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Vista do Memórias do subsolo. A utopia da autorreflexão e da liberdade em Dostoiévski

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Academic year: 2021

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Memórias do subsolo: a utopia da autorreflexão e da

liberdade em Dostoiévski

Jonathan Florentino da Silva

Pós-Graduando em Ensino de Inglês: Abordagens Contemporâneas (UFMG). Graduado em Letras com habilitação em Português e Inglês e Respectivas Literaturas (UNIFATEA)

João Francisco Pereira Nunes Junqueira

Doutorando em Estudos Literários pela UNESP/Araraquara - bolsista Capes. Professor do UNIFATEA.

Resumo

Autor-filósofo e explorador da existência, Dostoiévski reafirma em Memórias do Subsolo paradoxos dos quais a humanidade ainda não se vê livre. O narrador-personagem nos leva a questionamentos acerca da verdade, remete-nos a um delírio de consciência através de sua abstinência de si mesmo como se olhasse para outro eu, leva-nos ao subsolo como se isso fosse matéria de sua pura liberdade e nos engana por sua frieza. Durante toda a obra existe seu conflito pela liberdade de existir no mundo. Se nos primeiros momentos temos um homem seguramente mau, isso vai se desmanchando e remontando, em um processo cíclico, até que sua liberdade é desfeita por força maior - sua (in)consciência. Temos, então, a utopia da autorreflexão e da liberdade.

Palavras-chave

Memórias do Subsolo; Dostoiévski; Utopia. Autorreflexão; Liberdade.

Abstract

Author-philosopher and explorer of existence, Dostoevsky reaffirms in Notes from Underground paradoxes humanity hasn’t got rid of yet. The narrator-character leads us to questions about truth, takes us to a consciousness’ delirium through his abstinence of himself as he would look at other self, takes us to the underground as that was a matter of his pure freedom and fools us by his coldness. During the whole plot there is his conflict for freedom of being in the world. If in the first moments we have a man definitely mean, that goes away and comes back, in a cyclical process, until his freedom is undone by stronger force – his (un)consciousness. We have, then, the utopia of self-reflection and freedom.

Key words

Notes from Underground; Dostoevsky; Utopia; Self-reflection; Freedom.

Introdução

Escrita em um cenário de extrema sensibilidade, o pré-morte de sua primeira mulher, e publicada em 1864, Memórias do Subsolo mostra-se até o momento uma obra sólida e ímpar da literatura mundial (SCHNAIDERMAN, 2009). Como em outras de suas obras, Dostoiévski explora um ângulo pelo qual se vê a miserável condição humana e, de modo magistral, lança o leitor em indagações acerca da existência, da relação com o mundo, do poder da consciência sobre o existir e do inconsciente. Entendida como uma prefiguração das ideias de inconsciente desenvolvidas por Freud, Memórias do Subsolo apresenta-se, como disse Nietzsche, “a voz do sangue”. O que fala essa voz? E por que tamanha propriedade e liberdade de falar? Podemos acreditar em suas autorreflexões?

Quanto ao enredo, gira em torno de um homem de quarenta anos, civil aposentado, morador da cidade de São Petersburgo, Rússia. A obra é basicamente um compilado de

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memórias que o narrador despeja ao papel, em sucessivos solilóquios em que ocorrem uma autodescrição e uma chuva de críticas e paradoxos. A primeira impressão do leitor é, geralmente, a de uma tentativa de comoção por parte desse narrador, ideia muitas vezes refutada na narração. Assim, na primeira parte (O Subsolo), o narrador mostra-se imerso em si e perdido em suas reflexões e formas de ver a humanidade – ao mesmo tempo em que critica o progresso, critica o atraso; critica a ciência e também a superstição (SCHNAIDERMAN, 2009). Esse momento é repleto de sucessivas afirmações e negações desse narrador-personagem. Já na segunda parte (A propósito da neve molhada), temos um encontro com situações do passado desse homem, das quais não temos certeza, mas tidas por ele como legítimas e que nos levam a mergulhos em temas substanciais para discussões filosóficas, psicológicas e sociais que emergiriam grandemente nos anos futuros.

Quanto ao narrador-personagem mais especificamente, temos um homem declaradamente odioso por sua existência. “Sou um homem doente… Um homem mau.” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 15). Será isso mesmo? O fato é que os paradoxos lançados desde o começo da novela levam-nos a crer em tal verdade, mas descobrimos mais adiante que não há tal verdade, há autorreflexões das quais não podemos ter absoluta verdade, visto que o próprio narrador provoca seu leitor e desmente o que acaba de postular como legítimo. Entretanto, de fato temos um homem que odeia a vida que vive e seu subsolo, criticando a sociedade e o humano. Apesar de viver em um canto isolado desse mundo criticado, é capaz de entendê-lo com uma sensibilidade admirável. Se o ritmo do encadeamento das ações cria a tensão do quadro clínico do nosso narrador-personagem, é o poder da palavra que o faz existir em si e para si, de outro modo não se sentiria vivo, como o próprio declara ao escrever suas notas. Escreve-as por escrevê-las, como modo de existir. Mais adiante esse ódio e esse poder da palavra oscilam entre seu reconhecimento e contato com os outros - a autorreflexão começa a sofrer interferências dos outros na construção da existência de um eu. Nesses cenários com os outros temos interações diversas, como imposição de desejos, negociação, ressentimento, memórias que acabam por contribuir para o crescimento do ódio do narrador acerca da existência. Uma das passagens mais críticas da obra, parece-nos, ocorre quando o narrador nos revela que o que mais lhe atormentava era uma consciência de que no fundo não era mau, e isso servia-lhe de motivação para assim o ser. Mais uma vez, paradoxal e preso em julgamentos dos quais não conseguia se abster. Bom ou mau? Livre? Capaz de autorrefletir? Tais questões nos levaram a estudar o homem do subsolo em suas formas de conceber a si mesmo e o mundo.

1. A consciência: mergulhos em Nietzsche

Partindo do ponto de que consciência refere-se à clareza cognitiva, ou seja, aos fluxos mentais que o homem é capaz de discernir e ter acesso, pergunta-se: como legitimar tais fluxos? Até que ponto um homem pode confiar em suas memórias e reflexões sobre a verdade? Temos, assim, o problema da legitimidade dos fluxos de consciência. Ora, ao assim pensar e tecer reflexões acerca da consciência, há um tema relevante nas propostas de Nietzsche. O filósofo, em sua obra Além do Bem e do Mal, inicia por postular os perigos de uma consciência da verdade. Nas palavras do autor:

O amor pela verdade que nos conduzirá a muitas perigosas aventuras, essa famosíssima veracidade de que todos os filósofos sempre falaram respeitosamente — quantos problemas já nos colocou! (NIETZSCHE, 2001, p. 11).

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O que Nietzsche está fazendo é criticar o homem quanto à sua constituição de filósofo em acreditar severamente em suas próprias conclusões. Segundo o referido autor, o preconceito dos filósofos em relação à dúvida é um fenômeno comprometedor para a análise da consciência. Um pouco mais à frente, no mesmo aforismo, revela: “Se acabássemos, por esgotamento, sendo desconfiados e impacientes, que haveria de estranho?” Em outras palavras, a que se compromete a verdade a não ser consigo mesma? Ao comprometer-se, por esgotamento, à crítica de si, pode tender a não-verdade. Desse modo, Nietzsche não enxerga perdas em desconfiar de uma verdade. Chegando ao ponto de esfacelar essa ideia de verdade, ele diz: “Que parte de nós tende ‘para a verdade?’” Sua maestria atinge o ponto de jogar com verdades universais, desafiando: “Quem é Édipo aqui? e quem é a Esfinge? Encontramo-nos frente a uma encruzilhada de questões e problemas.” Parece-nos que Nietzsche está clamando por algo a mais, além da complexidade da verdade de uma consciência. A encruzilhada para ele é um emaranhado de conflitos descritos como questões e problemas. Acabamos por desafiar a verdade em seu âmago filosófico. Nietzsche conclui esse aforismo retomando o risco de se afrontar a verdade e, em suas palavras: “E parece, afinal de contas, que não foram colocados até agora, que fomos os primeiros a percebê-los, que nos atrevemos a confrontá-los, já que implicam um risco, talvez o maior dos riscos.” (NIETZSCHE, 2001, p. 11).

Já que a verdade associa-se à consciência, surge a problemática da coexistência de inverdades e isso se torna nítido nas análises de Nietzsche. Para ele, verdades opostas são inconcebíveis por parte desse homem filósofo quando se fala em consciência. Em sua fala, o autor expõe certa indignação ao pensar que a mente humana não é capaz de suportar o fenômeno das coisas opostas às coisas. Para ele:

Nossas mentes rechaçam a ideia do nascimento de uma coisa que pode nascer de uma contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do verdadeiro da vontade do erro; o ato desinteressado do egoísmo ou a contemplação pura do sábio, da cobiça. Tal origem parece impossível: pensar nisso parece próprio de loucos. (NIETZSCHE, 2001, p.11).

A partir dessas reflexões, o autor indaga a origem das verdades sublimes, apontando que este mundo efêmero e miserável não pode ser o berço de tais verdades. Para ele, este mundo é um complexo de frustrações e ilusões. À impossibilidade de conceber uma lógica, acaba por liberar o pensamento de que é na “coisa em si”, no “seio do ser” o lugar de tais explicações. O “deus oculto” do ser a que Nietzsche faz menção seria uma parte humana tão restrita e arraigada ao ser-núcleo que nem o próprio ser pensante em si consegue explorar. Em uma metáfora, seria como se essa “coisa em si” fosse um mar em plena escuridão e o observador humano fosse o ser pensante que, ao acender um farol, ilumina parte desse mar, uma pequena fração dele, e consegue observá-lo. O observador chamaremos de ser pensante; o ponto iluminado, consciência; o mar, a inconsciência.

Outra crítica que nos salta aos olhos tem relação com a metafísica e seus estudos. Nietzsche ataca seus pensadores como preconceituosos em relação ao estudo de uma verdade, intitulando esse comportamento como uma “crença” típica dos metafísicos. O filósofo diz claramente: “A partir desta ‘crença’ esforçam-se em alcançar um ‘saber’, criam a coisa que, afinal, será pomposamente batizada com o nome de ‘verdade’” (NIETZSCHE, 2001, p. 12). Nietzsche propõe o oposto disso, a libertação da necessidade de criação de verdades absolutas, propõe o conceitual do talvez:

[...] mas há quem se preocupe com esses perigosos 'talvez'? Esse, terá que esperar a chegada de uma nova espécie de filósofos, diferentes em gostos e inclinações a seus predecessores: filósofos do perigoso 'talvez', em todos os

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sentidos da palavra. Falo com toda sinceridade, pois vejo a vinda desses novos filósofos... (NIETZSCHE, 2001, p.12).

Por meio de todos esses apontamentos, a ideia de uma consciência dominante já não faz mais sentido. Visto que, para Nietzsche, a consciência corresponde à menor fatia da força da mente, e que ela pode variar de acordo com a oscilação da "luz" nos fluxos de inconsciente, chegamos a um ponto de não-verdade. A questão é: o que oscila esse fluxo de luz no inconsciente? Nietzsche traz algumas considerações, como:

Terminei por acreditar que a maior parte do pensamento consciente deve incluir-se entre as atividades instintivas sem se excetuar a pensamento filosófico. Assim como o ato do nascimento tem pouca importância relativamente ao processo hereditário, assim também o "consciente" não se opõe nunca de modo decisivo ao instintivo. A maior parte do pensamento consciente de um filósofo está governada por seus instintos e forçosamente conduzido por vias definidas. Atrás de toda lógica e da aparente liberdade de seus movimentos, há valorações, ou melhor, exigências fisiológicas impostas pela necessidade de manter um determinado gênero de vida. (NIETZSCHE, 2001, p.12).

Esse pequeno trecho está claramente nos mostrando que uma ação de cunho consciente, embora pautada em um ideal de liberdade, é movida por forças que excedem a consciência, itens que Nietzsche chama de valorações, exigências fisiológicas como a necessidade de existência. Em outras palavras, nenhuma ação consciente "livre" pode abster-se de amarras existenciais.

2. O discurso dostoievskiano: arte e filosofia

Dostoiévski é, indubitavelmente, um romancista-filósofo por excelência, com obras capazes de convergir arte, técnica e realidade, ou, de modo mais preciso, trazer ao campo da discussão o homem, a linguagem e a filosofia, intrinsicamente conectados. Ao pensar nesses aspectos, Bakhtin (2013), logo no início de sua obra Problemas na Poética de Dostoiévski, destaca:

Ao tomarmos conhecimento da vasta literatura sobre Dostoiévski, temos a impressão de tratar-se não de um autor ou artista, que escrevia romances e novelas, mas de toda uma série de discursos filosóficos de vários autores e pensadores: Raskólnikov, Míchkin, Stravróguin, Ivan Karamázov, o Grande Inquisidor e outros. Para o pensamento crítico-literário, a obra de Dostoiévski se decompôs em várias teorias filosóficas autônomas mutuamente contraditórias. Entre elas as concepções filosóficas do próprio autor nem de longe figuram em primeiro lugar (BAKHTIN, 2013, p. 8).

Nesse trecho temos conceitos-chave para a composição do discurso de Dostoiévski. O autor, com romances polifônicos e personagens emblemáticos (BAKHTIN, 2013), tece a dialética do existir de modo tão ímpar que seus desdobramentos são vistos por vários campos da análise científica. Tratando mais de perto da poética e escrita de Dostoiévski, Bakhtin (2013), na mesma obra, ao resgatar estudos de Grossman, discorre:

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Segundo Grossman, a base da composição de cada romance de Dostoiévski é o 'princípio das duas ou várias novelas que se cruzam', que completam pelo contraste umas às outras e estão relacionadas pelo princípio musical da polifonia (BAKHTIN, 2013, p.48).

Ao tratar dessas "novelas que se cruzam", Bakhtin reitera um item essencial para o estudo da obra de Dostoiévski: o discurso dostoievskiano é plurivocal. Esse apontamento explica o fato de as personagens do romance disporem de vozes independentes entre si, extraordinariamente capazes de argumentar e fundamentar ideologias que se afastam de uma postura absoluta por parte do autor, que se afastam de uma verdade absoluta. O romance, então, chega ao patamar de personagens totalmente contraditórias que se apresentam fortemente estruturadas. Por isso, não há verdade absoluta no discurso dostoievskiano. Bakhtin observou ainda que os fluxos de consciência das personagens são equivalentes, ou seja, não há superioridade uma vez que não há subordinação às condições do autor. Ainda que os acontecimentos se unam em um enredo, acabam por manter distância uns dos outros. Outro ponto observado refere-se à ausência de conclusão nas obras e a superação dialética é algo que não acontece. Dada a multiplicidade de consciências e suas complexidades, essas apenas interagem em filosofias contraditórias que não se limitam ou concluem. Em síntese, o discurso não é apoteótico.

Entretanto, o estudo das vozes não é tão simples como evidenciado pelo próprio Bakhtin. O referido autor traz críticas às propostas de interpretações que se limitam a uma personagem ou uma determinada voz, com o objetivo de apresentar uma filosofia exclusiva da obra ou até mesmo especular se determinadas posturas referem-se a uma filosofia pessoal de Dostoiévski. Em suas palavras, Bakhtin (2013):

Devemos aprender não com Raskólnikov ou com Sônia, com Ivan Karamázov ou Zossima, separando as suas vozes do todo polifônico dos romances (e assim deturpando-as): devemos aprender com o próprio Dostoiévski como criador do romance polifônico (BAKHTIN, 2013, p. 41).

O que acontece, tido como problema por Bakhtin, é uma interpretação que ignora a integralidade da obra, de sua filosofia maior, de um complexo orgânico que é a obra por si. Importa ressaltar que Bakhtin condena também uma análise estritamente biográfica que desconsidera o trabalho artístico do escritor. O que Bakhtin nos diz é que não podemos sem danos separar o autor-pessoa do autor-artista, ou seja, o filosófico do poético, uma vez que a essência do discurso de Dostoiévski pressupõe de ambas as faces.

Agora que chegamos ao ponto de conceber o discurso de Dostoiévski como arte e filosofia, colocamo-nos a responder a seguinte questão: o que é a filosofia dostoievskiana? Acerca disso, Bakhtin (apud ENGELGARDT, 2013, p. 25) nos diz que Dostoiévski "não escreveu romances de ideias, romances filosóficos, mas romances sobre ideias". Chegamos aqui a um embate que nos confirma o que Bakhtin previamente disse sobre a indissociabilidade da obra como arte e filosofia. Ora, se a obra assim é, como pode ser analisada apenas como filosofia? Deve-se analisar o conjunto e seu processo de criação. Quanto a isso, Bakhtin traz à tona que Dostoiévski "não criava as suas ideias do mesmo modo que as criam os filósofos ou cientistas: ele criava imagens vivas das ideias auscultadas, às vezes adivinhadas por ele na própria realidade [...]". A partir dessas formas de criação, surgem concepções filosóficas que movem a obra dostoievskiana, como a abordagem de casos gerais e também específicos, o dialogismo fortemente apresentado por meio do outro na formação

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do eu, o inacabamento, o autorreconhecimento, a polifonia como parte integrante de um plano filosófico (BAKHTIN, 2013). Desse último aspecto falaremos um pouco mais.

Bakhtin (2013) aponta para a polifonia não apenas como forma composicional do discurso, em sua forma de conceber a narrativa, mas também para sua conexão com um plano filosófico em escala macro, acompanhando a obra como um todo. Tomando mais uma vez a ideia de indissociabilidade de arte e filosofia, dizemos que os aspectos constitucionais da obra também estão coerentes com a proposta filosófica. Nisso temos a polifonia como exemplo. Uma vez que essa é tida estruturalmente pela pluralidade de vozes arranjadas harmonicamente, mas contraditórias, temos seu outro lado, o filosófico. A obra é filosoficamente ampla, capaz de criticar uma filosofia e adotá-la mais adiante, capaz de apresentar duas filosofias que se mostrem convincentes e discutam. Em todo o tempo, Dostoiévski está amarrando às suas técnicas estruturais as filosóficas. Desse modo, entramos em outra margem relevante na obra, a da constituição das personagens. A formação de ideias não se mostra aleatória, abstrata, porém apresenta-se diretamente relacionada à constituição existencial das personagens. Não há apenas ideias impostas pelo autor a uma personagem, tampouco alegorias isoladas, mas a construção de uma visão de mundo complexa e seus conflitos enquanto existência (BAKHTIN, 2013).

3. O discurso dostoievskiano: a ficção como pensamento

Uma boa maneira de entender Dostoiévski é pensar no mesmo como um romancista sobre ideias, como bem apontou Bakhtin. No que tange tal entendimento, Schnaiderman (1994) retoma esse parecer e afirma que a obra dostoievskiana foi uma contribuição decisiva para a evolução das ideias.

Aliás, ao tratar da escrita como crítica, Schnaiderman (apud MANN, 1994) entende Dostoiévski como um "filho do pensamento, da ideia, do espírito" (p.241). Porém, um acréscimo essencial refere-se ao fato de Dostoiévski, mesmo que romancista sobre ideias, operar sempre com o homem concreto, situado, encarnado em uma personagem com voz e identidade. Mesmo ao defender um teor estético e artístico, Dostoiévski volta-se ao estado de vida e dialogismo. Isso reafirma sua habilidade em englobar arte e filosofia.

Na criação de suas personagens, há evidente contribuição da filosofia e a solidez dessas advém de discussões existenciais. Nesse aspecto, Schnaiderman (1994) toma como exemplo o Raskólnikov de Crime e Castigo, um "personagem-ideólogo por excelência" (p. 242), cujo crime é justificado por um respaldo filosófico-existencial, uma revelação perfeitamente lógica, ou, como dito pelo próprio Dostoiévski, "um crime teórico" (SCHNAIDERMAN apud KARIÁKIN, 1994, p. 242).

Outra exemplificação se dá na novela Memórias do Subsolo em que o narrador, encontrando-se em um bordel com uma prostituta e com ela dialogando, põe em cena os conceitos de belo e sublime. "A cena toda é uma representação assombrosa da dissonância entre o ético e o estético: a bela pregação sai dos lábios de um pregador que não tem nada de belo" (SCHNAIDEMAN apud NAZIROV, 1994, p. 243), destacou Schnaiderman, mostrando que um tom de sarcasmo ronda a narrativa de Dostoiévski, em tom provocativo às ideias de Kant1.

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4. Adentrando as memórias do subsolo

Tratando da obra em si, tomamos por análise uma sequência em três partes: na primeira, temos a caracterização do homem do subsolo nos aspectos o ser, o discurso e a consciência; na segunda, os aspectos o ser, o outro, o discurso e a consciência. Na fase final de resultados, discorremos acerca da condição de limites da liberdade e da autorreflexão, chegando ao conceito de utopia.

4.1 O ser, o discurso e a consciência

Na primeira parte da obra, intitulada O subsolo, temos o narrador-personagem relatando suas contradições no momento em que escreve suas memórias. O anti-herói (SCHNAIDERMAN, 2009, p.8) define-se no mundo como sendo alguém mau, doente, isolado, preso em si. Ressaltamos que nessa primeira parte da obra o autor não nos fornece respaldos longos acerca das razões de se considerar mau, mas faz uso apenas de palavras que teima por empregar repetidamente. Entretanto, em alguns momentos, retorna e pontua sua enganação para o leitor, como se a situação não fosse bem assim. Nessas contradições, temos uma característica marcante de Dostoiévski: a polifonia. Analisemos o primeiro momento de introdução à obra:

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos [...] Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.15).

Observemos que a primeira afirmação refere-se a um ponto de autoconhecimento do narrador-personagem: “sou um homem doente... um homem mau”, como que se estivesse certo disso e não deixasse brechas. Entretanto, o discurso começa a se modificar quando usa o verbo “creio” ao se referir à sua doença, iniciando um tom de incerteza, até que declara não saber ao certo sobre a própria doença. Assim, começa declarando-se doente e chega a apontar incerteza sobre isso. Então, sua imposição de autoconhecimento é vista novamente ao mencionar que não se trata e nunca se tratou por raiva, reforçando seu poder de escolha sobre si mesmo. Temos, aí, o primeiro grito por direito à liberdade de existência. Em seguida, provoca o leitor, dizendo-lhe que esse não deve compreender suas razões de não se tratar, mas ele mesmo as entende, e acaba por colocar a opinião do leitor à parte de suas próprias, reafirmando novamente sua liberdade de si para si, sem a interferência do outro em si. No fim, apresenta sua dor do fígado como algo minimalista, dizendo que este pode doer-lhe ainda mais, o que nos traz o sentido de existência palpável para esse narrador, isto é, a concretude de sua liberdade de não se tratar se confirma na consequência de sua dor do fígado, é seu troféu de direito à liberdade de ser quem é.

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indiferente ao leitor, mas o provoca, acaba por se mostrar preocupado com as concepções por ele construídas. Parece, em excertos assim, que o discurso se molda para atingir o interlocutor, como no trecho a seguir:

Não vos parece que eu, agora, me arrependo de algo perante vós, que vos peço perdão?... Estou certo de que é esta a vossa impressão... Pois asseguro-vos que me é indiferente o fato de que assim asseguro-vos pareça... (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 16-17)

A voz do homem do subsolo ressoa no trecho acima de modo paradoxal e novamente volta-se ao leitor. Se o narrador-personagem é indiferente ao leitor, por que a necessidade de incomodar-se com explicações? Poucas linhas à frente, esse narrador preocupa-se novamente com o leitor e ataca-o, questionando-o, dizendo “Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizer-vos: os imbecis e os canalhas", como forma de enfatizar sua desnecessidade em relação ao leitor – questiona-lhe, mas mostra saber a resposta. Logo mais, aborda o leitor mais ferozmente quando afirma “Vou dizê-lo na cara de todo mundo! Tenho direito de falar assim, porque eu mesmo hei de viver até os sessenta! até os setenta! até os oitenta!...” Nesse ponto, mais do que tentativa de enfatizar sua indiferença, o narrador toma para si o direito de argumentar, toma a liberdade de ser como acho justo sê-lo. Porém, em seguida, já acaba por se mostrar perdido em seus fluxos de consciência, solicitando “Um momento! Deixai-me tomar fôlego...”.

Outro trecho relevante é o seguinte:

Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 17).

Retomando a metáfora da consciência como um feixe de luz em um mar de escuridão, tem-se aqui a mudança do ponto de iluminação do mar, ou seja, sua consciência mudou o foco. Se antes tínhamos um homem seguramente mau e portador de certo autoconhecimento, agora temos outro totalmente longe de sua existência definitiva, autorrefletindo acerca de sua impossibilidade de tornar-se mau, o que acredita ser. Ao chegar nesse momento de desconhecimento, conforma-se às regras do subsolo e perde o tato acerca de sua liberdade, antes por ele entendida como em suas mãos, e incita-se a um consolo de que no mínimo é inteligente a ponto de compreender seu desconhecimento. Ora, antes víamos um homem seguro a não tratar sua doença e conformado em ser mau, agora vemos o mesmo não mais se vendo mau e seguro de sua inteligência. A questão que fica é: qual de seus fluxos de consciência traz a verdade? Bem, não há uma verdade, há fluxos de consciência que falam de verdades que se contrariam e, como apontado por Nietzsche (2001), “Nossas mentes rechaçam a ideia do nascimento de uma coisa que pode nascer de uma contrária” e, nesse caso, temos a vontade da verdade de uma vontade da inverdade, ou “[...] a verdade do erro; a vontade do verdadeiro da vontade do erro” (NIETZSCHE, 2001). Nietzsche chegou a afirmar que tal contrariedade seria impossível e matéria para a loucura, e Dostoiévski mostra-nos o nível subterrâneo de um alguém com fluxos de consciência capazes de coexistirem em verdades opostas.

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filosófico, põe em cheque a filosofia do belo e do sublime e mostra-se reflexivo acerca de tal aspecto. Ao citar a consciência, busca convencer o leitor de que está a par e seguro de suas próprias formulações de verdade, experimentadas no subsolo. Nesse ponto, tem-se:

Digam-me o seguinte: por que me acontecia, como se fosse de propósito, naqueles momentos – sim, exatamente naqueles momentos em que eu era capaz de melhor apreciar todas as sutilezas do ‘belo e do sublime’, como outrora se dizia entre nós -, por que me acontecia não apenas conceber, mas realizar atos tão feios, atos que [...] bem, numa palavra, atos como os que todos talvez cometam, mas que, como se fosse de propósito, me ocorriam exatamente nos momentos em que eu mais nitidamente percebia que de modo algum devia cometê-los? Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo o que é ‘belo e sublime’, tanto mais me afundava em meu lodo, e tanto mais capaz me tornava de imergir nele por completo. Porém o traço principal estava em que tudo isso parecia ocorrer-me não como que por acaso, mas como algo que tinha que ser. Dir-se-ia que este era meu estado normal [...]. (DOSTOIÉSKI, 2009, p. 19).

Ao mencionar que a consciência do belo e do sublime lançava-o em seu lodo, o narrador expõe-se de modo a explicar ao leitor suas causas de estar como está. Vemos que ele volta a recuperar o controle de si e postular uma verdade da qual sua existência depende. Parece-nos que há uma verdade absoluta mais uma vez, um sentido de compreensão do próprio eu a partir do estudo do que está em volta, uma filosofia. Porém, no começo dessa passagem há uma posição de questionamento ao leitor e uma retomada de vozes. O diálogo com o leitor começa por “digam-me o seguinte”, sendo que mais uma vez a interação com o interlocutor é solicitada, demonstrando o poder da palavra sobre a pessoa do narrador. A retomada das vozes do passado se dá por “como outrora se dizia entre nós”, como que uma experiência social usada para produzir uma reflexão. Confuso e questionador no começo, porém certo de algo logo em seguida – uma mudança brusca. Temos uma vez mais um tom paradoxal. E a verdade? Estaria o narrador confuso no momento passado e agora com uma verdade absoluta ou assumindo uma verdade no momento exato em que sua consciência fala e escreve? Tratando o solilóquio em seu tom subterrâneo, o escape da personagem do belo e do sublime elucida uma desorganização de valores, ou uma mescla de fluxos de consciência, caso que se confirma por outra declaração paradoxal de um narrador que se diz desempenhar o “último dos papeis”, sendo “herói ou imundície” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 71).

4.2. O ser, o outro, o discurso e a consciência

Traremos agora algumas análises acerca da segunda parte da obra, A propósito da neve molhada. Focaremos aqui na relação do narrador-personagem com os outros e a partir desses relatos teremos alguns apontamentos em seu discurso e seus fluxos de consciência.

Logo no início desta parte, deparamo-nos com um relato de quando nosso anti-herói tinha ainda 20 anos. Ao contar sobre suas relações, ele nos diz:

Não me dava bem com ninguém, evitava até conversar, e cada vez mais me encolhia em meu canto. No emprego, na repartição, forçava-me a não olhar para ninguém; mas notei muito bem que meus colegas não só me consideravam um tipo original, como até – tinha esta impressão continuamente – pareciam olhar-me com certa aversão (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 55-56).

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A primeira leitura de si mesmo nos traz um traço antissocial e sua tendência a manter-se fechado ao manter-seu canto, ou manter-seu subsolo, o que adiante manter-se concretizaria mais fortemente. Porém, destacamos o trecho “forçava-me a não olhar para ninguém”. Nessa ideia, o verbo forçar traz à tona uma relevante discussão, já que forçar indica induzir operando contra a vontade de alguém para efetuar algo. Assim, soa como se a liberdade de não interagir com os outros não fosse apenas um atributo de nossa personagem, mas uma imposição de si mesmo sobre suas formas de relacionar-se para atingir um estado de encolhimento. Ele acaba por nos trazer suas impressões de como os outros o concebiam e, reforça que isso era contínuo; entendia um sentimento de aversão por parte dos outros. Mais à frente, o narrador nos presenteia com sua leitura atual acerca do passado e diz:

Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 56).

A confissão expressa aqui faz todo sentido com o que estamos apontando: a verdade da personagem mudou, temos outra em cena. Se falamos que a autorreflexão não pode se abster de uma análise imersa no olhar dos outros, aqui temos o inverso que também se afirma, mostrando que o modo como o narrador pensa que os outros o veem está imerso no modo como ele se vê. Não há separação entre o eu e o outro quanto a seu modo de existir. Quem é que pode nos garantir que essa nova verdade perdurará e em nada sofrerá alterações? Isso aconteceria apenas se seus fluxos de consciência mantivessem o mesmo padrão e não houvesse outro feixe de luz em outra direção de seu inconsciente. E, claro, mais uma vez o tom paradoxal se manifesta e a ideia de verdades cooperando, expressa por Nietzsche, pode ser vista.

Atentemos agora para outra passagem:

Está claro que odiava todos os funcionários da nossa repartição, do primeiro ao último, e desprezava-os a todos, mas, simultaneamente, como que os temia. Acontecia-me até colocá-los acima de mim. Sucedia o seguinte: ora desprezava alguém, ora colocava-os acima de mim [...] Mas, quer desprezando, quer colocando as pessoas acima de mim, eu baixava os olhos diante de quase todos que encontrava. Fiz até algumas experiências: tolerarei sobre mim o olhar deste aqui, por exemplo? E era sempre o primeiro a baixar os olhos. Isso me torturava até o enfurecimento. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 57).

Há ideias-chave aqui para nossa discussão. Primeiramente, o misto de sensações que o narrador relata acerca dos outros, mas nisso não nos estenderemos nesse texto, atentaremos para o fato de os outros serem odiados, postos acima de si mesmo, e sua atitude de baixar os olhos reflete sua tentativa de grito à liberdade. Temos, mais uma vez, o embate de nosso homem para assumir o controle em uma situação em que se sentia ameaçado pelos outros. Seu grito de liberdade atinge outra vez um tom existencial, de toque de realidade, por meio de seu comprometimento com uma experiência social para conhecer-se a si mesmo. Esse é um passo gigante para o existencialismo que se desenvolveria e tomaria mais forma nos anos vindouros. Voltando a nosso homem, sua experiência acabou por convencê-lo de que sua existência influenciada pelos outros o incomodava a ponto de sentir uma “tortura até o enfurecimento”. Esse é um trecho em que nitidamente vemos a força dos outros no modo como se moldava a

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existência desse homem. É o “forçar” que previamente expusemos.

Seguindo seus relatos, chegamos a um ponto em que há o retorno ao poder do autoconhecimento e nosso narrador toma partido em definir-se, dizendo “eu era um covarde e um escravo” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 57). Retornamos ao ponto em que a narração sugere um convencimento de que sua existência é entendida e aceita, de modo que a personagem justifica-se por apresentar a ideia de que todos os homens de sua época assim também o são, chegando a defender-se como um homem decente já que “todo homem decente de nossa época é e deve ser covarde e escravo” (p. 57), e fundamenta sua teoria assegurando que essa é “a lei da natureza”. Percebemos aqui um paradoxo novamente, em que o narrador define-se e aponta que todos os homens devem ser de um modo, mas que o são por natureza. Pois bem, se assim o são por natureza, de onde vem o “forçar” de sua covardia e escravidão? Parece-nos que os conceitos estão distantes e, como vemos claramente, as conclusões a que este homem chega por meio de sua reflexão vão se desmanchando e remontando de acordo com o que sua consciência o traz de respaldo. Assim, cabe-nos afirmar que sua autorreflexão não é puramente fruto de suas frias análises de si, mas influenciadas por um compilado de fatores que o rodeiam. O próprio narrador nos dá pistas desses fatores no trecho a seguir:

Torturava-me então mais uma circunstância: o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. ‘Eu sou sozinho e eles são todos’, dizia de mim para mim, e ficava pensativo. (DOSTOIEVSKI, 2009, p. 58).

Essa é mais uma evidência dos fatores que influenciam a tomada de consciência da personagem, e temos aqui a introdução de uma circunstância de percepção de mundo – existencial. O sujeito encontra-se isolado em sua existência e não consegue ver-se nos outros, apesar de preocupar-se com esses. Ao dizer que essa percepção é um fato, o narrador pressupõe segurança sobre o que diz, de modo que não deve ter pensado no caso levianamente, mas sim com certo empenho, afirmando isso ao dizer que permanecia pensativo. O que acontece, entretanto, é que sua incapacidade de reconhecer-se nos outros não exclui nossa proposta de que os outros estavam presentes em suas reflexões, uma vez que se não houvesse essa indiferença dos outros, não haveria nem mesmo questionamento. O que estamos dizendo é que a indiferença dos outros no modo como ele próprio se concebe é uma influência em suas reflexões e, portanto, pensar que o homem do subsolo autorrefletia com base em suas filosofias isoladas parece-nos uma ideia distante. Ele estava imerso nos outros. Acerca dessa incapacidade, o narrador mostra-se sutilmente consciente, e lança “isso mostra que eu ainda era completamente garoto” (p. 58). Essa pequena fala nos coloca frente a dois momentos que provam o movimento de seu feixe de luz (consciência): antes não se via nos outros, agora em momento de narração observa a ingenuidade de sua consciência naquele primeiro estágio. Ele mesmo nos explica isso apontando sua volatilidade:

Mas, de súbito, sem mais nem menos, vinha uma fase de ceticismo e indiferença (tudo me acontecia por fases) e eu mesmo passava a rir da minha intolerância e das minhas repugnâncias, censurava o meu próprio romantismo. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 58).

O narrador está confirmando nossa teoria: seus processos de autorreflexão se davam por etapas conforme seus fluxos de consciência se moviam e, mais ainda, tais fluxos estavam repletos de vozes dos outros. Disso o narrador mostra-se consciente no tempo agora (narração), chegando a declarar que “A multiplicidade é um fato surpreendente”

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(DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 61). O romance assim vai se alongando em situações de idas e vindas em que o narrador refuta ideias e as traz novamente, em um processo cíclico, de modo que suas reflexões sempre vão se moldando conforme o outro interage com ele e sua consciência grita por posicionamentos.

Chegando ao ponto final da narrativa, nosso anti-herói não se desprende de seu tom paradoxal, mas mostra-se mais preocupado com o leitor de modo a interagir com ele numa tentativa de clarear que a verdade absoluta não pode existir e postula sua filosofia. O homem do subsolo nos diz:

E por que nos agitamos às vezes, por que fazemos extravagâncias? O que pedimos? Nós mesmos não o sabemos. Será pior para nós mesmos se forem satisfeitos os nossos extravagantes pedidos. Bem, experimentai a qualquer de nós as mãos, alargai o nosso círculo de atividade, enfraquecei a tutela e nós... eu vos asseguro, no mesmo instante pediremos que se estenda novamente sobre nós a tutela. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 146).

O narrador agora não fala apenas de si, mas do homem em suas formas de existir, em suas formas paradoxais. Temos aqui não uma verdade sobre a existência, mas uma pluralidade que se remonta e se ressignifica. Assim, uma consciência de existência não pode ser tida como absoluta do mesmo modo que a autorreflexão não se limita a um processo pronto, mas se formula de acordo com o eu, as articulações dos outros e fatores circunstanciais, como apresentado mais acima. Desse modo, onde se encontra a liberdade de existir e autorrefletir? Em suas últimas linhas, como que em um suspiro de alívio, o narrador nos conta:

Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia. Mas chega; não quero mais escrever “do Subsolo”... (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 147).

De modo fabuloso, este homem nos acrescenta com uma perspectiva de que talvez em breve tenhamos algum modo de nascer de uma ideia, ou, em outras palavras, nascer com uma consciência voltada a uma liberdade de existência no mundo e de sobre ela autorrefletir. Por agora, o homem do subsolo em Dostoiévski encontra nisso uma utopia.

Considerações conclusivas: a utopia

Os apontamentos trazidos por essa pesquisa indicam um imenso horizonte a se explorar nas obras de Dostoiévski e nos estudos do ser humano em linhas diversas como a psicologia e a filosofia. Além de valorizar essa obra existencialista atemporal, buscamos destacar as contribuições de Memórias do Subsolo para análises em liberdade e consciência nos romances sobre ideias e sua concepção utópica partindo do princípio do dialogismo e da existência do outro na formação do eu.

Retomando brevemente o que apresentamos, reiteramos o narrador-personagem como um filósofo paradoxal capaz de olhar de si para si e de fora para si, em uma fabulosa reflexão de valores e atributos de existência, na qual Dostoiévski não nos deixou uma resposta real acerca de um homem bom ou mau, já que essa, a nosso ver, não era a questão mais relevante na novela, mas sim o entendimento de que não somos produtos de uma verdade ou uma existência, mas um embate de existências que se moldam e emergem em fluxos de consciência capazes de nos levar ao (des)conhecimento de nós mesmos de um momento a

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outro, sem prévia clareza de um eu. Dostoiévski estava tentando nos mostrar o homem do subsolo em nós, não terminado, imperfeito e reagindo a si e aos outros.

Se o homem do subsolo era paradoxal em níveis clínicos em seu subsolo, somos paradoxais em nossos próprios subsolos, em níveis maiores ou menores de consciência da existência, ou, diríamos, em movimentos memores do farol no mar escuro. Quanto mais ele se move e ilumina outras áreas, mais verdades contraditórias e coexistentes teremos de enfrentar. Isso traz à mente a infelicidade dos homens questionadores que Dostoiévski relutava em apresentar em diversas de suas narrações, como o homem ridículo e Ivan Karamázov. E a tal ponto, quem é livre? Em existência, somos o que somos ou o que desejamos ser? Citando Bakhtin, temos a ideia de que não nos tornamos nós mesmos sem os outros e, por força de existência, encontram-nos no outro à medida que encontramos o outro em nós. Ainda, Bakhtin eleva esse conceito ao pontuar que um olhar no espelho é o olhar do mundo olhando-nos e, ao entendermo-nos, já estamos possuídos pelo outro. Sem muito prolongar, temos aqui a utopia de uma liberdade de existência e de autorreflexão, processos esses que não se isolam do outro no entendimento de uma consciência. Isso Dostoiévski nos mostrou de modo ímpar.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Memórias do Subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. 6ª edição. São Paulo: Editora 34, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Trad. Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus, 2001.

SCHNAIDERMAN, Boris. Dostoiévski: a ficção como pensamento, in Adauto Novaes (org.), Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

---. Prefácio in Memórias do Subsolo, Fiódor Dostoiévski. Trad. Boris

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Referências

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