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Arqueologia da memória: reflexões

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Academic year: 2021

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Marcela Lopes Gomes

Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara

marcelalsgs@hotmail.com

José Luis Vieira de Almeida

Professor Doutor do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho” – UNESP/São José do Rio Preto

joseluisv@terra.com.br

Resumo: O presente artigo analisa a gênese da memória na arqueologia dos processos mentais a partir das reflexões desenvolvidas pelo filósofo alemão Christoph Türcke em sua obra Filosofia do sonho (2010a). Trata-se de um estudo que utilizou o recurso metodológico da pesquisa bibliográfica. Para tanto, aborda o surgimento da memória como uma tentativa de libertação de estímulos atormentadores por meio do processo de compulsão à repetição traumática, considerada a única pulsão genuinamente humana por Türcke (2010a).

Palavras-chave: Gênese da memória. Processos mentais. Pulsão. Representação. Abstract: This article discusses the genesis of memory in archaeology of mental processes from the reflections developed by german philosopher Christoph Türcke in his work Philosophie des Traums (Original in German, 2010a). This is a study that used the methodological feature of literature research. It discusses the emerging of memory as an attempt to release the tormentors stimuli through the process of compulsion to traumatic repetition, considered the only genuinely human drive by Türcke (2010a).

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E c c o S – R e v i s t a C i e n t í f i c a

Vinculado à primeira geração da Escola de Frankfurt, o filósofo alemão Christoph Türcke revisita, em Filosofia do sonho, as reflexões te-cidas por Sigmund Freud a respeito do sonho, situando-o também como atividade primitiva de pensamento. Essa é a chave a partir da qual Türcke (2010a) desenvolve uma arqueologia dos processos mentais, porém enceta sua análise ancorada no materialismo histórico-dialético.

De acordo com o autor alemão, condensação, descolamento e in-versão são mais do que “contramestres” do sonho, como indicava Freud (1996), constituem operações pelas quais se deu a formação do pensamen-to, da cultura e da hominização. A tese freudiana segundo a qual sonhos são realizações de desejos é debatida por Türcke (2010a), que rejeita a du-alidade pulsional (pulsões de vida e pulsões de morte) apresentada por Freud (1976) em Além do princípio do prazer e considera a compulsão à repetição traumática como a pulsão humana por excelência.

Diante dessa perspectiva, Türcke (2010a) defende que a memória surgiu na tentativa de se libertar de estímulos atormentadores, ou seja, de um processo de fuga de estímulos vivenciado por várias espécies de homi-nídeos, particularmente pelo neandertal e pelo homo sapiens. Este artigo objetiva, pois, tratar da gênese da memória humana a partir das reflexões desenvolvidas pelo filósofo alemão Christoph Türcke acerca da arqueolo-gia dos processos mentais.

Gênese da memória à luz da compulsão à repetição

traumática

A busca por se livrar do horror constituiu a pulsão humana mais elementar, segundo Türcke (2010a). Sob extrema pressão externa das for-ças elementares da natureza (intempéries, terremotos, animais selvagens) e mediante uma constituição física com alto grau de sensibilidade para estímulos (sistema nervoso mais desenvolvido dentre todas as espécies), os hominídeos do Paleolítico tiveram de descobrir caminhos e meios para o escoamento de estímulos martirizantes. “Experiência e assimilação do pavor são constitutivos para a humanidade primitiva” (TÜRCKE, 2010b, p. 147). Dessa forma, para dominar a natureza ameaçadora externa, a

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“hu-A r t i g o s

manidade primitiva”1 precisou também dominar a sua natureza interna, a natureza em si.

Isso tudo, entretanto, perfaz simplesmente condições físicas imprescindíveis para atribuir um significado à natureza, mas não explica suficientemente como se chegou a esse ponto. Aí sempre permanecerá uma lacuna. Nunca é possível dizer como a esfera do significado se abriu; unicamente é possível sempre nomear condições, sem as quais ela nunca poderia abrir-se. (TÜRCKE, 2010a, p. 81).

Dentre tais condições, Türcke (2010a) situa a compulsão à repetição traumática, desenvolvida unicamente pelos hominídeos em função dos es-tímulos traumáticos primevos experimentados por eles de modo distinto aos demais animais em virtude de seu complexo sistema nervoso. Trata-se de um artifício psicológico: organizar uma fuga retrospectivamente contra algo de que não se possa defender ou fugir, uma “[…] fuga na direção contrária, não para longe do susto, mas em direção a ele, onde ele golpeou, portanto, de certo modo para o interior, para o próprio centro nervoso” (TÜRCKE, 2010a, p. 82).

Todavia, não seria mais lógico evitar ou fugir do choque traumáti-co do que repeti-lo traumáti-continuamente? Para elucidar essa questão, o filósofo alemão, apoiado na revisão empreendida por Freud2 em sua análise a res-peito dos sonhos de vivências traumáticas de guerra, avalia que a repetição constante do susto (compulsão à repetição) faz com que ele perca sua hor-ribilidade, adquira certa familiaridade e se livre de seu caráter de surpresa, numa tentativa de torná-lo suportável.

Do ponto de vista neurológico, a memória não se localiza em uma estrutura isolada do cérebro, ela é um desempenho nervoso elementar que envolve a aliança entre diversas partes e regiões isoladas do cérebro que funcionam juntas, num processo complexo de reações neuroquímicas em cadeia e circuitos interligados de células nervosas (neurônios). Como afir-ma Türcke (2010b, p. 128), “Memória é a própria rede, não algo dentro dela”. De acordo com o neurocientista Iván Izquierdo (2010, p. 23), o cé-rebro humano tem cerca de 80 bilhões de neurônios, “[…] os do córtex cerebral recebem entre mil e 10 mil conexões – sinapses – procedentes de

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outras células nervosas, e emitem prolongamentos que fazem conexão com outros dez a mil neurônios”. Consequentemente, há muitas possibilidades de intercomunicação entre os neurônios, sendo que cada uma delas pode gerar memórias.

Com base em estudos da neurociência, Türcke (2010a) argumen-ta que a inércia desempenha um papel no ato de repetição relacionado à memória, uma vez que pela força da gravidade os organismos tendem a experimentar certa inércia fisiológica, além de uma inércia física; estando propensos a repetir o comprovado e a iniciar o caminho mais cômodo, de menor resistência. Essa tendência de processar as excitações de maneira mais cômoda ocorre no sistema nervoso e Türcke (2010a) a relaciona à “memória procedural”. Dessa forma, para o filósofo alemão, inicialmente a memória consiste num procedimento: “[…] percorrer trajetos pelo sis-tema nervoso, construí-los, firmá-los, ligá-los em rede e desse modo pro-porcionar ao organismo um determinado repertório de comportamento” (TÜRCKE, 2010a, p. 38). Inércia, repetição e memória estão, pois, rela-cionadas reciprocamente.

Os neurocientistas Squire e Kandel (2002) esclarecem que a memó-ria procedural ou não declarativa consiste na memómemó-ria relativa às capacida-des ou habilidacapacida-des motoras e sensoriais, hábitos, aprendizagem perceptiva e emocional. Embora oriunda da experiência, esse tipo de memória se ma-nifesta como uma alteração de comportamento e não como uma recor-dação, é inconsciente na medida em que a capacidade de desempenhar a habilidade ou a competência adquirida não parece depender de qualquer recordação consciente. “Em termos evolutivos, [as memórias não declara-tivas] são antigas, fiáveis e consistentes, fornecendo uma miríade de meios inconscientes de reagir ao mundo” (SQUIRE; KANDEL, 2002, p. 201).

Nesse sentido, o filósofo alemão sustenta que a evacuação de estímu-los é pulsão sob o aspecto neurológico, uma vez que o organismo viabiliza caminhos de fuga para os estímulos (impulsos elétricos) e dessa atividade surgem as viações de condução de estímulos entre as células nervosas (do lado pré-sináptico para o pós-sináptico). Logo, as viabilizações neurais são correntes de nervos geradas eletroquimicamente. A construção dessa inter-conexão de células nervosas é determinada genética e epigeneticamente, porém aquilo que nessa atividade se modifica, realiza o seu desempenho de modo autodeterminado. Em outras palavras: autodeterminação

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orgâ-A r t i g o s

nica “[…] consiste em que o organismo mesmo seja aquele que viabiliza os caminhos de fuga dos estímulos. E, à medida que os viabiliza, ele também neles se consolida” (TÜRCKE, 2010a, p. 149-150), preparando vias de repetição enquanto as traça.

Assim sendo, o organismo começa a estabelecer estruturas por re-petição. Com a capacidade de restauração de uma viação de fuga, come-ça um processo de inteligência orgânica, na medida em que o organismo se torna capaz de reativar viabilizações de fuga de estímulos e, com isso, passa a dispor delas como repertório de conduta. Essa capacidade de repetição constitui a forma elementar de memória orgânica. Segundo Türcke (2010a, p. 152, grifos do autor), tal memória elementar precisa ser compreendida de modo teórico pulsional: “Para a viabilização e para as viações afinal se pode também dizer: pulsão e destino de pulsão. […] Destino de pulsão neste caso é apenas uma palavra diferente para me-mória: o repertório da conduta, do qual o organismo dispõe, mas o qual também dele dispõe”.

Contudo, a memória não trabalha associativamente apenas no sen-tido neurológico, mas também é vivenciada de modo associativo. O autor alemão defende que a memória se desenvolveu a partir do processo de compulsão à repetição traumática: recordar-se da dor para se aprontar para a nova dor na tentativa de construir, por caminhos já viabilizados, um melhor sistema de captação e evacuação de estímulos atormentadores. Em outras palavras: repetição para que o sofrimento e a dor vivenciados não se repitam do mesmo modo novamente. Nesse sentido, a angústia constitui a forma primeva de memória, visto que só existe por meio da recordação de algo desagradável. Logo, a memória desponta com o objetivo de findar os seus motivos e assim ela própria, ou seja, como uma tentativa de sossego para estímulos martirizantes. Squire e Kandel (2002, p. 163) assinalam que as “[…] capacidades de memória mais simples e as que talvez tenham surgido mais precocemente na evolução parecem ser as memórias não de-clarativas [procedurais] ligadas à sobrevivência, alimentação, acasalamen-to, defesa e fuga”.

A importância da compulsão à repetição para a gênese da memória conduz ao questionamento de como tal compulsão se principiou no proces-so de hominização. Diante do extenproces-so decurproces-so temporal do Paleolítico até a contemporaneidade, o início da compulsão à repetição traumática não pode

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mais ser determinado, porém as ocorrências de suas formas regradas social-mente são averiguáveis a partir das atividades desenvolvidas pela “humani-dade primitiva”, dentre as quais se destaca o sacrifício. Historicamente, o sacrifício consistiu numa forma de expressão dessa compulsão, isto é, numa busca de alívio, de se apaziguar o sentimento de pavor perante forças da natureza não dominadas. “Para se libertar do susto natural pelo qual foi golpeada, a horda de hominídeos golpeia-se mais uma vez a si mesma”3

(TÜRCKE, 2010a, p. 83). Dessa forma, o sacrifício constituiu a mais antiga das formas concretas de memória explícita, genuinamente humana.

O espaço do ritual é o do aprisionamento fictício do susto. A hu-manidade primitiva construiu um espaço limitado de conservação das forças da natureza com vistas à sua superação, iniciando-se, assim, um notável processo de internalização. De acordo com Türcke (2010a), o deslocamento e a condensação do susto da natureza para o espaço ritual, manifestações essas da inversão do susto em seu contrário por meio da repetição, engendraram a abertura da forma arcaica de imaginação. Tais operações foram essenciais para a formação do pensamento, da cultura e da hominização:

Nisso se manifesta de maneira especialmente drástica a enorme transvaloração que a compulsão traumática à repetição efetua já em suas formas elementares. Liberar-se do acontecimento pa-voroso reproduzindo-o, em vez de fugindo dele, é uma forma de dar-lhe seu beneplácito. Mas dar o beneplácito a algo pa-voroso significa nada menos que romper com a interpretação animal do mundo. (TÜRCKE, 2010b, p. 141, grifo do autor).

Na ritualização da compulsão à repetição traumática, possibilitou-se uma reprepossibilitou-sentação, uma dramatização com caráter tanto alucinatório quanto performativo. A encenação do susto vivenciado, por um lado, pro-vocava a alucinação do susto da natureza, mas, por outro, a sua celebração pela ação real. Desse modo, o coletivo realizava a rememoração do susto passado, tornando-o representação, início de um processo de abstração do aqui e agora. Essa atividade performativa da memória é designada como presencialização: fazer presente o ausente, sendo que esse ausente é um passado atormentador, com a finalidade de que ele cesse totalmente.

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A r t i g o s

Conforme Türcke (2010a), a memória humana, em sua origem, é uma busca de libertação do passado, uma tentativa de esquecer um aconteci-mento pavoroso.

A abertura da imaginação nos sacrifícios rituais fez com que ela pos-suísse inicialmente uma característica bastante palpável: “[…] no espaço ritual da enformação abre-se um espaço imaginário” (TÜRCKE, 2010a, p. 96). A finalidade do homicídio ritual, num primeiro momento, consis-tia na obtenção de alívio por descarga de tensão. Entretanto, a constante repetição do homicídio ritual impeliu e preparou os coletivos a gerar em seu favor um “sentido” para tornar esse ritual mais suportável, o que se configurou um salto qualitativo: a representação do genius.4

Isso, porém, também significa: na perspectiva da história das espécies não há via direta da percepção sensível para a represen-tação mental. […] Eles [os hominídeos] não tinham o mínimo motivo para fazer isso voluntariamente. Embora o espaço men-tal seja um excedente da natureza e o local de um novo tipo de armazenagem, ele não é nenhum luxo, mas um produto do desespero. Sem o duro e constante trabalho dos nervos ele não poderia ter surgido. (TÜRCKE, 2010a, p. 101-102).

Somente a partir de um extraordinário desvio da representação per-formativa foi possível a representação mental. Dessa forma, a representa-ção que, em princípio, era encenada externamente no espaço palpável do ritual, aos poucos passou a ser encenada no espaço impalpável interno – o espaço mental. Aqui também ocorreu uma considerável transformação da memória: da repetição (memória procedural) à petição (memória re-presentativa). A repetição não precisava se limitar sempre à reprodução do anteriormente vivido ou realizado, ela podia se realizar ainda de modo não imediato, por meio do seu re-presentar imagético, acústico e linguístico. “Re-petição [buscar de novo] por presencialização é sempre apenas algo imaginário, mas somente por essa imaginação sabemos o que passou, ape-nas desse modo há passado, história presente” (TÜRCKE, 2010a, p. 39). Só o homo sapiens conseguiu atingir, com esforços indizíveis, tal nível de desenvolvimento da memória, constituindo a capacidade de domínio da função psíquica da memória.

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Dessa forma, inicia-se uma impulsão para o ressurgimento do ocor-rido, uma repraesentatio, agora não mais atrelada à presença, de modo que o desempenho da memória extrapola o mero reconhecimento do que está presente, da vivência imediata, passando a vivenciar o que está ausente, uma vivência mediada. Do reconhecimento para a recordação, do repetir para o rebuscar, eis o caminho percorrido pela memória no processo de hominização.

Rebuscar é de fato uma nova camada qualitativa de memória orgânica, mas primeiramente também algo meramente proce-dimental: presencialização por meio de refazer. Só que agora esse refazer trata de algo que é passado, que em si mesmo é irrecuperável e que apenas mediatamente pode ser presenciali-zado: quando por imaginação é posto diante de si. (TÜRCKE, 2010a, p. 161).

Com efeito, recordar é colocar diante de si o que já ocorreu. Conforme o filósofo alemão, tal atividade sucedeu primeiramente de modo performativo externo, por meio da pressão de estímulos representantes do estímulo original atormentador, com a diferença que os representantes não acometiam o organismo inesperadamente, visto que o próprio organismo humano os suscitava. Esse é precisamente o trabalho da angústia, como já mencionamos. Com isso, o organismo realizou uma operação de inversão de fuga para frente, cuja denominação psicanalítica é compulsão à repeti-ção traumática, deslocando a violência original do estímulo da natureza, que o assalta de modo imprevisível, para estímulos representantes gerados, planejados e repetidos, de modo a condensar essa violência original de modo suportável.5

De acordo com Türcke (2010a), maneiras de percepção consistem em receptividades básicas viabilizadas no organismo para a evacuação de estímulos violentos, ou seja, são viações de fuga de estímulos surgidas, elaboradas e já estabelecidas por repetição. Maneiras de percepção consti-tuem a memória. Somente quando a memória se tornou especificamente humana, quando a reativação do passado não mais se vinculava ao que estava presente, abriu-se um espaço de reposição retrospectiva e surgiu algo novo em termos qualitativos na maneira de percepção animal – as

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manei-A r t i g o s

ras de representação. A evacuação de estímulos traumáticos por meio da repetição comum dirigida conduziu a “humanidade primitiva” à memória e à representação, sendo que o modo como se sedimentou essa representa-ção foi o homicídio ritual.

Em sua análise sobre a compulsão à repetição, Türcke (2010a) sus-tenta ainda que, no início da mentalidade, imaginação foi alucinação e, inversamente, a alucinação foi a primeira forma do pensamento. As aluci-nações residem na fronteira da passagem da percepção à imaginação. Elas mantiveram em si essa passagem da repetição à re-petição. Do ponto de vista filogenético, a consciência emergiu do inconsciente, e não o contrá-rio. Por conseguinte, as fabulações oníricas constituíram a atividade pri-mitiva de pensamento, o princípio da consciência humana, de modo que o sonho é “[…] alucinação que submergiu: aquela que passou para o sub-terrâneo mental. E, na verdade, essa submersão é apenas o lado oposto do nascer da alucinação para a consciência desperta.” (TÜRCKE, 2010a, p. 104). Apenas progressivamente, quando as alucinações se voltaram contra si mesmas numa tentativa de fuga para a frente, tudo aquilo na alucina-ção que não se convertia em representaalucina-ção consciente desperta passou a ser desviado para um estado mental abaixo da consciência desperta, tor-nando o espaço mental bidimensional (consciente e inconsciente). Com efeito, constituiu um caminho penoso para o homo sapiens desenvolver a memória, discernir entre percepções e representações e designar sonhos como sonhos.

Considerações finais

A questão fundamental motivadora deste artigo foi tratar do proces-so de gênese da memória à luz do conceito de compulsão à repetição trau-mática. Vale ressaltar que aqui tencionamos evidenciar a constituição dos processos mnemônicos, embora indubitavelmente eles não ocorram sozi-nhos. Nesse sentido, procuramos demonstrar que, para Türcke (2010a), a memória despontou como uma tentativa de libertação de estímulos ator-mentadores por meio do processo de compulsão à repetição traumática. De acordo com o filósofo alemão, os hominídeos do Paleolítico precisaram criar meios de evacuação de estímulos, em virtude da pressão extrema das

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forças da natureza e de um sistema nervoso hipersensível. Essa compulsão consiste numa fuga para frente, em direção a um perigo contra o qual o indivíduo não pode se defender ou fugir, numa tentativa de se preparar para a sua irrupção e assim torná-lo mais suportável.

O conteúdo fisiológico fundamental da compulsão à repetição re-laciona-se à busca de evacuação de estímulos pendentes pelo organismo por meio de determinadas viações de fuga. Com relação a seu aspecto neurológico, o organismo viabiliza caminhos de fuga para os estímulos, surgindo viações de condução de estímulos entre as células nervosas. Por meio da repetição dessa atividade, o organismo constrói a capacidade de restauração de viações de fuga, passando a dispor de um repertó-rio de conduta. Dessa forma, inicia-se o desenvolvimento da memória procedural mediante o procedimento de repetição das viações de fuga de estímulos. Repetição mantida consiste, pois, numa repetição que se converteu em memória.

No que concerne ao aspecto histórico da compulsão à repetição traumática, os coletivos humanos expressaram essa compulsão em seus rituais de sacrifício. Por meio da união das operações de condensação, des-locamento e inversão, a violência traumática do susto da natureza passou a ser enformada no espaço ritual. Essa ritualização do aprisionamento do susto possibilitou a sua representação, o que engendrou um processo de abertura da imaginação e do espaço mental. Evidentemente, a representa-ção mental teve um espaço de prática para ser exercitada durante conside-rável tempo até que se consolidasse numa disposição para toda a espécie.

Segundo Türcke (2010a), devido à abertura do espaço mental, ocor-reu uma notável transformação da memória só alcançada pelo homo sa-piens: de memória procedural (vinculada à repetição, ao reconhecimento do que está presente) à memória representativa (relacionada à re-petição, à recordação do ausente). Esse salto qualitativo fez com que a memória se constituísse como especificamente humana, não como resultado da evolu-ção biológica, mas sim do desenvolvimento histórico do comportamento, o que demonstra a sua origem social. Com a abertura de um espaço de re-posição retrospectiva pela memória, desenvolveu-se a capacidade humana de representação. Diante de tal perspectiva, é possível compreender que a cultura começou, em seus primórdios, como uma estratégia de sobrevi-vência; ela não era o alvo desse processo, mas por meio dele se constituiu.

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Notas

1 O termo “humanidade primitiva” refere-se aqui, exclusivamente, ao homo sapiens do Paleolíti-co, sem incluir o neandertal.

2 Em síntese, ao se deparar com os sonhos dos traumatizados de guerra, Freud empreende, em Além do princípio do prazer (1976), uma revisão do conceito de pulsão, que até então era essen-cialmente pulsão sexual, passando a operar com a dualidade pulsão de vida e pulsão de morte. Com efeito, Türcke (2010a) oferece uma interpretação materialista ao conceito freudiano de pulsão ao considerar a compulsão à repetição traumática como a única pulsão genuinamente humana, sob os aspectos fisiológicos e histórico-filosóficos, situando-a no cerne do desenvolvi-mento do processo de humanização. Essa fuga para frente assume aqui uma dimensão utópica que impulsiona para o impossível, para algo que não existe, diferenciando-se do caráter regres-sivo da pulsão de morte apresentado na obra freudiana.

3 Por consequência, a origem dos rituais encontra-se no ritual de sacrifício, que inicialmente se concentrou nos sacrifícios humanos para posteriormente se direcionar aos animais e, por fim, aos seres inanimados.

4 Forma primitiva arquetípica para a causa final fundamentadora do ritual, uma figura embrio-nária da divindade.

5 Türcke (2010a, p. 162) considera as operações de deslocamento, condensação e inversão como resultados de um afrouxamento de pulsão. “Quando a inversão da fuga dos estímulos desloca para fora, numa fuga para adiante, além do ponto da autoinibição, […] aí começa esse afrouxa-mento. […] Dessa disposição a compulsão à repetição traumática fez uma realidade manifesta. Com ela veio ao mundo a reposição retrospectiva”.

Referências

FREUD, S. Além do princípio do prazer: psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

______. A interpretação dos sonhos (1900). In: ______. Obras psicológicas completas de

Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 4-5.

IZQUIERDO, I. A arte de esquecer: cérebro e memória. Rio de Janeiro: Vieira et Lent, 2010.

SQUIRE, L. R.; KANDEL, E. R. Memória: da mente às moléculas. Porto: Porto, 2002. TÜRCKE, C. Filosofia do sonho. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010a.

______. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Ed. Unicamp, 2010b.

Recebido em 7 jan. 2015 / Aprovado em 8 jun. 2015

Para referenciar este texto

GOMES, M. L.; ALMEIDA, J. L. V. Arqueologia da memória: reflexões a partir de Christoph Türcke. EccoS, São Paulo, n. 38, p. 161-171, set./dez. 2015.

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