formação de habilidades orais e de leitura e escrita na educação básica. Ainda que tendo como campo de pesquisa a ONG Casa do Zezinho, a intenção sempre foi ultrapassar as fronteiras da instituição e concentrar toda a nossa discussão em torno do universo escolar.

Apresentamos, a seguir, uma síntese dos três capítulos desta Dissertação, organizados em torno de temáticas que dialogam teoricamente com as experiências construídas no decorrer do processo de pesquisa de campo.

No primeiro capítulo, “O referencial teórico-metodológico da pesquisa”,

apresentamos a concepção de letramento na qual está fundamentada a nossa investigação, considerando os pressupostos da análise do discurso francesa, representada por Pêcheux (2006), as ideias discutidas pelos teóricos do letramento, tais como Street8 (1995) e Tfouni9, (2001), e os estudos sobre a história da escrita, tomando como base Havelock10 (1996) e ONG11 (1998). Buscamos estabelecer uma

articulação entre a oralidade formular e suas contribuições para a entrada do jovem no universo da escrita, utilizando como objeto de estudo a poesia do rap. Neste capítulo, comparamos os atuais rappers e suas crônicas da vida urbana, com os

griots, considerados os bastiões da cultura e da oralidade nas sociedades africanas, que, desde os seus primórdios, por meio da poesia, narram histórias e transmitem ensinamentos, utilizando as fórmulas e recursos mnemônicos típicos da oralidade formular, também representada pela figura do rapsodo, na Grécia Antiga. Para esta abordagem, exploramos os textos de dois estudiosos africanos, Niane12 (1982) e

8 STREET, Brian V. Literacy in theory and practice. New York: Cambridge University Press, 1995.

9 TFOUNI, Leda Verdiani. A dispersão e a deriva na constituição da autoria e suas implicações para

uma teoria do letramento. In: SIGNORINI, Inês (org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 2001.

10 HAVELOCK, Eric. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. São

Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

11 ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas: Papirus,

1998.

12 NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata ou A epopeia mandinga: romance. São Paulo: Editora Ática,

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Adékòyá13 (1999), a fim de apresentar uma visão sobre os griots enraizada na

ancestralidade africana. Por fim, apresentamos uma possível utilização dos conceitos freudianos de representação-objeto e representação-palavra para interpretar como o rap traz a representação palavra em toda a sua polissemia, podendo ligar-se a uma representação inconsciente e desencadear uma cadeia associativa no sujeito capaz de conferir novos sentidos às experiências vividas.

No segundo capítulo, “O letramento culturalmente relevante: rumo à periferia”, introduzimos a discussão a respeito da “pedagogia culturalmente relevante”, sustentada por Duncan-Andrade (2008), articulando suas ideias às concepções teóricas de Paulo Freire14 (2011) para propor um fazer pedagógico, de acordo com o qual as classes menos favorecidas possam ser representadas e valorizadas em sua cultura e saber, permitindo-lhes que identifiquem na escolarização uma possibilidade de politização e de transformação social. No decorrer do capítulo, reconstruímos a história de surgimento do hip-hop nos Estados Unidos e no Brasil, analisando as aproximações possíveis entre ambas as realidades, destacando as condições sócio-históricas que deram origem ao movimento, além de discorrer sobre as especificidades do rap no cenário nacional, assinalando suas relações com as raízes africanas da música popular brasileira, como o samba. Para analisar o rap no campo musical, dialogamos com Tatit15 (2004) e Wisnik16 (1989), buscando identificar as

especificidades do canto falado e discutir as contribuições políticas das letras ao denunciar as mazelas sofridas por quem mora na periferia dos grandes centros urbanos, tanto em São Paulo como em outras metrópoles mundiais, dando visibilidade a uma importante parcela da população que teve suas identidades negadas e silenciadas socialmente. Neste capítulo, ainda, trouxemos para o debate

o conceito de “glocal”, utilizado por Osumare17 (2012), uma junção das palavras

13 ADÉKÒYÀ, Olúmúyiwá Anthony. Yorùbá: tradição oral e história. São Paulo: Terceira Margem,

1999.

14 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011b.

15 TATIT, Luiz. O Século da Canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

16 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido uma outra história das músicas. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

17 OSUMARE, Halifu. The africanist aesthetic in global hip-hop: power moves. Palgrave

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global e local, para designar a força política do rap, que torna possível a conexão de marginalidades por todo o mundo, retratando a dor de populações historicamente prejudicadas e unindo jovens (pobres e negros), moradores de diferentes regiões e países, em torno de um movimento responsável por representar a cultura local e ampliar o diálogo com outros contextos de exclusão, inclusive internacionais, dando voz e vez a quem usualmente não consegue se fazer ouvir.

No terceiro capítulo, “A pesquisa de campo: uma articulação entre o rap e o letramento”, passamos a apresentar o processo de pesquisa desenvolvido nas oficinas realizadas na ONG Casa do Zezinho, pensadas segundo os pressupostos teóricos que embasaram o trabalho empírico e sustentaram a construção, in locus, do escopo metodológico da pesquisa. No início do capítulo, mencionamos os dados levantados, logo nas primeiras oficinas, sobre o domínio da leitura e da escrita entre os jovens e a constatação de dificuldades importantes relacionadas ao letramento, além de apresentarmos o modo como as atividades das oficinas foram planejadas, tomando como base todo o universo de criação e recriação proposto pelo gênero rap. A partir da contextualização da pesquisa empírica, demos início ao relato dos encontros ocorridos em torno da cena hip-hop, a partir dos quais os jovens produziram seus próprios raps e um fanzine que funcionou como suporte para o registro das letras elaboradas em duplas ou em trios. Neste capítulo, ainda, destacamos a última oficina desenvolvida como um momento bastante significativo para os jovens, dado que participaram de uma “Manhã de autógrafos” e puderam apresentar os raps, cantar e dançar nos embalos da música do movimento hip-hop, tornando conhecido para a comunidade os resultados de mais de 7 meses de trabalho.

Por fim, encerramos nossa Dissertação no item “Considerações Finais – o rap

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1. O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA

A educação brasileira tem apresentado, nas últimas décadas, a necessidade de criar condições didático-pedagógicas efetivas para a superação de um grande desafio: propor um ensino de qualidade a todos, principalmente para os alunos pertencentes às classes menos favorecidas, que experimentam a dificuldade de lidar com um currículo que não os representa e pouco valoriza os conhecimentos construídos em suas comunidades, especialmente aqueles relacionados à leitura e escrita.

O presente trabalho de pesquisa debruçou-se sobre essa problemática e buscou investigar a ideia de letramento como um processo sócio-histórico, inserido nas práticas e usos culturais da língua produzidos em uma determinado contexto, segundo o qual se considera a escrita e a oralidade como atividades centrais na interação verbal. De acordo com esta perspectiva, entende-se que as práticas e usos sociais da língua, encontram-se atravessadas por atividades discursivas concebidas como eventos de letramento18, dos quais participam muitos indivíduos,

alfabetizados ou não.

Nesse sentido, o objeto de estudo deixa de ser a língua em si, para centrar-se sobre os discursos e as práticas culturais que embasam a língua em uso. O que fundamenta essa ideia é a condição de produção do discurso, com ênfase no modo como se dá a articulação entre os processos discursivos e a língua, dos quais participam o sujeito e a História. É sobre uma base linguística que se desenvolve o discurso, que, por sua vez, traduz uma ideologia que representa todo um complexo dominante de produção de sentidos.

De acordo com Michel Pêcheux19, as formações ideológicas sustentam a transparência da linguagem produzida no discurso, levando a uma ilusão de evidência, segundo a qual o sujeito pensa ser a fonte e o sujeito da enunciação:

18 O termo é empregado por Angela B. Kleiman, no livro Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita.Campinas: Mercado das Letras, 1995.

19 PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora

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É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados. (PÊCHEUX, 1988, p. 160, grifo do autor)

A formação discursiva, considerada como um “fenômeno social” (ORLANDI20,

2006), torna-se palco, então, de um interjogo ativo entre as práticas sociais e a narração, concebendo o signo em ação, construído social e historicamente, a partir do qual, pode ser enunciado por um sujeito em uma determinada posição e em uma dada conjuntura. Os sujeitos do discurso podem ocupar diferentes lugares dentro da ordem social e participar das formações discursivas em diferentes posições. Nesse sentido, a análise da condição de produção do discurso implica necessariamente considerar o lugar social dos interlocutores.

Pode-se observar que muitos grupos sociais são postos à margem do processo de produção do conhecimento e até mesmo do acesso ao conhecimento. Estes, por sua vez, constituem conhecimentos que não são partilhados de forma homogênea pelos sujeitos do discurso, mas distribuídos socialmente de modo desigual. Como sustenta Orlandi:

Os estudos que não consideram as condições de produção do discurso não se dão conta de que os conhecimentos não são partilhados pelos agentes do discurso mas sim que esses conhecimentos são socialmente distribuídos. Os agentes do discurso – que são sujeitos que têm seus lugares na ordem social – podem ocupar posições diferentes, e mesmo polêmicas, dentro de formações discursivas diferentes. (ORLANDI, 2006, p. 138, grifo do autor)

O falante usa a sua língua, mas nem sempre tem o conhecimento do sentido de seu dizer, pois o que diz tem relação com o lugar social que ocupa, as condições de produção de seu discurso e a relação dialógica que se estabelece no contexto social em que vive, num jogo entre o explícito (sentido manifesto) e o implícito (sentido latente) instaurado na construção dos sentidos. Assim, o conhecimento das relações de sentido estabelecidas na enunciação não é apropriado pelo sujeito do discurso, cuja apropriação encontra-se na dependência da “interpelação ideológica” que o atravessa, como bem aponta Orlandi:

20 ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas:

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Podemos dizer que, pela consideração fundamental das condições de produção na Análise do Discurso21, não é o sujeito (locutor) que se apropria, mas há uma forma social de apropriação da linguagem em que está refletida a ilusão do sujeito, isto é, sua interpelação feita pela ideologia. É nesse jogo do lugar social e dos sentidos estabelecidos que está representada a determinação histórico-social do discurso. (ORLANDI, 2006, p. 110, 2006, grifo do autor)

Ainda que não tenha criado uma teoria do discurso, no conjunto da obra de Bakhtin22 (2011) e de seu Círculo é possível observar a articulação teórica entre os conceitos de sujeito, história e língua. Ao propor uma análise dialógica do discurso, o autor revela importante preocupação sobre o lugar que o sujeito ocupa no mundo, especificamente na comunicação verbal, e a questão da opacidade da língua, na qual nenhum discurso pode ser considerado inédito.

Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas); eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo. (BAKHTIN, 2011, p. 410, grifo do autor)

De acordo com Bakhtin (2011), a linguagem assume um caráter essencialmente social e é entendida como um instrumento simbólico de circulação de enunciados e enunciações, que se revelam como unidades de comunicação discursiva expressas por sujeitos falantes, que interagem com sua audiência (ouvintes ativos), seu contexto e com outras enunciações alheias ao sujeito do discurso23.

21 Segundo Orlandi, a análise do discurso busca tipificar o discurso das diferentes formações

discursivas, justamente no lugar em que as dimensões linguística e social se articulam: no discurso. “Não se trata de opor enunciação/enunciado, sistema/discurso, mas os sistemas de signos são tomados no jogo das formações discursivas que são reflexos e condições das práticas sociais” (ORLANDI, 2006, p. 111).

22 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

23

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Conforme preconiza o autor, cada uma das esferas da atividade humana (doméstica, escolar, jurídica, comercial, jornalística, empresarial e burocrática), em suas práticas cotidianas e usos da língua, pode ser também identificada como esfera de circulação de discursos, de utilização da língua e de comunicação, em diferentes posições: como receptores ou emissores, produtores ou consumidores de discursos, de acordo com diferentes gêneros, culturas, sociedades e ideologias.

A situação comunicativa real, viva e concreta apresenta, continuamente, movimentos de tensão entre a polissemia e a paráfrase, conflitos, resistência, submissão a hierarquias, renúncias, poder. O enunciado, a enunciação e o signo linguístico são construções de natureza social e histórica, marcadas por valores sociais que circulam por meio das palavras partilhadas pelos sujeitos, constituem o funcionamento da linguagem e estabelecem as condições de produção do discurso.

Segundo Stuart Hall24 (2009), trazendo contribuições do campo dos Estudos

Culturais, os paradigmas linguísticos tentam preencher uma lacuna aberta pelo estruturalismo, que concebe os processos culturais sem o sujeito. Ou seja, em que a experiência passa a ser entendida como um efeito de sentido, sem se referir ao real como experiência concreta.

Já de acordo com o paradigma linguístico, centrado na semiótica e em áreas da Linguística que valorizam práticas discursivas significativas e a contribuição da psicanálise, restaura-se o sujeito, descentrado e contraditório, a partir do qual a cultura pode ser enunciada pelo conjunto de posições na linguagem e no conhecimento, conforme preconiza Hall (2009). Para tal concepção são utilizados, como base os conceitos, freudiano do inconsciente e lacaniano de inconsciente, estruturado como linguagem. O problema é que, de acordo com este paradigma, não há um sujeito historicamente determinado ou linguagens socialmente determinadas.

falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte. Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados”. (2011, p. 272)

(23)

Ao trazermos a análise do discurso francesa e sua natureza interdisciplinar, que faz dialogar a Psicanálise, o Marxismo e a Linguística, para iluminar as reflexões em torno da linguagem e do letramento proposto pela pesquisa, procuramos delinear uma orientação teórico-metodológico que favorecesse a compreensão dos sujeitos, ideologia e contextos históricos de produção do discurso, como forma de se distanciar de uma análise abstrata dos fenômenos lingüísticos.

Na análise do discurso, o letramento pode ser compreendido como um fenômeno da linguagem, enquanto um processo polissêmico envolvido no uso e interação da língua, segundo o qual são articuladas as formações ideológicas, o sujeito e os contextos de constituição dos discursos, independentemente da modalidade empregada, oral ou escrita (baseada no alfabeto), ou do suporte utilizado (vocal ou gráfico). O letramento se assenta, desse modo, sobre o manejo da linguagem em qualquer modalidade, concebida como uma leitura de mundo25, como diria Paulo Freire26 (1990). E que, de acordo com Orlandi, para além do uso

utilitário da linguagem, com vistas à comunicação e informação, envolveria ainda o confronto ideológico:

Finalmente, pensando-se essas modificações, na reflexão linguística acerca das funções da linguagem, podemos afirmar que não basta dizer que a função fundamental não é apenas informar, acrescentando-se que não é apenas a comunicação, ou apenas a persuasão. É também o reconhecimento pelo confronto ideológico. É, pelo menos, tudo isso. E o mistério da linguagem talvez esteja em ser fundamentalmente tudo isso e não ser prioritariamente nenhuma coisa. (ORLANDI, 2006, p. 112)

Na tentativa de superar a concepção da língua, como portadora de informações explícitas, auto-evidentes e até mesmo factuais e evidenciar a sua opacidade, o letramento propõe-se a não mais se concentrar sobre o processo da alfabetização, baseado somente no domínio da escrita gráfica, sem constituir-se, no entanto, como uma categoria cognoscente distinta da alfabetização, uma vez que

25 O termo é empregado por Paulo Freire, no livro Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra, publicado pela primeira vez em 1990, para reafirmar a ideia de que a palavra é precedida por uma leitura de mundo, pela possibilidade da criança compreender a realidade na qual está inserida antes que possa aprender a leitura da palavra propriamente dita.

26 FREIRE, Paulo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

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esta é parte daquele. Otero27 (2011) sugere que seja o letramento considerado em

suas múltiplas possibilidades de sentido, como resultado de uma situação discursiva e compreendido como um contínuo de práticas sociais em torno da linguagem.

Antes de aprofundarmos mais detidamente sobre as ideias que nortearam o conceito de letramento, nas quais nos inspiramos nesta pesquisa, gostaríamos de discutir como as noções de alfabetização e de letramento estiveram presentes, muitas vezes, sem distinção, na interpretação do domínio das habilidades de leitura e escrita da população brasileira, tal como se pode depreender dos critérios e dados coletados pelos Censos, desde 1872.

1.1 Uma breve retrospectiva dos conceitos norteadores dos censos de alfabetização no Brasil

Os conceitos de alfabetização e letramento costumam aparecer “misturados”, entendidos como sinônimos e confundidos com o domínio das habilidades relativas à capacidade de leitura e escrita dos sujeitos, restringindo-se ao conhecimento do sistema alfabético de escrita. Tal indiscriminação conceitual ocorreu até meados da década de 1980, quando o debate acadêmico passou a exigir uma distinção entre letramento, concebido como os efeitos da aprendizagem das práticas e usos da leitura e escrita sobre um dado grupo inserido em um determinado contexto social, e a alfabetização, como as influências da aprendizagem, uso e prática da escrita e da leitura sobre o sujeito individual.

A partir do segundo quartel do século XIX, à época da crise do Império e instauração da República, a questão da alfabetização começou a ser uma preocupação educacional brasileira, já que foram registradas taxas elevadíssimas de analfabetismo entre pessoas de 5 anos ou mais, atingindo cerca de 83% da

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população (FERRARO28, 2009), sendo, na época, vedado aos analfabetos o direito

ao voto.

É preciso observar que o descaso em relação à alfabetização no Brasil tinha um sentido essencialmente político, uma vez que era interessante para a elite brasileira manter boa parte da população distante das decisões do governo. Embora o analfabetismo tenha se tornado vergonhoso, responsabilizava-se o próprio analfabeto por sua condição, a quem eram atribuídas qualidades pejorativas:

O analfabetismo, portanto, emergiu no Brasil como uma questão política, não como uma questão econômica. Esta segunda dimensão do problema só seria levantada mais tarde, a partir do segundo pós-guerra, com as teorias do desenvolvimento que dariam sustentação teórica e ideológica ao período do Estado keynesiano ou do bem-estar. A Lei Saraiva de 1882, do final do Império, e todas as constituições republicanas anteriores à de 1988 se distinguiram, sob este aspecto, pelo seu caráter discriminatório, rotulador e excludente em relação ao analfabeto. O analfabetismo constituiu-se na grande vergonha nacional. O voto foi repetidamente negado aos analfabetos sob o argumento principalmente de sua incapacidade. Os projetos de reforma constitucional nesse ponto questionaram de forma explícita, mas sem resultado, tal incapacidade. (FERRARO, 2002, p. 27-28)

De acordo com Renato Ortiz29 (2006), o mercado consumidor de leitura se expandia em muitos países do mundo, ao longo do século XIX, impulsionado, particularmente, pela imprensa e a indústria do livro (no período pós-revolução industrial) concomitantemente à melhoria de vida da população e ao maior acesso à escola. Identificou-se, na Europa, altos índices de alfabetização, em países como a França (90% da população alfabetizada em 1890) e Inglaterra (97% em 1900). Já no Brasil, a situação apontava para algo muito distante da intenção de se formar um público de leitores, em virtude do baixíssimo nível de escolarização e altíssimos índices de analfabetismo (84%, 1890; 75%, 1920; 57%, 1940). Segundo o autor:

Todos os testemunhos e as análises apontam que até a década de 30 a produção e o comércio de livros no Brasil eram praticamente inexistentes em termos de mercado. A tiragem de um romance era em média de mil exemplares, e um best-seller como Urupês vendeu, em 1918, oito mil cópias. Em São Paulo, entre 1900 e 1920, publicaram-se somente 92

28 FERRARO, Alceu Ravanello. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São Paulo: Cortez,

2009.

29 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São

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romances, novelas e contos, ou seja, uma média de sete livros de literatura por ano. (ORTIZ, 2006, p. 28)

No período republicano, a situação da alfabetização no Brasil sofreu incipientes alterações, culminando com uma redução significativa das taxas de analfabetismo apenas nas décadas de 50/60; porém, o crescimento dos índices de alfabetizados revelou, mais uma limitação na compreensão do significado da alfabetização do que um progresso em termos qualitativos e educacionais, no que diz respeito à capacidade de leitura e escrita da população.

Observe-se que foi o critério de definição de alfabetismo adotado pelo recém-fundado IBGE, no Censo Demográfico de 1950, que colaborou para a alteração dos dados a respeito da alfabetização nesta época. Desde então, considerava-se alfabetizado aquele que simplesmente declarasse saber ler e escrever, diferentemente do que ocorrera nos censos anteriores, cujas concepções de analfabetismo baseavam-se na capacidade do sujeito saber assinar o próprio nome para ser considerado hábil no que se refere ao domínio da leitura e escrita.

Além disso, a alteração do critério pôs em discussão a concepção de

“analfabetismo funcional”30, presente até o Censo de 1940, apontada como

insuficiente para se determinar a capacidade de leitura e escrita de uma pessoa, que se resumia a saber assinar o próprio nome. Em contrapartida, o critério aparentemente mais ‘rigoroso’ postulado pela UNESCO à época do Censo de 195031, consistia na capacidade do sujeito saber ler e escrever um bilhete simples,

30 Criada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, a UNESCO já denunciava as profundas

desigualdades entre os países e apontava a importância do papel da educação no processo de desenvolvimento das nações consideradas “atrasadas”. De acordo com Ribeiro (1997), em 1958, a instituição propôs a definição de analfabetismo funcional baseada na capacidade de ler compreensivamente ou escrever um enunciado curto e simples relacionado à vida diária do sujeito. Já no final da década de 70, a mesma UNESCO propôs outra definição, conceituando a alfabetização de funcional quando o domínio da leitura e escrita é suficiente para que os indivíduos possam inserir-se adequadamente em seu meio, sendo capazes de desempenhar tarefas necessárias ao seu próprio desenvolvimento e para o desenvolvimento de sua comunidade. Segundo Ribeiro: “O qualificativo funcional insere a definição do alfabetismo na perspectiva do relativismo sociocultural. Tal definição já não visa limitar a competência ao seu nível mais simples (ler e escrever enunciados simples referidos à vida diária), mas abrigar graus e tipos diversos de habilidades, de acordo com as necessidades impostas pelos contextos econômicos, políticos ou socioculturais”. (1997, p. 147)

31 Como sustenta Ferraro, a capacidade de ler e escrever foi determinada por um critério

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em um idioma qualquer, parâmetro este que efetivamente não demonstrou uma mudança relevante a respeito da definição de alfabetizado, como bem observa Ferraro:

Certamente, saber ler e escrever é mais do que assinar o próprio nome. Alguém pode saber assinar o nome e não saber ler e escrever. Mas isso não é tudo. Valeria a declaração mais do que a assinatura? A questão é relevante, especialmente se, como se viu acima, a condição de analfabeto vem carregada de preconceitos, discriminação e estigmatização. Mas o que se disse acima sugere outra questão intrigante: em que medida a passagem da definição saber ler e escrever para saber ler e escrever um bilhete simples representa a adoção de critério mais rigoroso? Que repercussão essa mudança teve nos censos? (FERRARO, 2002, p. 32, grifo do autor)

Cumpre observar que ambas as concepções sobre as habilidades referentes ao domínio da leitura e escrita avaliadas pelo Censo no que diz respeito à alfabetização permanecem centradas numa definição demasiadamente superficial e insuficiente do ponto de vista da inserção social do indivíduo considerado alfabetizado.

Entretanto, há que se considerar um pequeno avanço na segunda concepção, dos pontos de vista político e social:

Em síntese, saber ler e escrever um bilhete simples, segundo a definição censitária, pode significar muito pouco em termos de domínio efetivo da leitura, da escrita e do cálculo. Mas não se lhe pode diminuir o alcance ao mesmo tempo educacional, social e político. Com efeito, a alfabetização, mesmo nesse sentido restrito, representa, de um lado, a libertação das múltiplas formas de preconceito, rotulação e estigmatização ainda vigentes em relação ao analfabeto, e, de outro, a superação da barreira e a efetivação do primeiro passo no caminho da alfabetização e do letramento. É justamente na primeira série da educação fundamental que se produzem com maior frequência a retenção e a defasagem na relação série/ idade no processo de escolarização. (FERRARO, 2002, p. 30)

Outro aspecto relevante a ser questionado sobre os dados censitários diz respeito à disseminação da ideia de que o acesso à educação e à escola fora democratizado no Brasil a partir da década de 90, pautada na análise da elevação dos índices de crianças e adolescentes matriculadas na escola. No entanto, é preciso esclarecer que o país não alcançou a universalização do acesso à

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escolarização, como bem demonstram as estatísticas em 2000: restavam fora das escolas cerca de 1,9 milhão de crianças de 5 a 6 anos; 1,5 milhão de crianças e adolescentes de 7 a 14 anos e 2,4 milhões de adolescentes de 15 a 17 anos, totalizando 5,8 milhões de excluídos na escola na faixa entre 5 a 17 anos, a partir das taxas divulgadas pelo censo demográfico, de acordo com Ferraro (2009).

Além da exclusão da escola, um fator, também em discussão, se deu em torno dos dados que revelam a exclusão gerada pela escola, ou seja, a exclusão na escola, como salienta Ferraro (2009). Mesmo que os dados revelassem moderada queda do percentual de analfabetos no fim do século XX32, os números absolutos evidenciam uma sensível elevação de analfabetos no país, trazendo à tona a tensão existente entre a situação de exclusão da escola, provocada pela impossibilidade de expansão e universalização do ingresso na Educação Básica e a exclusão produzida no âmbito escolar, a partir da lógica perversa da repetência, reprovação, ou mesmo da aprovação sem critérios, como acabou ocorrendo com a progressão continuada (conhecida como aprovação automática), prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394), sancionada em 20 de dezembro de 200633.

Como bem observa Maria Helena Souza Patto34, a esse respeito:

A consciência da precariedade da escola oferecida às crianças das classes populares – uma escola que, como regra, não garante mais nem mesmo alguma capacidade de ler e escrever – tornou-se de domínio público. A cada publicação de resultados de pesquisa dos níveis de aprendizagem das matérias escolares de alunos da rede pública brasileira de ensinos Fundamental e Médio que confirmam o desastre, surgem editoriais e reportagens na mídia que denunciam o estado de coisas vigente. Usuários dessa escola, com os quais convivemos no cotidiano, referem-se com

32 Segundo Ferraro (2002), houve uma queda nas taxas de analfabetismo a partir de 1970 até 2000,

com índices decrescendo sucessivamente para 38,7%, 31,9%, 24,2% e 16,7%, sempre para a população de 5 anos ou mais, porém registrou-se o aumento da população total de 5 anos ou mais neste mesmo período para 79.327.231 (1970), 102.579.006 (1980), 130.283.402 (1991) e 153.423.442 (2000).

33 A proposta dos ciclos de ensino, em São Paulo, foi inicialmente adotada pela prefeita Luiza

Erundina de Souza, em 1992. Após 21 anos, a prefeitura, na administração de Fernando Haddad, lançou o “Programa Mais Educação São Paulo”, discutindo a necessidade de reforma da progressão continuada, estabelecendo três ciclos de escolarização - ciclo da alfabetização (1º ao 3º ano); ciclo interdisciplinar (4º, 5º e 6º anos) e ciclo autoral (7º ao 9º ano) - e a possibilidade de reprovação ao final dos 3º, 6º, 7º, 8º e 9º anos.

34 PATTO, Maria Helena Souza. Escolas cheias, cadeias vazias: notas sobre as raízes ideológicas do

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frequência a filhos ou parentes que estão nas últimas séries do Ensino Fundamental ou mesmo no Ensino Médio e mal conseguem ler. Alunos e ex-alunos do Ensino Médio regular ou Supletivo falam do quase nada que lhes é ou foi ensinado. Entrevistados sobre o assunto, políticos e especialistas não raro responsabilizam usuários e professores. (PATTO, 2007, p. 243)

O fracasso escolar provocado pelo próprio processo de escolarização fundamenta-se na precariedade da escola como instituição de ensino, envolvendo inúmeros fatores: a discrepância entre as expectativas escolares de aprendizagem e a aprendizagem apresentada pelos alunos, conteúdos curriculares destituídos de sentido para o estudante, a distância entre a linguagem e cultura do aluno e a da escola, a progressão na escolaridade sem o domínio mínimo de habilidades de leitura e escrita, entre outras razões de exclusão, que culminam na evasão ou no atraso escolar do aluno, ou ainda em resultados insatisfatórios de aprendizagem.

O problema sugerido pelo descompasso registrado em termos de idade/série, já nas primeiras séries do Ensino Fundamental na última década do século XX, põe em relevo a reprodução de um modelo moroso de investimento em políticas educacionais visando a superação dos problemas relativos ao analfabetismo e à garantia da aprendizagem.

Como salienta Ferraro:

(30)

As informações contidas na tabela a seguir (FERRARO35, 2002), demonstram

a progressão dos níveis de analfabetismo entre a população de 5 anos ou mais, 10 anos ou mais e 15 anos ou mais, ao longo de mais de um século, de 1872 a 2000:

Tabela 2.1 Progressão dos níveis de analfabetismo entre a população de 5 anos ou mais, 10 anos ou mais e 15 anos ou mais, de 1872 a 2000

ANO DO CENSO

POPULAÇÃO

TOTAL NÃO ALFABETIZADA

NÚMERO %

POPULAÇÃO DE 5 ANOS OU MAIS

1872 1890 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 8.854.774 12.212.125 26.042.442 34.796.665 43.573.517 58.997.981 79.327.231 102.579.006 130.283.402 153.423.442 7.290.293 10.091.566 18.549.085 21.295.490 24.907.696 27.578.971 30.718.597 32.731.347 31.580.488 25.665.393 82,3 82,6 71,2 61,2 57,2 46,7 38,7 31,9 24,2 16,7

POPULAÇÃO DE 10 ANOS OU MAIS

1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 29.037.849 36.557.990 48.839.558 65.867.723 87.805.265 112.860.254 138.881.115 16.452.832 18.812.419 19.378.801 21.638.913 22.393.295 21.330.966 17.552.762 56,7 51,5 39,7 32,9 25,5 18,9 12,8

POPULAÇÃO DE 15 ANOS OU MAIS

1920 17.557.282 11.401.715 64,9

35 FERRARO, Alceu Ravanello. Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil: o que dizem os

(31)

1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 23.709.769 30.249.423 40.278.602 54.008.604 73.542.003 95.810.615 119.533.048 13.242.172 15.272.632 15.964.852 18.146.977 18.716.847 18.587.446 16.294.889 55,9 50,5 39,6 33,6 25,5 19,4 13,6

Fonte: Ferraro (2002, p. 34) – Censo Demográfico do Brasil, IBGE (1872, 1890, 1920, 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 e 2000).

Apesar de todas as iniciativas tomadas no sentido de implementar reformas e políticas educacionais36 no decorrer do século XX, as taxas de analfabetismo demonstram o insucesso da escola brasileira. Isso, sem correlacionar dados do Censo com outras questões geradoras de desigualdade quanto à alfabetização no país, de ordem étnico-racial, social-econômica ou de gênero, além de outras como a região geográfica (área urbana e rural, norte ou sul, leste ou oeste do país), o que certamente revelaria índices ainda mais excludentes.

Se for levada em conta a condição racial para a análise da questão da alfabetização no Brasil, os dados se alteram ainda mais negativamente, uma vez que o maior percentual de analfabetismo no país, entre a população de 15 anos ou mais, segundo dados do IBGE (2007), encontra-se entre “pretos” e “pardos”, chegando a atingir, respectivamente, 23,1% (numa população total de 19,9%) e 21,7% (numa população total de 19,9%), na região nordeste do país.

Os dados podem ser melhor observados na tabela a seguir, que apresenta os índices de analfabetismo, por regiões brasileiras, publicados no PNAD de 2007, de acordo com os quesitos “cor ou raça”:

36 Segundo Ferraro (2009), as principais campanhas educacionais do século XX foram: FNEP (1945)

(32)

Tabela 2.2 - Índices de analfabetismo, por regiões brasileiras, de acordo com os quesitos “cor ou raça”

Grandes regiões, unidades da federação e regiões metropolitanas

Total de

analfabetos Total de analfabetos segundo cor ou raça

Branca Preta Parda

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste 10,0 10,8 19,9 5,7 5,4 8,1 6,1 7,5 15,3 4,1 4,4 5,4 14,3 14,7 23,1 9,4 9,9 14,5 14,1 11,7 21,7 7,9 9,4 9,3 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2007

As taxas atuais, vinculadas ao analfabetismo, continuam preocupantes. Segundo resultados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2002/2012), divulgados pelo IBGE em 2013, os índices de analfabetismo revelam uma sensível ascendência, porém, ainda é expressiva a porcentagem de analfabetos no Brasil, principalmente na região Nordeste, nos domicílios rurais e entre os pretos e pardos:

Tabela 2.3 Taxas de analfabetismo no Brasil, de 2002 a 2012

Grandes Regiões e

algumas características selecionadas

Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade

2002 (1) 2012

Brasil 11,9 8,7

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste 10,4 23,4 7,2 6,7 6,7 10,0 17,4 4,8 4,4 9,6

Situação de Domicílio

(33)

Sexo Homem Mulher 12,1 11,7 9,0 8,4

Cor ou raça (2)

Branca

Preta ou parda

7,5 17,3

5,3 11,8

Grupos de idade

15 a 19 anos 20 a 24 anos 25 a 34 anos 35 a 44 anos 45 a 54 anos 55 a 64 anos 65 anos ou mais

2,9 4,6 7,1 9,6 14,9 24,7 35,4 1,2 1,6 3,5 6,6 9,8 15,7 27,2 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2002/2012.

(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. (2) Exclusive as pessoas de cor ou raça amarela e indígena.

1.1.1 A alfabetização e a questão racial no Brasil

Embora orientadas pelas teorias racistas, que predominavam desde o século XIX, a questão do pertencimento étnico-racial37 passou a ser introduzida como critério de análise dos índices de alfabetização desde o Censo de 1872, como afirma Ferraro (2009), influenciada pelas ideias do racismo científico, em vigor na Europa no último terço do século XIX, de acordo com as quais se supunha a superioridade absoluta do branco sobre o negro, denunciando o risco da hibridação numa sociedade multirracial, como a brasileira.

A forte desigualdade e segregação social evidenciadas em diversos domínios da vida cotidiana, justificadas pelas ideologias etnocêntricas que defendiam cientificamente a superioridade do branco em relação ao negro, apoiadas nas teses

37 A relação entre cor/raça se estabelece nos Censos isolada ou juntamente com o gênero e

(34)

do darwinismo social38, também marcaram a experiência dos alunos negros nos

bancos escolares da educação pública no Brasil.

A elite hegemônica, neste contexto, dominada por brancos, buscava superar

a “inferioridade” dos negros (hereditária inclusive, segundo as teses dos positivistas),

por políticas capazes de promover o branqueamento da população negra, que constituía o maior segmento da população brasileira, representando cerca de 55% do povo, segundo o Censo de 1872. O objetivo da elite brasileira era conquistar o reconhecimento do Brasil pelos outros países do mundo, principalmente da Europa, como uma nação civilizada. Cabia, então, às raças com “maior desenvolvimento evolutivo” civilizar as raças em “estágio de desenvolvimento evolutivo inferior” (CARONE39, 1998). Esta era uma das linhas argumentativas pró-branqueamento da população negra disseminada após a abolição da escravatura, em 1888, e defendida pelos juristas positivistas brasileiros, representando ideias de Auguste Comte:

O racismo à brasileira, como os demais racismos que se desenvolveram em outros países, tem sua história diferente da dos outros e suas peculiaridades. Entre estas, podemos enfatizar notadamente o significado e a importância atribuídos à miscigenação ou mestiçagem no debate político-ideológico que balizou o processo de construção da identidade nacional e das identidades particulares. Nesse debate de ideias, a miscigenação, um simples fenômeno biológico, recebeu uma missão política da maior importância, pois dela dependeria o processo de homogeneização biológica da qual dependeria a construção da identidade nacional brasileira. Foi nesse contexto que foi cunhada a ideologia do branqueamento, peça fundamental da ideologia racial brasileira, pois acreditava-se que, graças ao intensivo processo de miscigenação, nasceria uma nova raça brasileira, mais clara, mais arianizada, ou melhor, mais branca fenotipicamente, embora mestiça genotipicamente. Assim desapareceriam índios, negros e os próprios mestiços, cuja presença prejudicaria o destino do Brasil como povo e nação. (MUNANGA, 1998, p.10)

A comunidade de alunos negros lutou contra as discriminações veladas e invisíveis que se davam nas salas de aula, nos corredores, fora e dentro da escola, desde o início do século XX. Os mecanismos de exclusão da população negra iam desde as dificuldades enfrentadas para cumprir a exigência de compra do uniforme

38 De acordo com Carone (1998, p. 16), a ideologia do branqueamento era uma espécie de

darwinismo social “que apostava na seleção natural em prol da ‘purificação étnica’, na vitória do elemento branco sobre o negro com a vantagem adicional de produzir, pelo cruzamento inter-racial, um homem ariano plenamente adaptado às condições brasileiras”.

(35)

ou do material escolar, até a escolha de uma unidade escolar que fosse mais próxima da residência do educando, no intuito de diminuir os gastos com transporte público; o preconceito perpassava desde o tratamento distinto dado aos alunos brancos e negros até a abordagem racial presente em livros didáticos utilizados por professores em sala de aula na transposição didática de conteúdos curriculares. A maior parte dos alunos que abandonava o sistema de ensino brasileiro mantinha íntima relação com questões raciais e étnicas. De acordo com Silva Souza40:

A escolarização era vista, por uma parte da população negra, em especial nas grandes cidades, como possibilidade de ascensão social e profissional. No entanto, ainda que valorizado, não raramente o espaço escolar mostrou-se o lugar de exclusões e cerceamentos enfrentados pelas famílias: por vezes a permanência sofrida, por vezes o abandono. Ainda que o distanciamento da escola fosse motivado por questões objetivas, como a necessidade de trabalhar, algumas famílias tiravam, ou nem chegavam a matricular seus filhos, diante da impossibilidade de atender às exigências que, conforme documentos escolares da época, incluíam “vestimentas adequadas; presença de um adulto responsável para realizar a matrícula; além de necessidades de adquirir material escolar e merenda”. Se não fossem atendidos, esses requisitos resultavam em constrangimentos e abandonos. (SILVA SOUZA, 2011, p. 38)

A desigualdade racial, concebida sob a égide da supremacia natural e científica do branco, atravessou grande parte das relações e esferas da vida social, política e econômica legitimadas pela elite branca após o século XIX. Um ideário que só foi combatido em meados do século XX, permanecendo muitos de seus resquícios no modo como ainda hoje se representa o negro e o branco em nosso país. De acordo com Carone:

O racismo, a despeito de todas as leis antidiscriminatórias e da norma politicamente correta da indesejabilidade do preconceito na convivência social, apenas sofreu transformações formais de expressão. Não é posto nem dito, mas pressuposto nas representações que exaltam a individualidade e a neutralidade racial do branco – a branquitude – reduzindo o negro a uma coletividade racializada pela intensificação artificial da visibilidade da cor e de outros traços fenotípicos aliados a estereótipos sociais e morais. As consequências são inevitáveis: a neutralidade de cor/ raça protege o indivíduo branco do preconceito e da discriminação raciais na mesma medida em que a visibilidade aumentada do negro o torna um alvo preferencial de descargas de frustrações impostas pela vida social. (CARONE, 1998, p. 23)

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Tabela  2.1  –   Progressão  dos  níveis  de  analfabetismo  entre  a  população  de  5  anos ou mais, 10 anos ou mais e 15 anos ou mais, de 1872 a 2000
Tabela 2.2 - Índices de analfabetismo, por regiões brasileiras, de acordo com  os quesitos “cor ou raça”
Figura 1. DJ Kool Herc e Equipe Herculords em um boulevard no Bronx (imagem capturada do site da  internet zulunationbrazil.blogspot.com.br)
Figura 3. Sul do Bronx  –  década de 80 (imagem capturada do site da internet mises.org.br)
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Referências

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