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A ESCRITA BIOGRÁFICA: REFLEXÕES ACERCA DAS POSSIBILIDADES NARRATIVAS

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Academic year: 2021

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A ESCRITA BIOGRÁFICA: REFLEXÕES ACERCA DAS POSSIBILIDADES NARRATIVAS

RAQUEL CZARNESKI BORGES Universidade Federal de Pernambuco raquel.czarneski@gmail.com

As profundas mudanças pelas quais vêm passando a pesquisa histórica e a historiografia, mais ou menos desde a década de 1960, estão, paulatinamente, colocando para os historiadores novas formas de ver o mundo, ampliando noções e conceitos, introduzindo dimensões da vida humana até então secundárias na pesquisa científica e suscitando diferentes metodologias. Da crítica aos paradigmas tradicionais, do estruturalismo e da história serial e quantitativa, voltou-se a atenção aos elementos culturais, às trajetórias individuais e experiências cotidianas. Essas dimensões passaram a ter importância fundamental na pesquisa histórica, em grande proximidade com os chamados Estudos Culturais.

Com relação, especialmente, aos estudos biográficos, François Dosse vai salientar que a significativa mudança começa a acontecer no início dos anos 1980.

Segundo ele, as ciências humanas, em geral, e os historiadores, em particular, redescobrem as virtudes de um gênero até então ignorado, considerado pouco reflexivo.

São ressaltados o poder de evocação e a ilusão de conexão direta com o passado que a biografia carrega, suscitando nos leitores presença e envolvimento com seus

“personagens”. Dessa forma, a escrita biográfica ganha um novo fôlego dentro da historiografia, atestando seu inegável potencial de comunicação com um grande público e o permanente desejo do ser humano de se compreender através do outro.

Nesse percurso, as trajetórias de vida ou biografias ressurgiram a partir de novos

interesses, colocando problemáticas diferentes do que se considerava o trabalho

biográfico tradicional. A partir de influências da sociologia, antropologia, psicanálise e

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literatura, o gênero biográfico se instituiu na historiografia contemporânea, buscando a complexidade das experiências, a partir dos percursos e relações de um indivíduo, transgredindo, assim, o que François Dosse chamou de o tabu desse gênero de pesquisa e escrita. De acordo com o autor:

Os tempos atuais são mais sensíveis às manifestações da singularidade, que legitimam não apenas a retomada de interesse pela biografia como a transformação do gênero num sentido mais reflexivo (...). A pergunta sobre o que é o sujeito e os processos de subjetivação alimenta essa renovação da escrita biográfica, que a nosso ver já entrou na era hermenêutica, a da reflexividade (DOSSE, 2009, p. 229).

A força do singular e do individual no contemporâneo vem fazendo, então, com que se busque renovar o gênero biográfico, introduzindo novas questões à pesquisa.

Dessa forma, a ênfase não está mais nas estruturas e categorias sociais, onde o indivíduo era um componente, tampouco a história de uma pessoa é tratada como exemplar para a compreensão de uma experiência. Não se buscam as estruturas despersonalizadas, e não se quer também o sujeito fora de suas relações, o excepcional. Como fazer, então, para que essas dimensões dialoguem? Esse é um dos desafios da escrita biográfica hoje e um pouco do que nos motiva na escrita desse texto e nas reflexões sobre as possibilidades narrativas das biografias na contemporaneidade.

A narrativa entra em questão e toma um aspecto fundamental em nossas reflexões, pois é a partir dela que criamos as histórias; é através dela que damos vida ao passado e, assim, o reinventamos a partir do nosso olhar. Para Rezende, “querer narrar e não desistir de narrar assegura a continuidade dos tempos históricos. Podemos manter- nos vivos por meio da narrativa dos outros, como também reinventamos o mundo”

(2010, p. 27). Ao nos propormos escrever uma biografia, buscamos estar conscientes da dimensão que pode adquirir nossa narrativa de historiadores, nos situando num universo de diferentes falas sobre uma vida, onde pretendemos incluir mais uma. E sendo assim, não devemos perder de vista, o que Rezende salienta quando diz:

O historiador tem também um toque de imaginação no seu

ofício. Não cabe a ele reproduzir o passado como ele realmente

aconteceu, mas ele não é um ficcionista. Desenhamos nossos

caminhos dentro de territórios múltiplos, de fronteiras móveis e

frágeis. (REZENDE, 1997 p. 14)

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A aproximação da história com a literatura também ajudou a colocar em foco a questão da narrativa para os historiadores e a estreitar os laços entre ciência e ficção. Se a ordenação factual deixa de ser importante e a cronologia não orienta tanto a nossa perspectiva de tempo, nos voltamos para a dimensão imaginativa de nosso trabalho.

Têm-se a clareza que a história se escreve sempre a partir do presente, num constante ato de criação. O historiador, então, se depara com o poder instituinte da sua própria narrativa e começa a pensar nas muitas possibilidades de contar e recriar o passado por meio da sua escrita. O trabalho do biógrafo se assemelha, então, ao do romancista.

Afastamos-nos da ilusão do real e começamos a valorizar a criação de significados a partir de nossa escrita, refletindo sobre como contar uma história e para quem. Sobre essa dimensão da reflexão historiográfica e da narrativa, Paul Ricouer se dedica profundamente em sua obra Tempo e Narrativa. Articulando as noções de tempo, narrativa e experiência, buscamos pensar sobre a tarefa de escrever uma vida.

Ricouer nos fala que “o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.” (1994, p.15)

Em nossa pesquisa, estamos caminhando por esse território um tanto incerto da escrita biográfica. Considerando as mudanças pelas quais o gênero vem passando, nos propomos a analisar as trajetórias artísticas e intelectuais de Cícero Dias

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, e sua construção de redes, relações com outros em Recife, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e a configuração do modernismo no Brasil. O interesse não é estudar Cícero Dias para explicar o modernismo ou vice-versa, mas ver como os caminhos são construídos e como os indivíduos também se constroem neles. Buscamos não fechar esses conceitos e ir em busca da sua própria construção – tanto do artista Cícero Dias, como do movimento modernista. Essa preocupação aparece para que uma dimensão não se sobreponha à outra e dê espaço a explicações ou conclusões reducionistas.

1 Artista plástico, nascido na cidade de Escada, Zona da Mata de Pernambuco, em 1907. Filho de uma

família tradicional da região,começa a estudar pintura no Engenho Jundiá, com uma tia. Aos treze anos

vai estudar no Rio de Janeiro e, mais tarde, matricula-se na Escola Nacional de Belas Artes para cursar

Arquitetura. Começa a frequentar ambientes intelectuais e boêmios na companhia de outros artistas como

Lasar Segall, Manuel Bandeira, Ismael Nery e outros. Em 1928 realiza sua primeira exposição individual

no Rio de Janeiro.

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No caminho dessas proposições, diferentes metodologias vão se construindo.

Abre-se espaço para novas fontes e novas perguntas às fontes. Como colocamos anteriormente, outras dimensões da vida humana vão se inserindo na prática da pesquisa e demandam do historiador abrir perspectivas e diferenciar os olhares para seus temas de estudo. Nesse sentido, todo um conjunto de fontes privadas também entra em cena na reconstrução dos sujeitos biografados, abrindo o campo de visão do pesquisador, para detalhes que antes pareciam não ter importância, na sequência de fatos que se considerava de destaque.

O que antes era considerado íntimo, da dimensão do afeto e da subjetividade, do âmbito privado, visto a partir de uma separação da razão, da ação e da esfera pública, agora passa a ser elemento fundamental para a aproximação da complexidade que é uma vida. Os detalhes ínfimos que poderiam ser descartados assumem muitas vezes o papel de fios condutores das narrativas, assumindo o primeiro plano na investigação do biógrafo. No caso da nossa pesquisa, tão importante quanto os trabalhos artísticos de Cícero Dias e os textos escritos por ele e sobre ele, estão a correspondência trocada com seus amigos e colegas, seus bilhetes, rascunhos e projetos, fotografias, desenhos, etc.

Tudo aquilo que, talvez, nem fosse importante por não assumir o status de “obra”, agora é considerado relevante para que possamos ampliar o olhar e desconstruir significados dados.

Este movimento está relacionado à proximidade da história com a memória, da narrativa com a experiência e da vontade de se compreender o passado a partir de sua própria lógica. Esta vontade é vista por Beatriz Sarlo como uma utopia que vem movendo a história, dentro de uma mudança maior, chamada por ela de giro subjetivo.

Essa virada subjetiva viria desde as décadas de 1970 e 1980, junto com o chamado giro linguístico e estaria introduzindo na pesquisa histórica acadêmica as dimensões da rememoração da experiência, a revalorização da primeira pessoa. Nesse caminho, a valorização da história oral e dos testemunhos como acesso diferenciado a dimensões da experiência. (SARLO, 2012, p. 23-24)

Baseados nesses caminhos apontados por Dosse, Sarlo, Ricouer e outros,

podemos também olhar com atenção para nossa pesquisa e dialogar com esses

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movimentos recentes da historiografia, buscando entender em que ponto nossas preocupações tocam problemáticas da história enquanto campo. Nesse momento, o conceito de campo de Pierre Bourdieu aparece como uma noção importante, tanto para compreendermos os movimentos da historiografia, seus avanços e recuos, como para olharmos nossos temas de pesquisa, as configurações de grupos, para além das ações individuais. Dessa forma, podemos relacionar alguns conceitos de Bourdieu como de campo e habitus, assim como as reflexões que ele faz sobre a atividade biográfica ou a ilusão biográfica.

Por mais que os conceitos de Bourdieu tenham um alcance mais estrutural, e não dialoguem diretamente com a perspectiva do singular e subjetivo que estamos nos aproximando aqui, eles são importantes nesse momento da nossa pesquisa e das reflexões sobre a historiografia contemporânea. A partir dele, podemos estabelecer um diálogo entre a ação individual e o coletivo, entre aquilo que o indivíduo encontra estabelecido e aquilo que ele institui, cria. Com relação à configuração de campos artísticos, por exemplo, o autor coloca:

Tal passo é necessário para que se possa indagar não como tal escritor chegou a ser o que é, mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma determinada época e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus socialmente constituído, para que lhes tivesse sido possível ocupar as posições que lhe eram oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e, ao mesmo tempo, adotar as tomadas de posição estéticas ou ideológicas objetivamente vinculadas a estas posições. (BOURDIEU, 2009, p.190)

Com relação à Ilusão biográfica, Bourdieu chama a atenção para a construção de

trajetórias individuais supostamente lineares e organizadas e que pressupõem

identidades estáveis e coerentes. As considerações do autor são importantes para

pensarmos a pretensão da totalidade na pesquisa e considerarmos a multiplicidade da

experiência, bem como a parcialidade do nosso próprio acesso ao passado. Além do

mais, quando vamos escrever uma biografia, nos deparamos com uma variedade de

relatos e com um, em especial, que provavelmente exercerá grande fascínio sobre nós: a

autobiografia.

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O relato em primeira pessoa, do próprio sujeito da experiência tem o poder de revelar para nós uma dimensão de “verdade” que nunca será substituída pela nossa escrita. Se não tomarmos cuidado, corremos o risco de reproduzir a fala do biografado, nada acrescentando com nossa narrativa e respondendo questões que o próprio relato autobiográfico se propõe a dar conta muito melhor do que nós. Ou, ao contrário, podemos cair na pretensão arrogante de negar a experiência do biografado, atribuindo- nos um olhar conclusivo e julgador para com o passado e vivências do outro, o que nos empobrece e esvazia enquanto historiadores.

Assim, a compreensão da especificidade da fala na primeira pessoa é essencial ao biógrafo para estabelecer a relação com o indivíduo biografado e dialogar, então, com aquela preocupação a que Beatriz Sarlo se refere, de entender o passado a partir de sua própria lógica. E sabemos que boa parte do fascínio de um relato de vida, se deve à força dessa comunicação direta, o relato da experiência. Para Dosse:

A fonte autobiográfica tem, é certo, uma importância capital porque dá ao biógrafo a ilusão de penetrar no âmago da personagem e chegar bem perto d sua intencionalidade. O uso de “memórias”, confissões ou registros autobiográficos é adotado de formas diversas nas biografias; dá a entender que se está mais próximo da restituição autêntica do passado. Acha-se na origem de um “efeito do real” surpreendente (...). (DOSSE, 2009, p. 68)

E ressalta:

Por outro lado, escrevem-se sempre biografias novas das mesmas personagens, o que não apenas se deve à descoberta de documentos inéditos, como se explica pelo surgimento de questões novas, de novos paradigmas interpretativos, e também pela intuição e imaginação do biógrafo – ou seja, por sua capacidade inventiva. (DOSSE, 2009, p. 68)

Assim, nos perguntamos, como achar o ponto em que a fala do biografado

encontra com a nossa, de maneira não especificamente harmônica, mas onde uma não

anule a outra? É uma questão, assim como tantas outras que colocamos nesse texto e

que não temos a intenção de resolver agora, mas propor para a reflexão e lembrarmos no

momento da escrita do trabalho biográfico. Situar nossa escrita nesse ponto de

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confluência, de coexistência entre nós e o outro, entre aquilo que somos e dizemos sobre o passado e o que o outro fala da sua própria experiência, eis a arte do biógrafo.

Outro ponto importante é também a própria noção de sujeito, noção através da qual podemos encerrar e sufocar nosso “outro” biografado. Mencionamos anteriormente que procuramos não trabalhar com categorias pré-definidas, que possam dar margem a explicações que reduzam, ao invés de ampliar as possibilidades narrativas sobre uma vida. E a nosso ver, Paul Ricouer apresenta um conceito que vem nos ajudando a pensar nessas questões: o de identidade narrativa.

Essa noção de Ricouer nos foi apresentada no texto da pesquisadora Isabel Cristina Moura Carvalho, quando ela se refere às interpenetrações da história e da ficção, pela ficcionalização da história e a historicização da ficção. Segundo ela, o conceito de identidade narrativa de Ricouer é importante para não encerrarmos o sujeito em uma identidade estável e, para o próprio autor, ele é entendido como “o frágil rebento oriundo da união da história e da ficção” (RICOUER apud CARVALHO, 2003, p. 290). Essa noção nos ajuda a pensar também o efêmero, a multiplicidade de relatos, a transitoriedade e os diferentes aspectos que o passado assume nos relatos do presente. E nos ajuda, também a estabelecermos uma relação mais satisfatória, a nosso ver, com a fala da autobiografia, à medida que Ricouer coloca:

O sujeito mostra-se então constituído ao mesmo tempo como leitor e escritor de sua própria vida. Como a análise literária sobre a autobiografia verifica, a história de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa reconfiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas. (...) a identidade narrativa não é uma identidade estável e sem falhas; assim como é possível compor várias intrigas acerca dos mesmos incidentes – os quais com isso já não merecem ser chamados de os mesmos acontecimentos – assim também é sempre possível tramar sobre sua própria vida intrigas diferentes e até opostas.

(RICOUER apud CARVALHO, 2003, p.291)

Dessa forma, a noção de identidade narrativa encontra alguns dos desafios

colocados por Dosse na construção dos percursos biográficos, bem como dialoga com o

giro subjetivo de Beatriz Sarlo e a consideração do fragmentário, do não linear na

experiência humana. Dessa forma, quando pensamos nas experiências de Cícero Dias e

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o acesso que teremos a elas a partir de relatos e outros tipos de registros, estamos atentos também ao que é lacuna, ao que é vazio, ao que pode ser silêncio e descontinuidade, ao que pode nos surpreender e deslocar o rumo da narrativa, levando em consideração, com Arlette Farge que:

Na atualidade, ora trágica, ora melancólica, há lugares para a história que permitem confrontar o passado e o presente, interrogando de outra forma os documentos e os acontecimentos, buscando articular o que desaparece com o que aparece. (FARGE, 2011, p. 9)

Arlette Farge, inclusive, é mencionada no livro de François Dosse como uma autora que empreendeu uma nova forma de exploração da singularidade a partir de pequenos traços de identidade. Segundo Dosse, Arlette Farge, na sua pesquisa em arquivos judiciários do século XVIII, encontra pistas menores, fragmentos parciais que poderiam parecer insignificantes: braçadeiras de pergaminho ou papel amarrados ao punho dos sujeitos pesquisados, com fitas vermelhas. Retomando a noção de Michel Certeau de que o historiador é um poeta do detalhe, a pesquisadora se detém no que poderia passar despercebido, oculto, e esses pequenos traços serão fios condutores da história que ela irá escrever sobre essas pessoas. Desconstruindo o exotismo do detalhe, ele passa a ser fundamental na sua narrativa (DOSSE, 2009, p. 300).

Os fragmentos ou detalhes significativos remetem à oralidade, segundo Dosse, e também aproximam a história da memória e da experiência. Dessa forma, se tem acesso a registros de memórias que já não fazem parte da memória comunicativa - aquela definida por Aleida Assmann como a que liga até três gerações consecutivas pela oralidade – e nem mesmo teriam condições de assumir um status e legitimidade de fonte que constituísse a memória cultural de um grupo (ASSMANN, 2011, p. 17). São detalhes aparentemente esquecidos e que dependem de uma virada no olhar do historiador para considerar as diferentes contribuições dos registros que encontra, bem como a importância que eles podem ter na renovação de paradigmas históricos.

Essas reflexões nos chamam a atenção também para o lugar do presente ao olhar

o passado. Faz-nos refletir sobre o que estamos buscando nas experiências passadas e o

que consideramos ou deixamos de lado na construção de nossas versões para elas. Ao

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estudar Cícero Dias enquanto um artista importante na configuração de um campo artístico modernista, sua atuação, suas propostas, o que ele considerava importante e como colocou isso em prática, atentamos para as questões que, no presente, se colocam para artistas e intelectuais na realização de seus sonhos, de seus trabalhos.

Invariavelmente, vamos fazer nossas perguntas ao passado.

Avaliar certas questões nos faz pensar sobre a importância que damos a uns ou outros registros e nos faz ver a parcialidade do nosso conhecimento e da narrativa que vamos construir. Aleida Assmann, ao trabalhar com a memória e a reconstrução do passado, cita uma colocação de Italo Svevo importante para pensarmos as flutuações das memórias comunicativa e cultural e do conhecimento histórico, bem como da eterna resignificação das experiências passadas:

O passado sempre é novo. Ele se altera constantemente, assim como a vida segue em frente. Partes da vida que parecem ter afundado no esquecimento reaparecem, enquanto, por outro lado, outras afundam por serem menos importantes. O presente conduz o passado como se este fosse membro de uma orquestra.

Ele precisa desses tons somente e de nenhum outro. Assim, o passado parece às vezes curto, às vezes longo; às vezes soa, às vezes cala. Só influenciam no presente aquelas partes do passado que tenham a capacidade de esclarecê-lo ou obscurecê- lo (SVEVO apud ASSMANN, 2011, p. 21 ).

Se hoje temos a sensibilidade de olhar para os fragmentos e aceitar uma diversidade muito maior de registros sobre o passado, talvez seja porque a complexidade do nosso presente está nos exigindo, enquanto pesquisadores, um olhar mais amplo e, ao mesmo tempo, menos totalizante da experiência humana, o que pode parecer paradoxal. A virada subjetiva e os desafios que se colocam ao historiador no momento presente aparecem, a nosso ver, como renovação de uma perspectiva racionalista e centrada na ação. Vem abrindo espaços, já há algum tempo, para tudo aquilo que escapava do olhar ordenador do historiador tradicional e renovando as perspectivas historiográficas. Seja com relação às indagações e elaborações narrativas, seja pela construção dos percursos metodológicos e diversificação das fontes.

Nesse sentido, é interessante que o gênero biográfico volte em questão para ser

repensado, rediscutido a luz de tantas contribuições teóricas e metodológicas, possa ser

ampliado a partir de uma noção de indivíduo que não seja unívoca. Possa atender ao

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desejo de reconhecimento que temos a partir da experiência do outro. Entendemos também, que o próprio reconhecimento das pluralidades possa fazer o historiador mais ciente do seu lugar social, na perspectiva de Michel de Certeau (CERTEAU, 1982), como alguém responsável por mais uma narrativa sobre o passado, parcial e incompleta, dentre tantas outras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

BARROS, Natália Conceição da Silva. Arquivos da vida, arquivos da história: as experiências intelectuais de Joaquim Inojosa e os usos da memória do modernismo. 2012, 269 f. Tese (Doutorado em História). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.

BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

CARVALHO, Isabel Cristina Moura. Biografia, Identidade e Narrativa: elementos para uma análise hermenêutica. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 9, nº 19, p. 283-302, julho de 2003.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.

FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

REZENDE, Antonio Paulo. (Des) encantos Modernos: histórias da cidade do Recife na década de vinte. Recife: Fundarpe, 1997.

__________. Ruídos do Efêmero: histórias de dentro e de fora. Recife: Editora da UFPE, 2010.

RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.

SARLO, Beatriz. Tiempo Pasado: cultura de La memória y giro subjetivo. Uma discusión.

Buenos Aires: Siglo veintiuno, 2012.

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