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Mas claro que eu era idiota na altura, e não ligava muito ao meu instinto. Eu tentei levantar-me da cama onde me encontrava, mas o velho disse-me

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1 Capítulo 4

Déjà Vu Dia Zero + 547

Localidade Desconhecida

“A última coisa que me lembrava era da nuvem em forma de cogumelo. E algo a embater-me na cabeça. Nada mais. Mas por mais estranho que parece-se, não era isso que me incomodava. Quando acordei, esperava estar amarrado numa cela qualquer, pronto para o que quer que os bondosos militares, que limparam a minha cidade, tivessem em mente. Pelo menos na altura pensava que tinha sido raptado por militares. Fazia sentido, não fazia? Zombies não conseguiam manobrar o que quer que fosse que me tivesse posto inconsciente, e a menos que algum destroço atirado pela explosão me tivesse atingido, a única explicação eram militares. A questão era: porque é que me tinham mantido vivo, quando limparam uma cidade inteira por medo que a infecção alastrasse?”

Olhei para o homem que ainda se encontrava a mirar-me com interesse.

- Pode imaginar então o meu espanto quando acordei, e ao abrir os olhos vi um velho à minha frente a julgar-me com o olhar. E nada que indicasse que tinha sido raptado pelos militares. O velho tinha um cigarro na mão, e mandava-me um olhar desafiador, olhando-me de cima a baixo como se estivesse a decidir o que fazer comigo. Claro que isso não me deixou muito descansado: podia ter-me safado dos soldados, mas encontrava-me à mercê de um desconhecido.

“Ele tinha uma daquelas caras que conta uma história, coberta de barba grisalha e cabelo tapado por uma boina, uma daquelas caras de quem tinha sido posto à prova várias vezes durante a vida, e de todas as vezes saiu vitorioso, com o queixo bem erguido. Não era alguém que eu queria ter como inimigo, isso tinha eu a certeza.

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2 Mas claro que eu era idiota na altura, e não ligava muito ao meu instinto. Eu tentei levantar-me da cama onde me encontrava, mas o velho disse-me para eu ter calma, e levar as coisas devagar. Perguntei-lhe onde estava e ele informou-me que estava num sítio seguro, para não me preocupar, e que se chamava Bill. Indiquei-lhe também o meu nome, e sentei-me à beira da cama. Ele continuava a olhar para mim como se me estivesse a avaliar.”

“Apesar de começar a recuperar a memória pouco a pouco, perguntei-lhe o que tinha acontecido. O velho respondeu que andava à caça, quando começou a ver helicópteros militares a deslocar-se para a cidade. Decidiu pegar no carro e segui-los, mas foi impedido de o fazer quando chegou a um ponto de segurança guardado por militares a apenas alguns quilómetros da cidade, sendo informado que nada se passava, e tudo não passava de um treino militar. “Eles que se fossem foder mais as suas mentiras”, disse utilizando estas palavras, “Eu servi tempo, e combati em defesa da honra da nossa pátria, e sei distinguir algo sério de um monte de mentiras!”. Pelos vistos ele fingiu que ia seguir as ordens dos soldados, que lhe tinham indicado para voltar atrás, mas devido à curiosidade ou que quer que fosse, apenas recuou umas centenas de metros, e abandonou o carro, aventurando-se na planície. Levando uma caçadeira consigo, decidiu tentar perceber o que se passava, apenas para passados umas dezenas de minutos ver alguém a correr, como se estivesse a fugir de algo. Segundos depois viu um clarão na cidade, e sabendo o que se seguia, atirou-se ao chão. Pelos vistos, durante o tempo que serviu como militar, fazia parte do treino aprender a lidar com a onda de choque de uma bomba, e como ele me informou, uma forma para não ser atirado ao ar como eu, era deitar-se ao chão e diminuir a resistência do corpo em relação à onda.”

“Claro que eu não sabia disso e fui atirado ao ar como um idiota. E enquanto rebolava e tentava recuperar, o homem aproximou-se de mim e o resto aconteceu como seria de esperar: eu levantei-me, olhei para trás, e ele deu-me com a coronha da arma. Claramente haveria formas menos dolorosas de me fazer cooperar, mas o velho sempre me pareceu ser do tipo dispara-primeiro-pergunta-depois.”

- Sempre? Quer dizer que essa não foi a única vez que lidou com ele? – Perguntou Dr. Green.

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3 - Claro que não, Dr. Green. Mas já lá chegaremos, não seja impaciente! – Respondi de forma sarcástica.

O homem parecia ansioso por chegar a um ponto qualquer da minha história, mas mesmo assim estava a dar-me o tempo todo que eu quisesse para lá chegar, para que pudesse contar os pormenores todos da minha… Aventura? Será que lhe posso chamar isso? Este termo é utilizado para descrever aqueles passeios agradáveis que uma pessoa fazia antes disto tudo acontecer. Ou melhor, eu digo agradáveis, porque por mais perigosos que fossem, não é possível compara-los com o que eu passei: essas aventuras agradáveis não passavam de um passeio no parque. Olhei fixamente durante uns momentos para o velho, e continuei:

- Claro que a minha pergunta seguinte foi porque raio o homem me raptou. Ao que ele respondeu muito amavelmente que eu era a única pessoa que provavelmente iria conseguir satisfazer a sua necessidade de saber o que se passava na cidade. Ou neste caso: passou.

““Não me interpretes mal, miúdo! O facto de te apanhar a fugir de uma cidade cercada de militares, e que momentos depois de te ver, desapareceu do mapa, não abona a teu favor. Foda-se, se fosse outra pessoa, até pensaria que tu eras a razão daquilo tudo.”, disse-me o velho, e olhando para mim a sorrir, continuou, “Mas eu não sou como a maioria dos idiotas que habitam esta rocha que flutua a três passos do Sol. Eu sei juntar dois mais dois!””

““O que é que quer dizer?”, perguntei-lhe. O homem enfiou um pontapé na televisão que se encontrava num móvel à sua direita, o que bastou para a ligar. A televisão começou a emitir imagens e sons de uma notícia que relatava o que era indicado como um ataque biológico na minha cidade. A notícia relatava o acontecimento como sendo um ataque terrorista, mas eu sabia realmente o que se tinha passado.”

“”Como eu disse: eu sei juntar dois mais dois. Durante semanas falam de uma doença nova, que está a afectar países lá fora. À umas dezenas de dias atrás começam a surgir ataques terroristas”, o homem fez sinal de aspas com os dedos enquanto dizia estas duas ultimas palavras, “e agora acontece o mesmo a uns quilómetros de minha casa. Diz-me uma coisa miúdo: quantos ataques terroristas é que já viste, em que antes do suposto ataque, os militares se dirigissem ao alvo para disparar sobre a multidão e

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4 lançar bombas pela cidade fora?”, ele olhou fixamente para mim enquanto fazia a pergunta, “Como eu te disse: alguma coisa se passa e o governo não quer dizer o que é! Aquilo não foi para prevenir o ataque, não me venham com merdas. Aquilo foi uma operação de contenção!””

“”Os mortos andavam!”, respondi eu com um tom pesado, o que basto para o velho se calar e olhar para mim como se eu estivesse a gozar. Mandou uma gargalha ao mesmo tempo que dizia “Mortos-vivos? Hahahaha! Essa é boa miúdo, acho que te bati com mais força do que devia. Já estás a alucinar.”. O velho levantou-se e saiu do quarto onde me encontrava, deixando-me sozinho. Eu podia ter continuado a conversa, mas a reacção do velho resumia o que também eu ainda achava acerca da situação. Era hilariante a ideia de que existiam zombies. Isso era material de filmes de ficção, não da realidade. Teria sido tudo um sonho meu? Teria sido mesmo um ataque terrorista, e a minha mente inventou uma história com zombies apenas para lidar de melhor forma com a realidade? Bem, se esse fosse o caso, a minha mente tinha uma forma merdosa de inventar cenários que me ajudassem a lidar com a realidade! Mas claro que não foi preciso muito tempo para eu voltar a sentir na pele a realidade da situação, a realidade que eu naquele momento duvidava que, pronto, fosse real.”

“Quando o velho saiu, eu voltei a deitar-me na cama, e adormeci envolto nos meus pensamentos. Acordei com sons de gritos, e com o coração gelado de medo, saltei da cama. Depois do que tinha vivido, era normal que o mínimo som de gritos me deixasse completamente em alerta. Mas acalmei-me quando vi de onde vinham os gritos: Bill estava no meu quarto, com a televisão ligada. Ele via o que já era habitual ver nessa altura: uma notícia de casos de uma doença estranha. Desta vez mostravam um grupo de militares a invadir uma casa para retirar os seus habitantes, e atira-los para dentro de uma carrinha. Alguns tinham as roupas cheias de sangue, outros nem roupa tinham. Dava a entender que nem tinham tido tempo para se preparar para a chegada daqueles militares. Várias pessoas protestavam à volta dos mesmos, mas estes não pareciam minimamente interessados em prender, ou conter aquela multidão. Apenas parecia interessar as pessoas dentro do edifício. Um dos protestantes atirou o que pareceu ser uma pedra a um dos militares, o que fez com que outro militar chegasse ao pé do protestante e lhe batesse com a coronha da arma,

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5 atirando-o ao chão. Mas mesmo assim, os militares não mostraram interesse em prende-lo, apenas o deixaram ali a sangrar, deitado no chão.”

“Mas à medida que a notícia avançava, eu reparava que algo não estava certo: pela primeira vez, a notícia não relatava aquilo como sendo um caso isolado. Não relatava a doença como algo que não merecesse a nossa atenção. Pela primeira vez, relatavam aquele caso como sendo parte de uma série de casos de uma nova doença perigosa. Claro que não falavam do seu efeito em pessoas, mas pelo menos indicavam formas de as pessoas se protegerem minimamente. Claro que nada muito eficaz, eram apenas dicas de como se podia identificar um infectado, que quando vissem alguém com aqueles sintomas deviam afastar-se e chamar o 112, coisas desse género. Mas não indicavam que quando alguém visse um infectado devia fugir dali a correr, o mais rápido que conseguisse, e ir a casa buscar os seus bens essenciais para sair da cidade o mais rápido possível. Humm! Nada disso, apenas que deviam ter atenção ao que se passava. Comparando a notícias anteriores, eu considerava aquilo como sendo um avanço substancial. E à medida que a notícia avançava, o meu coração começou novamente a saltar.”

“Eu esperava que o que quer que tivesse acontecido na minha cidade, tivesse sido contido e nunca mais tivesse de viver aquilo outra vez. E naquele momento diziam-me que afinal estava a acontecer noutras cidades também? Que provavelmente ia viver tudo outra vez? Comecei a hiperventilar, a entrar em pânico, e comecei a tentar sair do quarto. Eu tinha de sair dali, não podia ficar ali fechado à espera que aquelas coisas me apanhassem de novo! O velho agarrou em mim e atirou-me para a cama, imobilizando-atirou-me com os braços. Para a aparente idade dele, ele tinha bastante força. Expliquei-lhe o que se passava, que nos tínhamos de fugir, ao que ele respondeu “Mesmo que o que tu dizes seja verdade, o que eu duvido, vais fugir para onde? Não podes fugir para uma cidade, e se segundo o que me dizes nem no meio do campo estás seguro, vais fugir para onde?” e largou-me os braços. O meu pânico continuava a crescer, chegando a pontos de me impedir de pensar correctamente: “Meio do campo? Nós estamos no meio do campo? E se nos acontece algo? Quem nos vai ajudar?”. O velho olhou para mim e abanou a cabeça, dizendo: “Agora já não estás a dizer coisa com coisa. Acho melhor acalmares-te e depois logo pensamos o que vamos fazer!”. Claro que dizer-me para me acalmar não ajudava a que o fizesse. Saltei

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6 da cama e tentei correr para a porta do quarto, com o único intuito de fugir dali. O velho, com reflexos dignos de uma raposa, agarrou-me pela cintura, atirou-me novamente para a cama, e enfiou-me um murro no nariz, deixando-me a sangrar do mesmo. “HEY!!!”, disse o velho com um rugido, “Eu não te trouxe para aqui para te tentares matar à primeira oportunidade. Pelo que me dizes, ninguém está em segurança lá fora, por isso vais-te acalmar, e daqui a umas horas, vais-me contar o que raio aconteceu naquela cidade que te deixou nesse estado. E depois logo se vê o que fazemos. Percebeste?”. Eu acenei com a cabeça, ainda a sangrar do nariz. O velho largou-me, e eu fiquei quieto, deitado na cama. Quando ele viu que eu não mostrava sinais de querer desobedecer-lhe, ele desligou a televisão, e ao sair do quarto, virou-se para mim, e disse: “Nem te atrevas a pensar em sair deste quarto!”.”

Dr. Green continuava a olhar para mim. Engoli em seco e continuei:

“Como pode imaginar, eu não tinha intenções de ficar naquela casa. Mas mesmo assim, mantive-me lá durante uns dias. O meu plano era tentar perceber primeiro o que estava a acontecer, e depois logo se via o que ia fazer. Todos os dias, eu ligava a televisão para ver o que se estava a passar, e todos os dias tinha a mesma sensação de Déjà Vu. Acontecia o mesmo em todas as partes do mundo: primeiro o relato de casos, depois a presença militar, e por fim, o relato de um ataque ou acidente. Era ridículo passarem aquilo e a maioria das pessoas não juntar os pontos. Como era possível?”

“O velho nunca me pressionou para lhe contar o que tinha realmente acontecido, mas sempre que ele via uma noticia do género, eu podia ver que, inconscientemente, ele acreditava cada vez mais no pouco que eu lhe tinha contado. Ele raramente me deixava sair do quarto, apenas para comer, e usar a casa de banho. O resto do tempo mantinha-me no quarto, com a televisão ligada. Dia após dia, via notícias de vídeos de ataques, filmados por pessoas comuns, e mesmo assim ninguém associava aquilo a ataques de zombies. A desculpa era sempre que eram pessoas com problemas psicológicos, ou que tinham fumado saís de banho. Lembro-me inclusivamente de ver uma notícia em que alguém tinha atacado outra pessoa num comboio na China, e tinha-lhe começado a arrancar pedaços da cara com os dentes, e mesmo assim as pessoas apenas filmavam o ataque, sem se aperceber do que realmente estava a acontecer. Apenas algumas chamavam ajuda, telefonavam para os

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7 números de emergência, e quando o comboio parou, a polícia alvejou o atacante na cabeça e levou a vítima para o hospital. Mesmo assim, ninguém via o que se passava? Faziam-se debates nos programas que passavam a altas horas da manha, sobre o significado desses vídeos, mas as conclusões nunca eram algo perto da realidade, e eram apenas levadas como conversas ocasionais, nada de muito importante.”

“Até que chegou o dia em que eu não consegui continuar naquela situação. Tinha-mos acabado de almoçar e eu regressava ao quarto. Ao passar na sala, uma divisão com algumas prateleiras cheias de livros, e um sofá que se encontrava virado para uma lareira enorme, e em que nas paredes se podia ver varias armas, dos mais variados calibres, assim como varias cabeças de animais presas em suportes; reparei que em cima da lareira estava uma foto com o velho e mais duas raparigas idênticas. Peguei na foto e observei-a melhor. Eram mais baixas que Bill, com o cabelo moreno, e um sorriso contagiante. Uma das raparigas tinha algumas madeixas ruivas. Virei-me para ele e perguntei quem eram. Ele avançou rapidamente na minha direcção, e bruscamente, tirou-me a fotografia da mão, dizendo num tom irritado enquanto a colocava no sítio: “A tua mãe nunca te ensinou a não mexer naquilo que não deves, miúdo?”. Pousou a foto, e olhou para ela com um olhar ternurento misturado com dor. Lançou um suspiro e com um tom mais suave disse: “São as minhas filhas. Gémeas. Nós não falamos já há algum tempo!”. Perguntei o que se tinha passado, ao que ele respondeu novamente no mesmo tom bruto: “Nada que te interesse! Agora desaparece daqui!”. Voltei para o meu quarto, e liguei de novo a televisão: e pela primeira vez, vi o relato do que acontece quando os militares não tentam acabar com uma cidade infectada.”

“A imagem mostrava uma repórter de cabelo encaracolado, e roupas ligeiramente rasgadas. Falava rapidamente, sendo que quando eu liguei a televisão, ela ia a meio de uma frase: “…repito, os mortos andam! Os mortos andam!”, dizia ela, “Como já mostra-mos em imagens exclusivas, a doença faz com que os mortos se levantem com um comportamento perigoso. Uma mordida de um infectado é altamente contagiosa. Eu repito: em defesa contra um infectado é preciso inutilizar o cérebro. Um tiro na cabeça, ou o corte da mesma são métodos eficazes. Ohh meu Deus! O que está a acontecer? Será o fim dos tempos?”, a repórter começou a chorar, mas continuou, “Os militares obrigaram-nos a refugiar-nos neste hospital, assim como

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8 o resto dos sobreviventes, por isso não conseguimos saber o que se passa lá fora. Até à uns momentos, os militares disparavam sobre os mortos, para impedir o seu avanço, e proteger este edifício, mas agora o som de tiros cessou. Não sabemos o que se passa lá fora, e o que este silêncio quer dizer. O cheiro a morte é insuportável, e não sabemos quanto tempo vamos ter…”, a repórter calou-se quando se começaram a ouvir gritos misturados com gemidos. Um homem passou a correr em pânico pela câmara, a gritar: “Eles vêm ai! Eles vêm ai!”, e não foi preciso muito tempo para perceber a quem o homem se referia. Os primeiros zombies apareceram a correr por trás da repórter, e esta começou a gritar e a ordenar que o operador de câmara a seguisse. Este começou a correr atrás dela, apontado a câmara à repórter: “Já não estamos seguros, a acção militar falhou, e eles entraram. Neste momento… Ohh Meu Deus… Filma aquilo”, e apontou para algo fora do ângulo da câmara. O operador começou a virar a câmara, mas a repórter gritou “Esquece! Foge!”, e o operador virou novamente a câmara para a repórter, apenas deixando ver o que parecia ser alguém a atacar outra pessoa. Continuaram a correr mais uns momentos, sempre com a mulher a relatar o que se passava, até que o operador tropeçou e caiu. A câmara rebolou no chão, acabando por parar, e ficando a filmar a repórter a fugir, ao mesmo tempo que se ouvia um homem gritar de dor perto da câmara. Vários vultos apareceram na imagem a correr, e a transmissão foi cortada, apresentando um homem bem vestido com um olhar chocado: “Devido a problemas técnicos não nos é possível continuar a transmitir do local em que se encontra a nossa enviada especial…”, a voz dele tremia, e ele parecia estar prestes a desmaiar. Eu não quis assistir mais. Desliguei a televisão e sentei-me na cama.”

“Eu tinha de sair dali, não queria saber do que o velho dizia. Eu não estava seguro ali, e não ia lá ficar nem mais um dia. Por isso mal eu percebi que o velho tinha ido dormir nessa noite, levantei-me o mais silenciosamente que pude, e sai do quarto. Atravessei a sala sem fazer barulho, e dirigi-me ao que parecia ser a porta de saída, reparando que na mesinha ao lado da porta, estava o que parecia ser uma carteira e umas chaves. Peguei nas duas coisas, com as chaves abri a porta, e sai. Hipócrita de merda, o velho tinha-me ajudado e a minha forma de lhe agradecer era rouba-lo?”

“Quando fechei a porta e olhei em frente, reparei que o velho tinha dito a verdade: encontrava-me numa quinta. Apesar de ser de noite, conseguia ver

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9 minimamente bem devido à forte luz que a lua reflectia. À minha direita encontrava-se um celeiro que provavelmente servia para guardar todo o tipo de instrumentos e maquinaria precisa numa quinta, à minha frente um campo enorme, que deixava crescer uma planta qualquer, e quando digo qualquer, refiro-me ao facto de não ser agricultor e não saber o que raio aquilo era, e à minha esquerda encontrava-se um jipe vermelho no que parecia ser o início de um caminho de terra batida. Corri para o jipe, entrei, e liguei a ignição. Meti a primeira mudança, e arranquei, apenas para parar alguns quilómetros à frente, ainda no caminho de terra batida. O velho tinha razão: para onde é que eu ia fugir? Eu não tinha feito, propriamente, um plano que tinha de seguir. Nada do género “Pegar no parro, ir à casa da minha mãe, matar o meu padrasto, salvar a minha namorada, ir para o meu bar favorito, e beber uma cerveja bem fresca enquanto esperava que tudo isto passasse.”. Não, nada disso, eu nem tinha ideia de onde tinha de ir primeiro. Eu sabia que tinha de evitar as cidades, mas mesmo assim, ia para onde? Eu precisava de encontrar ajuda, precisava de ir para um sítio que estive protegido daquilo tudo, e nos filmes isso era sempre garantido pelos militares.”

“Claro que se podia utilizar o argumento de que os militares já me tinham tentado matar uma vez, mas pelo que eu tinha visto na televisão, as ordens deles pareciam ter mudado. Tudo bem que eles tinham falhado naquela situação, mas talvez houvesse algum sítio em que eles tinham conseguido proteger os sobreviventes, e agora estivessem a viver num lugar minimamente protegido de tudo o que acontecia cá fora, todos felizes e contentes. Ou pelo menos eu esperava. Acho que já se notou que naquela altura eu não pensava muito bem. Por isso defini a primeira parte do meu plano: encontrar militares. Depois disso era só rezar para que eles me conseguissem proteger. Caso isso não acontecesse, era rezar para que eu conseguisse sair vivo de onde quer que os encontrasse, e pudesse encontrar outro grupo que cumprisse as suas ordens melhor que o primeiro. Na altura esse pareceu-me ser o melhor plano de acção!”

Dr. Green tossiu como se quisesse que eu lhe passasse a palavra. Eu calei-me e esperei que ele começasse a falar:

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10 Por um lado concordava, visto já estar farto de falar, mas por outro, queria continuar. Queria tentar deitar fora todo aquele peso que sentia no peito. Mas no final concordei que valia mais parar por agora.

Dr. Green olhou para um dos guardas e disse:

- Levem-no para a desinfecção! - Desinfecção? O que isso queria dizer?

Um dos guardas saiu da escuridão, e agarrando-me pelo ombro, obrigou-me a levantar. Apesar de não ter parecido o caso, muito provavelmente tinha passado horas sentado, porque tinha as pernas dormentes. O guarda empurrou-me, obrigando-me a andar, e eu avancei a custo, tentando não tropeçar.

Saímos do quarto escuro, e ele conduziu-me em direcção à cela em que eu tinha acordado. Mas em vez de ele me obrigar a parar, para abrir a porta, o guarda continuou a guiar-me até uma porta que se encontrava ao fundo do corredor. Quando chegamos, ele mandou-me parar, e retirando o molho de chaves do bolso, abriu a porta, obrigando-me a entrar de seguida. Eu entrei no que parecia ser uma espécie de balneário, paredes e tecto branco, completamente iluminado por uma luz brilhante. O chão era composto por pequenos quadrados de azulejos azuis. O homem indicou-me uma caixa com o símbolo de perigo químico, e disse:

- Despe-te completamente e mete as roupas naquele contentor. Depois encosta-te àquela parede! – E apontou para a parede à minha esquerda.

Não querendo correr o risco de parecer que queria desobedecer, retirei as roupas, ficando completamente nu, e encostei-me à parede indicada pelo guarda. Enquanto o fazia, o homem dirigiu-se a um compartimento que se encontrava numa das paredes, e retirou o que parecia ser uma daquelas mangueiras que se vê ligada a um camião dos bombeiros. E então eu percebi o que ele ia fazer. Sem esperar que eu me colocasse numa posição mais confortável, o guarda apontou a mangueira na minha direcção e abriu a torneira. Um forte jacto de água saiu do bocal, atingindo-me com a força de uma parede tijolo. Eu fui projectado contra a parede atrás de mim, tentando em vão segurar-me a qualquer coisa que me ajudasse a lutar contra aquela força atordoante. A mangueira não disparava água normal, mas sim uma mistura entre água e lixívia concentrada, tudo a uma temperatura que me queimava a pele. Eu mal conseguia respirar, e o cheiro a lixívia ardia-me nos pulmões, o que fez com que eu

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11 começasse a tossir e a chorar. E como seria de esperar, isto não ajudou a defender-me deste ataque.

Passados alguns minutos, que pareceram uma eternidade, a água parou, e eu escorreguei, caindo desamparado no chão. Os pulmões ainda ardiam, eu quase não conseguia respirar, e as lágrimas ainda me escorriam pela cara.

- Levanta-te! – Ordenou o homem. Eu continuei deitado. – LEVANTA-TE! – Ordenou o homem, novamente, desta vez com um tom brusco.

Desajeitadamente, obedeci. O homem pegou-me pelo braço, e arrastou-me por uma pequena porta na parede oposta, empurrando-me para uma pequena divisão, semelhante à do balneário, com a única diferença que esta devia ser o vestiário: era apenas composta por um armário, um espelho da minha altura, e um banco.

- Tens roupa no armário. Veste-te! – Ordenou o guarda, enquanto saia da divisão.

Eu sentei-me no banco, durante uns momentos, enquanto tentava recuperar daquele banho. O ardor nos pulmões já não era tão doloroso, e começava a conseguir respirar em condições. Mas mesmo assim ainda sentia fortemente os efeitos do banho. Ardiam-me os olhos, e ao olhar para o espelho, reparei que eles estavam vermelhos não só do cansaço, mas também devido à reacção com os químicos da água. Levantei-me e avancei na direcção do espelho. Este devolveu-me uma imagem de um homem muito magro para a sua altura, com um rosco cansado e endurecido, cabelo que começava a ficar grisalho, e um rosto coberto por uma barba castanha, que em tempos estava sempre aparada. A imagem era muito diferente da foto que eu tinha visto horas antes no início do meu interrogatório, e era uma imagem muito diferente do que eu fora em tempos.

Desviei o olhar do espelho, e dirigi-me ao armário, retirando a roupa lá de dentro. Era uma roupa muito diferente do que eu costumava vestir. Era uma t-shirt e calças brancas, como aquela que davam aos pacientes de um hospital, em contraste com a roupa escura e enlameada que eu costumava utilizar. Mas eu não notava tanto a diferença na cor ou no estilo, mas sim no facto de estar limpa e engomada. Conseguir vestir roupas limpas hoje em dia é quase tão raro como ser uma das pessoas que sobreviveu ao apocalipse. Não é impossível de acontecer, mas vem sempre com

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12 um custo difícil de pagar. E eu só queria saber qual era o custo que eu tinha de pagar por isto.

Vesti-me, reparando na suavidade que aquela roupa nova tinha, e sai da divisão. O guarda encontrava-se à minha espera no balneário, e quando me viu sair, apontou para a porta que tínhamos usado para entrar naquele espaço que ele tinha usado para me dar o banho, e ordenou que eu avançasse. Sai-mos do balneário e ele guiou-me de volta à minha cela, onde depois de abrir a porta e me empurrar lá para dentro, disse:

- Aproveita para dormir princesa. Amanha há mais! – E fechou a porta, rindo-se. Eu fiquei abandonado na escuridão da minha cela, e à medida que os passos do guarda se deixaram de ouvir, fiquei mergulhado em silêncio total.

**********

Dr. Green esperou que os passos do guarda e de Nicolas se deixassem de ouvir. Quando isso aconteceu, virou-se para os restantes guardas que tinham ficado com ele na sala de interrogatório e disse:

- Podem voltar aos vossos postos! – E dirigiu-se para a saída da sala.

Ao sair, começou a caminha na direcção contrária da do guarda e de Nicolas, enquanto pensava no que tinha ouvido. Ainda havia muita coisa por contar, isso tinha ele a certeza. A história de Nicolas não devia ser assim tão simples, e ele sentia uma grande curiosidade em saber o que tinha acontecido. Mas por agora, tinha de informar o seu superior do ponto de situação.

Avançou por varias salas, em que alguns guardas descansavam e outros jantavam. À medida que avançava, ia passando por cada vez menos guardas, e o barulho ia diminuindo. Sempre que passava por algum homem, este levantava-se, e endireitando as costas, punha a mão junto à testa em sinal de continência. Os guardas não o faziam por ele ser seu superior militar, mas sim por respeito. Aquele esconderijo militar onde se encontravam tinha sido a salvação para muitos, e por isso eles deviam-lhe a vida tanto a ele como ao superior do Dr. Green. Sem ele, aqueles homens não eram nada.

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13 Finalmente chegou ao seu destino: uma porta no fundo de um corredor escuro. O som dos guardas já não se ouvia, e Dr. Green bateu à porta. Uma voz rouca, com um tom robótico e falso, falou:

- Entre!

Dr. Green abriu a porta e entrou. Encontrava-se numa sala com paredes cobertas de livros, e uma secretaria massiva de madeira no centro. Um homem estava sentado do outro lado da secretaria. O seu rosto era experiente, e cheio de rugas, mostrando que provavelmente o homem já tinha passado por muitas experiencias. O cabelo era preto com madeixas brancas. O seu olhar era desafiador e ao mesmo tempo avaliador.

- Dr. Green… Presumo que me venha informar dos seus avanços! – Disse o homem no mesmo tom robótico e falso. O homem falava calmamente, como se tivesse todo o tempo do mundo para expressar os seus pensamentos.

- Ainda não fiz avanços relevantes sobre o estado do sujeito, mas posso dizer que ele tem potencial! Apesar de ele ter sobrevivido até agora, mantive-o durante a noite sem qualquer tipo de processo de desinfecção, e apenas agora o mandei desinfectar. Durante este tempo todo não houve alterações de nenhum tipo. Como disse: grande potencial!

- Eu não quero saber do potencial do prisioneiro. Eu apenas quero saber como é possível ele reagir daquela forma! – Começava-se a notar um tom de desaprovação na voz do homem.

- Eu compreendo. Precisarei de mais tempo com ele, se for possível. – Continuou Dr. Green. – Existem aspectos que precisarei de avaliar em mais detalhe.

- Tempo é algo que nos começa a faltar Dr. Green. Eu quero saber o que se passou, e quero saber isso o mais rápido possível. Ele é uma ameaça a tudo o que fizemos até agora, a tudo o que alcança-mos até este momento, e é responsabilidade sua descobrir como é que ele se tornou essa ameaça. Pessoas como ele não deviam existir Dr. Green. E nós temos de descobrir porquê!

Dr. Walter Green olhou para o homem, enquanto avaliava a ameaça por trás daquelas palavras:

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