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Aspectos destacados do acesso à ordem jurídica justa à luz da justiça restaurativa

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

ASPECTOS DESTACADOS DO ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA À LUZ DA JUSTIÇA RESTAURATIVA 1

Aloísio José Rodrigues 2

Resumo: A presente pesquisa analisa aspectos destacados no ordenamento jurídico do Brasil, relativamente ao acesso a ordem jurídica justa frente ao Sistema de Justiça vigente. Objetiva colaborar com a Justiça e a Paz Social. Utiliza, assim, metodologia interdisciplinar, auxiliando-se de instrumentos como Direito e Desenvolvimento e História e Direito e, também, do estudo dos sistemas jurídicos que amparam os cidadãos. Ressalta-se algumas situações em que se processam grandes equívocos na prestação de Serviços direcionados a assegurar integração e cidadania à população; a satisfação das necessidades e exigências da sociedade moderna; e a integração jurídico-social entre os povos, obrigação do Estado Contemporâneo. O trabalho pretende investigar as possibilidades de acesso jurídico como forma de obtenção de Justiça Social. Analisa-se, a função social do Estado Contemporâneo de promover o pleno acesso à uma ordem jurídica justa, e o modo não adversarial de tratar os conflitos via Justiça Restaurativa.

Palavras-chaves: Sistema de Justiça. Conflitos. Acesso Ordem Jurídica Justa. Justiça Restaurativa.

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa objetiva, através de seu marco teórico-conceitual, colaborar na resolução de um problema que afeta, de forma preocupante, a realização de justiça social, mesmo em plena vigência do Estado Democrático de Direito e já ingressados no terceiro milênio. Utiliza metodologia interdisciplinar,

1 Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Sistemas de Justiça:

Conciliação, Mediação e Justiça Restaurativa, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista.

2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduado em: Advocacia e Dogmática

Jurídica e em Relações Internacionais pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Advogado e Professor Universitário. Endereço eletrônico: oisiola2009@hotmail.com.

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auxiliando-se de instrumentos como Direito e Desenvolvimento e História e Direito e, também, do estudo dos sistemas jurídicos que amparam os cidadãos brasileiros. Ressalta algumas situações em que se processam os maiores equívocos no cumprimento dessa obrigação do Estado Contemporâneo.

O tema em epígrafe remete, assim, às ações de integração e promoção de cidadania voltadas à população, empreendidas através de Serviços adequados, eficazes, de qualidade e produtividade, para a satisfação das necessidades e exigências da sociedade moderna. Nesse sentido, pretendendo ser justa, a Justiça tem de ser generosa. E o Direito, para ser reto, deve ter em vista um democrático nivelamento social, ascendente e progressivo, sem o qual não pode haver felicidade para os homens, nem paz para os povos. Assim, além de contemplar ritos processuais e estruturas, impõe-se viabilizar um Estado capaz de resolver conflitos, orientado para as verdadeiras causas sociais, promovendo a integração jurídico-social entre os povos.

Cediço está que o Direito é uma experiência normativa. A obtenção do equilíbrio entre Justiça, validade e a eficácia das normas jurídicas dar-se-á, oportunizando-se a todas as pessoas o acesso a uma ordem jurídica justa.

A impossibilidade do acesso jurídico em tela implica injustiça social. Ao se analisar o ordenamento jurídico do Brasil, verifica-se que existe previsão legal, para o acesso jurídico de todos os cidadãos. Todavia esse ordenamento é insuficiente para atender a grande demanda.

Desta forma, a pesquisa pretende analisar o acesso jurídico das pessoas ao ordenamento jurídico brasileiro; estudar os aspectos de como é tratado o tema no país; investigar as possibilidades de acesso jurídico como forma de obtenção de Justiça e Paz Social, e integração dos povos, especificamente sob o olhar da Justiça Restaurativa.

Como meio de investigar o objeto e de atingir os objetivos propostos, adotou-se o Método Indutivo, com citações do Direito brasileiro. As técnicas de pesquisa empregadas nas fases serão as seguintes: a técnica da Categoria, a

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técnica do Conceito Operacional, da Pesquisa Bibliográfica e Documental das normas legais pertinentes ao tema, da doutrina e da jurisprudência3.

2. A JUSTIÇA RESTAURATIVA E A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE PAZ

Um dos caminhos para a quebra de paradigmas no sistema justiça brasileiro é a Cultura da Paz e todas as ferramentas que a Justiça Restaurativa tem a nos oferecer, para o alcance de um mundo melhor.

O surgimento dos vínculos e laços emocionais entre os membros de um grupo são a verdadeira fonte de sua força. Ou seja, além da força coercitiva da violência, e das demais subjugações aos instintos impostas pelo processo civilizatório, os laços emocionais também são fundamentais para uma comunidade se manter unida.

Algumas das causas de conflitos motivados pelo ódio e pelo asco podem ser atribuídas à falta de conhecimento e de compreensão de um indivíduo para com o outro.

Assim, as novas formas de tratar os conflitos através da Justiça Restaurativa, da Conciliação, da Mediação, da Arbitragem, da Negociação, da Constelação e outras de caráter não adversariais, participativas, compartilhadas, auto compositivas, combinadas, podem ser um momento de encontro, de exposição e revisão de opiniões, ideias, sentimentos e emoções. Momento também de, em um ambiente “seguro” conhecer e reconhecer os papéis exercidos por cada um e por todos na coletividade do fato/ato danoso, pois, fazem os indivíduos/ofensores se notarem como responsáveis por suas maneiras e parte de um coletivo para o qual devem prestar contas do que sua conduta causa ou causou.

É certo que o Estado pode sim intervir, mas não da maneira tradicional, que não comporta mais as resoluções de tantas demandas e conflitos na sociedade.

3 PASOLD, Luiz César. Prática da pesquisa jurídica: ideais e ferramentas úteis para o pesquisador do direito.

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Nesse diapasão, a Justiça Restaurativa surge no contexto de novas percursos para se ter o acesso à ordem jurídica justa como reflexo do aprimoramento e desenvolvimento da sociedade.

Contudo, com esse novo movimento, faz-se necessário demonstrar, especialmente aos acadêmicos dos cursos de Graduação em Direito, os futuros operadores e leitores dos conflitos na sociedade, não apenas a técnica jurídica, mas também a existência e aplicabilidade das variadas formas de resolução de conflitos consensualmente e não consensualmente, além do acesso à Justiça em uma perspectiva material e não meramente formal.

Historicamente o movimento internacional de reconhecimento e desenvolvimento de práticas restaurativas ganhou a devida força no final da década de oitenta. Em 1989, a Justiça Restaurativa foi positivada no ordenamento jurídico de um país (Nova Zelândia), fato que deu notoriedade à metodologia no cenário internacional ao fazer a Justiça restaurativa o centro de todo o seu Sistema Penal para a inf6ancia e juventude4.

A partir dos anos noventa, os programas de Justiça Restaurativa rapidamente se disseminavam mundo afora. Após este percurso, o Conselho Econômico e Social da ONU editou a Resolução no 2002/12, na qual ficaram definidos os princípios e as diretrizes básicas para a utilização de programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal, norma esta que influenciou vários países a adotarem a metodologia restaurativa ou aprimorarem os seus programas, inclusive o Brasil5.

O conceito de Justiça Restaurativa contemplado pela Organização das Nações Unidas (ONU) é aquele enunciado na Resolução no 2002/12, editada pelo seu Conselho Econômico e Social em sua 37a Sessão Plenária, de 24 de julho de 2002, ou seja, Justiça Restaurativa é entendida como uma aproximação, através de um processo cooperativo, que privilegia toda forma de ação, individual ou coletiva, em que as partes interessadas, na determinação da melhor solução, buscam

4 ZERH, Howard. Justiça Restaurativa. Palas Athena Editora com tradução de Tônia Van Acker em 2015, p. 12. 5 Resolução 2002/12 da ONU - PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UTILIZAÇÃO DE PROGRAMAS DE JUSTIÇA

RESTAURATIVA EM MATÉRIA CRIMINAL 37ª Sessão Plenária 24 de Julho de 2002. Disponível em: https://nacoesunidas.org/, acesso em 25 de maio de 2019.

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corrigir as consequências vivenciadas por ocasião da infração, a resolução do conflito, a reparação do dano e a reconciliação entre as partes6.

Nesse viés, a Constituição de 1988 os direitos e garantias fundamentais foram consagrados de forma inovadora. O documento, já em seu preâmbulo, inclui, além dos direitos civis e políticos, também os sociais. Dentre os direitos e garantias fundamentais, a Constituição Federal proíbe as penas cruéis (art. 5º, XLVII, CF/88), e garante ao cidadão-preso o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX, CF/88). O inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, também, assegura a inafastabilidade da jurisdição ou do acesso à Justiça, definindo que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Estes dispositivos, são direitos fundamentais previstos na Carta Magna, em leis e tratados internacionais, têm eficácia e aplicabilidade imediata, e estão baseados no princípio da dignidade humana.

Contudo, o que se observa é que as casas prisionais se transformaram em depósitos de gente. Não se vê preocupação com a pessoa como Ser Humano. Em um país onde o encarcerado não perde somente a liberdade, mas também a dignidade, frente aos métodos utilizados pelo poder punitivo, faz-se necessário o comprometimento da sociedade com a garantia dos Direitos do Humanos essenciais. O direito fundamental à liberdade somente deveria ser arrebatado em casos de delito gravíssimo, em que os riscos à sociedade são incontestáveis, em razão do delito praticado, ou na ausência de alternativo formato de punição.

É secular a injustiça da justiça exercida pelo Estado e praticada e celebrada pela sociedade burguesa e elitista.

A Resolução 125/2010 do CNJ constituiu uma política pública inovadora na forma de tratamento dos conflitos, pelo judiciário, introduzindo mecanismos consensuais como a conciliação, mediação justiça restaurativa, como incentivo à auto composição e pacificação social, através de “métodos adequados de resolução de conflitos” 7.

6 Resolução 2002/12 da ONU - PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UTILIZAÇÃO DE PROGRAMAS DE JUSTIÇA

RESTAURATIVA EM MATÉRIA CRIMINAL 37ª Sessão Plenária 24 de Julho de 2002. Disponível em: https://nacoesunidas.org/, acesso em 25 de maio de 2019.

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O termo ‘métodos adequados de solução de conflitos’ tem sido utilizado na literatura moderna para designar os ‘métodos alternativos de solução de conflitos’. O uso da palavra ‘adequados’ tem o intuito de indicar uma

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As formas extrajudiciais de tratar os conflitos, por intermédio de operadores multidisciplinares, devidamente capacitados para a função de mediação e conciliação, também estão sendo incentivadas no Brasil. Nesse sentido, o Provimento no 67, de 26 de Março de 2018, da Corregedoria Nacional de Justiça, que dispõe sobre os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e de registro do Brasil é um dos novos meios de tratar os conflitos na seara pública.8

Implementar novas formas de acesso ao sistema de justiça e de resolução de conflitos é um passo importante no caminho para o alcance de uma sociedade íntegra. No entanto, ainda vivenciamos um abismo de desigualdades sociológicas que, somente com uma grande transformação conceitual poderá ser modificada.

Vive-se e convive-se, desde muito tempo, com um Sistema de Justiça criminalizatório e fomentador de injustiças, um sistema seletivo e violentador de direitos.

No caso do nosso sistema penal a violência é encarada de forma individual, sem considerar o contexto social conflituoso em que esta foi gerada. A impunidade e a criminalização seguem a lógica das desigualdades nas relações de propriedade e poder.

O contato com os dados do InfoPen escancara a realidade “nua e crua” que viemos produzindo ao longo de séculos de discriminação, preconceito e segregação 9.

Factualmente o teatro do horror carcerário é o retrato de uma sociedade ineficaz na condução de conflitos e na pacificação de sua população.

Em um país, com um sistema penal formal vigente desmoralizado e ultrapassado, a Justiça Restaurativa assume um papel de medida alternativa, mais justa e eficaz, para a maioria dos delitos. Posto que, além de convocar o infrator

escolha consciente por um dos vários métodos possíveis de solução de conflitos. Além disso, é pertinente enfatizar que para a realização de uma escolha consciente devem ser considerados o contexto e as particularidades de cada controvérsia. A expressão é utilizada por Kazuo Watanabe, “Acesso à Justiça e sociedade moderna”, in Participação e processo, Coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988, p. 135

8 Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/provimento-67-cnj-cartorios-mediacao.pdf. Acesso em 23 de

junho de 2019.

9 IPEA – Atlas da Violência 2017. Disponível em:

http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253. Acesso em 25 de maio de 2019.

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para assumir sua responsabilidade pelo mal causado, frente a vítima e toda a comunidade, estabelece meios dignos para o seu resgate e (re)inserção na sociedade 10.

Ainda âmbito criminal, a Justiça Restaurativa recompõe a ordem jurídica com melhores resultados para vítima (pertencimento, auto-estima, dignidade) e ofensor (responsabilização pelo mal causado, reparo e propostas de transformação de sua realidade).

Importante considerar, que a Justiça Restaurativa cabe em qualquer processo judicial ou extrajudicial, cível, penal, empresarial, criminal, consumerista, trabalhista, administrativo, etc. Contudo, existe um caminho necessário de amadurecimento institucional/judiciário e da sociedade para que se torne realidade essa condição.

A forma como a justiça e a sociedade lidam e encaram as “falhas” humanas faz toda a diferença na estrutura dessa sociedade.

Vive-se em um mundo violento, encarcera-se as pessoas para que aprendam a ser mais violentas!

Lida-se com a criminalidade como se ela estivesse distante, como se não fosse “do humano”.

Precisa-se rever os conceitos para, então sim, viver-se uma Justiça por completa e para todos.

As questões de preconceitos, discriminação e desigualdades sociais há muito fazem parte da história do nosso país, talvez originadas na época da colonização e perpetuadas até os tempos atuais.

As atribuições do Estado com a Segurança Pública, com seu aparato de policiais civis e militares atua em um viés pouco ou nada restaurativo no campo da violência urbana ou rural, exercendo um papel de criminalização, punição e encarceramento de infratores e, muitas vezes, concorrendo nas atitudes delituosas.

10 SLAKMON, C., R. DE VITTO, e R. Gomes Pinto, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF: Ministério

da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD). Disponível em: https://www.pucsp.br/ecopolitica/downloads/biblioteca_direito/JustCA_restaurativa_PNUD_2005.pdf. Acesso em 26 de maio de 2019.

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As questões de segurança e enfrentamento das violências devem ser vislumbradas por outras lentes, com um foco mais humanizado e resolutivo.

O encarceramento deve dar lugar a uma justiça voltada para o resgate (ofensor) e reparação de danos (ofendido), numa tentativa clara de ressocialização e reintegração à sociedade, de pessoas que cometeram algum tipo de delito. Essa prática tem que ser universal e absoluta para TODOS, sem distinção de cor, classe social, território, opção sexual.

Deve-se criar políticas e práticas autocompositivas e de resolução anteriores, durante ou depois da judicialização, o que gerará inúmeros benefícios, tanto às pessoas – que terão uma chance de recuperação - quanto ao aparelho estatal de segurança, que poderá ter sua população de encarcerados reduzida 11.

O caminho para uma mudança de paradigmas é longo e sinuoso, para chegarmos a um lugar onde exista uma análise crítica e imparcial da verdade criminal. Há que se rever e reavaliar as proporcionalidades de prisões e penalizações, das culpabilidades e responsabilidades12.

É preciso rever conceitos, valores, direitos e deveres. Precisa-se respeitar os direitos de todos. Para que a reintegração social aconteça o trabalho anterior é imprescindível. Não há como humanizar alguém colocado por anos em uma condição desumana, alguém preso injustamente, massacrado, desamparado, desintegrado.

Tem-se que praticar uma “justiça justa”, imparcial, atenta, respeitosa. Tem-se que reconfigurar a formação dos nossos profissionais do Direito, dos nossos policiais, dos nossos agentes prisionais, dos seres humanos que atuam na resolução dos conflitos e litígios de outros seres humanos.

A punição e o encarceramento não resolve mais (e nunca resolveu) as questões individuais e coletivas que se apresentam ao mundo jurídico. O formato de prender para punir e, talvez, ressocializar, não funciona mais (e nunca funcionou), em um mundo em constante mudança.

11 Relatório Pilotando a Justiça Restaurativa: O Papel do Poder Judiciário, Coordenação e Elaboração

Professora Doutora Vera Pereira de Andrade e Equipe, 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/722e01ef1ce422f00e726fbbee709398.pdf. Acesso em 25 de maio de 2019.

12 SLAKMON, C., R. DE VITTO, E R. GOMES PINTO, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF:

Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD). Disponível em: https://www.pucsp.br/ecopolitica/downloads/biblioteca_direito/JustCA_restaurativa_PNUD_2005.pdf. Acesso em 26 de maio de 2019

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O acesso à ordem jurídica justa tem que ser facilitado, estimulado e concretizado em um caminho de resolutividade, definindo-se resolutividade como o reparo do dano ao ofendido, a responsabilização do ofensor e a co-participação da coletividade.

O Estado, por suas vias judiciais ou não, pode e deve implementar métodos alternativos de resolução de conflitos, tanto nas esferas cíveis quanto criminais, priorizando um processo pacificador.

O enfrentamento das políticas penais de encarceramento perpassa pelo entendimento do crime como resultado de um encadeamento social, como consequência de uma história sociológica coletiva, que teve um desfecho maléfico e deve ser revisto.

A corresponsabilidade do entorno traz compreensão para o antes, solidariedade para o fato e prevenção/proteção à recidiva.

O Direito Penal é praticado pelo Estado, há séculos, de forma retributiva e unilateral, fomentando uma falência, cada vez mais visível, da Justiça Criminal13.

Essa Justiça Retributiva, exercida de forma dogmática, monocultural e excludente, concebe o crime como monopólio estatal e é indiferente às necessidades dos envolvidos (infrator, vítima e sociedade).

Navegando nessas águas turvas, o sistema penal tem como emblema máximo de eficiência, a punição e o encarceramento do infrator, atendendo a uma política enérgica de estigmatização e discriminação generalizadas.

Na esteira das condenações constata-se penas desarrazoadas e desproporcionais, em um regime carcerário desumano, degradante, cruel e criminógeno, ou, em contrapartida, penas alternativas ineficazes, como cestas básicas.

A configuração de uma política social “atrofiada”, em complementariedade a uma política penal “hipertrofiada” das classes menos favorecidas, expõe uma subliminar intenção de preservação e continuidade do status quo de uma classe dominante perversa14.

13 SLAKMON, C., R. DE VITTO, E R. GOMES PINTO, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF:

Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD). Disponível em: https://www.pucsp.br/ecopolitica/downloads/biblioteca_direito/JustCA_restaurativa_PNUD_2005.pdf. Acesso em 26 de maio de 2019.

14 Criminologias [livro eletrônico]: feminismos, mídia e protestos sociais/Katie Silene Cáceres Arguello,

Priscilla Placha Sá, coordenadoras ; Victor Sugamosto Romfeld, Heloisa Vieira Simões, organizadores. -- Curitiba, PR: Editora Virtual Gratuita - EVG, 2018. Disponível em:

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Para legitimar as atrocidades do Sistema de Justiça Retributivo é imprescindível nomear, desnudar e trazer ao sol as barbáries de seus atos.

Se a Constituição de 1988 é axiomática ao dizer que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não há coerência nas prisões que escapam a esse preceito, como provisórias, cautelares ou preventivas, pois, além de afrontar a CRFB/88, privam de liberdade pessoas ainda potencialmente “inocentes”. São detentos que, apesar da presunção inscrita no castigado inciso LVII do art. 5º da Constituição, permanecem atrás das grades aguardando o julgamento do processo, sem perceberem que já foram considerados culpados e cumprem pena por antecipação, independente da sentença futura, que venha a absolvê-los, arbitrá-los penas alternativas ou, enfim, condená-los à prisão que já os abriga. Pode-se dizer que há um sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão pelo sistema de justiça do país.

Por certo, a situação crítica vivida pelos cidadãos-presos somente poderá ser resolvida quando o verdadeiro Estado Democrático de Direito deixar de ser apenas uma previsão constitucional, ou seja, quando passar a garantir o cumprimento dos princípios para todos os brasileiros, principalmente em relação à dignidade humana, e não simplesmente exercer a violência legítima, oficializada.

Nessa senda, uma das possibilidades de reintegração social aos apenados é aplicar as Práticas Restaurativas, com base na Resolução 225 de 31 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa que, em seu artigo 1º conceitua: “A

Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato,

são solucionados de modo estruturado.15”

Especificamente sobre a aplicação da Justiça Restaurativa em presídios, Howard Zerh destaca a relevância e eficácia da metodologia. “A Justiça

Restaurativa ajuda os presidiários a entender os impactos das suas ações na vida

https://www.academia.edu/36521265/Criminologias_-_feminismos_mi_dia_e_protestos_sociais._Completo.pdf . Acesso em 22 de maio de 2019.

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da vítima e a tomar a responsabilidade por esses atos”16. A aplicação da Justiça Restaurativa se destaca por ter reflexos diretos na sociedade. O trabalho dentro do presídio pode evitar mortes aqui fora, uma vez que muitos crimes são ordenados pelos detentos.

Nessa nova configuração de justiça os envolvidos tem vez e voz, participam ativamente e ocupam o centro do processo, assumindo suas responsabilidades, a caminho de uma reparação e reintegração na sociedade.

A oitiva dos indivíduos e comunidades envolvidas em litígios (quaisquer que sejam) oportuniza um pensar e dialogar, um olhar e refletir sobre o Ser e Fazer no mundo que, por muitas vezes, não lhes foi possível.

Ao implementar uma justiça com métodos de resolução de conflitos focados em restauração das relações e na humanização dos conflitantes, obter-se-á resultados calcados na resolução do problema, na razoabilidade e proporcionalidade da reparação e na restituição de danos, no pedido de desculpas e na reintegração dos envolvidos na sociedade17.

A modernidade também vem agravando as distâncias entre as classes e intensificando o poderio econômico de quem tem muito, e a dificuldade financeira de quem não tem – a mídia contribui muito para esse “status quo”.

Aqueles que detém poder, dinheiro, posição social são glorificados e, mesmo quando violentos, justificados. Para aqueles que nascem em uma condição de necessidade restam poucas alternativas, além da busca pela sobrevivência.

Assim, após análises e reflexões sobre as questões que evidenciam uma exacerbação da violência global e, especificamente, no Brasil e, notadamente àquela que envolve a juventude que vive nas periferias, conclui-se que, infelizmente, não existem alternativas de sobrevivência para estes negligenciados/banidos pela/da sociedade 18. Segundo relatório do IPEA, “....a

violência se constitui em mecanismo de dominação por parte das classes

16 ZERH, Howard. Justiça Restaurativa. Palas Athena Editora com tradução de Tônia Van Acker em 2015, p.

74/76.

17 Ibid., p. 72/76.

18 OLIVEN, Rubem George. A Violência como Mecanismo de Dominação e Como Estratégia de

Sobrevivência, 2010. Disponível em:

https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1058034/mod_folder/content/0/OLIVEN_Ruben_Violencia_e_Cultura_no_Br asil.pdf?forcedownload=1. Acesso em 23 de maio de 2019.

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dominantes, ela se transforma cada vez mais numa estratégia de sobrevivência por parte das classes dominadas 19 ”.

Nesse sentido, também se extrai do Relatório do IPEA:

Vivemos em um Brasil, onde “o drama da juventude perdida possui duas faces. De um lado a perda de vidas humanas e do outro lado a falta de oportunidades educacionais e laborais que condenam os jovens a uma vida de restrição material e de anomia social, que terminam por impulsionar a criminalidade violenta. É um filme que se repete há décadas e que escancara a nossa irracionalidade social. Não se investe adequadamente na educação infantil (a fase mais importante do desenvolvimento humano).”20

No entanto é importante ressaltar, de uma forma otimista e nutrida de esperanças, que existem pontos fora dessa curva de destino tão adverso e inóspito de vulnerabilidade econômica – jovens que, desafiando os prognósticos mais difíceis, desvencilham-se dos fardos impostos pela sociedade e alcançam/constroem um caminho de êxitos. A grande questão é que essa “vulnerabilidade econômica” vem, normalmente acompanhada de outras condições vulneráveis – de raça, credo, (não) acesso a escolaridade – o que restringe muito o percentual de sucesso.

Cabe à sociedade como um todo e, especificamente ao Estado, incluir em seus formatos de gestão de conflitos, políticas e práticas que restaurem a autoestima e a capacidade de todos os jovens de viver (não somente sobreviver) em um mundo mais justo.

No Brasil não há paz. A violência é a regra. Tem-se áreas em nosso país que possuem espectros de guerra, com poucas alternativas aos jovens de se subverterem a opressão a que são submetidos nas periferias. A conexão entre a violência urbana e favela segue fomentada pelo Estado, ostentada pela mídia nacional, a favela é abordada como o “locus” do mal, e o favelado é identificado como um inimigo potencial. Vivemos numa espécie de “economia da violência”, e ela não é marginal ao capitalismo moderno, ela é parte constitutiva, ou seja, é integrante de seu próprio sustento.

Essa conjuntura civilizatória dos últimos anos, tem banalizado os homicídios e dizimado um grande número de nossa população juvenil. Assim, além da perda de vidas humanas, evidencia-se a falta de oportunidades educacionais e

19 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA – Atlas da Violência 2017. Relatório disponível em:

http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integrado-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens. Consulta em 28/05/2019.

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laborais que submetem os jovens a uma vida de restrição material e de anomia social, que ensejam a propagação da criminalidade violenta21.

Neste sentido, assevera relatório IPEA22, que:

“...Não se investe adequadamente na educação infantil (a fase mais importante do desenvolvimento humano). Relega-se à criança e ao jovem em condição de vulnerabilidade social um processo de crescimento pessoal sem a devida supervisão e orientação e uma escola de má qualidade, que não diz respeito aos interesses e valores desses indivíduos. Quando o mesmo se rebela ou é expulso da escola (como um produto não conforme numa produção fabril), faltam motivos para uma aderência e concordância deste aos valores sociais vigentes e sobram incentivos em favor de uma trajetória de delinquência e crime”.

No Brasil se observa que a criminalidade tem uma correlação com o aumento errôneo da repressão dela, o avanço da repressão, a falta de investimentos em políticas públicas e educação constituem uma equação que não fecha. Consecutivamente quando o Estado eleva o contingente de polícia, os índices de criminalidade não reduzem.

Além disso, o estado de miséria causa uma série de sofrimentos que desencadeiam condutas destrutivas a longo prazo, e de imediato, dificuldades como falta de alimentação, por consequência, problemas de saúde, que são fatores decisivos no aprendizado que refletem negativamente na profissionalização.

Para enfrentarmos essa matança desenfreada de jovens brasileiros temos que ter políticas públicas, acesso a educação gratuita e de qualidade, boa remuneração dos profissionais da educação, mais escolas de ensino básico noturno, mais escolas técnicas, mais escolas de nível superior, conscientização social na adolescência, políticas de distribuição de renda, orientação financeira, incentivo as artes, a cultura, a literatura, a música.

Ademais, é fundamental investir mais em distribuição de renda, políticas de igualdade, controle de natalidade.

As pessoas menos favorecidas no Brasil não possuem garantia do direito à vida e à cidadania, pois não tem assistência nenhuma desde o nascimento. Neste diapasão, assinala PINHEIRO 23:

21 CERQUEIRA, Daniel e outros. Fórum Brasileiro de Segurança Pública/IPEA. Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017>. Acesso em 18abr2018.

22 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA – Atlas da Violência 2017. Relatório disponível em:

http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integrado-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens. Consulta em 28/05/2019.

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“...A violação de direitos humanos e os desafios que eles propõem à ordem democrática se tornam mais agudos quando está em foco o direito de crianças e adolescentes, elo frágil e fragilizado da sociedade.”

Ao analisar as hipóteses que levam o jovem de classe baixa, pobre ou de extrema pobreza a criminalidade, encontraremos a ausência de vários fatores já citados anteriormente. Portanto, o problema advém no meio onde este jovem que delinque está inserido, onde as classes dominadas resistem estrategicamente usando a violência.

Neste norte, conclui o relatório IPEA24:

“...a violência se constitui em mecanismo de dominação por parte das classes dominantes, ela se transforma cada vez mais numa estratégia de sobrevivência por parte das classes dominadas”.“

Diante da complicada temática, torna-se forçoso o investimento não apenas em políticas sociais, mas também em pesquisas e estudos, para que se possa estabelecer diversos meios de técnicas e ferramentas aptas a prover elementos para uma atuação contextualizada e compromissada com os direitos humanos, a promoção da cidadania e o combate à desigualdade social.

É muito importante implementar as intervenções que ponham em foco o local e a comunidade pertencente a ele jovem, para que se possam pensar em estratégias em que as instituições saibam dialogar e possam ser capazes de promover e assegurar o direito à vida digna e à cidadania. A concepção de um Direito a serviço da pacificação entre os povos nos remete a ideia de que os seres humanos existem como iguais e desta forma devem viver.

Com a discussão entre os grupos da sociedade, num processo de consenso político e social, há a defesa de seus interesses no Direito de forma que a diversidade social que a modernidade traz e, com ela, o amplo surgimento de novos problemas sociais, é resguardada pela interação e compatibilização do Direito e a sociedade com o fim de se alcançar soluções razoáveis, tanto no Judiciário como no Legislativo 25.

23 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência contra Crianças e Adolescentes, Violência Social e Estado de

Direito, 1991, p. 111.

24 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA – Atlas da Violência 2017. Relatório disponível em:

http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integrado-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens. Consulta em 28/05/2019.

25 ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Agir Comunicativo em Habermas e a Nova Retórica de Perelman.

Revista Jurídica Cesumar. v. 7, n. 2, p. 461-470, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/view/578/495. Acesso em: 23 set.2018. p. 467.

(15)

De forma a resumir o tema, Habermas 26 afirma:

O princípio da soberania popular expressa-se nos direitos à comunicação e participação que asseguram a autonomia pública dos cidadãos do Estado; e o domínio das leis, nos direitos fundamentais clássicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade civil. O direito legitima-se dessa maneira como um meio para o asseguramento equânime da autonomia pública e privada.

Portanto, toda pessoa, no geral, é dotada de discernimento para tomar decisões em prol da sociedade, garantindo o princípio da dignidade humana, não somente com relação a si mesmo, mas também dentro de uma pluralidade. Se cada ser humano tiver o pensamento que possui a capacidade e o poder de se autodeterminar, de decidir seu destino, de defender seus interesses e os interesses de seu grupo, praticando sua autonomia e discutindo para um fim maior, os problemas serão vistos de outra forma e solucionados de maneira mais célere e efetiva.

3. A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO FORMA DE ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA

O acesso à ordem jurídica justa deve ser visto como um movimento transformador, sob uma perspectiva cidadã, uma nova forma de concepção jurídica para o exercício da cidadania plena. Muitos são os entraves para se chegar a essa justiça, obstáculos esses que são maiores para a sociedade menos favorecida. A problemática do acesso à ordem jurídica justa não pode ser estudada nos acanhados limites dos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa 27.

Segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth, in Acesso à Justiça, Tradução de Ellen Gracie Northfleet, o acesso à Justiça indica duas finalidades básicas do sistema jurídico, “Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”28.

26 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. São Paulo, SP: Loyola, 2002. 27 WATANABE, Kazuo. Novas atribuições do judiciário: necessidade de sua percepção e de reformulação da

mentalidade. Porto Alegre: TRF – 4ª Região, 2009 (Caderno de Administração da Justiça – Planejamento Estratégico 2009: módulo 6), p. 135.

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Atualmente, entende-se que se deve buscar uma Justiça realmente justa, filosoficamente coadunada e alinhada com a voz dos mais fracos, ou melhor, dos menos favorecidos, muitas vezes esquecidos quiçá pelo texto frio das Leis que objetivamente desconsiderem as minorias e com assertividade axiomática no descobrimento de uma sociedade melhor.

A expressão é utilizada por Kazuo Watanabe, “Acesso à Justiça e sociedade moderna”, in Participação e processo, Coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe, São Paulo, Revista dos

Tribunais, 1988, p. 135, ao mencionar:

“...Em conclusão: a) o direito de acesso à Justiça é, fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa; b) são dados elementares desse direito: (1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição constante de adequação entre a ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do País; (2) direito de acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetividade tutela de direito; (4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características”29.

30

Portanto, o direito fundamental de acesso a uma ordem jurídica justa inclui assistência e/ou assessoramento pleno, gratuito e eficiente a todos os cidadãos.

Assim, diante de tantos avanços na atualidade, é inadmissível que uma pessoa deixe de receber assistência e/ou assessoramento jurídico por não dispor de recursos financeiros.

A sociedade, deve atacar o problema de forma multidisciplinar, através dos diversos caminhos que irrigam o sistema jurídico. Esse sistema multiportas deve estar atento ao contexto social, apresentando soluções e alternativas efetivas31.

29 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, A. P. (Org.). Participação e

processo . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 226/228.

30Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-09/entrevista-kazuo-watanabe-advogado. Acesso em

10/01/2020.

31 A consagrada expressão multi-door courthouse foi originalmente usada pelo Prof. Frank Sander (Harvard) em

1976, em conferência que posteriormente veio a ser publicada em 1979: Frank Sander. Varieties of dispute

processing, Minnesota: West Publishing, 1979, pp. 65/87. Esse sistema é caracterizado por não restringir as

formas de solução de controvérsias exclusivamente ao Poder Judiciário, oferecendo meios alternativos e, muitas vezes, mais adequados ao tipo de conflito, tais como negociação, conciliação, mediação e arbitragem, além de outros ainda menos usuais no país, mas que têm ganhado cada vez mais relevância, na construção civil em particular, como os dispute boards. A esse respeito, v., também, Herbert M. Kritzer. To regulate or not

to regulate, or (better still) when to regulate, in Dispute resolution magazine, ABA, v. 19, n. 3, Spring 2013,

(17)

Nesse contexto, deve-se promover a mudança de procedimento dos agentes da Justiça, de todos os seus usuários, dos operadores de Direito e da sociedade de modo geral através da cultura da Paz. Assim, é possível mudar o comportamento dos envolvidos em processos judiciais, e introduzir na sociedade a ideia de que um entendimento entre as partes é sempre o melhor caminho para o encerramento de uma disputa jurídica que não resolve o conflito 32.

Deve-se acabar com a visão conservadora de que é preciso entrar na Justiça para resolver um conflito, e optar, alternativamente, pela promoção da paz social, através de práticas não-adversariais. Tal entendimento favorece a toda sociedade, reduzindo o tempo para a solução dos conflitos. Também favorece a Justiça, diminuindo o volume de processos nos fóruns.

Além disso, o escasso número de magistrados e servidores e a falta de estrutura adequada para atender a demanda, existe um excesso de litigiosidade, onde poucos utilizam muito e muitos sequer têm acesso à máquina judicial, tornam pior o sistema de justiça tradicional. Saliente-se que os órgãos públicos e concessionárias de serviços públicos são os principais clientes do Poder Judiciário.

Assim, além do uso predatório da Justiça, o quadro caótico se avoluma, ainda mais, com a falta de uma cultura de paz nos moldes restaurativos, de maneira a propiciar a transformação dos conflitos, ou seja, modos não adversariais de resolução de conflitos. Inclusive, são poucas as escolas de Direito no Brasil que possuem em seus projetos pedagógicos de ensino disciplinas com viés nesse conteúdo 33.

Aliás, um aspecto a ressaltar é o consenso popular em torno do advogado que aceita acordo no curso do processo: ou se trata de um profissional fraco, ou se trata de um profissional transigente. Na verdade, idealiza-se aquele profissional radical, que leve até as últimas consequências – e instâncias – qualquer ação, pela satisfação em impingir uma derrota à parte contrária.

Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 24.6.2008. Disponível em https://www.conjur.com.br/2013-dez-12/mediacao-cursos-direito-estimulara-mudanca-cultura-litigio. Acesso em 20.2.2020.

32 ZERH, Howard. Justiça Restaurativa. Palas Athena Editora com tradução de Tônia Van Acker em 2015, p.

107.

33 WATANABE, Kazuo. Novas atribuições do judiciário: necessidade de sua percepção e de reformulação

da mentalidade. Porto Alegre: TRF – 4ª Região, 2009 (Caderno de Administração da Justiça – Planejamento Estratégico 2009: módulo 6), p. 228/229.

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Na verdade, a justiça formal retributiva é que deveria ser entendida como meio alternativo para resolução de conflitos: a Justiça Restaurativa e outros modos não adversarias deveriam constituir o padrão dentro do Sistema de Justiça.

Dessa forma, não há como se falar em cidadania, se não há o oferecimento de meios de efetivação dessa cidadania. Cabe ao estado viabilizar para que todos os cidadãos tenham livre acesso à justiça, a uma ordem jurídica justa, vencendo a barreira da desigualdade econômica.

Inegavelmente, o sistema perde a oportunidade de se reivindicar como forma de autoridade legítima, se as ferramentas e as instituições jurídicas não estiverem disponíveis para grandes setores da população, os quais, se supõe, encontram-se em um estado de direito inferior, em relação a outros cidadãos. Em síntese, a legitimidade para exigir que o cidadão ordinário não quede à margem da lei pressupõe que as instituições jurídicas operem em nível acessível.

Entretanto, no Brasil, vigora o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, não há condições adequadas para a adoção de medidas que se possa atingir uma Justiça Restaurativa plena, no sentido de uma ordem jurídica justa.

Todavia, a Resolução 225 do CNJ, 2016, art. 2º, introduziu princípios que orientam a Justiça Restaurativa, ou seja, a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade34.

A introdução e aceitação da Justiça Restaurativa em nosso sistema de justiça é ainda inexpressivo. Entretanto, nota-se a existência de programas brasileiros que aplicam os ensinamentos internacionais vigentes da Justiça Restaurativa, envolvendo gestão atinente à administração da Justiça, com facilitadores verdadeiramente habilitados e responsáveis, com sensibilidade para gerir o trabalho, reverenciando os princípios, valores e procedimentos do processo restaurativo, de maneira a transformar os modelos existentes de sociabilidade e juridicidade.

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A Justiça Restaurativa e o modelo de Justiça Retributiva podem coexistir, desde que o direito tradicional seja visto como ultimo recurso, subsidiário aos métodos alternativos35.

Entretanto, apesar dos benefícios qualitativos que podem oferecer as práticas restaurativas, no sistema de justiça elas necessitam ser praticadas com cautela e devem estar continuamente sendo fiscalizadas e avaliadas. Portanto, espera-se que a justiça restaurativa se desenvolva com ampla participação da sociedade para que seja considerada definitivamente no Brasil, em face da manifesta falência do sistema de justiça tradicional. Inclusive, no âmbito penal, exprime-se com o aumento acintoso da violência e criminalidade.

Acredita-se que seja possível a implementação da Justiça Restaurativa no Brasil, como oportunidade de adoção de uma justiça penal informal, democrática, participativa e capaz de oportunizar uma real transformação na indecorosa realidade de nosso sistema, promovendo os direitos humanos, a cidadania, a dignidade e paz social deteriorados no atual sistema de Justiça Retributiva, que com a obrigatoriedade de eventual homologação por um agente público acabam por contrariar elementos basilares da Justiça Restaurativa.

Não são poucas as críticas, receios, oposições para a sua implantação e concretização definitiva, ainda mais em um país alçado à categoria de Estado Democrático de Direito, mas que, na prática, descumpre a Constituição Federal.

Reclama-se que a implementação da Justiça Restaurativa envolve gestão concernente à administração da Justiça, e que é também fundamental que as partes tenham o direito a um serviço eficiente (princípio constitucional da eficiência – art.37), com facilitadores devidamente capacitados e responsáveis, com sensibilidade para reger seu trabalho, respeitando os princípios, valores e procedimentos do processo restaurativo, pois é uma garantia implícita dos participantes a um “devido processo legal restaurativo”, em que todos os princípios e garantias fundamentais das partes envolvidas devem ser rigorosamente observados, tais como: a dignidade da pessoa humana, razoabilidade, proporcionalidade, adequação e interesse público.

35 ZERH, Howard. Trocando as Lentes — um novo foco sobre o crime e a Justiça. Justiça Restaurativa.

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Nota-se uma grande dificuldade em expandir os limites de abrangência da Justiça Restaurativa, nos diversos ambientes, mormente, dentro do poder judiciário, é um fluxo de mudança de poder do Juiz, do Promotor, dos Advogados e Defensores Públicos para os envolvidos no conflito, e retirar este poder do Judiciário e demais citados, isto é um procedimento dificílimo.

Some-se a isso a aversão das vítimas à adesão Justiça Restaurativa, a pouca informação da comunidade, a restrição a casos de pequeno potencial ofensivo, a carência de recursos humanos capacitados e disponíveis em tempo integral para a execução de programas que possam subsidiar a concretização da Justiça Restaurativa.

A Justiça Restaurativa deve ser vista como uma nova maneira de manejo e elaboração de conflitos que, ao invés de punir por punir, deve responsabilizar o ofensor e restaurar o ofendido, em um processo humanístico de reparação de danos e transformação da vítima-ofensor-sociedade.

Assim, a justiça assume uma expressão universal e se materializa por uma harmonização do que deve ser reestabelecido. Nas relações sociais e no espaço profissional possibilita soluções dos envolvidos, por meio do diálogo e escuta mútua, considerando necessário um plano de ação, em que intenções de se estabelecer um exercício justo para uma nova convivência. Por conta disso, permite vivenciar as transformações necessárias na convivência, tomando como elemento central o ser humano suas fragilidades e potências.

Percebe-se que há neste momento, uma expansão da Justiça Restaurativa e com isso, a produção de mais conhecimentos e desafios. Os desafios sempre foram e ainda são muitos.

Importante destacar, que a Justiça Restaurativa pertence a sociedade como sua expressão mais fiel de uma Justiça Social. Não se pode consentir que a Justiça Restaurativa seja exclusiva e prioritariamente dos Tribunais de Justiça, pois seria reduzi-la a apenas uma área do conhecimento humano.

Na verdade, a Justiça Restaurativa é um “conjunto de práticas em busca

de teorias” em todo o mundo, no Brasil essa é uma mais que “real realidade”, pois

vivemos um universo de praticantes, construindo – no ensaio e erro – teorias e conceitos, embora sorvendo dos estudos de importantes nomes como Howard

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Zehr, Kay Pranis, Dominic Barter, Marshall Rosemberg, em busca de uma identidade própria36.

Os programas brasileiros expandem as teorias internacionais vigentes, para atender um objetivo maior, holístico e integralizante, elegendo como propósitos primordiais o encontro, a reparação do dano e a transformação do ofensor, além de impactar as relações interpessoais, os sistemas de justiça e o hiperencarceramento, as violências, o modo dominante de convivência e as relações – transformando os paradigmas de juridicidade e sociabilidade.

Sabe-se que a Justiça Formal Retributiva, especialmente a Penal, ainda corre célere e preponderante sobre a Justiça Restaurativa no Brasil, impactando sempre negativamente os índices de violência, criminalidade e encarceramento no país.

Há uma seletividade intrínseca que, quantitativamente, deriva do princípio da indisponibilidade da ação penal, que limita a Justiça Restaurativa a somente juizados que o excepcionaram: a Justiça Infanto-juvenil ou infracional, os Juizados Especiais Criminais e os Juizados da Violência ou Paz doméstica, estando alocados em seus espaços físicos ou junto aos NUPEMECs ou NUPECONs e CEIJs 37.

O fato de a autoridade judiciária estar imbuída do poder discricionário sobre a decisão de quem (pessoas), quando (momento) e que (conduta) ingressa em um programa restaurativo, alimenta uma condição de seletividade controverso e, claramente, qualitativa.

Além disso, o viés da obrigatória homologação (ou não) pelo juiz de uma decisão (soberana) tomada pelos participantes do processo restaurativo, compromete e melindra a essência da Justiça Restaurativa.

A Justiça Restaurativa tem um percurso recente dentro do Sistema de Justiça vigente no Brasil, por sua natureza inovadora e de quebra de paradigmas, vem suscitando questionamentos e resistências do mais variados setores.

36 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal. O Novo Modelo de Justiça Criminal e de

Gestão do Crime. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, 2007, p. 10.

37 A Resolução 125, adotando como um de seus pilares a uniformidade e a centralização, concebeu a

unidade especializada em soluções consensuais denominada CEJUSCs (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, de criação e instalação obrigatórias em todas as comarcas onde existam dois juízos ou juizados. Com juiz coordenador e estrutura própria, e com mediadores e conciliadores devidamente capacitados. No Brasil todo, segundo dados da Justiça em Números do CNJ, já existem perto de 1000 CEJUSCs. Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos. Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos Coordenadoria Estadual da Infância e da Juventude.

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Obstáculos como a resistência das vítimas à adesão ao programa, a baixa participação da comunidade, a limitação a casos de pequeno potencial ofensivo, a falta de recursos humanos capacitados e disponíveis “full time” para a condução dos programas vem alicerçar o difícil caminho da consolidação da Justiça Restaurativa.

O rompimento de crenças equivocadas sobre o papel da Justiça Restaurativa faz-se necessário para a superação de obstáculos epistemológicos e o trilhar de um caminho exitoso.

A Justiça Restaurativa não é uma alternativa à Justiça Comum formal, notadamente a criminal, não é um procedimento rápido e inconsistente, não é conduzido por pessoas sem capacitação, “não passa a mão “ na cabeça do ofensor e não é um “método consensual” de resolução de conflitos, mas uma forma de condução e elaboração de conflitos que, em vez de punir por punir, responsabiliza o ofensor e restaura o ofendido, em um processo humanístico de reparação de danos e transformação da vítima-ofensor-sociedade38.

A Justiça Restaurativa surge como uma nova forma de encarar e elaborar o conflito. O conflito, concebido como condição natural e inevitável da convivência humana, ele passa a ser trabalhado em uma concepção holística e sintomática, consequência de um entorno social, familiar, moral, político. O ser humano, vislumbrado como falível, passível de mudança, partícipe de um processo infindável de crescimento e aperfeiçoamento.

Vivenciar, em nossos espaços de vida e profissão, o exercício da reparação, da comunicação não-violenta, dos círculos de paz, nos remete a uma sociedade menos belicosa, menos beligerante, menos violenta39.

A Justiça Restaurativa é a maneira de tratar o conflito e o dano como situações passíveis de resolução pacificadora, trazendo para o encontro todos os atores e disponibilizando a arte da escuta, da compreensão, da empatia, do perdão, da responsabilidade, da restauração e reinserção.

38 SLAKMON, C., R. DE VITTO, E R. GOMES PINTO, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF:

Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD). Disponível em: https://www.pucsp.br/ecopolitica/downloads/biblioteca_direito/JustCA_restaurativa_PNUD_2005.pdf. Acesso em 26 de maio de 2019.

39 PRANIS, Kay. Processos Circulares. Teoria e Prática. Série da reflexão a prática. Trad. Tônia Van Acker.

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Nesse vértice, no tocante aos de crimes de “colarinho branco”, a prática restaurativa seria bastante favorável, visto que o encarceramento em nada repara os danos às vítimas que, neste caso, são todos os cidadãos. A responsabilização dos ofensores, com as consequentes devoluções/reparos dos danos causados, as discussões em torno dos atos e suas implicações, a caminhada em torno da formação de caráter e das contribuições da sociedade e das famílias para isso, poderiam configurar uma nova visão de coletividade e de crime financeiro a esses “ofensores”.

Existe uma sensação e um sentimento (bons) de maior compreensão sobre o assunto, sobre as possibilidades, sobre os desafios e, principalmente os resultados positivos e factíveis de uma prática humanista tangível e “não-utópica”.

Assim, sabe-se que há um longo caminho a ser percorrido, com o colossal desafio de persistência e empenho das pessoas que acreditam e vislumbram um futuro mais humanizado para o mundo.

Nesse sentido, cabe lembrar a metáfora fluvial de Howard Zehr40, o rio da

brasilidade tem como seus afluentes, de um lado da margem, os leitos da metodologia autocompositiva de resolução de conflitos, da responsabilização e da prevenção; de outro os leitos da cultura e dos círculos de paz e da comunicação não violenta. Em meio a esses leitos, cujas águas nem sempre convergem, muitos pequenos afluentes disputam um leito residual por onde correr.

Em uma linguagem simplista, a Justiça Restaurativa é uma estrutura para orientar como respondemos quando as pessoas “machucam” umas as outras. Quando “machucamos” uns aos outros, causamos dano aos relacionamentos e a sensação de segurança que temos. A ideia da Justiça Restaurativa é que quando existe o dano precisamos reparar este dano. Deixar as coisas bem novamente. Para isso, Segundo Kay Pranis41, devemos nos guiar por quatro princípios:

“...1) - Vamos nos preocupar com o dano. O dano só pode ser identificado pela pessoa que sofreu; 2) - Vamos focar nas obrigações. Quando causamos danos temos a obrigação de deixar as coisas bem novamente. Para deixar as coisas bem significa que temos que assumir responsabilidades e fazer a reparação; 3) – Vamos envolver os que foram mais afetados pela situação. A pessoa que sofreu o dano e a pessoa que causou o dano, estes dois lados deverão ser colocados juntos para decidir como deixar as coisas bem de novo. E a comunidade, em torno destas pessoas, precisa fazer parte da decisão de como deixar as coisas bem

40 ZERH, Howard. Justiça Restaurativa. Palas Athena Editora com tradução de Tônia Van Acker em 2015, p.

87/89.

41 PRANIS, Kay. Processos Circulares. Teoria e Prática. Série da reflexão a prática. Trad. Tônia Van Acker.

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novamente; 4) – A decisão de como deixar as coisas bem novamente será um processo inclusivo e coletivo...”.

Um dos processos que emergiu e que alcança os princípios restaurativos é o processo de Círculos de Construção de Paz42.

Pensando e considerando que o crime causa “feridas” nas pessoas, a Justiça tem que ser a cicatrização dessas “chagas”.

No Brasil, assim como em muitas regiões do mundo percebe-se que em muitos crimes graves, tais quais os dolosos contra a vida, mesmo quando o infrator é punido severamente, os diretamente ofendidos, representados muitas vezes pelos familiares, apesar de geralmente aduzirem o velho jargão de que a “justiça foi feita”, alimentados quase sempre pelo sentimento de vingança e ódio da pessoa em que causou um mal a toda uma estrutura familiar, costumam ressaltar que um “vazio” continua em suas vidas.

Isso é evidente, pois, enquanto no modelo retributivo tem-se como objetivos da prisão a punição pelo mal causado, a prevenção de possíveis novas infrações que possam vir a ser cometidas e a ressocialização, através de uma utópica regeneração do condenado segregado, no modelo restaurativo busca-se além do que foi já exposto até aqui, dar inclusive um suporte psicológico para os vitimados indiretos do ato típico e antijurídico realizado pelo infrator.

A Justiça Restaurativa apresenta-se, portanto, como uma nova perspectiva de encarar os conflitos, trazendo, contudo resultados satisfatórios para os envolvidos, tendo inclusive, a maior organização internacional, a ONU (Organização das Nações Unidas), se inclinado no sentido de sugerir aos seus países membros a aplicação do modelo restaurador em seus territórios.

A bem da verdade, a Justiça Restaurativa não constitui uma resposta a todos os casos. Não visa trocar o sistema legal vigente, o qual é o guardião dos direitos humanos básicos e do Estado Democrático de Direito, porém deve atuar complementarmente, dar efetividade à prática da Justiça, colaborando desta

42 O Círculo de Construção de paz é o lugar mais seguro, é o espaço mais poderoso para sentir a nossa

humanidade compartilhada, par vermos a nós mesmos nas vidas dos outros, para que possamos estar seguros uns na presença do outro (BOYES-WATSON, CAROLYN. No coração da esperança : guia de práticas circulares : o uso de círculos de construção da paz para desenvolver a inteligência emocional, promover a cura e construir relacionamentos saudáveis/Carolyn Boyes-Watson, Kay Pranis; tradução: Fátima De Bastiani. – [Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas], c2011. 280 p. Edição brasileira : Justiça para o século 21: instituindo práticas restaurativas. Responsabilidade social [e divulgação] : AJURIS – Escola Superior da Magistratura. Cooperação: UNESCO: representação no Brasil. Projeto apoiado pelo Criança Esperança, p. 16, 274/ 275).

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forma para a edificação de uma cultura de paz e cidadania plena para todos os seres humanos.

Todavia, a Justiça Restaurativa traz inúmeras vantagens às partes envolvidas, como também ao próprio poder público. Ainda que esse modelo de justiça seja normalmente usado nos casos na esfera penal em crimes patrimoniais ou de menor gravidade, seja pela facilidade de discussão da reparação do dano no primeiro grupo ou pelo desinteresse da justiça criminal no segundo, considerando-se, assim, a aplicação restrita a estes tipos de delito, a perspectiva de sua ampliação é notória, porquanto, é estimado que 70% dos processos criminais que tramitam nos fóruns de grandes cidades se ocupam de crimes como furto, roubo e outros delitos patrimoniais 43.

Assim, pode-se dizer que em relação as vantagens do processo restaurativo, ele aproxima os cidadãos da realização da justiça, proporcionando a sua participação na resolução dos conflitos ocorridos no seio da comunidade, contribui para uma melhor compreensão dos conflitos em geral e da criminalidade no âmbito penal, reduz o impacto do encarceramento na comunidade e consequente periculosidade, fortalece os laços e a coesão social e promove a pacificação social44.

Mormente na esfera penal, é possível concluir pelas vantagens proporcionadas com a iniciativa das práticas restaurativas, não apenas para a vítima, mas como para o ofensor e a comunidade, um maior entendimento por parte deles da sua conduta, de modo a contribuir para sua mais perfeita reinserção social, a assunção de responsabilidade de modo mais eficaz, discutir sobre o que levou o indivíduo a praticar o delito e de que maneira ele poderá reparar o dano causado à vítima.

A Justiça Restaurativa tem muito a oferecer, porquanto é uma perspectiva de justiça mais democrática, inclusiva, participativa, humanitária, reintegrativa, reparadora. Este paradigma de justiça contraria aquela visão de repressora – ou de uma justiça punitiva – que procure amestrar e domesticar as

43 SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2002, p. 430/431.

44ZERH, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo. Palas Athena Editora. com tradução de Tônia Van Acker,

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pessoas segundo normas e regras fundadas na ordem da razão e do bem ético e político 45.

Entende-se que o surgimento dos vínculos e laços emocionais entre os membros de um grupo são a verdadeira fonte de sua força. Ou seja, além da força coercitiva da violência, e das demais subjugações aos instintos impostas pelo processo civilizatório, os laços emocionais também são fundamentais para uma comunidade se manter unida.

A identificação, atingida através do compartilhamento de interesses importantes, é um tipo de vínculo emocional que produz comunhão de sentimentos, e em grande escala é utilizada como base estrutural da sociedade humana.

À propósito, a pesquisadora norte-americana Kay Pranis em palestra na Escola Superior de Magistratura do Ceará (ESMEC), no mês de setembro/2017, discorreu sobre o emprego dos círculos de construção de paz, também, no sistema de justiça juvenil, oportunidade que contou detalhes do método, analisou a aplicabilidade dele em situações de violência extrema e revelou como a justiça restaurativa pode auxiliar na redução das taxas de homicídios de jovens46.

Kay Pranis acredita na força da palavra. Para ela, até o conflito humano mais violento pode ser solucionado sem interferência de autoridades, desde que haja disposição, franqueza e tomada de responsabilidade por parte dos envolvidos. “Temos de ter a experiência de justiça nós mesmos. Ninguém pode experimentar,

vivenciar a justiça por nós”47, defende a ativista comunitária. Por conta disso, Pranis se tornou referência mundial na pesquisa e na aplicação de uma metodologia chamada “Círculos de Construção de Paz”.

Segundo Pranis, os círculos consistem em posicionar frente a frente vítimas e agressores protagonistas de diferentes situações conflituosas. Durante o processo, todos têm voz ativa e nenhuma fala se sobrepõe à outra, numa forma de encorajar o desenvolvimento do respeito e da empatia. Só assim, para Pranis, seria possível debater cura, prevenção e reparação do dano cometido48.

45 BRANHER, Leoberto Narciso. Justiça, responsabilidade e coesão social (...), p. 680.

46 Disponível em:

https://www.opovo.com.br/jornal/paginasazuis/2017/11/a-justica-que-busca-reparar-o-dano-e-evitar-que-se-repita.html. Acesso em 13/11/2017.

47 Ibid.

48 PRANIS, Kay. Processos Circulares. Teoria e Prática. Série da reflexão a prática. Trad. Tônia Van Acker.

(27)

4. CONCLUSÕES

O livre e irrestrito acesso à ordem jurídica justa constitui um postulado ideal, que se encontra condicionado pela realidade prática e pela existência de obstáculos diversos que o restringem. Os obstáculos são econômicos (custo do serviço e excessiva duração e quantidade de processos); culturais (desconhecimento dos direitos por parte dos cidadãos e falta de confiança nos meios e operadores judiciais); e operacionais (complexidade dos procedimentos judiciais e falta de mão de obra especializada).

Lamentavelmente, o acesso à administração da justiça não é igual para todos, transparecendo uma sensação de desproteção ao cidadão comum, especialmente às pessoas hipossuficientes, posto que o estado de direito que sujeita o Estado às normas legais, também lhe exige a manutenção e realização da Justiça.

O direito cumpre o papel de igualar as pessoas. A igualdade teórica deve se tornar prática, para vencer a marginalidade e ensejar uma verdadeira sociedade democrática.

Para esses fins, são imprescindíveis certas instituições equilibradoras, como o acesso ao um ordenamento jurídico gratuito aos hipossuficientes, substancialmente com o escopo de remover os obstáculos de todo tipo, em especial os econômicos e culturais, que impeçam o livre acesso à ordem jurídica justa.

A justiça é um bem que afeta a todos, quiçá o mais importante dentre os capazes de conferir estabilidade ao convívio em sociedade. Mas há que se refutar a oferta de uma justiça qualquer, deformada, equivocada, intempestiva. Tal modalidade de prestação jurisdicional não interessa ao cidadão, posto que insuficiente para atender seus anseios e pacificar a Sociedade.

A Sociedade clama por uma postura positiva do Estado-Juiz no sentido de se oferecer aos cidadãos-jurisdicionados, adequado acesso ao ordenamento jurídico, através da simplificação de procedimentos internos e custeamento de despesas materiais. É que acesso à ordem jurídica justa não se resume a acesso à máquina judiciária: abrange, em última instância, toda a ordem jurídica, que

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