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A EVOLUÇÃO DAS IDÉIAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CÉREBRO, COMPORTAMENTO E COGNIÇÃO

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torno do déficit de atenção/hiperatividade, esquizofrenia, dislexia) ou ser adquiridas ao longo do curso da vida (p. ex., traumatis-mo cranioencefálico, acidente vascular ce-rebral, demências).

As aplicações da neuropsicologia têm aumentado significativamente, à medida que progridem os conhecimentos nas di-versas disciplinas que lhe são caudatárias. Cada vez mais ela é chamada a resolver problemas que se apre-sentam na prática clíni-ca de neurologia, psico-logia, psiquiatria, peda-gogia, geriatria, fonoau-diologia, etc. Além disso, a neuropsicologia tem expandido suas áreas de atuação e sua interface com outras áreas do co-nhecimento, como a filosofia e as ciências exatas (as novas áreas de aplicação da neuropsicologia serão discutidas no último capítulo deste livro).

Conforme salientado por Kolb e Wi-shaw (1995), mesmo sendo uma discipli-na científica recente, o desenvolvimento dos pilares da neuropsicologia ocorreu ao

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A EVOLUÇÃO DAS IDÉIAS SOBRE

A RELAÇÃO ENTRE CÉREBRO,

COMPORTAMENTO E COGNIÇÃO

Ramon Moreira Cosenza Daniel Fuentes Leandro F. Malloy-Diniz

A neuropsicologia é um campo do co-nhecimento interessado em estabelecer as relações existentes entre e o funcionamen-to do sistema nervoso central (SNC), por um lado, e as funções cognitivas e o com-portamento, por outro, tanto nas condições normais quanto nas patológicas. Ela tem na-tureza multidisciplinar, apoiando-se em fun-damentos das neurociências e da psicolo-gia, e visa ao tratamento dos distúrbios cognitivos e

comporta-mentais decorrentes de alterações no funciona-mento do SNC.

A neuropsicologia, na atualidade, tem uma ampla gama de aplica-ções na prática de pes-quisas e na área clínica, que são freqüentemente

de natureza multiprofissional. O neuropsi-cólogo atua, principalmente, na avaliação (exame neuropsicológico) e no tratamen-to (reabilitação neuropsicológica) das con-seqüências de disfunções do sistema ner-voso. Essas disfunções, por sua vez, podem estar relacionadas ao desenvolvimento anormal do sistema nervoso (p. ex.,

trans-A neuropsicologia é um campo do conhecimento interessado em es-tabelecer as relações existentes entre e o funcionamento do siste-ma nervoso central (SNC), por um lado, e as funções cognitivas e o comportamento, por outro, tanto nas condições normais quanto nas patológicas.

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longo de vários séculos, partindo da busca pela compreensão sobre a relação entre o organismo e os processos mentais até o estágio atual, em que buscamos compre-ender como o sistema nervoso modula nos-sas funções cognitivas, comportamentais, motivacionais e emocionais.

Embora atualmente pareça um truís-mo a concepção de que, em nosso organis-mo, o sistema nervoso relaciona-se com comportamento e processos mentais, na verdade foram necessários vários séculos para que essa idéia se tornasse sólida e aplicável à prática clínica.

Esclarecer como o corpo se relaciona com os processos mentais e comportamen-tais é uma questão que desperta interesse há milênios. Na Antigüidade, em diferen-tes culturas, diversas teorias tentaram lo-calizar a alma no corpo humano. Não se sabe precisamente quando a associação en-tre a atividade cerebral e a mente come-çou a ser feita. No entanto, achados paleon-tológicos de crânios pré-históricos trepana-dos ainda em vida indicam que o homem das cavernas já procurava intervir no cére-bro, possivelmente na tentativa de liberar os maus espíritos que o atormentavam.

No Egito, embora vigorasse a idéia de que o coração era a sede da alma e o órgão controlador dos processos mentais, há uma das primeiras evidências documentadas em favor da idéia de que o cérebro se relacio-na aos processos mentais. No papiro de Edwin Smith, escrito há cerca de 3 mil anos e atribuído ao médico Imhotep, encontram-se diversos relatos clínicos, entre eles o de um paciente com alterações da linguagem decorrentes de ferimento localizado no osso temporal. Uma segunda associação, provavelmente casual, também foi origina-da de uma civilização que acreditava ser o coração a sede da alma: a hebraica. Na Bí-blia, no livro de Daniel, é descrito um so-nho do rei Nabucodonosor em que ele se refere a imagens atemorizantes que vinham de sua cabeça.

Cabe salientar que, na Antigüidade, muitos povos eram adeptos da hipótese

car-díaca (como é chamada a crença de que a mente está associada ao coração). Na Grécia essa noção encontrou seus primeiros oposi-tores formais, entre eles Alcmaeon de Crotona (500 a.C.), que formulou a hipóte-se de que os processos mentais estariam as-sociados à atividade cerebral. Essa idéia não era aceita tranqüilamente, e outro filóso-fo, Aristóteles (384-322 a.C.), cuja obra se tornou mais influente, era um opositor veemente dessa idéia. Para Aristóteles, no coração estaria a base da mente, enquanto o cérebro seria uma espécie de radiador, com a função de resfriar a temperatura sangüínea.

Paralelamente às diferentes tendên-cias filosóficas, as observações clínicas como as de Hipócrates (460-400 a.C.) e Ga-leno (130-200 d.C.) foram determinantes para a solidificação da hipótese cerebral. Ao longo dos tratados médicos reunidos no Corpus Hipocraticus e nos relatos de Galeno, médico dos centuriões romanos, a lesões cerebrais são atribuídas alterações da personalidade, do comportamento e da capacidade de raciocínio. É bom lembrar que, embora saibamos que o coração não controla os processos mentais, nossa cul-tura popular carrega ainda hoje marcas desse dilema da Antigüidade Clássica.

Além do dilema cérebro versus cora-ção, registre-se, também, outra fonte de con-fusão. Desde as primeiras observações anatômicas, era evidente que o cérebro é composto por tecido e por cavidades, os ventrículos cerebrais. Os ventrículos chama-vam muito a atenção dos primeiros anato-mistas, pois o cérebro não fixado aparecia apenas como uma geléia amorfa. Acredita-va-se, então, que nos ventrículos cerebrais circulavam fluidos, ou espíritos, que seriam importantes na regulação do comportamen-to. Para Galeno, esses espíritos eram deri-vados do processamento dos alimentos no fígado e na corrente sangüínea e armaze-navam-se nos ventrículos cerebrais. Dali eles podiam viajar através dos nervos, conside-rados como estruturas ocas, provocando mo-vimentos e mediando sensações.

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Essa concepção, chamada hipótese ventricular, foi amplamente aceita nos sé-culos seguintes, obtendo a aprovação da Igreja Católica. Durante a maior parte desse período os ventrículos são representados como sendo três, em que o primeiro seria responsável pelas sensações; o intermedi-ário, pela razão e pelo pensamento; e o último cuidando da memória.

René Descartes (1596-1650), um dos expoentes da filosofia ocidental, também conferiu aos espíritos circulantes nos ven-trículos uma importância no processo de controle comportamental. Para ele, a mente seria adimensional e imaterial, mas ela deveria interagir com o corpo por meio de uma estrutura, a glândula pineal, que por sua vez poderia controlar os comportamen-tos, reflexos ou não, por meio de uma ação regulatória sobre a circulação dos espíri-tos animais.

As evidências sobre a importância do parênquima cerebral foram se acumulando aos poucos, tanto do ponto de vista anatô-mico quanto clínico. O anatomista Andreas Vesalius (1514-1564), por exemplo, em seu tratado De humani corporis fabrica, argu-mentou que o que diferenciava os huma-nos dos outros animais era o volume de te-cido cerebral e não o tamanho dos ventrí-culos cerebrais. Posteriormente, Thomas Willis (1621-1675), além de atribuir papel crucial ao tecido cerebral, propôs que a ori-gem dos conceitos e do movimento estaria no cérebro, sugerindo que a imaginação estaria associada ao corpo caloso. Ao final do século XVIII, as duas correntes teóricas – ventricular e tecidual – ainda conviviam lado a lado, e só o desenvolvimento da ci-ência moderna veio comprovar o acerto da segunda.

Tendo o cérebro se consolidado como o ór-gão responsável pelos processos mentais e pelo comportamento, surgiu o problema de saber se essas funções poderiam ser decorrentes do

fun-cionamento de diferentes áreas da sua ana-tomia. Nascia o debate entre os holistas e os localizacionistas. Para os primeiros, não haveria especificidade regional no cérebro, que controlaria o comportamento atuando como um todo. Os segundos acreditavam que o cérebro atua de forma fragmentada, e cada uma de suas regiões seria responsá-vel por uma função mental e comportamen-tal específica.

Entre os localizacionistas, vale men-cionar a teoria elaborada por Franz Joseph Gall (1757-1828) e muito difundida por seu aluno, Johann Gaspar Spurzheim (1776-1832). Essa teoria ficou conhecida como frenologia – embora tenha sido de-nominada inicialmente organologia (Zola-Morgan, 1995) – e tinha como pressupos-tos básicos as seguintes afirmações:

1. cada região do cérebro constitui-se em um “órgão” responsável por uma função mental ou comporta-mental específica;

2. cada região do cérebro se desen-volve de forma a moldar a super-fície craniana;

3. se uma região é bem desenvolvi-da, ela cresce em volume, refletin-do esse crescimento no desenvol-vimento do crânio.

A partir dessas hipóteses, Gall e Spur-zheim inferiram que, ao analisar a superfí-cie do crânio, seria possível saber se uma função mental é bem desenvolvida ou não. Após estudarem centenas de crânios, che-garam a um modelo em que atribuíram ao cérebro 35 diferentes “órgãos”. Dentre eles estariam áreas compartilhadas entre ho-mens e outros animais, como a área da co-ragem e do instinto car-nívoro, além de outras áreas especificamente humanas, como as rela-cionadas à sabedoria, ao senso de metafísica, à sátira, ao talento poéti-co, etc.

Tendo o cérebro se consolidado como o órgão responsável pelos processos mentais e pelo compor-tamento, surgiu o problema de sa-ber se essas funções poderiam ser decorrentes do funcionamento de diferentes áreas da sua anatomia.

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A frenologia acabou por ser rechaça-da na comunirechaça-dade científica, por apresen-tar falhas em praticamente todas as suas hipóteses constituintes. Nessa mesma épo-ca, o fisiologista francês Pierre Flourens (1794-1867), a partir de lesões provoca-das em sujeitos animais, concluiu que não importaria a área da lesão, mas a quanti-dade de material cerebral lesionado. Para ele, qualquer área do cérebro poderia as-sumir, com ou sem redução de sua eficiên-cia, funções que estavam em uma outra área danificada. No início século XX, o psi-cólogo canadense Karl Lashley (1890-1958) reforçou esses dois princípios teó-ricos, dando a eles os nomes de principio da ação de massa e equipotencialidade, res-pectivamente.

O pêndulo da história voltou a favo-recer os localizacionistas em meados do século XIX. Isso se deu quando Paul Broca (1824-1880), entre 1861 e 1863, apresen-tou à Sociedade Parisiense de Antropolo-gia a descrição de cerca de nove pacientes, vítimas de lesões nos lobos frontais do he-misfério cerebral esquerdo, que apresen-tavam uma síndrome caracterizada por comprometimento maciço na produção da fala e relativa preservação da compreen-são da linguagem. A síndrome foi nomea-da afasia de Broca, e a área nomea-da lesão foi chamada área de Broca, passando a ser conhecida como o “centro funcional da lin-guagem”. Posteriormente, o neurologista alemão Carl Wernicke (1848-1904) descre-veu pacientes que tinham um tipo de lesão diferente daqueles descritos por Broca e que, por sua vez, também apresentavam comprometimento de suas habilidades lin-güísticas. Esses pacientes tinham lesão no córtex temporal do hemisfério cerebral es-querdo e apresentavam dificuldade na compreensão da linguagem, quadro que passou a ser nomeado como afasia de Wernicke. Essa descrição de uma nova área relacionada à linguagem impulsionou ain-da mais a noção de que o cérebro seria composto por diversos centros funcionais, cada um responsável por uma função

men-tal específica. Além disso, Wernicke cha-mou a atenção para o fato de que as fun-ções cerebrais poderiam também ser com-prometidas pelas lesões nas conexões en-tre regiões cerebrais diferentes. Assim, pos-tulou a existência de outro distúrbio da lin-guagem, a afasia de condução, que seria originada por lesões no fascículo arquea-do, responsável pela conexão entre a área de Broca e a de Wernicke.

No início do século XX, pesquisado-res experimentais de renome, como Karl Lashley, após estudos com animais, publi-caram dados desanimadores sobre a possi-bilidade de localização de funções, como a memória, em regiões cerebrais circunscri-tas. No entanto, começaram a surgir evi-dências e teorizações que iriam dar corpo à neuropsicologia que hoje conhecemos. Dentre essas, iremos destacar algumas que nos parecem importantes.

No final dos anos de 1940, Walter Hess (1881-1973) criticou a noção de “cen-tro” nervoso e propôs que as diferentes ati-vidades dependem de uma “organização” cerebral. Atividades mais complexas recru-tariam, proporcionalmente, um maior nú-mero de estruturas, que intervêm no pro-cesso. Na mesma época, a partir dos estu-dos de James Papez (1883-1958) e Paul MacLean (1913-), evoluía o conceito de “sistema límbico”, um conjunto de estru-turas cerebrais interconectadas, que se re-velava importante para o processamento das funções emocionais e sua integração com a vida de relação. Nos anos 1950 o neurocirurgião William Scoville (1906-1984) publicou o caso de um paciente – amplamente conhecido na literatura neu-ropsicológica como paciente “H.M.” – sub-metido à remoção bilateral do hipocampo e das amígdalas para tratamento de um grave quadro epiléptico e que, após a ci-rurgia, desenvolveu uma incapacidade maciça de aprender novas informações. Fi-cava claro que processos mentais impor-tantes, como a aprendizagem e a memó-ria, dependiam da integridade de centros nervosos específicos e suas conexões.

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Nos últimos anos, o advento das téc-nicas de neuroimagem veio possibilitar a confirmação de fatos já conhecidos, bem como acrescentar novas evidências que ampliam extraordinariamente as possibili-dades de correlação entre as funções cognitivas e o funcionamento cerebral.

O localizacionismo, no entanto, só viria a ser superado por um novo conceito de função, algo tentado por vários cientis-tas, entre os quais se salienta o neuropsicó-logo soviético Aleksandr Luria (1902-1977), cujo modelo é hoje amplamente reconhecido e aceito, embora já com mo-dificações que precisam levar em conta, en-tre outros fatos, a assimetria da função ce-rebral, hoje mais profundamente compre-endida.

Luria (1980) postula um novo con-ceito de função, exercida por “sistemas fun-cionais” que visam à execução de uma de-terminada tarefa (a tarefa é constante, mas os mecanismos para executá-la podem ser variáveis). Funções mais elementares po-deriam ser localizadas, mas os processos mentais geralmente envolvem zonas ou sistemas que atuam em conjunto, embora se situem, freqüentemente, em áreas dis-tintas e distantes do cérebro.

Para Luria, pode-se distinguir no cé-rebro três grandes sistemas funcionais. O primeiro regula a vigília e o tônus cortical e depende de estruturas como a formação reticular e áreas do sistema límbico. O se-gundo se encarrega de receber, processar e armazenar as informações que chegam do mundo externo e interno e está situado em áreas do córtex cerebral localizadas posteriormente ao sulco central. Ele orga-niza-se em áreas corticais primárias, secun-dárias e terciárias. Já o terceiro sistema regula e verifica as estratégias comporta-mentais e a própria atividade mental, é constituído pelo córtex cerebral situado nas regiões anteriores do cérebro e organiza-se, também hierarquicamente, em áreas corticais primária, secundária e terciária (ver Capítulo 2).

O monumental trabalho de Luria in-cluiu o desenvolvimento de uma bateria completa para o exame neuropsicológico, que influencia ainda hoje boa parte dos testes usados na atividade cotidiana dos neuropsicólogos. A bateria de Luria, junta-mente com a bateria Halstead-Reitan, foi muito usada em meados do século XX, quan-do se preconizava aquela abordagem abrangente para o exame neuropsicológico. Da bateria de Luria derivam outras, como a Luria-Nebraska e o teste de Barcelona, ca-pazes de trazer uma ampla informação so-bre o funcionamento das funções cognitivas e que têm ainda utilidade, embora o arse-nal de testes neuropsicológicos tenha se tor-nado mais específico e se multiplicado de forma exponencial nos anos mais recentes.

REFERÊNCIAS

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Cosenza, R. M. (1996). Evolução das idéias sobre as funções cerebrais. Revista Médica de Minas Gerais, 7(1), 45-51.

Cytowic, R. E. (1996). The neurological side of neuro-psychology. Cambridge: MIT.

Finger, S. (1994). Origins of neuroscience: A history of explorations into brain function. New York: Oxford University.

Kolb, B., Wishaw, Q. (1995). Fundamentals of human neuropsychology. New York: W. H. Freeman. Luria, A. R. (1980). Higher cortical functions in man. (2nd ed.). New York: Basic Books.

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Scoville, W. B., Milner, B. (2000). Loss of recent memory after bilateral hippocampal lesions. 1957. The Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neuros-ciences: Official Journal of the American Neuropsy-chiatric Association, 12(1), 103-113.

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