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GUERRA DO VIETNÃ E O COLAPSO DO CONSENSO NACIONAL

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Academic year: 2022

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GUERRA DO VIETNÃ E O COLAPSO DO CONSENSO NACIONAL

Mesmo em meio às dificuldades da Guerra da Coreia, uma combinação de princípios wilsonianos e geoestratégia rooseveltiana propiciou um ímpeto extraordinário à primeira década e meia da política americana para a Guerra Fria. A despeito do incipiente debate no plano doméstico, foi essa política que guiou o país durante a ponte aérea de 1948-49 para frustrar os ultimatos soviéticos a respeito do acesso a Berlim, à Guerra da Coreia e à derrota do esforço soviético para instalar em Cuba mísseis balísticos nucleares de médio alcance em 1962.

A isso se seguiu o tratado de 1963 no qual a União Soviética abria mão de realizar testes nucleares na atmosfera — um símbolo da necessidade de as superpotências discutirem e limitarem sua capacidade de destruir a humanidade. No congresso, a política de contenção se apoiava num consenso essencialmente bipartidário. As relações entre a formulação de políticas e as comunidades intelectuais eram de natureza profissional, considerava-se que as bases dessa colaboração estavam assentadas em objetivos compartilhados e de longo prazo.

Porém, mais ou menos na mesma época do assassinato do presidente John F. Kennedy, o consenso nacional começou a ruir. Parte da razão estava no fato de que tinha sido o choque do assassinato do jovem presidente que tinha convocado os Estados Unidos a se manterem fiéis às suas tradições idealistas. Ainda que o autor do ataque fosse um comunista que tivesse vivido um período na União Soviética, para muitos integrantes de uma geração mais jovem a perda levantava questões sobre a validade moral do empreendimento americano.

A Guerra Fria tinha começado com uma convocação para apoiar a liberdade e a democracia através do mundo, reforçado pelo presidente Kennedy no seu discurso de posse. No entanto, ao longo do tempo, as doutrinas militares que davam sustentação à estratégia de contenção começaram a provocar um desgaste junto às percepções do público. O hiato entre o poder destrutivo das armas e os propósitos para os quais elas poderiam ser usadas se revelavam intransponíveis. Todas as teorias para o uso limitado de tecnologia militar nuclear provaram ser inexequíveis. A estratégia em vigor era baseada na capacidade de infligir um nível de baixas civis julgado insuportável, porém certamente envolvendo dezenas de milhões de pessoas dos dois lados em questão de dias. Esse cálculo limitava a autoconfiança dos líderes nacionais e a fé do público nas suas lideranças.

Além de tudo isso, ao migrar para a periferia da Ásia, a política de contenção encontrou condições na realidade opostas às que existiam na Europa. O Plano Marshall e a OTAN tiveram sucesso porque uma tradição política de governo continuava a subsistir na Europa, ainda que deteriorada. A recuperação econômica poderia restaurar a vitalidade política. Contudo, em grande parte do mundo subdesenvolvido, as estruturas políticas eram frágeis ou novas, e a ajuda econômica levava, com a mesma frequência, tanto à corrupção como à estabilidade.

Esses dilemas chegaram ao auge na Guerra do Vietnã. Truman tinha enviado conselheiros civis ao Vietnã do Sul para resistir às guerrilhas em 1951; Eisenhower havia acrescentado assessores militares em 1954; Kennedy autorizou o uso de tropas de combate como auxiliares em 1962; Johnson mobilizou uma força expedicionária em 1965 que acabaria atingindo meio milhão de militares. O governo Kennedy estivera prestes a participar da guerra, e a administração Johnson assumiu essa decisão por estar convencida de que o ataque norte vietnamita ao Vietnã do Sul era uma cabeça de ponte de um esforço sino-soviético rumo ao domínio global, e que precisava encontrar a resistência das forças americanas; caso contrário todo

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o Sudeste Asiático cairia sob controle comunista.

Ao defender a Ásia, os Estados Unidos tinham se proposto a agir como se estivessem na Europa Ocidental. De acordo com a “teoria do dominó” do presidente Eisenhower, segundo a qual a queda de um país diante do comunismo levaria os outros a caírem também, aplicava-se a doutrina de contenção para frustrar os objetivos do agressor (como no modelo da Otan) e para fomentar a reabilitação econômica e política (como no Plano Marshall).

Ao mesmo tempo, para evitar uma “ampliação da guerra”, os Estados Unidos renunciavam a atacar santuários da guerrilha no Camboja e no Laos, de onde as forças de Hanói lançavam ataques que infligiam milhares de baixas e para onde se retiravam de modo a evitar serem perseguidos. Nenhum desses governos tinha se dignado a apresentar outro plano para pôr fim à guerra que não fosse o de preservar a independência do Vietnã do Sul, destruir as forças armadas mobilizadas por Hanói para subverter o Sul e bombardear o Vietnã do Norte de forma intensa o bastante para levar Hanói a reconsiderar sua política de conquista e dar início a negociações. Esse programa não tinha sido considerado incomum ou controvertido até meados do mandato de Johnson.

Então, uma onda de protestos e de críticas por parte da mídia — culminando depois da Ofensiva do Tet de 1968, em termos militares convencionais uma devastadora derrota para o Vietnã do Norte, porém tratada pela imprensa ocidental como uma espantosa vitória e um indício de fracasso americano — encontrou eco entre os funcionários do governo americano.

Lee Kuan Yew, o fundador do Estado de Cingapura e talvez o mais sábio líder asiático do período, foi enfático ao expressar sua firme crença, mantida até o momento em que escrevo, de que a intervenção americana era indispensável para preservar a possibilidade de um Sudeste Asiático independente. A análise das consequências de uma vitória comunista no Vietnã para a região mostrou-se, na maior parte dos aspectos, correta. Porém, na altura da participação plena americana no Vietnã, a unidade sino-soviética não mais existia, vítima de uma crise perceptível já ao longo dos anos 1960. A China, arruinada pelo Grande Salto Adiante e pela Revolução Cultural, considerava a União Soviética cada vez mais como um adversário perigoso e ameaçador.

Os princípios de contenção aplicados na Europa se revelavam muito menos praticáveis na Ásia. A instabilidade europeia se deu quando a crise econômica causada pela guerra ameaçava minar as instituições políticas domésticas. No Sudeste da Ásia, depois de um século de colonização, essas instituições ainda tinham de ser criadas — especialmente no Vietnã do Sul, que nunca antes na história tinha existido enquanto um Estado.

Os Estados Unidos procuraram preencher este hiato por meio de uma campanha de construção política empreendida paralelamente ao esforço militar. Enquanto lutava simultaneamente uma guerra convencional contra as divisões norte-vietnamitas e uma guerra nas selvas contra as guerrilhas do Vietcong, o país se lançou num projeto de engenharia política numa região que não tinha conhecido autodeterminação por séculos ou que nunca vivera experiência democrática alguma. Depois de uma série de golpes de Estado (o primeiro dos quais foi, na verdade, encorajado pela embaixada americana e contou com a aquiescência da Casa Branca na expectativa de que o governo militar produziria instituições mais liberais), o general Nguyen Van Thieu emergiu como o presidente do Vietnã do Sul.

No início da Guerra Fria, a orientação não comunista do governo havia sido assumida

— talvez de um modo excessivamente exuberante — como prova de que valia a pena preservá-lo contra as intenções soviéticas. Agora, em meio à atmosfera de recriminações que começava a se formar, a incapacidade de o Vietnã do Sul se revelar uma democracia plenamente funcional (em meio a uma sangrenta guerra civil) era motivo de denúncias amarguradas. Uma guerra que a

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princípio havia contado com o apoio de uma considerável maioria e ampliada até suas dimensões atuais por um presidente que alegava princípios universais associados à liberdade e aos direitos humanos era agora censurada como um indício de uma completa insensibilidade moral por parte dos Estados Unidos. Acusações de imoralidade e fraude foram feitas de maneira leviana;

“barbárie” era um dos termos favoritos.

O envolvimento militar era descrito como uma forma de “insanidade”, revelando profundas falhas no modo de vida americano; tornaram-se rotina as acusações de massacres aleatórios praticados contra civis. O debate interno a respeito da Guerra do Vietnã acabou se revelando um dos mais dolorosos da história americana. As administrações que envolveram os Estados Unidos na Indochina contavam com equipes de indivíduos de grande inteligência e probidade que subitamente se viram acusados de uma loucura quase criminosa e de fraude deliberada. O que havia começado como um debate razoável sobre viabilidade e estratégia transformou-se em manifestações de rua, injúrias e violência.

Os críticos estavam certos ao apontar que a estratégia americana, particularmente nas fases iniciais da guerra, era imprópria para as realidades de um conflito assimétrico. Campanhas de bombardeios alternadas com “pausas” para sondar a disposição de Hanói para negociar tendiam a produzir impasses — empregando força suficiente para instigar denúncias e resistência, mas não o suficiente para garantir que o adversário se empenhasse em negociações sérias. Os dilemas do Vietnã eram em grande medida consequência de teorias acadêmicas sobre o recurso a escaladas gradativas, tática que havia sustentado a Guerra Fria. Ainda que conceitualmente coerentes nas condições de um impasse entre superpotências nucleares, essas teorias eram menos aplicáveis a um conflito assimétrico travado contra um adversário comprometido com uma estratégia de guerrilha. Parte das expectativas suscitadas pela relação entre reforma econômica e evolução política se revelou inexequível na Ásia. No entanto, esses eram temas apropriados para debates sérios, não para promover difamação e, em setores periféricos do movimento de protesto, promover ataques a universidades e edifícios do governo.

O colapso das aspirações elevadas abalou a autoconfiança sem a qual as instituições de uma sociedade caem por terra. Os líderes que anteriormente tinham apoiado a política externa americana se encontravam particularmente angustiados com a ira manifestada pelos estudantes.

A insegurança expressa pelos mais velhos transformou as queixas normais da juventude ainda imatura numa raiva institucionalizada e num trauma nacional. Manifestações públicas atingiram dimensões que obrigaram o presidente Johnson — que seguia descrevendo a guerra em termos tradicionais de defesa de um povo livre contra o avanço do totalitarismo — a restringir suas aparições públicas no último ano no cargo basicamente a bases militares.

Nos meses que se seguiram ao fim do mandato de Johnson em 1969, um número expressivo dos mais importantes arquitetos da guerra renunciou publicamente aos seus cargos, pedindo pelo fim das operações militares e por uma retirada americana. Esses temas foram elaborados até que a visão do establishment se cristalizou em torno de um programa para “acabar com a guerra” por meio de uma retirada unilateral americana em troca apenas da liberação dos prisioneiros de guerra.

Richard Nixon tornou-se presidente numa época em que 500 mil soldados americanos estavam em combate — e o número vinha aumentando, numa escala programada pela administração Johnson — no Vietnã, um local que figurava como o mais distante possível dos Estados Unidos no globo terrestre. Desde o começo, Nixon estava comprometido em terminar a guerra. Mas também acreditava que era sua responsabilidade fazer isso num contexto dos compromissos americanos globais, associados à sustentação da ordem internacional do

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pósguerra. Nixon assumiu o cargo cinco meses depois da ocupação militar da Tchecoslováquia pelos soviéticos, enquanto a União Soviética seguia produzindo seus mísseis intercontinentais num ritmo que ameaçava — e, alguns argumentavam, ultrapassava — as forças dissuasórias americanas, e a China permanecia numa atitude inexorável e violentamente hostil. Os Estados Unidos não podiam abrir mão de seus compromissos de segurança numa parte do mundo sem suscitar desafios à sua determinação em outros. A preservação da credibilidade americana na defesa de seus aliados e do sistema de ordem global — um papel que os Estados Unidos tinham desempenhado por duas décadas — permaneceu como parte integrante dos cálculos de Nixon.

Nixon promoveu a retirada de forças americanas numa proporção de 150 mil por ano e deu por terminada a participação em operações de combate terrestre em 1971. Ele autorizou o início de negociações sob uma condição irredutível: nunca aceitou a exigência de Hanói de que o processo de paz começasse com a substituição do governo do Vietnã do Sul — um aliado dos Estados Unidos — por um suposto governo de coalizão, preenchido na realidade por figuras indicadas por Hanói. Isso foi rejeitado de forma inflexível durante quatro anos até que, após uma ofensiva fracassada por parte do Vietnã do Norte (derrotada sem a ajuda de tropas terrestres americanas) em 1972, Hanói finalmente concordou com um cessar-fogo e um acordo político que tinha rejeitado insistentemente ao longo de anos.

Nos Estados Unidos o debate manteve seu foco num desejo amplamente difundido de pôr fim ao trauma provocado pela guerra sobre as populações da Indochina, como se os Estados Unidos fossem a causa da agonia infligida a elas. E, no entanto, Hanói insistira numa batalha contínua — não por não acreditar no compromisso americano com a paz, mas porque contava com esse compromisso para exaurir a determinação americana de suportar sacrifícios. Travando uma guerra psicológica, explorou impiedosamente a busca dos Estados Unidos por um compromisso em prol de um programa de dominação em relação ao qual, como veio a ficar claro, não eram admitidas concessões de espécie alguma.

As ações militares ordenadas pelo presidente Nixon e que eu, na qualidade de seu assessor de Segurança Nacional, apoiei, juntamente com a política de flexibilidade diplomática, conduziram a um acordo em 1973. O governo de Nixon estava convencido de que Saigon seria capaz de superar eventuais violações do acordo com as suas próprias forças; de que os Estados Unidos auxiliariam com poderio aéreo e naval no caso de um ataque geral; e que, com o passar do tempo, o governo sul-vietnamita se mostraria capaz de, com assistência econômica americana, construir uma sociedade funcional e passar por uma evolução que criasse instituições mais transparentes (como, de fato, iria ocorrer na Coreia do Sul).

Saber se esse processo poderia ter sido acelerado e se poderia ter sido oferecida outra definição para a credibilidade americana permanecerá como tema de um debate apaixonado. O principal obstáculo residia na dificuldade de os americanos compreenderem a maneira de pensar adotada por Hanói. O governo de Johnson superestimava o impacto do poderio militar americano.

Ao contrário do que diz o senso comum, a administração Nixon superestimou o alcance da negociação. Para a liderança em Hanói, duramente temperada pela guerra, tendo passado suas vidas inteiras lutando pela vitória, o compromisso equivalia à derrota, e a noção de uma sociedade pluralista, algo quase inimaginável.

A solução desse debate é algo que está além dos limites deste livro; para todos nele envolvidos, tratou-se de um processo doloroso. Nixon conseguiu empreender uma completa retirada e alcançar um acordo que, ele acreditava, oferecia aos sul-vietnamitas uma oportunidade decente de moldar seu próprio destino. Contudo, tendo vivenciado uma década de controvérsia e na atmosfera altamente carregada das consequências da crise de Watergate, o congresso

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restringiu de forma drástica a ajuda em 1973, eliminando-a completamente em 1975. O Vietnã do Norte conquistou o Vietnã do Sul ao enviar quase que seu exército inteiro através da fronteira internacional. A comunidade internacional permaneceu em silêncio e o congresso proibiu uma intervenção militar americana. Os governos do Laos e do Camboja caíram logo depois diante de levantes comunistas e, neste último, o Khmer Vermelho impôs um regime de brutalidade inimaginável.

Os Estados Unidos tinham perdido sua primeira guerra e também o fio a partir do qual se desenrolava seu conceito de ordem mundial.

Autoria de Henry Kissinger

Extraído do Livro a Ordem Mundial

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