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Pescadores vareiros no rio Tejo

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Academic year: 2021

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Editor: Instituto Politécnico de Santarém Coordenação: Gabinete coordenador do projecto

Ano 6; N.º 231; Periodicidade média semanal; ISSN:2182-5297; [N.57]

FOLHA INFORMATIVA Nº06-2013

Pescadores vareiros no rio Tejo

No meu livro de poesia “Longa Caminhada” publiquei o poema “Povo Vareiro”, de que aqui transcrevo um excerto, em jeito de prólogo:

Povo vareiro

Que na Régua vendeu sal Que mandou peixe p´ró Douro Pescado no Furadouro

E que a sul de Portugal Pescou e foi fragateiro Habitou na Madragoa E foi varina em Lisboa. (…)

Hoje vou recordar os nossos pescadores que, depois de terminada a safra na costa de Ovar (Novembro/Dezembro), se dirigiam para terras do sul banhadas pelo rio Tejo, no intuito de pescarem sobretudo o sável, mas também outras espécies de peixes. Eram conhecidos como

vareiros, embora este apelido se aplicasse igualmente aos naturais das terras nossas vizinhas

da bacia do Vouga, especialmente da Murtosa, Pardilhó, Aveiro e Ílhavo.

A propósito deste apelido, escreveu Maria Micaela Soares na Revista “ Varinos” (Lisboa 1989) que “ no primeiro quartel do século XVIII, o termo não aparece ainda dicionarizado com o significado em questão, mas apenas como espécie de barco”. E da primeira à sétima edição do Dicionário de Morais, datadas de 1789 a 1878, o termo não é também contemplado.

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Só a partir da oitava edição de 1890-91, atingiu o actual valor semântico das formas masculinas e femininas – “o que é da costa marítima; vareiro; mulher de Ovar; ovarina; vareira”. Na décima impressão alarga-se o conteúdo da palavra “filhos de Ílhavo”.

Vareiros em Vila Franca de Xira

Nos livros 6, 7 e 8 de óbitos de Vila Franca de Xira, entre 1811 e 1816, encontram-se alguns assentos de pessoas falecidas naquela cidade que indiciam poderem ser varinos. Assim, em finais daquele último ano, consta que faleceu na “falua1 da carreira de Valada”, com destino a Vila Franca de Xira, para cujo hospital se dirigia, um indivíduo natural da Vila de Ovar.

A partir de 1825 começa a notar-se a fixação de gente de Ovar em Vila Franca de Xira. Nos anos de 1832 e 1833 a epidemia (cólera- morbus) vitimou muita população varina domiciliada nesta Vila, incluindo Ílhavos e Murtoseiros.

Numa lista de enfermos, respeitante à admissão no Hospital de Beneficência da Terra, consta elevado número de varinos, alguns mesmo com esta alcunha colectiva e quase todos com a anotação de “moradores na Vila”.

O caso mais expressivo é o de um assento de óbito feito em Azambuja no dia 27 de Abril de 18332 onde ficou registado o seguinte:

(…) Faleceu quase repentinamente e por isso sem Sacramentos, Manuel Pinto Nunes, casado com Maria de São João, natural da Villa de Var, termo da Feira e moradores nos limites do campo desta freguesia, à borda do Tejo, no sítio chamado Corte dos Cavalos.

Acrescenta-se ainda que no dia seguinte foi o extinto conduzido para aquela vila por seus companheiros na pescaria, os patrícios Ventura Pereira Ganço e João de Oliveira Paixão. Esta gente habitava fora da povoação (nos limites do campo), à babugem do rio, no dito sítio de

1 N. R. – Falua – “Embarcação de vela, semelhante à fragata”. 2

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Corte dos cavalos, local assim identificado desde a Idade Média. É sabido pelos pescadores mais antigos que a Vala da Azambuja “foi dos lugares da Borda-d’Água a serem mais cedo pisados pelos pés descalços destes marítimos, nas suas deslocações temporárias.

O investigador Hermínio de Freitas Nunes, que trabalha num Projecto de Candidatura da Cultura Avieira a Património Nacional e Imaterial da UNESCO, fazendo investigação na base de dados3 do antigo Hospital da Misericórdia de Santarém, encontrou três indivíduos de Ovar, que tudo indica terem sido pescadores do rio, a viverem nos barcos e a vaguearem pelo Tejo. O amigo Hermínio teve a gentileza de me enviar os seus nomes e datas da sua entrada no hospital, conforme transcrevo:

“Aos 23 de Janeiro de 1859, deu entrada no Hospital, José Rodrigues Cavado, de 32 anos, natural de Ovar, de profissão e residência desconhecidas, casado com Rosa Gomes. Entrou vestido com farrapos. Teve alta a 3 de Fevereiro”.

“Aos 14 de Maio de 1860, deu entrada no Hospital, José de Oliveira, de 52 anos, natural de Ovar, de profissão e residência desconhecidas, casado com Maria da Piedade. Entrou vestido com calças, camisa, camisola, chapéu, manta, ceroulas sapatos, tudo usado. Teve alta a 18 de Maio”

“ Aos 5 de Setembro de 1869, deu entrada no Hospital, António Pereira da Cunha, de 46 anos, natural de Ovar, de profissão e residências desconhecidas, filho de Pedro Fernando da Cunha e Catarina Pereira da Cunha. Entrou vestido com calças, colete, camisa, barrete meio usado, e um farrapo de cobertos. Teve alta a 13 de Setembro.”

A época sazonal do sável

Normalmente comentava-se que os varinos terão acostado às ribeiras do Tejo após a instalação do caminho-de-ferro do Norte (1864), com a ligação de Lisboa a Vila Nova de Gaia. Todavia, pelo que se apurou, e embora esse acontecimento contribuísse bastante para um grande afluxo dessas migrações, a sua vinda, a princípio sazonal, ocorreu muito mais cedo.

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N. IPS – Esta base de dados foi construída para a elaboração da obra “Avieiros- Dores e Maleitas” da autoria de Lurdes Véstia e Emídio Rafael, em 2011, que a disponibilizaram para estudos e investigações no âmbito do Projeto de Candidatura da Cultura Avieira a Património Nacional.

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Já o folheto setecentista inventariante das escaramuças entre “saveiros” e “algarvios” refere que os primeiros viviam a maior parte do ano aquartelados na enseada da Trafaria.

Na sazão do sável (entre Janeiro e Abril para a captura deste peixe) chegavam os varinos após tormentosas e prolongadas viagens.

Já no Tejo, desciam até Paço-d’Arcos ou metiam-se pelas imensas variantes do grande rio – Sacavém, Unhos, Povos, Azambuja, Constância, Caramujo, Salvaterra, Coruche, Muge, etc. Acabada a colheita, antes do São João, regressavam á sua terra, onde a família os esperava, levando nos bolsos os lucros acumulados à custa das maiores privações.

Meu pai, que foi fragateiro em Lisboa na primeira década do séc. XX, contava-me que ia várias vezes na fragata para alguns sítios das margens do Tejo onde pescadores do sável com quem contactava se queixavam de ser árduo aquele trabalho. Ele dizia-me também que a vida nas fragatas era igualmente penosa, acrescentando que várias vezes, estando sentados no barco para tomar as refeições, costumavam comentar uns com os outros: “as sopas estão boas, mas o pior é o Tejo…!”

Alguns fragateiros da mesma época disseram-me que viram muitos conterrâneos nossos com seus barcos (saveiros) na pesca do sável. Em Alhandra e na Praia do Ribatejo utilizavam nesse trabalho o sistema do “arrasto” e em Vila Franca de Xira também usavam as redes saveiras de malha larga (pesca de emalhar), porque o peixe, ao sair do mar para o rio em sentido contrário, ficava emalhado, com a cabeça metida na rede. Noutros sítios, desde Sacavém até Azambuja, o método de pesca mais usado era o de “arrasto”, tipo “chinchorro”, sistemas de pesca muito conhecidos dos nossos pescadores vareiros, porque já os utilizavam na costa de Ovar e na Ria, ensinados pelas gerações anteriores.

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Nas décadas de 20/30 do século passado, os barcos ”saveiros” já eram construídos nos estaleiros de Vila Franca de Xira, onde havia carpinteiros de machado, e para sua conservação utilizavam uma tinta de breu, deste modo, todos pintados de preto.

Em Vila Franca, onde alinhavam os barcos nos esteiros, os pescadores utilizavam um resguardo característico, desenrolado à noite para se protegerem, já que faziam do barco a sua moradia, onde comiam e dormiam.

Varinos antes dos “avieiros”

No livro “ À Descoberta de Portugal” da Reader’s Digest, lê-se que, na 2ª metade do séc. XIX, uma população oriunda principalmente da Beira-Litoral ocupou os baldios municipais da região compreendida entre Muge, Salvaterra e Coruche.

A Vila Franca chegaram, nessa mesma época, com as famílias, os “avieiros” (pescadores de Vieira de Leiria). Vinham nas próprias bateiras (labregas) que, depois de impróprias para a pesca, serviam para habitação.

Assim, próximo da actual ponte, e a montante do porto fluvial, se estabeleceu uma colónia de pescadores daquela região.

Rua Luís de Camões, em Vila Franca, ou Rua dos Varinos

De acordo com o folheto setecentista atrás descrito, os varinos terão pescado no Tejo muito antes dos “avieiros”, e em Vila Franca de Xira formaram igualmente um bairro constituído por casas de madeira (palheiros) e por barcos, ao longo do rio, entre a linha do caminho-de-ferro e a maré do Tejo, junto à actual Praça de Touros.

José Maria Fião, maquinista da Polícia Marítima de Lisboa a partir dos anos 30 do séc. XX contou-me que, nas suas idas pelo rio Tejo a Vila Franca de Xira, viu nessa época, com alguma admiração, fazerem a queima de Judas, tal e qual como se fazia em Ovar no sábado de Aleluia.

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Disseram-lhe pessoas com quem falou que essa tradição tinha sido levada para aquela localidade pelos varinos.

“Pescador de torna-volta ou implantado nos burgos que escolheu para domicilio, o varino exerceu sempre grande fascínio sobre os observadores, entre os quais se contava um “Núncio do Papa” na corte de d. Luís, que todas as manhãs ia ao Aterro maravilhar-se com o vaivém das varinas. Sobretudo as mulheres, os dois braços erguidos em prodígios de equilíbrio para segurarem a giga, semelhantes a esbeltas cantarinhas de duas asas, friso de “estatuetas rústicas e marinhas”, como escreve Fialho de Almeida.4

O poeta António Nobre em 1885 numa visita a Ovar para ver a procissão dos Ramos, apreciou-as em traje domingueiro, diferente do que usavam no trabalho, tal como aquele com que apreciou-as viu o “Núncio do Papa” e descreveu-as assim:

Varinas,

Envoltas numa capa, esbelta criaturas. Passam na rua atrás da lenta procissão

Tão brancas, tão gentis, tão calmas e tão puras, Como o festivo andor erguido à multidão. Medem o passo audaz na estrada de verduras, Pelas palpitações do róseo coração…

E o Cristo vai no andor: não leva pisaduras, Não fere os níveos pés, não roça os pés no chão.

Vila Franca de Xira já teve no passado uma rua dedicada aos varinos, e ainda hoje os mais antigos moradores daquela artéria conhecem-na por esse nome, embora na nova toponímia a tivessem designando de rua Luís de Camões.

Oxalá que todas as localidades banhadas pelo rio Tejo, na 2ª metade de séc. XX não esqueçam esta gente que fornecia o peixe às suas populações e que quando o rio não lhes dava o suficiente para sobreviver, vendiam criação, fruta, alhos, hortaliça, leite, marmelos assados no forno, etc.

Além disso, as varinas sobre pranchas estendidas das fragatas, carregavam para terra sal, areia, tijolos, carvão, etc., vergadas pelo peso dos produtos que transportavam e, em ocasiões em que tanto a pesca e a venda como os outros empregos falhavam, ainda arrastavam o seu calvário pelas ruas da capital, mendigando.

4 O Trabalho e as Tradições Religiosas no Distrito de Lisboa – Exposição de Etnografia do Governo Civil

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E termino com outro dos nossos poetas, Fernando Pessoa: “ A memória é a consciência inserida no tempo…”

José de Oliveira Neves

Agradecimentos: Quero expressar a minha gratidão à Dr.ª Mónica, do Museu de Vila Franca de

Xira, e ao Vereador desta cidade, Fernando Paulo Ferreira, pelos preciosos apontamentos e fotos que me enviaram, bem como a Herminio de Freitas Nunes. Muito Obrigado. J.O.N.

As fotos apresentadas foram recolhidas pelo autor e publicadas num artigo do Jornal João

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