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1. Não coincidência do discurso consigo mesmo: a. X, no sentido dado por fulano. b. X, como se costuma dizer. c. X, como dizia minha mãe. Etc...

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MODALIZAÇÃO AUTONÍMICA COMO MARCA DE RUPTURA DO DIZER: ANALISE DAS CARTAS DE UM ALUNO “PSICÓTICO”

Eduardo Calil - PPGE/PPGLL/UFAL Cristina Felipeto - UNCISAL Joaceri Merlin - PPGE/UFAL

Este trabalho faz parte dos estudos que temos desenvolvido sobre o estatuto da “autoria” em manuscritos de alunos recém alfabetizados (CALIL, 2004, 2008; FELIPETO, 2008). Nas análises depreendidas de manuscritos escolares e processos de escritura pudemos identificar a autoria a um

“movimento” que, através de marcas lingüísticas e enunciativas, traz tanto o retorno do sujeito-escrevente sobre o que se escreveu, quanto indicia modos de relação de alteridade que garantem, imaginariamente, os efeitos de sentido (e unidade) do texto que se escreve.

Manuscritos que, em sua heterogeneidade e imprevisibilidade, trazem sempre as marcas singulares daquele que escreve e sua relação com a língua, o que significa assumir a escritura como uma instância constituída pela alteridade instaurada em posições subjetivas, nas quais um sujeito se inscreve e representa seu dizer. O que temos nomeado como “movimento de autoria” indicia os efeitos que o sujeito sofre de seu próprio dizer, ao reconhecer nele elementos de ruptura que ameaçam sua unidade ou produzem sentidos imprevisíveis.

Algumas dessas marcas podem estar presentes em modalizações autonímicas (AUTHIER- REVUZ, 2004), na medida em que esse fenômeno lingüístico-discursivo mostra formas de representação do sujeito enunciadas no fluxo de seu dizer. Essas “auto-representações”, marcadas por comentários ou glosas meta-enunciativas, compõem o caráter radicalmente dialógico da linguagem, mas também revelam, entre outras propriedades, uma relação de encadeamento e articulação e, como acrescentaria Authier- Revuz, providas de características sintático-semânticas descritíveis entre os elementos que compõem a cadeia sintagmática, na medida em que o sujeito busca restringir, conter, comentar o que acabou de enunciar.

Esse lugar de reconhecimento próprio do “movimento de autoria” e indiciado por esse retorno do sujeito sobre o próprio dizer, será nosso objeto de reflexão em um corpus pouco afeito às análises lingüísticas, a saber, textos escritos por um aluno “psicótico”.

1. Base Teórica

A modalização autonímica é uma das formas que o sujeito encontra de conter a heterogeneidade constitutiva que se mostra em seu dizer. Ela funciona enquanto “modo enunciativo desdobrado”

(AUTHIER-REVUZ, 1998, p.179), marcado por um retorno e um comentário do enunciador sobre seu próprio dizer. É a forma de o sujeito representar aquilo que lhe escapa. Fenômeno cuja emergência pode ser classificada, resumidamente, a partir de 4 tipos de representação:

1. Não coincidência do discurso consigo mesmo:

a. “X, no sentido dado por fulano.”

b. “X, como se costuma dizer.”

c. “X, como dizia minha mãe.”

Etc...

As glosas presentes nessas modalizações estão fundadas sobre o reconhecimento social dessas formas de dizer, uma vez que o discurso, muito embora atravesse o sujeito, não é da ordem do individual.

São glosas que traçam uma fronteira interior/exterior no dizer, em que as palavras são marcadas como

pertencendo a outro discurso.

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2. Não-coincidência das palavras consigo mesma.

a. “X, não! Y!”

b. “X, no sentido de Y”

c. “X, em ambos os sentidos”

Etc...

O sujeito falante tenta conter a proliferação de sentidos que emana das palavras e sobre a qual não se têm controle. Daí derivam séries de atos falhos, lapsos, chistes, ambigüidades, polissemias, trocadilhos, etc. Observa-se, nesta modalidade, glosas que mostram o encontro dos enunciadores com o equívoco que joga em suas palavras.

3. Não-coincidência entre as palavras e as coisas.

a. “X, na falta de palavra melhor”

b. “Eu busco uma palavra...”

c. “X, não há outra palavra”

Etc...

O sujeito busca uma adequação (imaginária) entre um nome e um objeto, um fato, um acontecimento. Glosas que representam hesitações, tentativas, fracassos, sucessos em direção à “palavra exata”. Glosas que marcam as tensões no “jogo inevitável da nomeação” em que, de um lado, temos aquilo que é da ordem da “falta”, no sentido lacaniano, e, de outro, do “caráter absoluto, inquestionado, evidente, ‘óbvio’ vinculado ao uso-padrão das palavras.

4. Não-coincidência interlocutiva.

a. “X, como você costuma dizer”

b. “X, para usar as palavras de Y”

c. “X, se me permite a expressão”.

Etc...

Essas glosas marcam desacordo, desencontro, encruzilhada, diferenças entre si e o outro- interlocutor, entre o enunciador e o destinatário. Interessante observar que, ao tentar apagar a não- coincidência interlocutiva, buscando incluir-se ou incluir o outro na esfera do seu dizer, o sujeito falante acaba por atestar o fato da não-simetrização possível (MILNER, 1987) entre dois sujeitos falantes.

Qualquer um desses 4 tipos de não-coincidência aponta para uma posição de reconhecimento do sujeito tanto em relação ao que está sendo dito por ele, quanto em relação à diferença entre o seu dizer e o Outro do discurso. Posição certamente imaginária, mas que indica um modo de inscrição simbólica no funcionamento lingüístico-discursivo, ameaçado a todo instante por aquilo que pode lhe fazer falta.

Esses pontos serão considerados em nosso estudo inicial sobre o discurso psicótico. Nossa questão de partida diz respeito à presença ou não desse fenômeno nas “cartas” jogadas por RK. Se o psicótico traz um dizer “estranho” (NOVAES, 1996), em que os operadores metafórico e metonímico nem sempre encontram seus pontos de articulação, como esse fenômeno, cuja condição é o reconhecimento de uma diferença, poderia estar presente? Ou, ainda, poderíamos considerar sua emergência como índice do movimento de autoria?

2. Metodologia

Elegemos um conjunto de manuscritos de um aluno, R. K., de Educação de Jovens e Adultos, que

sofreu, aos 24 anos, um surto psicótico logo após o falecimento de sua mãe, e foi diagnosticado pelos

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médicos do hospital de saúde mental de sua cidade, como sofrendo de “transtorno psicótico não-orgânico e não especificado” (CID-10, F29

1

).

Nosso corpus é composto por 129 “cartas” escritas em diferentes tipos de papéis (envelopes bancários, panfletos informativos, folders bancários, anúncios, cartazes, folhetos com oração, etc.) por RK, em pé, do outro lado da rua e jogadas na varanda da casa de sua professora, que as recolhia, lia e guardava. Ao doar esse material para o acervo “Práticas de Textualização na Escola (PTE), a professora o nomeou de “cartas de RK”, nominação que acatamos, apesar das características estruturais, discursivas e textuais apresentadas pelos manuscritos questionarem essa classificação.

Foi sua professora também quem as numerou, após termos solicitado, a lápis, colocando o número da “carta” no alto do suporte, indicando que aquela face seria a “frente”, que indicaremos com “face A”, e, conseqüentemente, a outra o “verso”, “face B”. Todavia, as 136 cartas recebidas e organizadas em seqüência numérica não correspondem à ordem cronológica em que foram escritas e jogadas para a professora. Igualmente, podemos dizer que nem sempre é possível sabermos qual é a “face A” e qual é a

“face B” da carta, isto é, por onde RK começou a escrever o texto e em que lado do suporte terminou.

Apesar dessas dificuldades metodológicas, respeitaremos sua organização por uma simples razão: é impossível sabermos exatamente quando foram escritas, raras apresentam alguma data ou qualquer indicação de tempo.

3. Análise

Do conjunto de suas cartas, apresentaremos a nº 8. Escolhemos essa carta pelo fato dela expressar uma das singularidades de sua escrita. Escrita em um envelope bancário, usado para depósito ou pagamento em “caixa rápido” do banco “Caixa Econômica Federal”, suporte, aliás, bastante utilizado por RK, esse manuscrito chama a atenção pela “transparência” que o texto impresso parece exercer sobre ele.

1

Organização Mundial da Saúde. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10. Porto

Alegre: Artes Médicas; 1993.

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Figura 1: carta nº 08, face A.

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Transcrição

2

1: carta nº 08, face A.

Figura 2: carta nº 08, face B.

2

Optamos por uma normatização de seu texto, visando sua legibilidade. Estamos cientes dos riscos que sua necessária interpretação pode trazer em relação aos sentidos de seu texto.

1. É como dizem, os humilhados serão exaltados. E eu fui 2. tão humilhado nesse mundo. Eu levei tanta porrada que as 3. vezes penso que se eu não morri até agora descon

4. fio que sou imortal “um passo para a eternidade”.

5. quem sabe de certa forma, a culpa era minha

6. que permitia, tinha medo de tudo e vergonha também 7. mas hoje eu penso diferente. Ter medo de que?

8. Ter vergonha de que? Antes eu vivia para os outros 9. e pelos outros. Aceitava tudo!!! Calado. Agora não.

10. É como se diz, quem tem boca vai a Roma.

11. (Valderígia!!!)

12. E também eu vivo em um país livre,

13. em uma democracia, mas não preciso lhe dizer isso

14. já sabe, pô!!! Sociedade hipócrita. Quer sabe? Eu

15. quero, aliás, um mundo que acabe. Eu não estou nem

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Transcrição 2:

carta nº 08, face B.

Essa

carta, assim como

muitas outras, porta

um relato de culpas e acusações, mas não são esses aspectos relacionados aos “sentimentos” expressos por RK em relação a si mesmo e em relação a sua professora e colegas que serão objeto de nossa análise.

Também não buscaremos nesse texto uma interpretação calcada na psicanálise lacaniana, como o faz os trabalhos de Masagão (2004, 2007). Nosso interesse recai precisamente sobre o funcionamento lingüístico-discursivo e a montagem enunciativa sustentada na singularidade de sua escritura.

Destacamos a presença de 3 enunciados marcados pela modalização autonímica:

1. “É como dizem, os humilhados serão exaltados.” (Carta 08, face A, linha 1) 2. “É como se diz, quem tem boca vai a Roma.” (Carta 08, face A, linha 10)

3. “É como se diz, um homem desesperado faz coisas desesperadas.” (Carta 08, face B, linha 12)

Tomados em sua estrutura sintática, podemos dizer que esses enunciados indicam formas de não- coincidência do discurso consigo mesmo: “como se diz, X.”. Teríamos, então, na glosa “como se diz”, uma das marcas dialógicas que atravessa o texto de RK.

Outra propriedade que caracteriza a modalização autonímica diz respeito à referência semântica do elemento “X”. Isto é, esse elemento guarda relações com o tema que está sendo enunciado. Sua emergência indiciaria o reconhecimento de uma diferença no fluxo do dizer, em que o sujeito, buscando no discurso do Outro o apoio e a sustentação de seu próprio dizer, retoma o que está dizendo, destacando a direção do sentido de seu texto; o que nos permitiria entendê-la como um “movimento de autoria”, quando o operador metafórico garantiria um retorno e reconhecimento sobre o dizer e sua subseqüente contigüidade metonímica.

Podemos observar, por exemplo, que os enunciados 1 e 3 estão, de certa forma, amarrados semanticamente ao fluxo de sua escrita. No primeiro teríamos uma modalização autonímica que encontra sua referência no que está dito logo em seguida: ele, que foi “tão humilhado nesse mundo”, que levou

“tanta porrada”, será exaltado, glorificado. Aqui, RK encontra conforto no discurso bíblico para sua posição subjetiva, garantindo, através dele, alguma unidade em seu dizer.

1. preocupado. Eu só quero saber de (????????). Eu sei 2. que não vai ser fácil isso. É quase impossível (quase) 3. Eu também quero saber das mulheres. Elas são meu 4. consolo. As mulheres... huuuuumm... quanta tentação.

5. Agora, mudando de assunto, o que fez foi uma

6. Crueldade, não, uma monstruosidade. Como foi capaz? Como?

7. E até agora eu não entendo porque fez. Não entendo.

8. Foi por causa dos óculos? Dona Clarice talvez não tenha 9. me perdoado, mas eu espero que ela tenha entendido 10. minha situação. Eu estava desesperado. Não tinha ninguém 11. para conversar. Todos contra mim.

12. É como se diz, um homem desesperado faz coisas desesperadas.

13. Porque essa é uma pergunta que não me deixa

14. calar.

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No terceiro, sua modalização e a estrutura proverbial que o elemento X apresenta (“homem desesperado faz coisas desesperadas”) estão de par com o fato de se estar desesperado porque “não tinha ninguém para conversar”.

Não obstante, o encadeamento de sua escrita nem sempre garante essa articulação. Nossa hipótese é a de que alguns elementos significantes mobilizam traços metonímicos que parecem enfraquecer as relações entre os elos semânticos de seu texto. O problema relacionado à co-referência do comentário meta-enunciativo “como se diz, quem tem boca vai à Roma” parece não estar sendo pressionado pelo retorno ao tema que circunda essa cadeia sintagmática. Encontramos nas palavras postas em momento imediatamente anterior à presença da glosa, a seguinte seqüência: “Aceitava tudo!!! Calado. Agora não.”.

(carta 08, linha 09, face A). É nele que parece estar a pista para a ruptura semântica que essa modalização dá a ver. Fato justificado se observarmos a emergência de “calado”, que, metonimicamente, convoca o provérbio popular. Essa forma significante faz com que haja algum tipo de associação com a forma significante “boca”, trazendo em bloco, não só a estrutura “como se diz”, mas todo o provérbio “quem tem boca vai à Roma”.

Conclusão

O “movimento de autoria” se instaura a partir de uma articulação significante imprevisível e do reconhecimento, pelo sujeito, de uma diferença e alteridade em sua escrita. As manifestações sistemáticas e, muitas vezes compulsivas, próprias da escrita psicótica revelam também articulações significantes imprevisíveis que podem afetar a posição subjetiva do scriptor. No entanto, o sujeito psicótico não se escuta, parece não ser afetado pelo seu próprio dizer/escrever, não havendo “ressignificação possível no movimento de volta” (NOVAES, 1996:97).

Talvez não seja exatamente o que temos encontrado nessas cartas. A escrita de RK mantém, em certa medida, “movimentos de volta” que seguram o deslizamento metonímico de seu discurso. Também se articula através de pontos de fixação metafórica como indicia a presença da glosa “como se diz”, repetida por 3 vezes nessa carta.

Porém, as glosas não sustentam o tempo todo um ponto de reconhecimento de diferença, já que

“quem tem boca vai à Roma” não estanca qualquer fluxo discursivo. Ao contrário, abre um buraco em seu texto, indiciando o modo como é tomado pelo próprio ato de escrever.

Referências

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. As Palavras Incertas: as não coincidências do dizer. Campinas:

Unicamp, 1998.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

CALIL, Eduardo. Autoria: a criança e a escrita de histórias inventadas. 2ª ed. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2004.

CALIL, Eduardo. Escutar o invisível: escritura & poesia na sala de aula. São Paulo: Editora da UNESP; FUNARTE, 2008.

FELIPETO, Cristina. Rasura e equívoco no processo de escritura na sala de aula. Londrina: EDUEL, 2008.

MASAGÃO, Andrea Menezes. “A gramática do corpo e a escrita do nome”. Psicologia USP, 15 (1/2), 2004, p. 263 – 277.

MASAGÃO, Andrea Menezes. “Vestígios”. Psychê, Ano XI, nº 20, jan – jun/2007, p. 129 – 140.

MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

NOVAES, Mariluci. Os dizeres nas esquizofrenias: uma cartola sem fundo. São Paulo: Escuta, 1996.

Referências

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