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O analista escreve o Traço do caso

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Academic year: 2021

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O analista escreve o Traço do caso

Pauleska Asevedo Nobrega1

Introdução

Quando nos perguntamos sobre o que é a psicanálise, outra questão se prontifica:

“em que se está autorizado?” No Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, a formação do analista é temática subjacente à construção desse seminário, quando tendo o seu ensino censurado pela International Psychoanalytical Association (IPA), Lacan (1964) afirmou o compromisso com a formação de analistas, dando provas também, do seu desejo de analista. Ao apontar que a problemática do desejo do analista só se coloca através da formação do mesmo, ele incidiu na relação do analista com a sua práxis e, por que não dizer, enquanto analisante, no compromisso com o desejo e com a linguagem que lhe atravessa, isto é, com um modo de escrever (tocar o real pelo simbólico) peculiar. Ora, aquilo que manca, não aponta, senão, para o caminho do inconsciente, atestando que há hiância; o que reclama por realizar-se ao nível do sujeito, sem que haja garantias de uma propedêutica universal e funcional determinística da experiência analítica. Como afirma Miller (2011), em Sutilezas analíticas, o analista, enquanto analisante, não tem como estar em dia com o seu inconsciente e a sua formação continuada testemunha o trabalho diante de tal impossibilidade.

Na irredutibilidade da clínica, o método é muito mais o encontro consentido com o equívoco constituinte do sujeito, em sua evanescência, do que um meio para um fim.

Por isso, Freud soube silenciar, ao tempo em que não cedeu do seu desejo de saber.

1Psicanalista praticante. Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco

(UNICAP), na linha de pesquisa em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, onde desenvolve tese sobre acontecimento de corpo e devastação feminina. Mestre em Psicologia Clínica, na linha de pesquisa em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (UNICAP); Especialista em Saúde Mental pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP); Colaboradora da Delegação Paraíba da Escola Brasileira de Psicanálise (DPB/EBP).

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Pensar a clínica fundamenta a sua práxis. Quer dizer, o modo pelo qual a manifestação do inconsciente é experimentada não só pelo analisante, mas pelo analista, na precipitação do seu ato, é o que mantém viva a psicanálise. E por vezes, é pela via da escrita, num só depois, que a ficção do analista sobre a construção do caso clínico, funciona como um aparato metodológico para pensar a clínica, enquanto teoria, prática e lugar de formação do analista. Este trabalho tem como objetivo apresentar o método denominado “traço do caso”, inspirado no dispositivo proposto por Claude Dumézill, através do qual é possível identificar o efeito surpresa com o qual podemos experimentar a ficção própria ao analista.

O dispositivo Traço do Caso

Freud (1884; 1893-1895;1914) já havia se referido ao traço (zügen), quando se reportava aos traços mnêmicos, como o que compõe as representações psíquicas; aos traços como vestígios, sinais de uma patologia ou de uma clínica específica, mas não equivalente ao sintoma; ou mesmo, o traço como resíduo da observação clínica.

Contudo, Claude Dumézil (1929-2013), analista que frequentou os seminários de Lacan, ao recolher o significante “traço”, articulado à prática clínica, ou melhor, a um caso, tal como foi destacado por Lacan: “Traço do caso”; ele se aproximou mais do traço como resíduo da observação clínica de um caso, como marca indelével, ou restos da tão recomendada atenção flutuante.

Esse significante qualquer, foi capturado por Dumézil na quarta capa da primeira edição da revista lacaniana, Scilicet, de 1968, que reunia diversas elaborações textuais, propositalmente não assinadas – modelo de produção que foi perpetuado até os dias de hoje. Assim, Lacan intencionalmente se confundia com outros autores, analistas praticantes e ouvintes de seus Seminários, compartilhando a afinidade e necessidade de elaborar textos sobre a experiência clínica.

A partir dessa captura do “Traço do caso”, um significante qualquer foi elevado à categoria de significante mestre (S1) que incita ao saber (S2). E já nessa condução, os fundamentos da psicanálise estão aí implicados, como a transferência e o desejo do analista. Em 1983, Claude Dumézil ministrou um seminário clínico que se intitularia Traço do caso, interessado que estava na singularidade da prática analítica no âmbito do privado, se dirigiu ao “traço” como o que, verdadeiramente, é suporte da estrutura do sujeito. Seu intuito era diferenciar-se de outros grupos destinados à formação do

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analista, como os grupos de supervisão da prática clínica na época. Era-lhe muito cara a clínica como cerne da teoria psicanalítica e criticava, portanto, todo saber suposto dirigido rigidamente à pessoa de um único analista.

Posteriormente à morte de Lacan, Dumézil, e seu colega, Bernard Brémond (2012), criaram o dispositivo de trabalho denominado, Traço do Caso, tendo como pivô, o desejo do analista. Buscavam propiciar um lugar para estreitar a relação entre a clínica e a teoria, regidos pela ética da psicanálise e prezando pelo devido sigilo. Que se desse um lugar respeitoso ao ato analítico, inserido num coletivo e permitindo a relevância do traço inconsciente suspendido singularmente na experiência clínica.

Quanto ao direcionamento da posição enunciativa, definiu-se três dimensões espaços-temporais, para tanto (Dumézil & Brémond, 2012): os seminários, em que a cada encontro semanal, um praticante expunha alguns recortes da prática clínica e suas implicações, visando a invenção, a elaboração e a teorização; o âmbito público, em que um público mais amplo de praticantes era convidado anualmente para conhecer o trabalho produzido nos seminários e darem suas respectivas contribuições, e os cartéis, momento em que os participantes dos seminários que se interessavam, formavam cartéis2 para avançar nas questões que o seminário provocava, preparando trabalhos e auxiliando no desenvolvimento e funcionamento do dispositivo.

De acordo com Dumézil e Brémond (2012), o dispositivo Traço do Caso não pode ser equiparado ao estudo de caso e à apresentação de pacientes, pois é “teorígeno”.

Situa a teoria do lado do analista para que ele explore a sua prática, facilitando a passagem de analisante à analista e, portanto, contribuindo com a formação do analista.

O dispositivo sustenta a hipótese de existir um traço de estrutura específico do desejo do analista, a partir da noção de “ficção”. O termo ficção foi tirado de uma citação de Bentham por Lacan, retomada em Televisão. O traço do caso como ficção, portanto, afirma o desejo do analista para o trabalho, a sua escrita topológica e operativa, distante dos semblantes.

No Traço do caso, o traço é a ficção que distancia a enunciação (a narrativa) do caso que a inspira. A ficção não é um outro nome do semblante, não é uma quarta consistência depois do Real, do Simbólico e do Imaginário. Eu o vejo hoje como uma via de passagem entre o Real, não analisado, e o Simbólico (Dumézil & Brémond, 2012, p.19; 24 e 25, tradução nossa)

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Para Dumézil e Brémond (2012), o Traço do Caso é um dispositivo

“Instintuinte”. Institui uma passagem pela via do ato, tanto do lado do analista causado pelo desejo de analista, quanto do lado do analisante, marcado por Um significante.

Em Paris, França, atualmente, existe um grupo de estudo sobre esse dispositivo,

“Le group d´etudeletraitducas”3, aberto aos psicanalistas interessados, de qualquer filiação ou escola e a partir desse dispositivo, muitas produções são desenvolvidas.

O método Traço do caso

Diferentemente de um dispositivo que oferece uma extensão clínica, com fins para a formação do analista, o traço do caso como método, apesar de ter sua origem enquanto dispositivo, não se fixa às três dimensões espaço-temporais formatadas por Dumézil, mas se apoia em sua lógica para cernir o traço do caso. Não serve à escrita de um caso clínico, mas antes, à escrita daquilo que, do caso, surpreendeu e suspendeu do desejo do analista. Portanto, há uma ficção do enunciado posicionado topologicamente, que conduz a uma escrita distinta.

Além da narrativa do caso clínico, o traço do caso propicia o “paradigmático e singular”, ou seja, a marca impressa e que faz relevo, apontando o enigmático do caso, em torno do qual uma fição orbita.

O nosso contato primeiro com essa metodologia se deu na disciplina Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Edilene Freire de Queiroz, em nosso mestrado. Mas foi através da recente tese da Prof.ª Dr.ª Elisabete Regina Almeida de Siqueira, orientada pela Profa. Edilene, que encontramos afinidade na aplicabilidade do método, bem como sua interlocução com a pesquisa em psicanálise. Siqueira (2013) produziu uma tessitura sobre o “caso Paco” que a conduziu a elevar o conceito dumeziliano à categoria de operador metodológico. Nos dizeres de Siqueira (2013, p.103) a “marca do caso [...] É uma ficção operatória, um agente de distanciamento, de deslocamento. É a passagem de enunciação à escrita”. Ele, o traço do caso, aparece “[...] em algo do inesperado, em um questionamento, em um estranhamento como algo da ordem do que surpreende, da contingência, do imprevisto que permita a construção de uma ficção teorígena” (Siqueira, 2013, p. 104).

3Foi formalizado em 1990, como medida de proteção e organização do funcionamento do próprio dispositivo e que noticia todas as atividades e programações referentes ao mesmopelo enderço eletrônico:

http://www.letraitducas.fr/index.html

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Conservar a invenção, a elaboração e a teoria, são princípios do dispositivo do Traço do Caso, que o método consolidou, na assunção da passagem do analisante ao analista, então também marcado pelo seu desejo “x”, que enquanto causa, é agalmático e mobiliza a transferência de trabalho, nesse caso, de um trabalho teorígeno.

Remetendo-nos, como situou Lacan ([1968 – 1969] 1964), ao desejo de Freud, subordinado a um desejo original, nos diz ele, a exemplo do que a escuta das histéricas, a partir do que claudicava, o causou.

Podemos pensar o traço do caso, enquanto método, como um facilitador para que se alcance o Um, o unário do traço, para além do significante, mais próximo da letra de gozo. Nas palavras de Siqueira (2013), do que está perdido no coração da estrutura, pois como ensinou Lacan ([1957- 1958] 1999, pp. 355):

Um traço é uma marca, não é um significante. A gente sente, no entanto, que pode haver uma relação entre os dois, e, na verdade, o que chamamos de material significante sempre participa um pouco do caráter evanescente do traço.

Essa até parece ser uma das condições de existência do material significante. No entanto, não é um significante.

Esse método é uma ferramenta clínica que operacionaliza via escrita, o que atravessou o analista em sua singularidade. Com o indicativo lacaniano de que o desejo original é o desejo como causa, que aparece como falha do sentido, o traço do caso, por sua vez, vem reforçar que há uma verdade que não se sabe, articulada no nível do inconsciente.

Considerações

Na medida em que há um saber perdido, o desejo se apresenta na visada ao real da experiência analítica, fazendo do fracasso do sentido, uma produção escrita. Quer dizer, com o traço do caso, aprendemos que para além da construção do caso clínico, há o traço do desejo do analista, implicado transferencialmente no seu trabalho. E isso lhe permite falar em termos de uma metodologia própria, balizada especialmente segundo a ética do desejo. Pois, ao esbarrar no enigmático do caso, “continente negro” ou “umbigo

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dos sonhos”, lembrando Freud, esse método propõe avançar e não recuar, e que um produto teorígeno possa cingir o furo desse impossível de dizer.

Referências Bibliográficas

Dumézil, C. & Brémond, B. (2010). L´invention du psychanalyste. Le trait du cas.

Toulouse: Érés.

Freud, S. (1893-1895). A psicoterapia da histeria. (Vol. II). In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago.

————. (1914). O Moisés de Michelangelo. (Vol. X). In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago.

————. (1894). As neuropsicoses de defesa. (Vol. III). In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago.

Lacan, J. (1964/1988) O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos da psicanálise. (M.

D. Magno trad.). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed.

________. (1957-1958/1999). O Seminário 5. As Formações do Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar Ed.

Miller, J. A. (2011). Sutilezas analíticas. 1a ed. Buenos Aires: Paidós.

Siqueira, E. R. A. (2013) Corpo escrito: um estudo psicanalítico sobre nomeações e marcas corporais. Tese (Doutorado). 150 f. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Universidade Católica de Pernambuco. Recife-PE.

Referências

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