• Nenhum resultado encontrado

Rap: entre a realidade, a alteridade e a palavra

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Rap: entre a realidade, a alteridade e a palavra"

Copied!
5
0
0

Texto

(1)

Rap: entre a realidade, a alteridade e a palavra

Tatiana Aparecida Moreira1

[...] Amigos: as palavras mesmo estranhas se têm música verdadeira só precisam de que as toque ao mesmo ritmo para serem todas irmãs. [...]

A fraternidade das palavras

José Craveirinha

As relações, em qualquer esfera, são de caráter dialógico e não monológicas, como já postulavam Bakhtin e seu Círculo, uma vez que o homem não é um Adão bíblico (BAKHTIN, 2003) só relacionado a coisas ainda não nomeadas, pois a palavra é prenhe de resposta e “[...] penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc” (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1995, p. 41, grifo dos autores).

Pensando nessa perspectiva e que toda palavra comporta duas faces, é possível “auscultar” o rap, então, a partir de sua dimensão social, cultural, ideológica e política, bem como o Hip Hop no qual o rap está inserido, juntamente com os outros elementos desse movimento cultural. A saber, a dança break, o rapper/MC (Mestre de Cerimônia), o graffiti e o DJ. Acreditamos que todas as dimensões estão presentes nesses elementos, principalmente nos raps, uma vez que em letras como “Cidadão Refém”, de MV Bill, e “Tá na chuva” (disponível apenas na internet), dos Racionais MC’s, é possível observar tais aspectos:

[...] A falta de perspectiva

sem a possibilidade de escolher o que é melhor pra sua vida o que gera revolta na cabeça da comunidade

que é marginalizada pela sociedade

1

Doutoranda em Linguística (UFSCar/UC/Bolsista Fapesp). E-mail: moreira.tatyana@gmail.com. Orientadora: Profa. Dra. Cristine Gorski Severo.

(2)

que se cala escondida no seu condomínio na lei da favela ainda impera o genocídio

sua dura vida lhe ensinou a caminhar com as próprias pernas resta agora você se livrar do mal que te corrói, e te destrói [...]

Cidadão Refém – MV Bill

[...] Ninguém é perfeito mas ainda tem o direito Direito de falar, direito de pensar

Direito de viver descentemente sem roubar Direito de aprender como se ganha dinheiro Sem ter que trapacear no jogo o tempo inteiro Direito de ouvir e de criticar também

Direito de entender e debater com você além A lei que foi criada pra incentivar

O nosso acesso é restrito, o processo é só aumentar Vamô chegar, mudar, pra revolucionar

Racionais está no ar, e o RAP também tá Em qualquer lugar, onde a mensagem vá Sei que um Aliado mais um...vou resgatar!!!

Tá na chuva – Racionais MC’s

Para além desses aspectos que podem ser relacionados ao Hip Hop e ao rap, é possível vê-los também como carnavalização de algumas práticas do mundo? Entendemos aqui mundo não em uma instância global, mas os micro-mundos nos quais estamos inseridos em nossa vida cotidiana.

A carnavalização, trabalhada por Bakhtin (2010) no livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, seria uma segunda vida do povo, baseada no riso. Ainda de acordo com Bakhtin, essa segunda vida é construída como paródia da vida comum, por isso que “o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem” (BAKHTIN, 2010, p. 11). Esse conceito deve ser entendido, assim como Bakhtin sugere, como uma forma de contestação, ou seja, de saída do status quo, à época de Rabelais, mas que também pode ser reatualizado em diversas práticas, como as que o Hip Hop e o rap têm e representam, do nosso ponto de vista.

Nesse sentido, o sério representaria o oficial, o autoritário, associando-se, dessa maneira, à violência, às interdições e às restrições (BAKHTIN, 2010). Mesmo tendo sido escrito com foco no contexto da Idade Média e do Renascimento e da literatura, essas questões propostas por Bakhtin podem ser trazidas para nosso cotidiano, uma vez que é possível ampliá-las e fazer um paralelo, por exemplo, com os atuais protestos que

(3)

têm acontecido no Brasil, nos quais presenciamos a violência, as interdições e as restrições por parte de alguns que representavam a oficialidade, mas também vimos excessos por parte daqueles que estavam infiltrados no meio dos manifestantes. Não estamos com isso, querendo tomar partido de nenhum lado, mas apenas exemplificar com situações atuais o que Bakhtin abordava em outro contexto e que também pode acontecer em nossos dias.

Por isso que “[...] uma maneira de utilizar sistemas impostos constitui a resistência à lei histórica de um estado de fato e as suas legitimações dogmáticas” (CERTEAU, 2003, p. 79, grifos do autor) e a carnavalização é uma via para se conseguir resistir, contestar e/ou questionar, tal qual Bakhtin sugere em seus estudos. Assim, os rappers, principalmente por meio do rap, do nosso ponto de vista, também carnavalizam distintas situações nos raps, visto que em muitas letras há críticas e/ou questionamentos a diversos segmentos da sociedade brasileira, como se observa no seguinte fragmento:

500 anos ...tudo igual .. América ... justiça ...

500 anos depois ... tudo igual ... Justiça .. paz ....

500 anos ...

Jesus está por vir mas o diabo já está aqui .. 500 anos o Brasil é uma vergonha [...]

Otus 500 – Racionais MC’s

Assim como o riso da Idade Média que é uma sensação social, universal, que degrada o poder e liberta da censura exterior e interior (BAKHTIN, 2010), o riso que pode ser observado nos raps é reelaborado e reacentuado nessas crônicas urbanas, via alteridade, já que é por causa do outro, o “mano”, habitante da periferia, os representantes da elite, a própria periferia e/ou qualquer outro, que essas narrativas se constituem e são constituídas. Por isso que, de alguma maneira, esse riso observado nos raps degrada e é libertador, como pode ser notado nos seguintes fragmentos:

[...] Amo minha raça, luto pela cor,

O que quer que eu faça é por nós, por amor.

Não entende o que eu sou, não entende o que eu faço, Não entende a dor e as lágrimas do palhaço.

Mundo em decomposição por um triz, Transforma um irmão meu num verme infeliz.

(4)

[...]

Cadê meu sorriso? Onde tá? É, quem roubou? Humanidade é má, e até Jesus chorou [...]

Jesus Chorou – Racionais MC’s

Acorda, levanta

Ficar se lamentando no quarto não adianta Aqui temos a planta

Não precisa carta branca Quem espera não alcança Cansa de esperar

Vai ficando pra trás E vendo a fila andar

Tem que ser ligeiro pra não sucumbir Encarar a vida para não cair

Valorize a força do seu pedigree [é sem tempo pra chorar]

Tem que ter suor para conquistar [...]

Liberte-se – MV Bill

Partilhamos, assim, das ideias de Bakhtin (1998, p. 29) quando diz que “[...] todo ato cultural vive por essência sobre fronteiras [...]” e isso se relaciona também à carnavalização e ao riso, visto que “[...] a destruição e o destronamento estão associados ao renascimento e à renovação, a morte do antigo está ligada ao nascimento do novo [...]” (BAKHTIN, 2010, p. 189). Ou seja, “o velho convive e dá lugar ao novo” (BAKHTIN, 2010, p. 183), numa relação de alteridade. E nisso se observa que há uma linha tênue que une/separa o velho e o novo, e consequentemente tudo aquilo que esse velho e novo trazem e reacentuam, como acontecem em muitas práticas culturais, é o caso do Hip Hop e do rap que têm origens, de acordo com Silva (1999), na década de 1970, em bairros americanos, como o Bronx, com a valorização da cultura negra na luta por seus direitos civis, mas que é reelaborado e revalorado nos distintos lugares em que a vida, a arte e a alteridade dialogam e se interconectam.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de Yara Fratesch Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

______. Estética de Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins

(5)

______. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F.

Bernadini e outros. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

______; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. v. 1.

MV BILL. Causa e Efeito. Rio de Janeiro: Chapa Preta, 2010. 1 CD.

RACIONAIS MC's. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica, 2002. 2 CDs.

SILVA, José Carlos Gomes. Arte e Educação: A Experiência do Movimento Hip Hop Paulistano. In: ANDRADE, Elaine Nunes (org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Summus, 1999, p. 23-38.

Referências

Documentos relacionados

Iolanda Maria da silva, O Projeto de extensão Extramuros Escolar: uma viagem ao museu de Belém do São Francisco promoveu a construção de conhecimento sobre o patrimônio

Considerando a compreensão da formação continuada como direito do professor ao seu desenvolvimento profissional com consequente direito do discente à melhor qualidade de sua

temperatura do dossel da cultura - °C b, taxa de transpiração E – mmol H2O m-2s-1 c, índice de estresse hídrico da cultura – CWSI d; temperatura foliar - °C e; potencial de água

Tais fatores dizem respeito essencialmente à crônica super oferta de mão de obra, provocada pela migração oriunda do interior do estado, pelo crescimento

Embora os recursos financeiros doados pela empresa não fossem suficientes para atender a todos na comunidade que precisassem de algum crédito, o BCD Serra Azul inicia suas

381 O subprojeto III - Intervenção em políticas públicas, por sua vez, contempla a elaboração de campanhas e ações voltadas para a sociedade em relação a questões do

indica relações entre o texto de leitura e muitos outros, tentando favorecer, sempre que possível, as relações entre a língua portuguesa, outras linguagens e

Since there are no available data for carbendazim and tebuconazole on the bioassay of Tradescantia pallida, we assessed the potential genotoxic effect of