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A ESCRITA BIOGRÁFICA: REFLEXÕES ACERCA DAS POSSIBILIDADES NARRATIVAS
RAQUEL CZARNESKI BORGES Universidade Federal de Pernambuco raquel.czarneski@gmail.com
As profundas mudanças pelas quais vêm passando a pesquisa histórica e a historiografia, mais ou menos desde a década de 1960, estão, paulatinamente, colocando para os historiadores novas formas de ver o mundo, ampliando noções e conceitos, introduzindo dimensões da vida humana até então secundárias na pesquisa científica e suscitando diferentes metodologias. Da crítica aos paradigmas tradicionais, do estruturalismo e da história serial e quantitativa, voltou-se a atenção aos elementos culturais, às trajetórias individuais e experiências cotidianas. Essas dimensões passaram a ter importância fundamental na pesquisa histórica, em grande proximidade com os chamados Estudos Culturais.
Com relação, especialmente, aos estudos biográficos, François Dosse vai salientar que a significativa mudança começa a acontecer no início dos anos 1980.
Segundo ele, as ciências humanas, em geral, e os historiadores, em particular, redescobrem as virtudes de um gênero até então ignorado, considerado pouco reflexivo.
São ressaltados o poder de evocação e a ilusão de conexão direta com o passado que a biografia carrega, suscitando nos leitores presença e envolvimento com seus
“personagens”. Dessa forma, a escrita biográfica ganha um novo fôlego dentro da historiografia, atestando seu inegável potencial de comunicação com um grande público e o permanente desejo do ser humano de se compreender através do outro.
Nesse percurso, as trajetórias de vida ou biografias ressurgiram a partir de novos
interesses, colocando problemáticas diferentes do que se considerava o trabalho
biográfico tradicional. A partir de influências da sociologia, antropologia, psicanálise e
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literatura, o gênero biográfico se instituiu na historiografia contemporânea, buscando a complexidade das experiências, a partir dos percursos e relações de um indivíduo, transgredindo, assim, o que François Dosse chamou de o tabu desse gênero de pesquisa e escrita. De acordo com o autor:
Os tempos atuais são mais sensíveis às manifestações da singularidade, que legitimam não apenas a retomada de interesse pela biografia como a transformação do gênero num sentido mais reflexivo (...). A pergunta sobre o que é o sujeito e os processos de subjetivação alimenta essa renovação da escrita biográfica, que a nosso ver já entrou na era hermenêutica, a da reflexividade (DOSSE, 2009, p. 229).
A força do singular e do individual no contemporâneo vem fazendo, então, com que se busque renovar o gênero biográfico, introduzindo novas questões à pesquisa.
Dessa forma, a ênfase não está mais nas estruturas e categorias sociais, onde o indivíduo era um componente, tampouco a história de uma pessoa é tratada como exemplar para a compreensão de uma experiência. Não se buscam as estruturas despersonalizadas, e não se quer também o sujeito fora de suas relações, o excepcional. Como fazer, então, para que essas dimensões dialoguem? Esse é um dos desafios da escrita biográfica hoje e um pouco do que nos motiva na escrita desse texto e nas reflexões sobre as possibilidades narrativas das biografias na contemporaneidade.
A narrativa entra em questão e toma um aspecto fundamental em nossas reflexões, pois é a partir dela que criamos as histórias; é através dela que damos vida ao passado e, assim, o reinventamos a partir do nosso olhar. Para Rezende, “querer narrar e não desistir de narrar assegura a continuidade dos tempos históricos. Podemos manter- nos vivos por meio da narrativa dos outros, como também reinventamos o mundo”
(2010, p. 27). Ao nos propormos escrever uma biografia, buscamos estar conscientes da dimensão que pode adquirir nossa narrativa de historiadores, nos situando num universo de diferentes falas sobre uma vida, onde pretendemos incluir mais uma. E sendo assim, não devemos perder de vista, o que Rezende salienta quando diz:
O historiador tem também um toque de imaginação no seu
ofício. Não cabe a ele reproduzir o passado como ele realmente
aconteceu, mas ele não é um ficcionista. Desenhamos nossos
caminhos dentro de territórios múltiplos, de fronteiras móveis e
frágeis. (REZENDE, 1997 p. 14)
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A aproximação da história com a literatura também ajudou a colocar em foco a questão da narrativa para os historiadores e a estreitar os laços entre ciência e ficção. Se a ordenação factual deixa de ser importante e a cronologia não orienta tanto a nossa perspectiva de tempo, nos voltamos para a dimensão imaginativa de nosso trabalho.
Têm-se a clareza que a história se escreve sempre a partir do presente, num constante ato de criação. O historiador, então, se depara com o poder instituinte da sua própria narrativa e começa a pensar nas muitas possibilidades de contar e recriar o passado por meio da sua escrita. O trabalho do biógrafo se assemelha, então, ao do romancista.
Afastamos-nos da ilusão do real e começamos a valorizar a criação de significados a partir de nossa escrita, refletindo sobre como contar uma história e para quem. Sobre essa dimensão da reflexão historiográfica e da narrativa, Paul Ricouer se dedica profundamente em sua obra Tempo e Narrativa. Articulando as noções de tempo, narrativa e experiência, buscamos pensar sobre a tarefa de escrever uma vida.
Ricouer nos fala que “o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.” (1994, p.15)
Em nossa pesquisa, estamos caminhando por esse território um tanto incerto da escrita biográfica. Considerando as mudanças pelas quais o gênero vem passando, nos propomos a analisar as trajetórias artísticas e intelectuais de Cícero Dias
1, e sua construção de redes, relações com outros em Recife, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e a configuração do modernismo no Brasil. O interesse não é estudar Cícero Dias para explicar o modernismo ou vice-versa, mas ver como os caminhos são construídos e como os indivíduos também se constroem neles. Buscamos não fechar esses conceitos e ir em busca da sua própria construção – tanto do artista Cícero Dias, como do movimento modernista. Essa preocupação aparece para que uma dimensão não se sobreponha à outra e dê espaço a explicações ou conclusões reducionistas.
1 Artista plástico, nascido na cidade de Escada, Zona da Mata de Pernambuco, em 1907. Filho de uma