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QUEM MENSTRUA? NÃO SÓ MULHERES

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Academic year: 2021

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“QUEM MENSTRUA? NÃO MULHERES”

Caroline Luiza Willig1 Resumo: A presente elucidação apresenta resultados de uma pesquisa intitulada “Tá de Chico?

Estigmas do Sangue na mídia e na escola, que tem como tema os estigmas que envolvem a menstruação, entre eles o da feminilidade, à qual este trabalho se atém. Tal característica atribuída às pessoas que menstruam foi uma das noções estigmatizadas localizadas na pesquisa que deu origem a este trabalho, e que busca problematizar estes (pre)conceitos enraizados em ideologias colonialistas, binárias e machistas que reforçam a cisheteronormatividade. O caminho percorrido para dialogar a respeito da temática proposta se deu a partir de revisão bibliográfica e teórica, seguida de Bricolagem, cujos materiais midiáticos (posts de redes sociais, revistas, sites, documentários, entre outros) foram categorizados com inspiração no método de Análise de Conteúdo. Parte do referencial teórico e corpora foram apresentadas para todos os professores e professoras das séries finais de uma escola pública de Novo Hamburgo/RS. As transcrições das falas dos docentes foram utilizadas em conjunto com as categorias localizadas para elucidar acerca dos estigmas que envolvem a menstruação, já evidenciados no material empírico.

Palavras-chave: Menstruação. Estigma. Binarismo.

Introdução

Ao afirmar que “os discursos habitam corpos, eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue”, Butler (2020) não se referia à menstruação, mas aos binarismos de gênero. Esta enunciação é um ponto de partida para se refletir acerca da condição das pessoas que menstruam e a colonização cisheteronormativa que a envolvem.

Os aspectos biológicos e físicos tecem a cultura e também são tecidos por ela, assim como as relações de poder que condicionam as existências à dualidade ocidental. A América Latina é marcada pela colonização2 de caráter exploratório, tendo 90% de sua população vítima de genocídio3 com a

1 Doutoranda e mestra no programa Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale. Bolsista Capes. E- mail: carol.willig@gmail.com.

2 De acordo com Quijano (2005), a colonização começou como um processo interno entre povos com identidades diferentes que habitavam os mesmos territórios e foram convertidos em espaço de dominação interna. Posteriormente, o colonialismo se expandiu para povos, identidades, etnias e territórios externos, com o início do “descobrimento das américas”. Segundo Quijano, não foram as Américas que foram incorporadas dentro de uma já existente economia mundial capitalista, mas sim elas que financiaram a existência desta. Já a colonialidade, conforme Quijano postula, é a chamada Colonialidade do Poder, quando se refere à inter-relação entre as formas atuais de exploração e denominação como resquícios e estruturas de pensamento-sentimento-ação com herança do colonialismo (QUIJANO, 2005).

3 Genocídio é um termo utilizado é um conceito cunhado na década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, como uma forma de referenciar os assassinatos em massa ocasionados pelo regime nazista, com caráter de extermínio de um grupo de pessoas por conta de sua etnia, raça, religião ou nacionalidade. Disponível online:

<https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-genocidio.htm>. Nesta pesquisa, ele é empregado para

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sua “descoberta” pelos “conquistadores”, oriundos de uma cultura eurocêntrica, patriarcal, imperialista. De acordo com Quijano (2005), “eurocentrismo não é exclusivamente, portanto, a perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas também do conjunto dos educados sob a sua hegemonia” (QUIJANO, 2005, p. 74-75).

Para dialogar com este ponto de vista, entendemos como oportuno trazer esta elucidação de DaMatta (1997), onde o autor faz uma série de apontamentos culturais que designam onde é lugar de mulher e onde é o lugar de homem, deixando clara a relação binária e cisheteronormativa de origem eurocêntrica que está enraizada nas culturas brasileiras, constatando que

o feminino assume um aspecto relacional básico na estrutura ideológica brasileira como ente mediador por excelência. As mulheres são mediatrizes (e meretrizes = mediadoras) no Brasil.

Ligam o interno (o ventre, a natureza, o quarto, as matérias-primas da vida que sustentam a vida: alimentos em estado bruto) com o externo; são a razão do desejo que movimenta tudo contra a lei e a ordem, pois é no pecado e na transgressão que concebemos a mudança e a transformação radical e aqui está uma imagem de mulher. (DAMATTA, 1997, p. 94)

E tais papéis femininos e masculinos demonstram a cisheteronormatividade binária oriunda do colonialismo, baseada na subalternização da figura feminina com base em argumentos religiosos e em sua percepção hierarquizada que inferioriza tanto a natureza quanto o feminino. Segundo Federici (2017), a caça às bruxas foi a primeira perseguição, na Europa, que usou propaganda multimídia com o objetivo de gerar uma psicose em massa entre a população, espalhando boatos de possessão pelo diabo e debilidades morais e mentais associadas às pessoas com útero:

Uma das primeiras tarefas da imprensa foi alertar o público sobre os perigos que as bruxas representavam, por meio de panfletos que publicizavam os julgamentos mais famosos e os detalhes de seus feitos mais atrozes. [...] Mas foram os juristas, os magistrados e os demonólogos, frequentemente encarnados na mesma pessoa, os que mais contribuíram na perseguição: eles sistematizaram os argumentos, responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maquinaria legal que, por volta do final do século XVI, deu um formato padronizado, quase burocrático, aos julgamentos, o que explica as semelhanças entre as confissões para além das fronteiras nacionais. (FEDERICI, 2017, p. 299)

Nas Américas não foi diferente. Quando a figura do nativo foi associada à selvageria, debilidade mental e consequente inferioridade no que concerne a “teoria da evolução da espécie”

segundo a visão eurocêntrica, os ameríndios e, em especial, as mulheres, com todos os entrecruzamentos de gênero, raça e classe, que produzem hierarquias a partir das relações de poder, eram seres que deveriam ser exterminados, pois sua existência ameaçava o plano de desenvolvimento e expansão imperial.

Questionar esta dualidade também foi um trabalho realizado por Judith Butler (2003), ao criticar o feminismo, por ser totalmente estruturado na dualidade do feminino versus masculino,

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fixando a identidade de mulher ou mesmo mulheres. A própria autora reconhece que sua crítica é perigosa para a luta feminista, podendo resultar no seu esvaziamento epistemológico. Entretanto, compreendemos como interessante para a reflexão, uma vez que as identidades são um construto sociocultural e, portanto, as construções contrastantes homem x mulher são uma herança eurocêntrica amplamente disseminada.

Os gêneros não binários são expressivos dentro das culturas ameríndias e fogem à regra do binarismo, com tribos que reconheciam de três até cinco gêneros diferentes4. Gaard (2011) evidencia que sujeitos identificados como mulheres, sexualidades queer, pessoas não brancas e a natureza sofrem opressões interligadas por uma lógica dual. A autora também ressalta que relações não binárias são naturais, até mesmo fora da espécie humana, com comportamentos homossexuais5 identificados tanto pelo sexo feminino quanto pelo masculino. Mesmo que não sejam reconhecidas pela cultura eurocêntrica e negadas pela Igreja Católica, aponta que a heterossexualidade é naturalizada dentro desta cultura, e também normatizada dentro dos preceitos cristãos e civis de muitas sociedades.

Metodologias

O caminho metodológico traçado para dialogar estigmas envolvendo a menstruação, entre eles o da feminilidade, se deu a partir das elucidações teóricas já postas, seguidas de uma busca por referenciais midiáticos impressos e virtuais, cuja temática fosse a menstruação em seu aspecto cultural. Para coletar estes materiais, foi lançado mão da metodologia de bricolagem de Neira e Lippi (2012), que permitiu liberdade para transitar por meios diversos e consequentemente com discursos plurais. Embora tenhamos consciência de que essa opção possa estar restrita a uma bolha algorítmica das redes sociais, seguiu-se com esta opção como possibilidade para evidenciar demonstrações de estigmas. Posteriormente, partiu-se para categorização de conteúdo proposta por Bardin (2011) com o objetivo de localizar categorias de estigmas. Parte do aporte teórico e da corpora da pesquisa foram apresentados em uma sensibilização que ocorreu em 2020, de forma virtual em decorrência da Covid- 19, junto de todos os professores e professoras das séries finais de uma escola da rede pública de

4 Online. Disponível em: < https://www.geledes.org.br/antes-da-chegada-dos-cristaos-europeus-nativos-norte- americanos-reconheciam-5-

generos/#:~:text=Segundo%20o%20site%20Indian%20Country,que%20hoje%20chamar%C3%ADamos%20de%20tran sg%C3%AAnero.>. Acesso em: 05 mai. 2020.

5 Orientação sexual caracterizada por atração româtica e/ou sexual entre pessoas do mesmo sexo, sendo a relação entre

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Novo Hamburgo/RS. Esta teia de referências e dialogismos resultou na elucidação sobre sete estigmas impregnados no sangue menstrual, entre eles, o de que menstruar é “coisa de mulher”.

“Ficou mocinha”

Figura: Manchete denuncia binarismos envolvendo menstruação

Fonte: vogue.com

O subtítulo e enunciado que apresenta a Figura 1 introduzem de forma objetiva a necessidade de desconstrução do discurso binário no que tange às pessoas que menstruam. No corpus midiático da pesquisa, 20 materiais entre os 136 que o compõem, abordaram de forma evidente a questão da feminilidade – ora reforçando-o, ora questionando-o. Já nas falas dos professores e professoras, a categoria de feminilidade foi evidenciada 458 vezes por meio de termos como “mocinha”, “moça”,

“mulher”, “homem trans”, “mulher cisgênera”, “mulherzinha”, “heterossexual”, entre outros.

A teórica Butler (2003), declarou: “gosto muito da ideia de que o oposto da masculinidade não seja necessariamente a feminilidade”. E tal ponto de vista se faz essencial ao se discutir os estigmas que envolvem o sangue menstrual, afinal, a identidade de mulher é culturalmente construída e não biologicamente imposta – é neste contexto que venho, ao longo de toda a pesquisa, utilizando o termo “pessoas com útero” e não somente fazendo referência à identidade de mulher cisgênera, embora recorrer à sua construção se faça importante para compreender os estigmas que se teceram a partir dela.

A feminilização dos corpos biologicamente identificados como fêmeas é uma espécie de domesticação para padronizar o comportamento daquela que é “mulher”, e tal ideologia binária e dual a respeito da “natureza dos sexos” também foi argumento utilizado na perseguição às mulheres consideradas como bruxas, tanto na Europa, quanto nas colônias europeias em território ameríndio, onde 90% da população local (e consequentemente sua cultura) foi assassinada – e é até os dias atuais, vítima de genocídio:

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Há também, no plano ideológico, uma estreita correspondência entre a imagem degradada da mulher, forjada pelos demonólogos, e a imagem da feminilidade construída pelos debates da época sobre a “natureza dos sexos”, que canonizava uma mulher estereotipada, fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal, o que efetivamente servia para justificar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal. (FEDERICI, 2017, p. 335).

Segundo Federici (2017), havia, portanto, uma política sexual envolvida na caça às bruxas, que se revela na relação entre as mulheres e o diabo, o mal. A caçada às mulheres consideradas bruxas também inverteu a relação de poder entre a bruxa e o diabo - diferente do mago, que tinha o diabo como seu servo, a bruxa é que era súdita de corpo e alma, sendo escrava de seus desejos. A autora, assim como Butler (2003) , enfatiza que Focault, em sua obra História da Sexualidade (Focault, 1978, vol. 1), se propõe a pensar a sexualidade com a perspectiva de um gênero neutro, o que faz com que ignore completamente a perseguição misógina que foi a caça às bruxas em seus escritos. Tal perseguição foi amplamente disseminada e alimentada pela mídia, que envolveu câmaras de torturas com violências que só pessoas do sexo feminino eram capazes de vivenciar, como abusos sexuais, abortos e até mesmo entrar em trabalho de parto durante as torturas.

A partir de tais contribuições, é essencial observar que não buscamos um gênero neutro ao mencionar “pessoas com útero”, mas sim ampliar para a diversidade de gêneros existente, sem ignorar a trajetória daquelas que se identificam como mulheres, mas sim incluir, para além da história das mulheres, um resgate de existências fora dos padrões binários que resistiram através de séculos de perseguição e domesticação do corpo, e sim, podem ter útero e menstruar, como os homens trans ou pessoas não binárias.

A respeito do gênero neutro, Spivak (2010) também adverte para a violência epistemológica da binarização do discurso, que em sua construção ideológica, mantém a dominação masculina, inclusive, quando fala para uma diversidade de pessoas. “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está mais profundamente na obscuridade.” (SPIVAK, 2010, p. 67). Esta teorização se reflete, segundo a autora, na própria construção do colonizado como “outro”, e da mulher como “subalterna” em relação ao homem, o que considera uma violência epistêmica:

A legitimação da estrutura polimorfa do funcionamento legal, “internamente” incoerente e aberta nos dois extremos, por meio de uma visão binária, é a narrativa de codificação que ofereço como um exemplo de violência epistêmica (SPIVAK, 2010, p. 50)

Abertamente uma “coisa de mulher”, a menstruação associada à feminilidade surgiu na pesquisa a partir de falas que ora a reforçavam, ora a desconstruíam. Foram localizadas diversas reportagens e propagandas de marcas que tomaram a iniciativa de abarcarem a diversidade de gênero

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em seu discurso, entre elas cuecas menstruais, coletores menstruais e outros acessórios para autocuidado e higiene durante a menstruação com as cores do arco-íris, um símbolo LGBTQI+.

Nas falas dos professores e professoras, a menstruação foi fortemente atrelada à identidade de mulher. A expressão “ficou mocinha” para descrever a chegada da primeira menstruação na vida das pessoas com útero também é um exemplo da lógica de que menstruar é coisa de mulher, conforme a fala, ocorrida durante a sensibilização Estigmas do Sangue, deixa claro: “ela ficou mocinha, ela ficou doente, está com os pés molhados'. E aquilo foi assim... Eu me lembro até hoje, da minha mãe gritando isso, que eu estava doente e que eu estava com os pés molhados”.

Mas, nem sempre a expressão “ficou mocinha” teve uma conotação negativa. A primeira menstruação também foi recebida pelas famílias e pelas participantes de modo positivo, como uma marca de fertilidade e de afirmação da feminilidade. O fato é percebido no relato de uma das participantes, contando que seu pai, logo após saber da chegada sua menarca, falou da mesa do almoço, “oba, temos mais uma mulherzinha na casa”.

A menarca é um rito de passagem, simbolizando a transição da infância para a idade adulta dentro da cultura patriarcal. E, mais do que isso, marca a transformação de uma “menina” em

“mulher”, sendo configurada, portanto um atributo de feminilidade. Por isso, a preocupação da mãe em relação à primeira menstruação da filha ainda não ter chegado, conforme outra conforme situação relatada durante a sensibilização, que disse não entender o motivo de sua mãe estar apreensiva por sua menstruação ainda não ter chegado aos 12 anos de idade: “será que tu não vai menstruar? Já chegou teus 12 anos!”.

A família nuclear é, segundo Federici (2017), uma instituição-chave para a manutenção do binarismo, entretanto, Spivak (2010) adverte que romper a família nuclear em cenário capitalista não é suficiente para ruir a estrutura patriarcal, que se configura de modo estrutural dentro de um sistema monolítico, ou seja, que permite que mulheres e oprimidos estejam dentro da força de trabalho, mas sua organização impede que ele ocupe cargos de liderança ou poder:

o papel da família nas relações sociais patriarcais é tão heterogênero e controverso que simplesmente substituir a família nesta problemática não vai romper essa estrutura.

Tampouco estaria a solução na inclusão positivista de uma coletividade monolítica de

“mulheres” na lista de oprimidos cuja subjetividade inquebrantável lhes permita falar por si mesmas contra um “mesmo sistema” igualmente monolítico. (SPIVAK, 2010, p. 66)

Esta lógica, segundo Spivak (2010), pode ser explicada dentro das relações das próprias mulheres com o silêncio de si próprias e também silenciamento de pessoas em intersecções menos privilegiadas do que as suas, considerando que há recortes como de raça, classe social, gênero:

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Com respeito à “imagem” da mulher, a relação entre a mulher e o silêncio pode ser assinalada pelas próprias mulheres; as diferenças de raça e de classe são incluídas nessa acusação. A historiografia subalterna deve confrontar a impossibilidade de tais gestos. A restrita violência epistêmica do imperialismo nos dá uma alegoria imperfeita da violência geral que é a possibilidade de uma episteme. (SPIVAK, 2010, p. 66).

Spivak (2010) traz o conceito de imperialismo fortemente atrelado ao Capitalismo, visto como uma ideologia política adotada por países ricos para expandirem sua economia exercendo seu poder e controle sobre países ou povos mais pobres. Ao alertar que lutar pelo fim da família nuclear não é suficiente para colocar um fim na opressão às mulheres, Spivak dialoga com os perigos que uma compreensão neoliberal associada à concepção de diversidade de gênero, ou libertação feminina, oferecem à luta pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQI+, considerando que o capitalismo se apropria de todos os discursos em alta nos debates populares.

Os escritos de Federici (2017) também fazem menção também aos entrecruzamentos de gênero, raça e classe na definição da imagem das bruxas, visto que

A definição da negritude e da feminilidade como marcas da bestialidade e da irracionalidade correspondia à exclusão das mulheres na Europa – assim como das mulheres e dos homens nas colônias – do contrato social implícito no salário, com a consequente naturalização de sua exploração. (FEDERICI, 2017, p. 360).

A feminilidade atribuída às mulheres, portanto, também varia conforme o quadro de opressão vivido, como o caso das mulheres negras, que trabalhavam ao lado dos homens nas plantações das colônias europeias. Davis (2016) aponta que as mulheres negras eram obrigadas pelos senhores de escravos a trabalharem de modo masculino, tanto quanto seus companheiros, e que por isso até hoje buscam reparação histórica e identitária das feridas que a escravidão lhes causou, através de violências que somente mulheres poderiam sofrer. Essa repressão masculinizou as mulheres negras que adquiriram características consideradas tabus pela ideologia da feminilidade que imperava no século XIX em toda a Europa e suas colônias (DAVIS, 2016, p.23, 24).

Observar a menstruação como uma característica que remete à feminilidade e que faz parte da identidade da mulher escancara os dualismos subjacentes de relações de poder existentes na divisão binária de gênero. Segundo Louro (1997), “tais pedagogias já parecem anunciar uma concepção das relações de gênero em que o polo masculino sempre detém o poder e o feminino é desprovido de poder - daí a necessidade de ‘fortalecer” ou de ‘dar poder’ às mulheres (LOURO, 1997, p. 115)”. E o mesmo ocorre quando campanhas de visibilidade trans ocorrem para desbinarizar discursos envolvendo o período menstrual.

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O atributo da feminilidade, entretanto, requer uma fina manutenção dentro das relações patriarcais, e tal mecanismo de poder pode ser percebido com as elucidações de Gonzalez, sobre o racismo e a forma como se estruturam suas opressões:

Na medida em que o racismo, enquanto discurso, se situa entre discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não sujeito. Consequentemente, é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele. E ele diz o que quer, caracteriza o excluído de acordo com seus interesses e seus valores. No momento em que o excluído assume a própria fala e se põe como sujeito, a reação de quem ouve só pode se dar nos níveis acima caracterizados (GONZALEZ, 2020)

As contribuições de Gonzalez demonstram como se dão as relações de interesse entre opressor e oprimido e, que também ocorrem quando se trata de pessoas menstruadas. A exemplo disso, está a manchete que registra a fala do Deputado Estadual Sargento Lima (PSL): “Deputado ironiza quem usa máscara e chama de ‘mocinhas de menarca’”. A fala de um político que deveria representar os interesses do povo joga luz no quanto o estigma da feminilidade é violento para com as pessoas que menstruam, já que o uso de máscara se tornou de necessidade básica com a pandemia ocasionada pelo COVID-19, assim como o absorvente é item de higiene básica para garantir dignidade às pessoas com útero. Estas, por sua vez, não precisam ser “mocinhas” para menstruar. A primeira menstruação também não é sinônimo de dramatização, e sim um período delicado na vida das pessoas com útero na fase da adolescência, em especial daqueles e daquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade social ou que não têm a instrução necessária para lidarem com o período:

Se observarmos a sociedade numa outra perspectiva, se admitirmos que as relações sociais são sempre relações de poder e que o poder se exerce mais na forma de rede do que em um movimento unidirecional, então não será possível compreender as práticas educativas como isentas desses processos. A construção de uma prática educativa não-sexista necessariamente terá de se fazer a partir de dentro desses jogos de poder. Feministas ou não, somos parte dessa trama e precisamos levar isso em conta. (LOURO, 1997, p. 119).

Desconstruir a imposição dos binarismos se faz necessário inclusive para aquelas pessoas que se identificam com seu sexo e gênero impostos, visto que tal construção, por si só, já reforça o papel subalterno da “fêmea” ou mesmo daquelas pessoas “feminilizadas”.

Considerações finais

Ao encerrar este trabalho muitas questões seguem em aberto. Uma delas é a indagação se seria possível incluir a educação menstrual como parte da educação sexual dentro do currículo escolar e, dentro das políticas públicas educativas. Considerando que o período não envolve apenas questões

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biológicas, mas também culturais, um caráter interdisciplinar e interseccional deve ser empregado para se abordar os ciclos menstruais abarcando a diversidade e com consciência da necessidade de reparação histórica e restituição de direitos perante as pessoas com útero.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:

Editora Civilização Brasileira, 2003.

DAMATTA, Roberto. A casa & a rua - espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, Rio de Janeiro, Rocco, 1997.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo:

Boitempo, 2016

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:

Elefante, 2017.

GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro Latino Americano. São Paulo: Zahar, 2020. Edição do Kindle.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Guacira Lopes Louro - Petrópolis, RJ.

Uma perspectiva pós-estruturalista /. : Vozes, 1997.

NEIRA, Marcos Garcia and LIPPI, Bruno Gonçalves. Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como alternativa para a pesquisa educacional. Revista Educação & Realidade, vol.37, n.2, pp.607- 625, 2012. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S2175-62362012000200015>.

“Who menstruves? Not just women”

Abstract: The present clarification presents results of a research entitled “Tá de Chico? Stigmas of the Blood in the media and at school, which has as its theme the stigmas that involve menstruation, among them that of femininity, to which this work adheres. This characteristic attributed to people who menstruate was one of the stigmatized notions located in the research that gave rise to this work, and which seeks to problematize these (pre) concepts rooted in colonialist, binary and sexist ideologies that reinforce cisheteronormativity. The path taken to talk about the proposed theme was based on a bibliographic and theoretical review, followed by Bricolagem, whose media materials (social media posts, magazines, websites, documentaries, among others) were categorized with inspiration in the Analysis method of Content. Part of the theoretical and corporative framework was presented to all teachers in the final grades of a public school in Novo Hamburgo / RS. The transcripts

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of the professors' speeches were used in conjunction with the categories located to elucidate about the stigmas that involve menstruation, already evidenced in the empirical material.

Keywords: Menstruation. Stigma. Binarism.

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