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A REAPRESENTAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS EM ANA MARIA MACHADO: A OUSADIA DE TRAZER O CLÁSSICO À MODERNIDADE

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A REAPRESENTAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS EM ANA

MARIA MACHADO: A OUSADIA DE TRAZER O CLÁSSICO À

MODERNIDADE

Cristiane Ferreira de Souza Rio de Janeiro, 2º semestre de 2012.

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A REAPRESENTAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS EM ANA

MARIA MACHADO: A OUSADIA DE TRAZER O CLÁSSICO À

MODERNIDADE

Cristiane Ferreira de Souza

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientadora: Professora Doutora Anélia Montechiari Pietrani

Rio de Janeiro, agosto de 2012. UFRJ

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A REAPRESENTAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS EM ANA MARIA MACHADO: A OUSADIA DE TRAZER O CLÁSSICO À MODERNIDADE

Cristiane Ferreira de Souza

Orientador: Professora Doutora Anélia Montechiari Pietrani

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Examinada por:

__________________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Anélia Montechiari Pietrani – UFRJ

__________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Lúcia Guimarães de Faria – UFRJ

__________________________________________________________________ Professora Doutora Anabelle Loivos Considera Condes Sangenis – UFRJ

__________________________________________________________________ Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto (Suplente) – UFRJ

__________________________________________________________________ Professora Doutora Angélica Soares (Suplente) – UFRJ

Rio de Janeiro, agosto de 2012. UFRJ

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AGRADECIMENTOS

Este momento não seria possível sem a efetiva colaboração de algumas pessoas que se tornaram importantes no processo de elaboração deste trabalho, contribuindo sobremaneira para sua concretização, por isso reservo este espaço para expressar toda minha gratidão a elas.

À minha orientadora professora, Anélia Montechiari Pietrani, pela dedicação, paciência e carinho que sempre me dedicou em todo o processo de pesquisa.

À professora Angélica Soares, por fazer-me refletir sobre as páginas de Octavio Paz e seu erotismo poético.

Ao professor Antonio Carlos Secchin, pelas aulas da “Oficina da Escrita”, que muito me acrescentaram e contribuíram para o meu espírito perfeccionista.

Aos professores Helena Parente Cunha, Christina Ramalho e Raiff Magno, por serem os primeiros a acreditarem no meu trabalho durante a graduação, e a todos os meus antigos mestres que me possibilitaram chegar até aqui.

Agradeço ainda à escritora Ana Maria Machado, por possibilitar a execução deste estudo com a sua obra e por conceder entrevista que enriquece este trabalho.

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Podes imaginar o que significa não ter cuidados, preocupações, ansiedades, mas apenas ser perfeitamente calmo e sereno o tempo todo? No entanto, é para isso que serve o tempo, para aprender só isso e nenhuma outra coisa. – Um

curso em milagres.

Escrever seria ainda usar de manha em relação à finitude, e querer atingir o ser fora do sendo, o ser que não poderia ser nem me afetar ele próprio. Seria querer esquecer a diferença: esquecer a escritura na palavra presente, tida como viva e pura.

Na medida em que o ato literário procede em primeiro lugar deste querer-escrever, é na verdade o reconhecimento da pura linguagem, a responsabilidade perante a vocação da palavra “pura” que, uma vez ouvida, constitui o escritor como tal. – Jacques Derrida em A escritura e a

diferença.

Os espelhos e seu duplo, as fontes, aparecem na história da poesia (...) como a mulher que nelas se contempla, as fontes são água de perdição e água de vida; ver-se nessas águas, cair nelas e vir à superfície flutuar, é voltar a nascer. – Octavio Paz

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar a relação que a literatura contemporânea ainda mantém com o texto clássico, tomando por base o romance A audácia dessa mulher, da escritora Ana Maria Machado. Nesse livro, a autora resgata e dialoga com uma das personagens clássicas mais conhecidas da nossa literatura - Capitu. Traçando um paralelo baseado na intertextualidade com o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, e seguindo a versão apresentada por Helen Caldwell, que defende a inocência da personagem, o texto de Ana Maria transforma Capitu em Lina. Expressando-se através de um diário, a então Lina Santiago ganha voz para descrever suas memórias. Isso acontece dentro de uma trama já desenvolvida e que mostra as relações sociais do século XXI. Por se tratar de uma relação entre textos, metalinguagem e intertextualidade tornam-se evidentes. Também terá destaque, neste estudo, a relação entre cânone e mercado, que possibilita a análise do próprio livro como mercadoria, em um mundo cada vez mais cercado por recursos tecnológicos variados e abundantes. O tema do ciúme que une as duas obras, a construção da personagem na literatura de ontem e de hoje, e como os clássicos influenciam a obra contemporânea têm lugar de destaque neste estudo. Afinal, arte literária faz-se com as influências pregressas associadas à capacidade e ao valor artístico dos escritores que estão produzindo no momento.

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ABSTRACT

This paper aims to present the relationship that contemporary literature still retains the classic text. For this, it builds on the novel A audácia dessa mulher, by writer Ana Maria Machado. In this book, the author rescues and dialogues with one of the most popular classic characters of Brazilian literature – Capitu. Drawing a parallel with the intertextuality based on the novel Dom Casmurro, by Machado de Assis, and following the version presented by Helen Caldwell, who preaches the innocence of this character, the text turns Capitu in Lina. Expressing herself thorough a diary, Lina Santiago wins voice to describe their memories. This happens within an already developed plot and presents the social relations of the XXI century. Because it is a relationship between texts, intertextuality and metalanguage become evident. In this study, the relationship between canon and market has been highlighted, which enables the analysis of the book itself as a commodity in a world increasingly surrounded by varied and abundant technological resources. The theme of jealousy that unites the two works, the construction of character in literature yesterday and today, as the classics influence contemporary work play an important role in this study. After all, literary art is done with stunted influences associated with the ability and the artistic value of writers who are producing at the moment.

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SINOPSE

Diferenças entre clássico e contemporâneo. Recursos ficcionais do texto escrito na atualidade. As várias máscaras de uma mesma personagem. A influência do clássico nos textos produzidos hoje. A mulher como leitora e escritora nos séculos XIX e XX. As relações sociais e as mudanças ocasionadas pela sociedade de massa na literatura e nos indivíduos: leitores e escritores.

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Sumário

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 O LIVRO ... 15

2.1 Os clássicos e seu resgate ... 19

2.2 O livro comercial ... 28

2.3 A Escola de Frankfurt, a indústria cultural e a obra de arte... 31

3 O FEMININO ... 42

3.1 A história da mulher na sociedade patriarcal ... .45

3.2 O feminino em A audácia dessa mulher... 59

4 O LITERÁRIO ... 69 4.1 Personagens ... 75 4.2 Narrador ... 83 4.3 O ciúme ... 89 4.4 O diário ...94 4.5 A tradição literária ...99 5 CONCLUSÃO ... 103

6 ANEXO: Entrevista com Ana Maria Machado ...107

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1- Introdução

Este estudo pretende analisar e apresentar a releitura de um dos clássicos da literatura brasileira através da lente da contemporaneidade. Para isso, será feita uma comparação do romance Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis em 1899, com o texto de Ana Maria Machado, A audácia dessa mulher, publicado em 1999.

O romance de Machado de Assis foi escolhido por ele ser, sem dúvida, um dos autores que conseguiu atingir maturidade literária e tornar-se um clássico, uma referência para várias gerações de escritores que o sucederam. Por ser tratar de uma obra amplamente reconhecida no universo literário, Dom Casmurro possibilita aos autores contemporâneos uma (re)visitação e um diálogo dos mais interessantes da nossa literatura.

Realizaram essa visita ao clássico machadiano vários escritores de qualidade, dentre eles, Domício Proença Filho, Fernando Sabino e Ana Maria Machado. É o primeiro deles que nos esclarece a respeito da importância literária de Machado de Assis quando diz que Machado trabalha com certos temas que o tempo não conseguiu desgastar. São eles: o amor, a morte, o adultério.

É Domício Proença Filho também quem escreve Capitu – memórias póstumas, fazendo por ela aquilo que lhe foi negado: permitiu-lhe contar a sua versão da história. Assim como Brás Cubas, Capitu faz uma narrativa após a sua morte e dialoga com outros personagens de obras machadianas. É um trabalho de grande abordagem intertextual que segue a tendência da crítica brasileira em defesa dessa personagem tão enigmática.

Já o segundo autor, Fernando Sabino, dialoga com Machado através da obra Amor de Capitu, de 1998. Em seu texto, Sabino é fiel ao romance original e apenas reconta a história através de um narrador em terceira pessoa. Não há defesa nem acusação por parte das personagens, apenas uma narrativa dos fatos.

A terceira obra é A audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado, escrita exatamente cem anos depois de Dom Casmurro. É um romance que traz, através, principalmente, do olhar feminino da protagonista Beatriz Bueno, uma discussão sobre

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os valores sociais de fins do século XX em comparação com os do século XIX. Para isso, a autora insere no texto um diário em forma de caderno de receitas que retrataria a versão da personagem Capitolina.

O diário que acompanha Lina por toda a vida insere-se perfeitamente na narrativa principal e mostra que Ana Maria Machado segue a tendência iniciada pelo estudo da crítica americana Helen Caldwell (1960) que passou a propugnar pelas possíveis incertezas do discurso ambíguo, cheio de armadilhas e conclusões duvidosas,

de Bento Santiago.

Ambas, autora e crítica literária, seguem a tendência literária atual, que prega pela contestação de certezas, de verdades totalizantes. Paira a dúvida, a defesa com relação aos que estavam condenados, tais como a personagem Capitu. Observa-se, com isso, na arte contemporânea, uma busca e uma crítica aos valores tradicionais que são desafiados.

Para um trabalho de comparação entre duas obras tão distantes cronologicamente quanto Dom Casmurro e A audácia dessa mulher, pretende-se analisar o dialogismo (tratar a maneira como Ana Maria Machado retoma e dialoga com o clássico), as diferenças sociais, as várias formas de se abordar temas como o ciúme, o papel do livro e da literatura hoje e o papel das mulheres através das personagens Capitu, Lina e Beatriz Bueno, através do tempo.

Este estudo encontra-se dividido em três capítulos. O primeiro deles, intitulado O livro, trata de como a autora resgata o clássico machadiano e o traz para a sua obra, além de discutir a importância da sua leitura nos dias de hoje. Lembramos que a própria autora tem um trabalho de resgate desses textos não só em sua literatura dita “adulta”, mas também para os seus livros voltados para o público infanto-juvenil.

Também, nesse capítulo, levantaremos uma discussão a respeito do cânone e do livro como mercadoria, o papel de best-seller na sociedade de massa e a relação que existe hoje entre o clássico e o best-seller, segundo a visão de Octavio Paz, presente no livro A outra voz:

O best-seller, seja um romance ou um livro de atualidades, aparece como um meteoro; todo mundo corre para comprá-lo mas, logo

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depois, desaparece para sempre. São pouquíssimos os best-sellers que conseguem sobreviver ao seu êxito. Não são obras, são mercadorias. O que diferencia as obras verdadeiramente literárias dos livros de mera diversão ou de informação é que, enquanto os últimos estão destinados a ser, literalmente, consumidos por seus leitores, as primeiras têm o dom de ressuscitar graças também e precisamente a seus leitores. (PAZ, 1993, p.92.).

Certamente, Machado de Assis, já consagrado escritor da literatura brasileira, é lembrado mais uma vez no romance contemporâneo de Ana Maria Machado, que se revela muitas vezes uma leitora assídua de vários escritores considerados clássicos e citados no texto que iremos analisar: Virginia Woolf, Eça de Queiroz, Flaubert, Tolstoi, Balzac, Dickens, Stendhal, só para citar alguns. Como autora consciente da importância da leitura para a formação também de escritores, é capaz de produzir textos que não se limitam a meros bens de consumo, ou de best-sellers, conforme o dito de Octavio Paz.

Ainda no primeiro capítulo, será tratado o tema do mercado literário na contemporaneidade, sendo colocada sob exame a Indústria Cultural e sua relação com a obra de arte. Para isso nos remeteremos a outros textos que tratam do papel do livro: Farenheit 451, de Ray Bradbury, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, este último citado por Ana Maria Machado em seu romance.

Já o segundo capítulo trata do feminino e da questão da mulher nos papéis de leitora e de escritora, num paralelo entre os séculos XIX e XX. Inicia-se com uma breve história da mulher na literatura desde a Grécia até os nossos dias, no Brasil, passando por nomes como Virginia Woolf e Simone de Beauvoir até reportagens de jornal atuais a respeito desse tema. Isso para nos reportarmos ao feminino em A audácia dessa mulher e discutirmos as personagens Beatriz Bueno, Ana Lúcia e Dona Lourdes – três mulheres de gerações diferentes – e suas posições a respeito de si mesmas no mundo contemporâneo. É claro que, em meio às personagens femininas do romance, não podemos nos esquecer de Lina, a Capitu reapresentada por Ana Maria Machado e que nos traz a mulher do século XIX, juntamente com os hábitos e costumes da sociedade da época.

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O androcentrismo que Machado de Assis conhecia tão bem começa a ser questionado e a mulher passa a ter maior destaque, a abandonar a situação de marginalidade. Capitu encontra direito à voz e à defesa. Hoje, o leitor pode escolher entre ler Dom Casmurro com uma visão conservadora (com Bentinho) ou com uma visão contemporânea (contestando o adultério e considerando Capitu inocente). A forma ambígua com que foi escrito o romance, que exige um leitor atento e participante, é o que possibilita estudos e releituras dessa obra machadiana. Segundo Samira Chalhub, em textos atuais, “O conceito de arte transformou-se – hoje, nós a percebemos construída e não mais como expressão; hoje, o público já não é mais passivo, pode ser incorporado, ativamente, como colaborador/leitor dentro da linguagem da obra. (CHAULHUB, 2005, p. 43)

Finalmente, o terceiro capítulo discute o literário, o papel da literatura ontem, hoje e na obra em análise. Nele faremos um estudo das personagens criadas e trazidas até nós por Ana Maria Machado. Também abriremos espaço para o narrador de seu texto, que ora narra, ora dialoga com o leitor, ora nos apresenta Lina através de seu diário travestido de livro de receitas.

Isso permite a presença de um narrador que dialoga não só intertextualmente, mas também com o leitor. O ato de contar, na literatura pós-moderna, ganha destaque, e cresce a importância da metalinguagem. Além de convidar constantemente o leitor a participar da obra, o narrador deixa de ser onisciente, se exime do papel de detentor das verdades absolutas.

Também abordaremos, nesse capítulo, o tema que une as duas obras: o ciúme, a dita “síndrome de Otelo”, termo criado pelo médico inglês John Todd, e que descreve o ciúme obsessivo e destruidor presente não só na personagem shakespeariana, mas também em Bento Santiago e em Giba, pertencentes aos textos de Machado de Assis e de Ana Maria Machado, respectivamente. Em um diálogo através dos tempos, o tema do ciúme mostra que de fato existe uma continuidade e um diálogo entre os livros e que o clássico pode facilmente e incluir-se em textos contemporâneos.

É proposta deste trabalho saber por quais transformações a arte literária terá de passar para manter-se em um mundo cada vez mais globalizado em que o leitor é levado

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a promover seus próprios links, uma vez que as produções são intertextuais e reivindicam um novo real, com cores fortes e intensas. Nesse contexto, o papel que representam aqueles ditos fora do cânone (mulheres, negros, crianças) será de relevância não só para a literatura, mas para a arte como um todo.

Pensando sobre a literatura e seu espaço no mundo diversificado de hoje, procuramos a autora do livro em análise, e propusemos questões a respeito de alguns tópicos abordados neste estudo e pudemos contar com suas respostas, que foram incluídas em um tópico em anexo.

As páginas deste trabalho não são senão um estudo a respeito de temas que ousamos tentar desvendar a respeito da literatura e da leitura dos clássicos hoje. Para isso, a formação do leitor será de enorme relevância, pois é dela, inclusive, que depende a existência de escritores de qualidade. Esse é um dos benefícios que podemos apreender do romance de Ana Maria Machado, A audácia dessa mulher, além do prazer de sermos reapresentados a uma nova personagem – Lina, outrora Capitu.

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2- O livro

“É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias, assim podes também preencher as minhas.”

Machado de Assis, em Dom Casmurro

“Entende agora por que os livros são temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida.”

Ray Bradbury, em Farenheit 451.

“Um livro é uma garrafa lançada ao mar com a inscrição ‘Agarre quem puder’”. Essa frase, de Stendhal, é a primeira das epígrafes utilizadas por Ana Maria Machado em A audácia dessa mulher, título que lhe rendeu o Prêmio Machado de Assis de Melhor Romance, da Biblioteca Nacional, em 1999.

Seduzido e estimulado por essa citação, o leitor depara-se com a primeira frase do romance, na verdade uma pergunta: “– Por que eu?” É o que indaga a protagonista Beatriz Bueno: mulher contemporânea, professora de literatura afastada das salas de aula, agora escritora de textos de viagem, solteira, independente, um contraponto ao estereótipo feminino do século XIX, exemplificado nesse livro pela outra protagonista dessa história e, como veremos, de sua própria história, a personagem Lina, com quem dialoga Bia.

No primeiro capítulo, tal como em uma telenovela, são apresentadas as personagens em seus núcleos: Virgílio de Pádua Toledo, dono de restaurante e também escritor de livros de culinária, e Muniz, redator de uma série de TV chamada Ousadia. Tanto Virgílio quanto Bia foram convidados para prestar consultoria, com o objetivo de ajudar a ambientalizar a série televisiva que, segundo seu próprio criador, tem como tema principal o ciúme:

– Porque, senhores, como todos poderão ver em seguida quando receberem a sinopse, a fidelidade vai ser um de nossos temas. Quer dizer, esta será uma história sobre o ciúme. (MACHADO, 1999a, p.16).

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Fidelidade e ciúme compõem tematicamente a minissérie que se passará no século XIX, tendo como pano de fundo a cidade do Rio de Janeiro. Não por coincidência, a mesma época em que Machado de Assis escrevia seus romances, mais especificamente Dom Casmurro, que dialogará com todo o texto de Ana Maria Machado.

Continuando a trama romanesca, a escritora faz aproximarem-se Bia e Virgílio, inicialmente em um encontro casual na Lagoa Rodrigo de Freitas. É a partir daí que o jovem casal conhece-se melhor e começa a ter um relacionamento amoroso, descompromissado para Beatriz, mas não tanto para Virgílio que, por algumas vezes, entra em conflito com o jeito independente da moça.

Isso acontece paralelamente à elaboração do programa de TV, que traz à trama algumas personagens secundárias capazes de tratar a respeito de literatura, de arte, em um recurso claramente metalinguístico. São elas: Ana Lúcia, moça pobre, secretária da protagonista, torna-se leitora graças a Beatriz, que a incentiva. Vive em conflito com um noivo extremamente ciumento e machista – Giba. É através dessa personagem que será discutida, entre outras coisas, a formação do leitor. Outra personagem é Juliano, ajudante da equipe de TV, encarregado de escrever algumas cenas de Ousadia e que revela à Bia a personalidade manipuladora de Muniz em criar tramas “reais” de ciúme e testá-las em “pessoas” durante o processo de criação da minissérie televisiva.

Entretanto, o romance começa a ganhar mais atratividade sobre o leitor, especialmente o leitor de clássicos da literatura, quando Virgílio empresta a Beatriz um caderno de receitas, escrito no século XIX por uma parenta distante que viveu na Europa. Por tratar-se de um caderno de família, não poderia pertencer a Bia, mas esta ficaria com ele o tempo que julgasse necessário. Era a “desculpa” que Virgílio precisava para ficar mais próximo da jovem, para ter um vínculo com ela.

De início, Bia não se mostra muito interessada e deixa a cargo de Ana Lúcia separar as receitas do restante das anotações, já que a dona do caderno o utilizava também como uma espécie de diário. Era um hábito um tanto comum às moças do século XIX: ter um caderno de receitas e/ou um diário em que podiam escrever seus pensamentos, sentimentos, receitas caseiras de bordados e dos pratos preferidos do marido. É o que Lygia Fagundes Telles chamou de “cadernos-goiabada” e foi citado por

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Norma Telles no artigo “Escritoras, Escritas, Escrituras”, presente no livro História das Mulheres no Brasil:

cadernos onde as mocinhas escreviam pensamentos e estados de alma, diários que perdiam o sentido depois do casamento, pois a partir daí não mais se podia pensar em segredo – que se sabe, em se tratando de mulher casada, só podia ser bandalheira. Ficavam sim com o caderno do dia a dia, onde, em meio a receitas e gastos domésticos, ousavam escrever uma lembrança ou ideia. Cadernos que Lygia vê como um marco das primeiras arremetidas da mulher brasileira na carreira de letras, ofício de homem. (TELLES in PRIORE, 2011, p. 409. Grifo nosso).

O caderno-goiabada da jovem, que “ousou” continuar a escrevê-lo mesmo depois de casada, encantou não só Ana Lúcia, mas também a independente Beatriz Bueno, levando ambas a questionar e querer saber mais a respeito dessa mulher – real dentro do universo ficcional – que quebrava os tabus com a audácia de relatar a própria história. Logo, Bia, de escritora de turismo, converteu-se em leitora de literatura confessional, hoje um gênero bastante utilizado dentro do panorama literário contemporâneo.

O interesse pelo diário-caderno de receitas é tão grande que leva Bia, mesmo em dúvida a respeito de seus sentimentos com relação a Virgílio, a investigar, a querer saber mais a respeito da mulher que escreve suas memórias, seus sentimentos, diante do casamento com um homem ciumento e desconfiado, identificado apenas como B. O mistério com relação à identidade da autora do caderno permeia toda a trama e leva a personagem principal a questionamentos de temas como o amor, o patriarcalismo e a ética.

Quem esclarece Bia e resolve o impasse é Dona Lourdes, a mãe de Virgílio, que lhe entrega cartas também escritas pela dona do caderno. São essas cartas que revelam a história da autora do diário, o que lhe aconteceu a partir do momento em que foi deixada na Europa pelo marido B., e o mais interessante, a sua assinatura: Maria Capitolina. Ou seja, nada menos do que a Capitu, de Dom Casmurro que, em A audácia dessa mulher, atende pelo nome Lina. Ao leitor, é dada, finalmente, a oportunidade de ouvir a voz da letra escrita no caderno-goiabada de Lina, a sua versão da história

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contada anteriormente pelo marido Santiago. A partir daí, não só Beatriz Bueno – leitora-personagem do romance de Ana Maria Machado –, mas também todos nós – leitores reais tanto do romance de Machado de Assis quanto do de Ana Maria – somos convidados a conhecer Capitu sob outro viés: o desabafo dela mesma. Tem-se uma narrativa dentro de outra narrativa que começa a ser escrita pela menina Capitolina e termina com a mulher, agora Lina:

Só depois do almoço [...] tornou a pegar a papelada da Capitu, as anotações que fizera, o livro do velho Machado. Mais uma vez, era dominada pela incredulidade. Racionalmente, porém, constava que era verdade. Sempre imaginara aqueles personagens apenas como seres inventados. Agora descobria que um deles, pelo menos, tivera existência real (MACHADO, 1999a, p. 211).

Em meio a isso, Bia, que tantas vezes – assim como inúmeras leitoras – identificou-se com Capitu, relembra seu envolvimento com Fabrício. Trata-se de uma relação de alguns anos, de um namoro, mas nos moldes da contemporaneidade. Ou seja, uma união que prioriza a lealdade e não mais aquela fidelidade de outrora, que, graças a uma mera suspeita, acabou por condenar Lina ao exílio. A respeito desse novo meio de amar e se relacionar, nos esclarece Octávio Paz, em A chama dupla:

Se a infidelidade é por mútuo acordo e praticada pelas duas partes – um costume cada vez mais frequente – há uma diminuição da tensão passional; o casal não se sente com força para cumprir o que a paixão pede e decide relativizar a sua relação. É o amor? É antes cumplicidade erótica. Muitos dizem que nestes casos a paixão se transforma em amizade amorosa. (PAZ, 1995, p.86).

A audácia dessa mulher, história feita por montagens, que traz ao leitor as relações interpessoais de personagens as mais distintas possíveis, nos convida a repensar o papel da literatura, da mulher e da escrita do livro. Tudo isso, tendo como pano de fundo um clássico de Machado de Assis alternado a uma voz narrativa inovadora e participante.

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2.1- Os clássicos e seu resgate

Mais do que trazer Capitu e sua versão da história como abordagem temática, o livro de Ana Maria Machado lança-nos a uma empreitada de maior problematização sobre o valor do texto literário. De fato, a autora discute as relações amorosas, os valores que acabaram por se transformar, o papel da mulher, mas também – e de forma bastante curiosa – o papel da literatura e do livro, à medida que dialoga com o texto machadiano não só tematicamente, mas também destacando a importância da permanência dos clássicos na contemporaneidade, como um projeto complementar ao empreendido por ela em sua chamada literatura infanto-juvenil.

Condizente com o seu trabalho de autora e o papel que representa como escritora, Ana Maria Machado buscou nos clássicos inspirações para seus textos. Os próprios e conhecidíssimos contos de fadas serviram de forma de estilização para a autora. Basta verificar seus livros: História meio ao contrário, em que o “viveram felizes para sempre” é apenas o início da história, ou Passarinho me contou, em que João e Maria são retomados como personagens, ou ainda O Menino que espiava pra dentro, em que o “dentro” é o reino da imaginação.

Não à toa, na coleção “Como e por que ler”, da Editora Objetiva, coube a Ana Maria Machado defender a razão da leitura dos clássicos no livro Como e por que ler os clássicos desde cedo:

Ler uma narrativa literária (como ninguém precisa ensinar, mas cada leitor vai descobrindo à medida que se desenvolve) é um fenômeno de outra espécie. Muito mais sutil e delicioso. Vai muito além de juntar letras, formar sílabas, compor palavras e frases, decifrar seu significado de acordo com o dicionário. É um transporte para outro universo, onde o leitor se transforma em parte da vida de um outro, e passa a ser alguém que ele não é no mundo quotidiano. (MACHADO, 2002, p. 77).

Retomando a expressão de Coleridge, a “suspensão da descrença” (p.78), Ana Maria reforça as delícias da leitura de um clássico e a sutileza do transporte para o imaginário. É exatamente isso o que ocorre nesse livro em que Capitu é resgatada como

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personagem de outro livro, o clássico machadiano, e que convida o leitor a suspender a descrença da separação tão dicotômica entre real e imaginário. Capitu, Lina no texto de Ana Maria Machado, é o ficcional transfigurado em real que, num pacto in continuum com o leitor, é, por sua vez, retornado ao ficcional. Instâncias do real e do ficcional estão aqui com seus limites rompidos. Difícil se torna precisar onde começa um e termina o outro. O imaginário está em cena.

Quando lemos um livro, clássico ou não, ou até mesmo quando escrevemos um texto novo, o ato contínuo de livro-que-puxa-livro está evidente. Levamos conosco uma gama rica em informações e imagens, que relacionam nosso texto com os de outros autores. Em A audácia dessa mulher, as personagens Bia e Virgílio já escreveram livros. Bia, escritora de livros de viagem, consegue trazer a relação que o leitor tem com os textos lidos e a expressa no momento em que escreve. O instante da leitura pode ser metaforicamente relacionado a uma viagem através do tempo e do espaço, a uma cultura diferente daquela em que estamos inseridos. É a voz narrativa que nos mostra a opinião da protagonista:

A opinião de Bia, para quem não leu e está curioso, é que no fundo ninguém viaja sozinho, porque a gente está sempre em companhia de autores e outros artistas, dos livros, filmes, quadros, músicas que estão sempre conosco, enfim dos mitos culturais que povoam nossa memória.” (p.15).

O que acontece com o livro e, por extensão, com a literatura, na formação do cidadão, pode ser visto no efeito trazido por ambos à jovem Ana Lúcia, filha da faxineira, apaixonada por José de Alencar, levada a tornar-se leitora por Bia. Aqui, a autora do romance deixa clara a importância de ler os clássicos não por obrigação, associada às provas ou testes, mas sim pelo prazer:

Bia começara a mandar os exemplares já lidos para a filha da faxineira, que adorava ler. Os bilhetes de agradecimento da menina foram revelando uma leitura atenta e inteligente. Um deles provocou o encontro. Bia fez questão de conhecer a adolescente. (...) Bia conversou foi com uma moça inteligente e sensível, de garra, gana de seguir em frente, e uma paixão por livros em tudo semelhante à sua.

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Acabou contratando Ana Lúcia para vir três vezes por semana, ajudá-la com seus papéis sempre desorganizados. Daí para arrumar para eajudá-la um emprego numa editora, foi um pulo. (p. 42).

O que acontece com Ana Lúcia revela a esperança de que é possível a formação de novos leitores, já que o que falta a uma considerável parcela da população é o acesso às obras literárias, aos clássicos e não a incapacidade de entendê-los ou a falta de apreciação pelos mesmos. Nesse sentido, a bela defesa de Antonio Candido, no artigo “O direito à literatura”, se aproxima dessa questão retratada por Ana Maria Machado, já que – como parece também defender – trata-se de um problema que atinge um plano muito mais social e político, visto que os grandes clássicos

ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois têm a capacidade de interessar a todos e portanto devem ser levados ao maior número. (CANDIDO, 2004, p. 189).

Outro ponto abordado em A audácia dessa mulher é a transformação física sofrida pelo livro, quando impresso. Quando Bia pede que Ana Lúcia digite trechos do caderno de receitas de Lina, o texto perde sua pessoalidade, a marca íntima da autora:

Achou estranho reler as primeiras anotações que já conhecia e não reencontrar a caligrafia da menina, desenhada, regular, inclinada para a direita sobre as páginas amareladas. Agora estava tudo contaminado de tecnologia, impresso em folhas branquíssimas, em tipos helvética 12, simples, na uniformidade do computador. Sentiu falta dos vestígios físicos da presença da menina, que havia mais de um século passara por aquelas linhas com sua mão adolescente, molhando a pena num tinteiro, espalhando um pequeno respingo aqui e ali, secando com mata-borrão. Mas talvez fosse melhor assim. Desse modo, Bia podia ler apenas o que estava escrito, e não se deixar seduzir por evocações nostálgicas. (MACHADO, 1999a, p. 92).

Isso confirma, por um lado, que a reprodutibilidade é possível. Como diz Walter Benjamin em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, a obra de arte

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poderá ser reproduzida, mas, por outro, ele adverte que algo sempre estará perdido nesse processo. Perde-se parte da relação com o texto, do prazer em ler, de partes que poderiam ser importantes, que a distância temporal e espacial do original jamais poderão revelar. Na era dos aparelhos eletrônicos, do computador, dos livros baixados pela internet, dos ipods, podemos nos perguntar se, assim como Bia, sentiremos falta de “algo mais” no texto escrito, quem sabe da “forma física” do livro.

A literatura, como arte de exploração máxima dos sentidos da palavra e das potencialidades do texto, nos move a compartilhar experiências e acaba tornando-se fundamental para a formação do cidadão crítico, aquele que reflexivamente posiciona-se sobre as escolhas literárias, sobre os acontecimentos políticos e sociais.

Isso acontece graças ao poder da literatura em não só unir forma e conteúdo de uma maneira capaz de levar o leitor a enriquecer suas emoções e suas opiniões a respeito de uma sociedade em uma determinada época, mas também inseri-lo no mundo mágico dos sonhos. Em Escritores criativos e devaneio, pequeno ensaio de 1908, Freud diz que os sonhos apresentam em comum com o texto literário um sentimento de realização dos desejos ocultos presentes no escritor e no leitor.

A obra literária representaria um sonho do autor capaz de desencadear outros sonhos nos leitores. Ambos, leitor e autor, em contato com o texto, realizariam, simbolicamente, desejos reprimidos, manipulando a realidade através da criação de uma “outra cena” em que tudo pode acontecer. O texto teria, portanto, a capacidade de unir passado, presente e futuro numa temporalidade sujeita apenas às vontades do desejo. Tudo isso seria possível graças ao fenômeno da “sedução estética”.

Freud também acreditava que a obra literária com a sua beleza tinha a mesma função sedutora do “prazer preliminar” (Vorlust) no ato sexual: derrubar a repressão e liberar o “prazer intenso” (Endlust). O interdito e o narcisismo compõem o sonho, daí seu caráter secreto, o susto de ser surpreendido com seus próprios devaneios. A fim de poder aproveitar os sonhos sem medo ou vergonha, o autor disfarçaria, através da sua arte, o egoísmo que os caracteriza e, através do prazer puramente formal, nos seduziria a liberarmos todo o prazer proveniente das fontes mais profundas de identificação.

Quem é o herói dos romances de ficção, a não ser aquele capaz de sobreviver às mais diversas e temíveis turbulências? Nada mais, nada menos do que “sua majestade, o Ego”, diz Freud. É a identificação do leitor com o herói que garante o sucesso desse tipo

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de texto, pois cada leitor realiza, através dos heróis, a fantasia onipotente de que nada lhe pode acontecer. É a fantasia da indestrutibilidade. Ou como diz Antonio Candido no texto já citado “O direito à literatura”: “alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações” (2004, p.175). Mais ainda, a literatura resgata a função social e a amplitude do texto, consolida-se como direito de todos, um direito inalienável, necessário à vivência e não à simples sobrevivência. A esse respeito é reveladora a opinião de Antonio Candido:

Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito (p. 175).

Os indivíduos buscam na obra literária um entendimento de si mesmos e do próximo, estão em busca de traços tipicamente humanos, tais como o pensamento reflexivo, o aprendizado, a compreensão dos problemas da vida, o cultivo do humor, o aprimoramento das emoções. A literatura nos torna mais humanos quando somos capazes de, através dela, compreender a natureza, a sociedade e o semelhante.

Logo, a leitura de textos literários é uma necessidade universal que precisa ser reconhecida e satisfeita, pois, ao mesmo tempo em que organiza a sociedade, a liberta. “Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade”, diz-nos Candido, já que ela traz em si um instrumento conscientizador que permite o reconhecimento da restrição de direitos, “como miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos” (CANDIDO, 2004, p. 186).

Pensando nesses direitos e nos tipos de bens de consumo, Candido faz menção ao padre dominicano Louis-Joseph Lebret, fundador do movimento Economia e Humanismo, que trabalhou no Brasil entre 1940 e 1960, e, distinguiu os bens incompressíveis, direito de todos os cidadãos (casa, alimentos, saúde, instrução, etc.) e os bens compressíveis (roupas de grife, cosméticos, etc.) a princípio não tão primordiais assim:

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São bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão, etc; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura. (CANDIDO, 2004, p.174).

É claro que tanto a arte quanto a literatura só podem ser consideradas bens incompressíveis em uma sociedade justa, em que as necessidades humanas não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização social. A questão primordial passa a ser a seguinte: serão a literatura e as artes, em geral, um bem incompressível?

A resposta para essa questão depende do tipo de sociedade em que a obra de arte está inserida. Quanto mais igualitário e justo for o contexto social e quanto mais oportunidades e recursos oferecer aos indivíduos, maior será a difusão da literatura e, portanto, maior será a abrangência de seus benefícios. E quanto mais acesso, mais livros serão consumidos.

A leitura dos livros torna-se importante, pois combate e denuncia, propõe e nega, oculta e mostra, esclarecendo os problemas enfrentados pela humanidade através dos tempos. É ela também a responsável por formar personalidades segundo a própria realidade e isso faz com que o livro, nas mãos do leitor, se torne algo desafiador e até mesmo perturbador. Daí o cuidado e a dualidade que ele representa, pois pode gerar conflitos na medida em que esclarece, e esse conhecimento pode promover a discussão das ideias vigentes e, por que não, dominantes.

O livro, mesmo quando é visto apenas como objeto de consumo, é capaz de ultrapassar as barreiras do tempo. O tempo passa e o livro, como obra de arte, permanece. Se medirmos a vida do leitor em anos, medimos a do bom livro em milênios. É isso o que nos revela Píndaro, citado por George Steiner em “O leitor incomum”:

Quando a cidade que eu canto já não mais existir, quando os homens para quem canto já houverem desaparecido no esquecimento, minhas palavras ainda perdurarão. (apud STEINER, 2001, p. 15).

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Essa citação remete-nos à permanência do objeto livro, mesmo nos dias atuais, tomados pela liquidez e consumismo propostos pela sociedade de consumo. Reacende-se, aqui, o questionamento a respeito dos clássicos nos dias de hoje, trazendo a questão que tantos tentaram e ainda tentam responder: Por que ler os clássicos? Muitas vezes, principalmente agora com a globalização e o avanço tecnológico, vemos questionada a permanência do livro e a sua sobrevivência neste novo mundo que vem se delineando.

Mas o que vem a ser um clássico literário? Etimologicamente, o vocábulo clássico teve origem no latim classis,is e fazia parte do mesmo campo semântico da palavra classe: “cada uma das categoria em que se dividiram os cidadãos romanos susceptíveis de ser chamados às armas”. Além desse sentido, a palavra clássico também nos remete ao estilo de época que remonta à civilização greco-romana e que se contrapõe ao Romantismo.

Em outra oposição de significados, temos, como diz Anélia Pietrani em Ler o clássico: plural e sempre presente:

Além dessa oposição clássico/romântico, há aquela entre clássico e moderno, sugerindo, nesse caso, que clássico assume o sentido de velho, ultrapassado, o cânone. Este também passa a constituir seu campo semântico, especialmente se buscarmos sua origem etimológica no latim: canon,onis, que significa “regra, lei, medida” (2010, p.10).

São muitas as definições, mas algo que acontece com os clássicos não pode ser negado e associa-se com a glória do escritor, que depende da “excitação ou da apatia” que sua obra causa nos leitores.

Se associarmos o clássico à ideia de cânone e considerarmos a estreita relação existente entre eles, atentaremos para os pré-requisitos que tornam uma obra literária parte do cânone. Para isso, vejamos o que escreveu Harold Bloom, no texto O cânone Ocidental:

A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui basicamente de um amálgama: domínio da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante. (2010, p. 44).

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Além de satisfazer todos esses pré-requisitos, o clássico e, por conseguinte, o cânone estariam intimamente atrelados à memória, à recordação. É o próprio Bloom quem afirma que “o conhecimento não pode prosseguir sem memória, e o cânone é a verdadeira arte da memória, a autêntica fundação do pensamento cultural” (p. 53). É a memória que garante a perpetuação do clássico, determinando a sua durabilidade, a continuidade da sua existência.

Observando a obra de Ana Maria Machado, especialmente A audácia dessa mulher, vimos o resgate de Dom Casmurro, permitindo um questionamento sobre a permanência ou perenidade do livro como obra de arte. É o diálogo intertextual entre essas obras que traz o clássico de volta ao cenário da literatura contemporânea, comprovando o estado de imortalidade da obra clássica, mesmo que modificada. Certamente, a personagem refigurada na obra de Ana Maria Machado não é a mesma Capitu de Dom Casmurro, mas uma Lina transformada que, até os dias atuais, mais do que sobreviver, “pervive”1. Agora, “traduzida” por Ana Maria, Capitu continua sua história e sua vida, assim como o clássico, o livro Dom Casmurro.

Sobre isso, podemos refletir a partir do questionamento de Flaubert, aludido por George Steiner no texto anteriormente citado, e talvez imaginar que a mesma indagação tivesse feito Machado de Assis (e – por que não? – também Ana Maria Machado nesse processo de releitura e recriação) a respeito de sua personagem mais famosa:

lançou seu grito de protesto diante do paradoxo de estar ele morrendo como um cão abandonado enquanto a “prostituta” Emma Bovary, criatura sua, surgida de palavras sem vida rabiscada em folha de papel continuaria a viver (STEINER, 2001, p. 15).

Diferente do best-seller, termo criado pelo americano Frank Luther com o desenvolvimento do mercado editorial, o clássico, além de atrelado à memória, funde-se

1

O verbo “perviver”, aqui empregado, remete-nos ao sentido de “pervivência”, neologismo primeiramente utilizado por Haroldo de Campos para traduzir o termo benjaminiano Fortleben, reaproveitado por Susana Kampff Lages e mantido entre aspas em sua tradução para o português do artigo de Walter Benjamin “A tarefa do tradutor”, publicado em Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), pela Editora 34, em 2011. Contrastando com a ideia de “sobrevivência” (Überleben), que não dá conta do complexo sentido de tradução, conforme proposto por Benjamin, o termo “pervivência” condensa melhor o sentido de continuidade da vida que o vocábulo em alemão sugere.

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a partir da relação entre o leitor e o livro. Como disse Jorge Luis Borges no artigo “Sobre os clássicos”:

Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim. (2007, pp. 220-221).

São textos que suscitam emoções que podem, ou não, ser eternas, por isso o que é considerado um clássico hoje não necessariamente o será e despertará as mesmas emoções no futuro. Torna-se perigoso crer que um clássico carregará para sempre esse status. Mais especificamente, um clássico não é sempre um livro que “possui estes ou aqueles méritos; é um livro que as gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio fervor e misteriosa lealdade” (BORGES, 2007, p. 222).

Considerar Dom Casmurro um clássico é considerá-lo um texto lido e recebido pelo leitor. É admitir que existe, ainda nos dias de hoje, uma interação entre obra e leitor. Resgatar essa relação na contemporaneidade foi algo que Ana Maria Machado assumiu através da criação de uma história feita por encaixes em que uma das peças tem como protagonista Capitu. A audácia dessa mulher revela uma Ana Maria Machado não só escritora, mas também leitora de Dom Casmurro.

Como diz Steiner:

existe latente em todo ato de leitura consequente a compulsão de se escrever um livro em resposta. A definição de um intelectual é simples: é um ser humano que tem na mão um lápis quando está lendo um livro. (2001, p. 20).

De fato, a relação leitor-texto literário está presente em A audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado, que, assim como o mestre Machado de Assis, nos convida a participar, a refletir sobre a obra e sobre seus temas. Tirou-se do livro o status de portador de uma verdade absoluta. Até mesmo a sua “imortalidade” vem sendo questionada. O livro, objeto propriamente dito, modificou-se e continua se modificando. É uma audácia trazer à cena um clássico da literatura quando tantas obras já se tornaram

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inacessíveis, quando somente os especialistas possuem acesso a escritores como Tasso, Voltaire, Baudelaire, Dante... O mundo moderno com suas inúmeras tecnologias, com sua “pressa” e liquidez de tudo e de todos, na feliz caracterização de Zigmunt Bauman desta “modernidade líquida”, parece, a princípio, não abrir espaço para o contato com certos textos.

A partir dessa realidade e do acesso aos clássicos nos dias de hoje, Bloom admite que eles possuem o seu espaço e são lidos porque temos prazer em fazê-lo, porque pensamos e necessitamos, porque nos é de direito. Ler um clássico é ser seu cúmplice, é engajar-se com a obra, é manter viva a memória, saciando-se na “lembrança da humanidade”2.

2.2- O livro comercial

De acordo com Benjamin, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, a obra de arte, na sua essência, sempre foi algo reprodutível. Mas hoje, essa reprodutibilidade parece ter alcançado níveis gigantescos, fazendo com que os livros continuem uns aos outros. À medida que nos vemos compelidos a escrever um livro novo em resposta ao que acabamos de ler, acionamos a reciprocidade literária baseada, muitas vezes, na intertextualidade.

Apesar disso, a reprodução não se dá de maneira perfeita, já que falta um elemento: o momento e o lugar em que foi produzido determinado texto. A situação histórica, a sociedade, o pensamento da época e seus conhecimentos, a atmosfera do lugar, esses elementos não conseguem ser transmitidos pela simples reprodutibilidade. É o “aqui e agora” da obra de arte que garante o seu caráter de autenticidade. Então, o que se perde com a reprodução da obra de arte? Sua aura, a sua tradição, o seu valor único, de culto, a sua sacralização.

Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se distingue, se separa da sua aura, do sentido ritualístico de outrora; aumentando a sua acessibilidade. Obviamente, essa acessibilidade possibilitou o crescimento não só do número de leitores, mas também do de escritores, visto que esses são elementos de um mesmo processo. O que

2 A expressão é de Hannah Arendt do livro A condição humana e foi citada por Anélia Pietrani em seu

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os textos conseguem é servir de alimento para o possível escritor, para um diálogo intertextual entre o que foi lido e o que será escrito. Sobre isso, Ana Maria Machado explica bem em A audácia dessa mulher:

Mais que isso, porém: a leitura aproxima livros diversos. O que o autor leu está embebido nele e passa para sua escrita. Acontece o mesmo com aquilo que cada leitor já leu antes e vai fazer dialogar com o que está lendo agora. Ou ainda com o que guardará do que está lendo neste momento e, em algum ponto do futuro, acionará para incorporar a sua vida ou a outras leituras. Livros que continuam uns aos outros. (1999a, p.185).

Se leitura e escrita estão interligadas, é fato que se perde muito com a falta da leitura relacionada ao ato de reciprocidade entre leitor e texto. Este, por mais inspirado que seja, só encontra razão se for lido. “A relação entre leitor verdadeiro e livro é criativa. Tanto precisa ele do livro, quanto o livro dele. É uma reciprocidade que se faz necessária” (STEINER, 2001, p. 29).

Essa relação é, de certa maneira, restabelecida com a intertextualidade. Mesmo que a opinião de Steiner, citada a seguir, seja verdadeira, tentativas de releituras das obras clássicas ainda existem:

As alternativas não são animadoras: de um lado, temos a vacância do intelecto, ruidosa e vulgar; do outro, o recuo da literatura para dentro das vitrinas dos museus. Temos as abomináveis simplificações esquemáticas dos clássicos, com versões pré-digeridas e banalizadas, por um lado ou por outro, as ilegíveis edições eivadas de notas de vários comentadores. A arte da literatura precisa reencontrar seu caminho, ainda que a duras penas. Se falhar, se une lecture bien faite passar a ser apenas um artifício do passado, um enorme vazio passará a ocupar nossas vidas e teremos perdido para sempre a serenidade e a luz que emanam da tela de Chardin. (STEINER, 2001, p. 31).

Um estudo sobre o papel do livro no decorrer dos séculos, como ele se transformou e o questionamento quanto a sua sobrevivência no mundo contemporâneo vem estimulando uma discussão também abordada por Ana Maria Machado, em A

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audácia dessa mulher. A autora inicia o Capítulo 16 com a seguinte frase: “Os livros continuam uns aos outros, apesar de nosso hábito de julgá-los separadamente” (p. 185), para em seguida creditar a mesma citação à escritora inglesa Virginia Woolf.

Através da voz do narrador, a autora recorda e concorda com Woolf,

E não apenas porque existe uma tradição literária onde esses livros se inserem, fazendo com que nenhuma obra possa ser um fato isolado e solitário, mas tenha sempre que ser o resultado de muitos séculos de se pensar em conjunto, de tal forma que a experiência coletiva está sempre por trás da voz individual. (1999a, p.185).

De fato, os livros de Machado de Assis já traziam em si mesmos uma intertextualidade com clássicos que os precederam: Shakespeare, Homero, Cervantes. Isso mostra o papel de leitor de Machado, que pode ser estendido a outros escritores que, mesmo poucos frente ao número de leitores, puderam a partir do próprio século XIX permitir que a diferença entre autor e leitor estivesse prestes a desaparecer, pois os leitores podem a qualquer momento converter-se em escritores. O fácil acesso ao texto, a maior especialização, a facilidade dos temas (da violência à autoajuda), a não necessidade da educação altamente especializada, o livro encarado como simples produto fizeram-no “coisa de todos”. Mais que isso, fizeram-no meio de perpetuação, um instrumento da indústria cultural. Como bem resumiu Benjamin, “a reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas” (1994, p. 194).

Isso se reflete contemporaneamente também nas personagens de ficção. Não podemos negar que Beatriz Bueno, personagem de ficção, “estivesse se comportando como entusiasmada leitora real de ficção diante da história de Lina” (MACHADO, 1999, p. 194). Isso é possível porque a autora, com audácia, conseguiu transformar Capitu, personagem de ficção, em personagem real e, por extensão, Bia em leitora real. Leitora essa que se fixou em um caderno “como se fosse um romance”.

Ao descrever Bia como “leitora real”, Ana Maria Machado busca manter a relação com a leitora de A audácia dessa mulher nos moldes do mestre Machado de Assis a quem cita em seguida. A autora tenta justificar a criação do romance e explicar o porquê do ato de escrever: “É por você, que me lê. Por mim mesma, que escrevo. E se

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nada disso lhe interessa, ou tudo lhe parece levemente vertiginoso, eu poderia ecoar Machado de Assis...” (p.186)

Vai mais além, quando através da metalinguagem tenta voltar as lentes para quem possivelmente a lê. Compara as leitoras de Machado com as leitoras de hoje e a mudança de interesses da mulher do século XIX com as do final do século XX. Misturando esses dois universos, Ana faz um dos seus irrecusáveis convites: ler a carta reveladora de Lina em que “se cruzam ficção e realidade, no contínuo fluxo de livros que se esparramam por nossa vida e a fecundam” (p.187).

2.3- A Escola de Frankfurt, a indústria cultural e a obra de arte

Uma diferença entre a época atual e as anteriores é a menção que se faz a respeito das diferenças sociais. Outrora as diferenças entre as classes eram omitidas. Hoje, elas parecem envergonhar os homens, fazê-los incomodados mesmo que superficialmente. E, talvez o mais importante, levam-nos a refletir a respeito do acesso à cultura como direito de todos. Motivado por essa temática, escreveu Antonio Candido:

Pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. Esta me parece a essência do problema, inclusive no plano estritamente individual, pois é necessário um grande esforço de educação e auto-educação a fim de reconhecermos sinceramente este postulado. Na verdade, a tendência mais funda é achar que os nossos direitos são mais urgentes que os do próximo” (2004, p.172).

Segundo Bloom, no livro anteriormente citado, a escolha do cânone é algo elitista e fundamenta sua tese na defesa de que os escritores, considerados canônicos, executam as suas obras como formas maiores que quaisquer programas sociais, por mais exemplares que eles sejam. Seu livro traz críticas aos marxistas, às feministas e aqueles que insistem em vincular literatura a programas sociais.

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A injustiça final da injustiça histórica é que não dota necessariamente as vítimas de nada além do senso de sua própria vitimação. O cânone ocidental, seja lá o que seja, não é um programa de salvação social. (BLOOM, 2010, p.44).

Contradizendo de certa forma essa opinião de Bloom, Ana Maria Machado, em A audácia dessa mulher, inicia o capítulo 12 descrevendo uma cena em que Bia, protagonista da história, depara-se com um menino que aparenta viver nas ruas. Em quatro páginas, a autora trata de um problema social bem comum no Brasil.

Nesse caso, a literatura é usada para mostrar o contexto social, questioná-lo e não para tratar ou colocar alguém em contexto de vitimização. O leitor é levado a pensar na posição da personagem com relação ao tema e ao que se chamou de “cultura da fraude”:

–“Leva um, pra me ajudar...” “Hoje ainda não vendi nada...” “Vamos, tio, pra eu poder voltar para casa...” “Não vai levar, não? É uma tranca boa. Sem ela qualquer um rouba seu carro rapidinho, quer ver como o vidro abre fácil?” Como se fosse possível desenvolver uma economia com essas atitudes, formando coitadinhos profissionais e ensinando que a maneira de ganhar a vida é apelas para o sentimentalismo ou para a ameaça. É a cultura da fraude. Está na cara que isso não leva a lugar nenhum, só perpetua um modelo de ganho que não é baseado na produção. O cara só quer defender o seu de qualquer jeito e, no dia que puder passar para o outro lado graças a qualquer esperteza ou golpe bem dado, vai é tratar de construir um paredão em volta, para ninguém entrar, e tirar o couro dos outros, porque já conhece todos os truques. (MACHADO, 1999a, p. 150. Grifo nosso.).

Outros autores que discutiram bastante sobre a sociedade atual e a cultura de massa foram os membros da escola de Frankfurt. De fato, não se pode negar que as ideias dos membros dessa escola possibilitaram a percepção de mudanças significativas na sociedade do século XIX, que atingiram também a própria esfera da arte, assim como outros segmentos da vida social, uma vez que possibilitaram a produção e a distribuição de produtos artísticos que passaram a ser produzidos e consumidos como os demais produtos da sociedade capitalista de produção. É o que Benjamin, em “A obra de arte na

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era de sua reprodutibilidade técnica”, escrito em 1936, analisa como o fim da “aura” da arte, o que de certa forma representa um movimento democrático de deselitização e dessacralização.

Como bem nota o autor, a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica perde o caráter único, autêntico e ritualístico de objeto de culto, para ser apropriada pelas massas, passando a ser valorizada como produto comercializável, o que a retira da esfera de criação sublime do autor para inseri-la num esquema global de divisão do trabalho. Para Benjamim, tal movimento tem um caráter revolucionário, pois a arte deixaria de pertencer apenas aos domínios burgueses e, em função disso, a construção de uma cultura revolucionária antifascista e anticapitalista seria possível, não por meio da estetização da vida política, mas de uma arte politizada.

A proletarização crescente do homem contemporâneo e a importância cada vez maior das massas constituem dois aspectos do mesmo processo histórico. O fascismo queria organizar as massas, sem mexer no regime de propriedade; o fascismo quer permitir-lhes que se exprimam, porém conservando o regime. O resultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política. A essa violência que se faz às massas, quando se lhes impõe o culto de um chefe, corresponde a violência sofrida pela aparelhagem, quando a colocam a serviço dessa religião. (...) Essa é a estetização da política, tal como a prática do fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte. (BENJAMIN, 1994, p. 36).

De fato, parece esta uma visão bastante otimista da arte relacionada à possibilidade revolucionária. O autor considera a expansão da ideologia burguesa para a permanência e a reprodução do sistema capitalista, mesmo quando admite que essa técnica possa contribuir de alguma maneira para a emancipação do indivíduo. Ainda de acordo com o autor:

Seria errôneo, em consequência, subestimar o valor combativo dessas teses que, aqui, apresentamos. (...) O que distingue as concepções que empregamos aqui – e que são novidades na teoria da arte – das noções em voga, é que elas não podem servir a qualquer projeto fascista. São,

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em contrapartida, utilizáveis no sentido de formular as exigências revolucionárias dentro da política da arte. (p. 3).

São os romances e os folhetins compostos por narrativas lineares, enredo, algumas vezes, simples, que, preparados para o consumo em larga escala, perdem as formas de literatura de massa e a “aura” de obra de arte, conceituada por Benjamin. Abre-se a possibilidade de uma leitura mais ampla de um número maior e mais diversificado de autores, e um modo novo de leitura citado por Ana Maria Machado em seu texto quando compara o diário de Lina a esse momento da literatura:

Ana Lúcia tinha razão, a leitura ia ficando interessante, dando vontade de acompanhar, depois de tanto tempo, capítulo a capítulo do que ia acontecendo na vida da dona do caderno. Como num folhetim ou numa novela. Bia se surpreendeu especulando, curiosa, sobre os novos dados que esse parágrafo trazia. (p.126)

Entretanto, diante do crescimento da Indústria Cultural, termo cunhado por Adorno, os autores são levados a posicionar-se em relação às suas obras: ajustar-se ao mercado editorial, ainda que isso possa prejudicar a qualidade de seus textos, ou manter a “aura”, produzindo de maneira “independente” e pagando o preço do pouco retorno, tanto em sucesso de vendas quanto financeiro. Tomando por base de estudo o texto de Ana Maria Machado e as opiniões da própria autora, destacamos o seu posicionamento:

(...) Eu comecei a escrever e ele virou isso. Acho que é porque eu quase não aceitei fazer. Primeiro, não queria porque era de encomenda. Aí, insistiram, pediram algo curto. Quando falaram novela, me interessei, mas não queria nenhum dos temas que me ofereceram. Fiquei com aquilo na cabeça, e até pela resistência em fazer ficção de encomenda, comecei a dizer a mim mesma: se fosse ensaio, seria mais fácil. Fui jornalista, você sabe, faz-se uma reportagem sobre qualquer coisa. Fiquei pensando: como haviam sido meus últimos livros? Olhei de fora, com olhar crítico. Vi que todos eles falavam de outras histórias já feitas, sempre dialogam com outra obra literária. É assim, por exemplo, Alice e Ulisses, com o Lewis

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Caroll, Homero e James Joyce. Percebi que isso era capaz de fazer: uma história que dialoga com outras histórias. E decidi que o que me interessava era o tempo.3

Naturalmente, esta não é uma questão que possa ser respondida de maneira tão maniqueísta. Autores que escrevem de modo independente também possuem lugar no mercado. A questão é de que maneira a Indústria Cultural influi no processo produtivo, no processo artístico. É de que maneira o livro perde seu papel de obra de arte e se torna um mero bem de consumo.

Se as obras são diretamente encomendadas ou produzidas em função de um contrato comercial entre autor e editora, obviamente a Indústria interfere na sua aura. Por outro lado, se o autor conquista determinado tipo de leitor justamente por sua aura, é bem possível que o mercado editorial passe a interferir em um momento seguinte, ao editorar, imprimir e comercializar as obras. Isso faz com que grandes autores também sejam afetados e inseridos nos meandros da Indústria Cultural.

O que temos hoje é um mercado editorial voltado para o lucro, que visa ganhar com a “literatura ligeira”, se pensarmos conforme Adorno, em nome da vendagem; mas também não se importa em lucrar com a “literatura séria”, ainda segundo Adorno.

Dessa maneira, mesmo se o público leitor seguir uma espécie de padrão de consumo e preferir produtos semelhantes entre si, é a novidade que impulsionará a indústria de bens culturais, que determinará a vantagem de um produto (livro) com relação a outro. Isso faz com que a demanda por novos produtos seja imprevisível e variável e com que cada lançamento editorial apresente caráter de protótipo. Então, mesmo que a editora invista em um lançamento literário, o fato é que não existem garantias do seu sucesso.

Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento ressaltam que o editor, preocupando-se em atender aos desejos do público, está, na realidade, atendendo aos interesses da Indústria Cultural: “O consumidor não é rei, como a indústria gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto” (1971, p. 288). Isso mostra que, ao proporcionar bens culturais aos indivíduos, a Indústria Cultural

3 Entrevista ao jornal Estado de São Paulo, publicada em 3 de agosto de 2001. Disponível em

(36)

se com os seus próprios desejos, propagando o que ela própria faz com que o público goste, através da repetição exaustiva.

Sobre isso, Adorno acredita que, no mundo moderno, gostar tornou-se o mesmo que reconhecer e que o gosto do público regride à capacidade crítica dos sujeitos. A repetição constante a que estão expostos pela Indústria Cultural tem como meta propagar as ideologias da classe dominante, que controla o mercado e acaba por impedir “a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente” (p. 295). Adorno julga que a dependência e a servidão dos homens são os únicos objetivos da Indústria Cultural (p. 294). E ainda acrescenta que:

as ideias de ordem que ela inculca são sempre as do status quo. Elas são aceitas sem objeção, sem análise renunciando à dialética, mesmo quando elas não pertencem substancialmente a nenhum daqueles que estão sob sua influência (p. 293).

Por estar presente a todo o tempo, a Indústria Cultural inviabiliza a reflexão e a troca de experiência entre os sujeitos, e mostra que, “através da ideologia da Indústria Cultural, o conformismo substitui a consciência” (p. 293). Mesmo o fácil acesso aos livros ressaltaria a alienação dos indivíduos:

A eliminação do privilégio da cultura pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara. (p.150).

Outro ponto, dessa vez destacado por Benjamim, é que um dos problemas enfrentados pela obra de arte do passado, os ditos clássicos, é a passagem do tempo que alteraria a recepção por parte do público. O esquecimento, a mudança de gostos dos leitores seriam fatores que poderiam fazer com que esses textos fossem deixados de lado. Aqui, o livro teria vantagem sobre um quadro ou uma escultura, por exemplo, visto que o quadro, quando reproduzido, perderia a sua aura, o seu poder de culto. O

Referências

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