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Se e como poderá uma obra de arte ser bela

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Academic year: 2021

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João Lemos

Se e como poderá

uma obra de arte

ser bela

Acerca das condições de possibilidade da

noção de bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo

de Immanuel Kant

Hermeneutica K

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ISSN: 2386-7655

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©João Lemos, 2017

© CTK E-Books, Ediciones Alamanda, Madrid, 2017

La edición electrónica de este libro es de acceso abierto y se distribuye bajo los términos de una licencia de uso y distribución Creative Common Attribution (CC BY-NC-ND International 4.0) que permite la descarga de la obra y compartirla con otras personas, siempre que el autor y la fuente sean debidamente citados, pero no se autoriza su uso comercial ni se puede cambiar de ninguna manera.

Diseño y maquetación: Nuria Roca ISBN: 978-84-940241-3-9

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João Lemos

Se e como poderá

uma obra de arte

ser bela

Acerca das condições de possibilidade da

noção de bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo

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Agradecimentos

Devemos iniciar este texto com uma palavra de agradecimento à Sr.ª Professora Doutora Nuria Sánchez Madrid. Foi ela quem – lado-a-lado com o Sr. Professor Roberto R. Aramayo, a quem também agradecemos – possibilitou a sua publicação.

Trata-se da tese de doutoramento que apresentámos à Faculdade de Letras da Universidade do Porto e que a Sr.ª Professora Doutora Maria Filomena Molder e o Sr. Professor Doutor Diogo Pires Aurélio tiveram a amabilidade de avaliar. A ambos agradecemos as valiosas apreciações. Para a sua realização teve especial importância o financiamento concedido pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sob a forma de uma bolsa de doutoramento. O Instituto de Filosofia da Universidade do Porto disponibilizou todas as outras condições para que a investigação se desenrolasse.

Endereçamos um agradecimento especial à Sr.ª Professora Doutora Maria Eugénia Morais Vilela, que orientou a maior parte da investigação e da escrita deste trabalho. Enquanto coordenadora do grupo de investigação Estética, Política e Artes, a Sr.ª Professora Eugénia Vilela igualmente promoveu um diálogo cuja influência sobre os conteúdos aqui disponibilizados não pode ser subvalorizada.

Agradecemos também ao Sr. Professor Doutor Adélio da Costa Melo, responsável pela orientação inicial. Foi com a ajuda do Sr. Professor Adélio Melo que as nossas questões começaram a tomar forma.

O Sr. Professor Doutor Paulo Jorge Delgado Pereira Tunhas fez muito mais do que aquilo que era exigível ou expectável. Foi o responsável pela orientação final desta tese – com entusiasmo e dedicação. Destina-se ao Sr. Professor Paulo Tunhas o nosso último agradecimento.

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Índice

NOTA INTRODUTÓRIA ... 5

INTRODUÇÃO ... 8

CAPÍTULO I: JUÍZO DE GOSTO ... 22

1. Juízo estético reflexivo ... 22

1.1 Juízo estético ... 22

1.2. Juízo estético dos sentidos ... 26

1.3. Princípio da faculdade do juízo ... 30

1.4. A beleza apraz no simples julgamento ... 39

1.5. Princípio da conformidade a fins formal da natureza ... 45

1.6. Ideia do supra-sensível como conceito de um fundamento do princípio da conformidade a fins formal da natureza ... 58

2. Juízo estético universalmente válido a priori ... 60

2.1. Enquadramento ... 60

2.2. Supra-sensível como fundamento da validade universal a priori do juízo de gosto ... 65

2.3. O que significa um juízo de gosto ser universalmente válido a priori? ... 67

2.4. Necessidade e sensus communis ... 71

2.5. Necessidade subjectiva, necessidade e validade exemplares, voz universal ... 77

2.6. Justificação do sentido comum ... 78

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2.8. Juízo erróneo ... 82

CAPÍTULO II: ARTE ... 89

1. Juízo através do qual se declara artístico um objecto ... 89

1.1. Obra de arte ... 89

1.2. Representação de uma conformidade a fins objectiva interna... 92

1.3. Possibilidade de falar-se de bela arte ... 96

2. Juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ... 98

2.1. Impossibilidade de falar-se de bela arte ... 98

2.2. Perfeições ... 100

2.3. Beleza aderente e juízo de gosto aplicado ... 102

2.4. Juízo estético logicamente condicionado ... 104

2.5. Beleza fixada e juízo de gosto em parte intelectualizado ... 106

2.6. Não pode falar-se de bela arte ... 108

CAPÍTULO III: BELA ARTE ... 115

1. Belas obras de arte ... 115

1.1. Obras de arte livremente declaradas belas ... 115

1.2. A noção de bela arte segundo os §44-§46 da Crítica da Faculdade do Juízo ... 118

2. Génio, ideia estética, expressão de ideias estéticas e referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza ... 123

2.1. Génio ... 123

2.2. Ideia estética ... 128

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2.4. Referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da

natureza ... 153

3. Forma ... 159

3.1. Conformidade a fins da forma ... 159

3.2. Figura ... 163

3.3. Jogo ... 166

3.4. Da “Estética transcendental” da Crítica da Razão Pura ao “Terceiro momento do juízo de gosto” da Crítica da Faculdade do Juízo ... 172

3.5. Vários Elementos... 179

3.6. Forma e expressão ... 182

3.7. Importância da forma no sentimento do sublime ... 187

4. Beleza aderente como beleza ... 194

4.1. Beleza da arte como beleza aderente ... 194

4.2. Beleza da arte como beleza livre ... 210

4.3. Gostos ... 218

CAPÍTULO IV: PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE ... 232

1. Educação do génio ... 232

2. Cultivo, exercitamento e correcção do gosto ... 244

CONCLUSÃO ... 264

BIBLIOGRAFIA ... 274

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Nota Introdutória

A obra que motiva esta tese de doutoramento é a Kritik der Urteilskraft, de Immanuel Kant, originalmente escrita em Alemão. A nossa tese é escrita em Português e dirigida a leitores do Português. Por esta razão, sempre que citamos passagens da Kritik der Urteilskraft, utilizamos uma tradução portuguesa; por aquela outra, é recorrente transcrevermos o texto original quando fazemos uma citação. Numa tese em que as citações aparecem com grande frequência, cremos ser esta a metodologia mais adequada para que o leitor acompanhe, em continuidade, o raciocínio que aí é desenhado.

Igualmente considerando a possibilidade de acompanhamento, em continuidade, do raciocínio desenhado nesta tese, devemos assinalar que, em cada citação, optamos por transcrever do original apenas as partes especialmente relevantes para o assunto que estamos a abordar no

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momento em que a citação é feita. Nuns casos, essa opção resulta na transcrição da totalidade da passagem; noutros, não. É nossa opinião que tal contribui para que a leitura não seja perturbada por transcrições. Importa também indicar que não deixamos de proceder a reorganizações gramaticais sempre que fazê-lo se afigura relevante.

A edição da Kritik der Urteilskraft que utilizamos para transcrever as palavras de Kant, em Língua Alemã, é a da Preußische Akademie der Wissenschaften. No que diz respeito à ortografia, citamos o texto dessa edição adaptando-o à escrita actual, posterior à Rechschreibreform de 1996 – desde logo, escrevemos “Urteilskraft”, não “Urtheilskraft”.

A tradução a que recorremos para citar a Kritik der Urteilskraft em Português é a realizada por António Marques e Valério Rohden e editada em 1998 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Mantemo-la exactamente como está publicada, incluindo aquilo de que discordamos e aquilo que consideramos serem gralhas. Sempre que nos parece pertinente alterar ou simplesmente comentar a tradução de uma palavra ou passagem, acrescentamos uma nota de rodapé.

No que concerne à primeira Einleitung à Kritik der Urteilskraft, utilizamos a tradução realizada por Rubens Rodrigues Torres Filho. Quando a citamos, mantemos as opções do tradutor – por exemplo, a tradução de “Urteilskraft” por “Juízo”. No entanto, em nenhum outro caso submetemos a nossa escrita a essas opções – usamos a expressão “faculdade do juízo”, por exemplo.

Passagens de comentadores da obra de Kant ou passagens de outros filósofos são por nós citadas em Português. Nos casos em que utilizamos traduções portuguesas dos textos desses autores, limitamo-nos a transcrever os excertos tal como estão escritos nessas traduções; naqueles em que apenas lemos os textos na língua estrangeira em que originalmente são escritos ou noutra língua estrangeira, traduzimo-los, sob nossa responsabilidade, para Português.

Sempre que citamos um comentário no qual é citada uma passagem da Kritik der Urteilskraft, a passagem do texto de Kant é por nós transcrita segundo a tradução portuguesa supramencionada. Fazêmo-lo para

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proporcionar ao leitor da nossa tese uma mais rápida localização da passagem citada no comentário.

Ainda no que diz respeito a comentadores da obra de Kant ou a outros filósofos, é de assinalar que referimos, na Bibliografia, escritos que ao longo do nosso texto não são mencionados. Consideramos que uma tese de doutoramento pode ser um meio para partilhar referências bibliográficas relativas ao assunto por ela abordado.

Finalmente, uma nota relativa à maneira como citamos diferentes títulos presentes na Crítica da Faculdade do Juízo. A terceira Crítica mereceu pelo menos um prólogo, duas introduções, duas partes, duas secções, duas divisões, dois livros, vários apêndices, várias observações – com diferentes estatutos entre si na hierarquia dos títulos presentes na obra, tal como acontece com os apêndices – e quatro momentos – cada um com a sua explicação. De forma a evitarmos eventuais mal-entendidos na leitura do nosso texto decorrentes de um grafismo variado, optamos por citar os referidos títulos do modo que se apresenta no anexo “1. Títulos”.

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Introdução

A questão central que conduz esta investigação é a de saber se e como poderá falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant.1 Por outras palavras: pretendemos saber se e sob que

condições será legítimo usar-se a expressão bela arte no âmbito da terceira Crítica. A partir da resposta a essa questão, responderemos igualmente à

1 Não problematizaremos, na nossa tese, propostas de distinção entre Kraft e

Vermögen ou, mais especificamente, entre Urteilskraft e Vermögen zu urteilen.

Note-se, a este propósito, que, no §35, Kant identifica essas duas expressões, nomeadamente ao afirmar que «[a] condição subjectiva de todos os juízos é a própria faculdade de julgar ou a faculdade do juízo ([d]ie subjektive Bedingung aller Urteile

ist das Vermögen zu urteilen selbst, oder die Urteilskraft)» (Kant, 1998: 188).

Seguimos a opção dos responsáveis pela tradução portuguesa por nós usada para fazer citações – traduzir “Kritik der Urteilskraft” por “Crítica da Faculdade do Juízo”. Tal opção não terá qualquer influência sobre a questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte.

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questão de saber o que será necessário para a produção de bela arte, isto é, para a produção de belas obras de arte.

Embora de um modo intermitente, e numas vezes mais explicitamente do que noutras, a noção de bela arte (schöne Kunst) é uma noção que atravessa toda a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” da Crítica da Faculdade do Juízo.2 Assim, no §14, Kant menciona explicitamente «belas-artes (schöne Künste)» (Kant, 1998: 115); no §16, cita objectos artísticos como sendo belos (cf. Kant, 1998: 120-121); no parágrafo seguinte (§17) acerca do ideal da beleza, o nosso autor escreve uma nota sobre aquele que ele virá a dizer tratar-se do talento para a produção de objectos belos, a saber, o génio (cf. Kant, 1998: 268); mais à frente, na “Observação geral sobre a primeira secção da analítica”, usando «parques, decoração de aposentos, toda a espécie de utensílios de bom gosto, etc» como exemplos, tal, de resto, como «o gosto inglês por jardins» ou «o gosto barroco por móveis», Kant sublinha uma actividade que, como posteriormente veremos, é indispensável à bela arte, a saber, o «jogo livre das faculdades de representação» (Kant, 1998: 134); no §32, a propósito da primeira peculiaridade do juízo de gosto, Kant, embora sem utilizar a palavra génio, procede a uma primeira explicação daquilo pelo qual, como mostraremos, esse talento precisa de ser acompanhado para que se produzam obras de arte belas (cf. Kant, 1998: 183-185); dez parágrafos depois, no §42, ele utiliza as expressões «belo da arte (Schöne der Kunst)»

2 Na tradução portuguesa por nós usada para fazer citações, a expressão “schöne Kunst” é traduzida não apenas por “bela arte”, mas também por “arte bela”. Não sabemos o que terá motivado essa opção. Não vemos nela qualquer problema, porém. Aliás, na medida em que pelo menos não contribui para a assunção da possibilidade de falar-se de bela arte enquanto algo independente do que seja a beleza e do que seja a arte – bela arte que, nesse caso, estaria materializada nas obras das chamadas

belas-artes, das schöne Künste, das fine arts, mesmo que essa designação nada tivesse a ver

com o que seja a beleza ou a arte – a expressão “arte bela” poderá ajudar a ver a relevância da questão de saber se a arte pode ser bela, se a beleza pode ser artística. Devemos ressalvar, no entanto, que a emergência dessa pergunta em nada depende de uma tradução de “schöne Kunst” por “arte bela”. Por essa razão – e porque, de facto, Kant escreve unicamente “schöne Kunst” – tenderemos a usar a expressão “bela arte” para traduzi-la.

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(Kant, 1998: 201), «beleza da arte (Kunstschönheit)» (Kant, 1998: 202) e «bela arte (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 204); e, nos §44-§53, procede a uma descrição directa da bela arte e de tudo o que esta envolve, como é indiciado pelos títulos dos parágrafos respectivos (cf. Kant, 1998: 208-237); na primeira observação ao §57, Kant refere o «padrão de medida àquela conformidade a fins estética porém incondicionada na arte bela (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 252); no parágrafo que se segue (§58) o nosso autor aborda o «princípio do idealismo da conformidade a fins» na «arte bela (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 259); finalmente, no último parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60) Kant dá-nos indicações quer sobre a «maneira», quer sobre a «propedêutica» à «bela arte (schöne Kunst)» (cf. Kant, 1998: 264-266). Antes de tudo isso, no Prólogo à primeira edição da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant faz referência «ao belo e ao sublime da natureza ou da arte (das Schöne und Erhabne der Natur oder der Kunst)» (Kant, 1998: 48); na Primeira Introdução, cita a «beleza artística (Kunstschönheit)» (Kant, 1995: 91); e, na Introdução, menciona o prazer no belo associando-o quer à natureza, quer à arte.3

O facto de a noção de bela arte atravessar a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” poderia ser encarado como razão suficiente para não se inquirir acerca da sua legitimidade. Em nosso entender, porém, parece haver, no interior da terceira Crítica, um conflito entre, por um lado, as exigências que um juízo – que se pretende de gosto – tem de satisfazer

3 Primeiro, Kant fala de um prazer cujo fundamento «se encontra na condição universal, ainda que subjectiva, dos juízos reflexivos, nomeadamente na concordância conforme a fins de um objecto (seja produto da natureza ou da arte (er sei Product der

Natur oder der Kunst)) com a relação das faculdades de conhecimento entre si, as

quais são exigidas para todo o conhecimento empírico (da faculdade de imaginação e do entendimento)» (Kant, 1998: 76); seguidamente, assinala a «receptividade de um prazer a partir da reflexão sobre as formas das coisas (da natureza, assim como da arte (der Natur sowohl als der Kunst))» (Kant, 1998: 77); entretanto, na secção IX, o nosso autor indica que «o juízo estético» que ocasiona o «conceito da faculdade do juízo de uma conformidade a fins da natureza» refere-se a objectos «da natureza ou da arte (der Natur oder der Kunst)» (Kant, 1998: 83).

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para que, através dele, um objecto – natural ou não – seja declarado belo e, por outro lado, as exigências que um juízo – que também se pretende de gosto – tem de satisfazer para que, através dele, uma obra de arte (Kunstwerk) seja declarada bela (schön). Esse conflito faz com que a possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela através daquilo que Kant define como juízo de gosto (Geschmacksurteil) seja por nós questionada. Estão em causa o significado e a legitimidade da noção de bela arte. Na nossa indagação, tornaremos explícito o referido conflito e verificaremos se e como poderá uma obra de arte ser considerada bela – por outras palavras: se e como poderá falar-se de bela arte.

No “Capítulo I: Juízo de Gosto”, elencaremos os critérios através dos quais algo é declarado belo, as exigências que um juízo tem de satisfazer para que através dele se declare belo um objecto, as características do juízo de gosto. Em primeiro lugar, caracterizá-lo-emos como um juízo estético reflexivo (ästhetisches Reflexionsurteil). Fá-lo-emos na primeira secção, “Juízo estético reflexivo”. Seguidamente, na secção “Juízo estético universalmente válido a priori”, apresentaremos a argumentação de Kant no sentido de caracterizá-lo como um juízo estético universalmente válido a priori (allgemeingültig a priori).

Ao caracterizá-lo como um juízo estético reflexivo, necessariamente o distinguimos de duas espécies de juízos que de modo breve também caracterizaremos: o juízo acerca do agradável (das Angenehme), juízo estético não reflexivo, juízo estético dos sentidos, e o juízo acerca do bom (das Gute), que nem sequer é um juízo estético. Na caracterização do juízo de gosto como juízo estético reflexivo, daremos destaque ao princípio próprio da faculdade do juízo, a saber, o princípio da conformidade a fins da natureza para as nossas faculdades de conhecimento (Prinzip der Zweckmäßigkeit der Natur für unser Erkenntnisvermögen)4:

4 António Marques e Valério Rohden traduzem o termo “Zweckmäßigkeit” por “conformidade a fins”; Rubens Rodrigues Torres Filho tradu-lo por “finalidade”. A desvantagem da primeira opção prende-se com a composição da palavra “conformidade”, que a liga necessariamente à palavra “forma”, sendo que, no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo, nem toda a conformidade a fins se

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explicitaremos como a ele se chega, como a faculdade do juízo dá esse princípio a si própria, e descrevê-lo-emos como uma pressuposição necessária da faculdade do juízo, mostrando igualmente que ele serve de princípio para a reflexão (Reflexion), não para a determinação. Salientaremos que o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento (Erkenntnisurteil), não se funda em conceitos (Begriffe). Sublinharemos a afirmação da independência do juízo de gosto relativamente ao conceito de perfeição (Vollkommenheit). No seguimento desse sublinhado, faremos emergir a noção de conformidade a fins sem fim (Zweckmäßigkeit ohne Zweck) e registaremos a possibilidade e as condições de observação de uma conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento (formalen Zweckmäßigkeit der Natur für unser Erkenntnisvermögen). Uma tal conformidade a fins é ajuizada por intermédio do gosto (faculdade de juízo estética) através do sentimento de prazer no movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação de um objecto. Se, por ocasião da representação de um objecto, aquele que ajuíza sentir um prazer num movimento simultaneamente livre e harmónico das suas faculdades de conhecimento entre si, então ele declarará belo esse objecto. Por último, assinalaremos que, de acordo com Kant, a representação de uma conformidade a fins formal da natureza para as faculdades de conhecimento não pode ocorrer sem uma referência ao conceito racional transcendental do supra-sensível (der transzendentale Vernunftbegriff von

relaciona com a forma. A opção por “finalidade”, por seu turno, tem a desvantagem de o significante não ter qualquer relação com a palavra “forma”, sendo que, igualmente no âmbito da terceira Crítica, a noção de forma é de importância capital. Por essa razão, e por uma questão de uniformidade, considerando que a tradução que utilizamos do texto de Kant (a Kritik der Urteilskraft, com a excepção da primeira

Einleitung) é a efectuada por Marques e Rohden, optaremos por aplicar o termo

“conformidade a fins” para nos referirmos a Zweckmäßigkeit. Mais difícil é a tradução de “Zweckmäßigkeit” para Língua Inglesa. Nem “purposiveness” nem “finality” são expressões inteiramente satisfatórias – a primeira, porque não carrega qualquer referência à forma (form); a segunda, por não envolver referências seja à forma, seja a fins (ends, purposes).

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dem Übersinnlichen). O juízo de gosto (o juízo através do qual se declara belo um objecto) envolve necessariamente uma referência à ideia do supra-sensível.

Em última análise, é na referência ao supra-sensível que Kant considera fazer assentar a validade universal a priori do juízo de gosto. Por essa razão, depois de enquadrarmos a tentativa encetada por Kant para providenciar uma dedução transcendental do juízo de gosto, prosseguiremos a secção “Juízo estético universalmente válido a priori” com a afirmação dessa referência e da validade do juízo estético reflexivo. Seguidamente, descreveremos o tipo de necessidade que está em causa nesse tipo de juízo estético. Nesse contexto, apelaremos à noção de sentido comum (Gemeinsinn / sensus communis), enquanto aquilo sobre cuja pressuposição o juízo de gosto assenta a sua necessidade. Uma tal necessidade é subjectiva mas, segundo Kant, a priori. Explicitá-la, envolverá uma menção das noções de necessidade exemplar (exemplarische Notwendigkeit), validade exemplar (exemplarische Gültigkeit) e voz universal (allgemeine Stimme), assim como uma justificação do sentido comum como ideia necessária. Finalmente, em jeito de esclarecimento, defenderemos, em primeiro lugar, que a recorrência de Kant à conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento, ao conceito do supra-sensível, ao sentido comum e à voz universal, tal resulta não na afirmação de uma multiplicidade de princípios sobre os quais assentaria o juízo estético reflexivo, enquanto juízo universalmente válido a priori, mas numa rede de elementos para tentar legitimar a validade universal a priori do juízo de gosto; em segundo lugar, reforçando que proferir um juízo desse tipo é proferir um juízo baseado no princípio do gosto, igualmente defenderemos que um engano da parte daquele que ajuíza não coloca em causa a pretensão do juízo de gosto à validade citada.

No “Capítulo II: Arte”, descreveremos, numa primeira secção, o juízo através do qual se declara artístico um objecto e, numa segunda secção, o juízo através do qual se declara belo um objecto artístico.

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Assim, na secção “Juízo através do qual se declara artístico um objecto”, enunciaremos os critérios através dos quais algo é declarado uma obra de arte, os requisitos indispensáveis à declaração de uma coisa como artística (künstlich). Fazê-lo corresponde a apresentar as considerações proferidas por Kant acerca da arte (Kunst), especialmente a partir do §43. Nesse contexto, assinalaremos o carácter mecânico, coercivo e escolástico da arte e destacaremos a relação desta com conceitos daquilo que o objecto deva ser, intenções e regras.5 Por conseguinte, igualmente destacaremos a

relação do juízo através do qual se declara artístico um objecto com a representação de uma conformidade a fins objectiva interna (innere objektive Zweckmäßigkeit), isto é, com a representação de uma perfeição. Finalmente, não deixaremos de propor que, considerando unicamente a descrição que Kant dá de arte – e, a partir dessa, aquilo que um juízo tem de cumprir para através dele se declarar artístico um objecto – o facto de um objecto ser uma obra de arte não impede que ele seja declarado belo.

No entanto, Kant não se limita a descrever a arte; o nosso autor igualmente elenca condições para que a arte seja bela. A secção “Juízo através do qual se declara bela uma obra de arte” partirá precisamente da enunciação de um critério que um juízo tem de satisfazer para que através dele se declare bela uma obra de arte. Confrontado com aquilo que teremos exposto no “Capítulo I: Juízo de Gosto”, esse critério será por nós apresentado como causa da indagação que motiva este estudo, a saber, se e como poderá falar-se de bela arte. Na segunda secção do “Capítulo II: Arte”, clarificaremos o conflito em jogo – o conflito entre as condições que um juízo tem de satisfazer para ser um juízo de gosto, isto é, um juízo através do qual se declara belo um objecto, e os requisitos que um juízo tem de preencher para que através dele se declare bela uma obra de arte. A partir dessa clarificação, a questão que nos move pode adquirir diferentes vestes: Será o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte um juízo de gosto? Será possível declarar-se bela uma

5 Tal envolverá também uma primeira referência explícita às considerações de Kant acerca da bela arte.

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obra de arte através de um juízo de gosto? Poderá ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto? Poderá uma obra de arte ser bela? Depois de explicitadas e analisadas, as distinções estabelecidas por Kant entre perfeição qualitativa (qualitative Vollkommenheit) e perfeição quantitativa (quantitative Vollkommenheit), no §15, e entre beleza livre (freie Schönheit / pulchritudo vaga) e beleza aderente (anhängende Schönheit / pulchritudo adhaerens), ou, equivalentemente, entre puro juízo de gosto (reines Geschmacksurteil) e juízo de gosto aplicado (angewandtes Geschmacksurteil), no §16, serão tidas como irrelevantes para a sustentação de uma resposta afirmativa à questão de saber se poderá falar-se de bela arte. Igualmente tida como irrelevante para responder afirmativamente a essa questão será a introdução das noções de beleza fixada (fixierte Schönheit) e juízo de gosto em parte intelectualizado (zum Teil intellektuierten Geschmacksurteils), no §17, e de juízo estético logicamente condicionado (logisch-bedingtes ästhetiches Urteil), no §48. A própria legitimidade de algumas das noções mencionadas será questionada. Como consequência dessa explicitação e análise, estará colocada em causa, de modo reforçado, a legitimidade da noção de bela arte.

O “Capítulo III: Bela Arte” é o capítulo especificamente dirigido à legitimação da noção de bela arte. Na sua primeira secção, “Belas obras de arte”, apresentaremos três razões fornecidas pela Crítica da Faculdade do Juízo para, apesar do que é concluído no capítulo anterior, continuarmos a pensar a possibilidade de falar-se de bela arte e as condições dessa possibilidade. Se as duas primeiras razões a apresentar poderão ser vistas como insuficientes, sem prejuízo da sua consistência interna, o mesmo não se passará com a terceira: essa razão torna incontornável uma investigação renovada acerca das condições de possibilidade de falar-se de bela arte, sob pena de o texto de Kant carregar uma contradição: obras de arte podem e não podem ser declaradas belas.6

6 Se se preferir: obras de arte podem e não podem ser livremente declaradas belas, objectos artísticos podem e não podem ser declarados belos através de puros juízos de

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A nova investigação basear-se-á na definição que Kant dá de bela arte como arte do génio (Kunst des Genies), a partir do §46. Se compreendermos o que está em causa na arte do génio, compreenderemos o significado que o nosso autor atribui à noção de bela arte.7 Assim,

iniciaremos a segunda secção, “Génio, ideia estética, expressão de ideias estéticas e referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza”, com uma descrição introdutória da noção de génio (Genie). Tal será feito na subsecção “Génio”. Na segunda subsecção, “Ideia estética”, explicitaremos e legitimaremos a noção de ideia estética (ästhetische Idee). Para a sua legitimação, será indispensável uma referência ao alargamento das capacidades da faculdade da imaginação enquanto faculdade produtiva (produktives Vermögen) efectuado na terceira Crítica. Além disso, abordaremos a relação das ideias estéticas com conceitos. Essa abordagem será necessária para que se compreenda que, do ponto de vista de Kant, o exercício da faculdade da imaginação é, no contexto da arte do génio, um exercício livre. Ora, tendo em conta que um exercício livre das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza é uma conditio sine qua non para o proferimento de um juízo de gosto, mostrar que, no contexto da arte do génio, a faculdade da imaginação se exerce livremente revela-se uma etapa indispensável na legitimação da noção de bela arte. Constituindo uma condição necessária, o exercício livre das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza não constitui, no entanto, uma condição suficiente para o proferimento de um juízo de gosto – e, por conseguinte, para a declaração de uma obra de arte como bela, para a beleza da arte. Considerando esse facto, passaremos, na subsecção

gosto, pode e não pode falar-se de bela arte enquanto arte livremente declarada bela, pode e não pode falar-se de bela arte enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto.

7 Nos parágrafos imediatamente anteriores, §44 e §45, Kant apresenta definições explícitas de bela arte. O problema é que, consideradas antes da explicitação do significado de bela arte como arte do génio, tais definições são simplesmente contraditórias com aquilo que teremos concluído no segundo capítulo da nossa tese.

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“Expressão de ideias estéticas”, a uma primeira enunciação daquilo que faz com que, no contexto da arte do génio, as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se disponham num movimento não apenas livre, mas também harmónico entre si. Será crucial explicitar a noção de espírito (Geist). Aquilo que o espírito dá ao génio afigurar-se-á, nesse âmbito, como a razão que faltava para a definição de bela arte como arte do génio (Kunst des Genies). Finalmente, na subsecção “Referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza”, mostraremos como o juízo através do qual se declara belo um produto do homem – concretamente, uma obra de arte – é referido ao princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. Tal implicará um retorno à importância do supra-sensível na declaração de algo como belo. Desta feita, porém, o objecto em causa será o objecto artístico. Nesse retorno, daremos destaque à noção de técnica (Technik), às expressões como (als) e como se/que (als ob) e à diferença entre ser (sein) e parecer (scheinen / aussehen).

A possibilidade de denominação da beleza como expressão de ideias estéticas (Ausdruck ästhetischer Ideen), referida no início do §51, não apenas contribui para sustentar uma resposta afirmativa à questão de saber se pode falar-se de bela arte – e, por conseguinte, para a legitimação da noção de bela arte – mas, além disso, acarreta uma consequência relativa à importância que Kant dá à forma no concernente ao juízo de gosto: vários são os elementos a colaborar para o movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz de um objecto belo. Considerando o estatuto da forma na beleza dos objectos, dedicaremos a essa noção uma secção própria no âmbito da legitimação da noção de bela arte: “Forma”, terceira secção do “Capítulo III: Bela Arte”. Começaremos por assinalar que, segundo Kant, o comprazimento no belo está ligado à conformidade a fins da forma do objecto para as nossas faculdades de conhecimento. Seguidamente, explicitaremos o que o nosso autor entende por forma (Form) e aproveitaremos para chamar a atenção para as condições de

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possibilidade de a matéria (Materie), que atrai, que é agradável, contribuir para a beleza – ou mesmo ser bela. Reiteraremos, porém, que, de acordo com Kant, o que no proferimento de um juízo de gosto se considera é a forma do objecto. Claramente identificada a posição do nosso autor, procuraremos a sua origem, problematizaremos a sua necessidade e reafirmaremos a ligação da disposição subjectivamente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza, por ocasião da representação que ele faz de um objecto belo, com vários elementos além da forma, entre eles as ideias estéticas. Não deixaremos, no entanto, de apresentar uma interpretação de forma que poderá conciliar uma posição formalista, sugerida em múltiplas passagens da Crítica da Faculdade do Juízo, com a denominação da beleza como expressão de ideias estéticas, cuja possibilidade é, como já notámos, afirmada no início do §51. Por último, uma referência ao sentimento do sublime (das Erhabene). Enquanto a “Analítica do belo” emerge da possibilidade de representação de uma conformidade a fins subjectiva a partir da forma de um objecto, a necessidade da “Analítica do sublime” reside na possibilidade de ocorrência de um sentimento de prazer universalmente válido numa forma que, sob um certo ponto de vista, não é conforme a fins, aparecendo mesmo como contrária a fins. A origem dos dois livros da “Analítica da faculdade de juízo estética” é, desta perspectiva, diametralmente oposta. É essa oposição que os torna necessários. Na parte final da secção “Forma”, mostraremos que a problematização da importância da forma no juízo de gosto não coloca em causa a importância da forma – ou da ausência dela – para a ocorrência do sentimento do sublime.

Está feita a introdução às três primeiras secções do “Capítulo III: Bela Arte”. Em algumas partes dessas secções, falaremos da beleza da arte como se não fosse a possibilidade de uma tal beleza aquilo que está em causa na nossa tese. Referir-nos-emos à bela arte suspendendo o excerto a partir do qual pode alegar-se que a beleza da arte só pode ser uma beleza aderente. Mencioná-la-emos como se um outro excerto não colocasse em causa a legitimidade da colocação da beleza aderente no âmbito da beleza. Falaremos de bela arte como se fosse legítimo falar

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de bela arte antes de ser mostrado que a arte pode ser bela, que uma obra de arte pode ser declarada bela, que pode ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto. A relevância dessas três secções revelar-se-á numa quarta, denominada “Beleza aderente como beleza”. Concretamente, revelar-se-á indispensável termos indicado que o exercício da faculdade da imaginação pode ser um exercício livre mesmo que haja consideração de conceitos da parte daquele que ajuíza. A partir de uma reflexão acerca das várias possibilidades de interpretação do termo representação (Vorstellung), começaremos por apontar em relação a que conceito pode, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte, ser tida em conta uma perfeição. Igualmente indicaremos que num juízo no qual é considerada uma conformidade a fins objectiva interna a faculdade da imaginação pode exercer-se livremente e que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte não deixa de ser fundado na observação de uma conformidade a fins subjectiva por ocasião da representação do objecto artístico. Seguidamente, mediante uma proposta de interpretação da distinção estabelecida por Kant entre beleza livre e beleza aderente, que nessa altura recuperaremos, caber-nos-á defender que e como a última pode ser uma beleza. Também aí serão consideradas as condições do exercício livre da faculdade da imaginação. Ora, por intermédio da legitimação da beleza aderente como espécie de beleza – e, por conseguinte, do juízo de gosto aplicado como juízo de gosto – será legitimada a noção de bela arte, enquanto arte condicionadamente declarada bela, enquanto arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados. Poderá falar-se de bela arte.8 É essa

possibilidade que justificaremos na subsecção “Beleza da arte como beleza aderente”. Não obstante a referida subsecção eliminar algumas das dificuldades com que nos confrontamos, nem todas são eliminadas por ela. Se recordarmos a razão principal que apresentamos, na secção “Belas obras de arte”, para justificar a necessidade de continuarmos a

8 Tal legitimação não será efectuada sem uma consequência para o texto de Kant no concernente aos requisitos que um juízo tem de satisfazer para ser um juízo de gosto.

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pensar se e como poderá falar-se de bela arte, compreenderemos que a beleza da arte não pode reduzir-se ao âmbito da beleza aderente. É indispensável legitimar a noção de bela arte não – ou não apenas – como arte condicionadamente declarada bela, como arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados, mas – ou mas também – como arte livremente declarada bela, como arte declarada bela através de puros juízos de gosto. É isso que faremos na subsecção “Beleza da arte como beleza livre”. A partir de uma divisão de uma das interpretações possíveis do termo representação e de uma segunda releitura da distinção estabelecida por Kant entre beleza livre e beleza aderente, sustentaremos a possibilidade de declarar-se bela uma obra de arte através de um puro juízo de gosto. Assim, defenderemos que objectos artísticos podem ser condicionadamente declarados belos (declarados belos através de juízos de gosto aplicados) e podem ser livremente declarados belos (declarados belos através de puros juízos de gosto). Afirmaremos, então, que a beleza da arte pode ser uma beleza livre, que a bela arte pode ser uma arte livremente declarada bela, uma arte declarada bela através de puros juízos de gosto, que pode falar-se de bela arte enquanto tal. O que estará em causa será a ligação do conceito daquilo que o objecto deva ser ao gosto. Nesse contexto, terá de ser problematizado o significado da noção de gosto (Geschmack) na Crítica da Faculdade do Juízo. Fá-lo-emos na subsecção “Gostos”. Efectuada essa problematização e reiterada a possibilidade de falar-se de bela arte enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto, ficará respondida a questão central que motivou a nossa investigação.

Legitimada a noção de bela arte, será nossa intenção responder à questão de saber o que é necessário para a produção de uma tal arte. Responder-lhe-emos no “Capítulo IV: Para a Produção de Bela Arte”. A necessidade de respondermos a essa questão prende-se com o facto de, na Crítica da Faculdade do Juízo, especialmente nos parágrafos directamente concernentes à bela arte (§44-§53) haver indícios aparentemente contraditórios quanto ao ou aos talentos requeridos para a produção de belas obras de arte. O carácter educável do génio e o carácter

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cultivável, exercitável e corrigível do gosto constituirão a chave para a resposta que proporemos.

Começaremos por mencionar as passagens que indiciam contradição. Iniciaremos a sua resolução apelando a diferenças entre homens que têm em comum entre si o facto de serem génios – isto é, de serem dotados de um talento denominado génio. Seguidamente, explicitando o processo de sucessão entre homens dotados de um tal talento, mostraremos que a sua posse não é condição suficiente para a produção de objectos artísticos belos e salientaremos a importância do gosto no contexto da bela arte. Faremos isso na secção “Educação do génio”.

Na secção “Cultivo, exercitamento e correcção do gosto”, mostraremos que nem apenas o génio, nem sequer o génio e o gosto, constituem condição suficiente para a produção de belas obras de arte. Nesse sentido, elaboraremos uma reflexão acerca da possibilidade e das condições de desenvolvimento quer do gosto, quer da faculdade do juízo, salientando a importância das habitual mas equivocadamente chamadas ciências belas nesse contexto.9 A produção de objectos artísticos belos revelar-se-á

estreitamente ligada a esse desenvolvimento. Ficará respondida a questão de saber o que é necessário para a produção de bela arte.

9 Será relevante, nessa altura, fazer uma chamada de atenção para a independência da validade quer do juízo de gosto, quer do sentimento do sublime, relativamente ao desenvolvimento da faculdade do juízo.

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Capítulo I: Juízo de Gosto

1. JUÍZO ESTÉTICO REFLEXIVO

1.1 Juízo estético

A questão principal a que a nossa investigação pretende responder é a de saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. Para tal, teremos de considerar os requisitos a cumprir para que um objecto seja declarado belo, assim como aqueles que são indispensáveis para que uma coisa seja declarada artística. Começaremos pelos primeiros. Tal implica descrever detalhadamente o juízo através do qual se declara belo um objecto, o juízo de gosto, juízo estético reflexivo.

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A faculdade de julgamento do belo é o gosto (Geschmack).10 Os juízos

provenientes do gosto são juízos estéticos.11 O juízo de gosto

(Geschmacksurteil) é um juízo estético (Ästhetischesurteil). É pela afirmação segundo a qual o juízo de gosto é estético que iniciaremos a enunciação das exigências que um juízo tem de satisfazer para que, através dele, se declare que um objecto é belo. É esse o título do primeiro parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (cf. Kant, 1998: 89).

Nesse mesmo parágrafo (§1) depois de afirmar que o juízo de gosto é estético, Kant assinala, complementarmente, que estético (ästhetisch) é «aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjectivo (dasjenige, dessen Bestimmungsgrund nicht anders als subjektiv sein kann)» (Kant, 1998: 89). Um recuo até à Introdução ajuda-nos a

10 Logo na primeira nota da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”, Kant diz que «[a] definição do gosto ([d]ie Definition des Geschmacks), posta aqui como fundamento, é de que ele é a faculdade de julgamento do belo (er sei das Vermögen

der Beurteilung des Schönen)» (Kant, 1998: 267). Num comentário a essa nota,

António Marques e Valério Rohden anunciam a tradução de “Urteil” e “Beurteilung” por “juízo” e “julgamento”, respectivamente. Quando se trata de citações, manteremos essa distinção. Dela depende, no entender de Donald W. Crawford e de Paul Guyer, a inteligibilidade da Crítica da Faculdade do Juízo (cf. Crawford, 1974: 71 e Guyer, 1997: 98). Apesar disso, ela não é usada de uma maneira absolutamente coerente ao longo do texto de Kant. A este propósito, Guyer reconhece, primeiro, que «embora haja grande evidência para atribuir esta distinção a Kant, ele não lhe manifesta o seu comprometimento adoptando uma terminologia consistente para a sua expressão» e, a seguir, que o nosso autor «não sugere que está a introduzir uma distinção em terminologia técnica (…) nem usa esta terminologia em todos os lugares onde poderia» (Guyer, 1997: 98). Talvez seja o mesmo reconhecimento aquilo que leva Marques e Rohden a fazerem equivaler “urteilen” a “julgar”, não a “ajuizar”, quando, na sua tradução do §35, identificam “das Vermögen zu urteilen selbst” com “a própria faculdade de julgar” (cf. Kant, 1998: 188). Também nós não deixaremos, em alguns casos, nos quais se trata da nossa letra, de usar indistintamente os verbos “ajuizar” e “julgar” e de referir a faculdade de julgamento do belo como “a faculdade através da qual se ajuíza o belo”. Esta opção resultará apenas numa maior uniformidade terminológica do nosso texto, não tendo qualquer influência sobre a resposta à questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte.

11 No início do §17, Kant nota que «todo o juízo proveniente desta fonte [isto é, do gosto] é estético (ästhetisch)» (Kant, 1998: 122).

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compreender o que significa subjectivo (subjektiv). Na secção VII, no contexto da referência à noção de natureza estética (ästhetische Beschaffenheit), depois de indicar que essa natureza é «[a]quilo que na representação de um objecto é meramente subjectivo, isto é aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objecto ([w]as an der Vorstellung eines Objekts bloß subjektiv ist, d. i. ihre Beziehung auf das Subjekt, nicht auf den Gegenstand ausmacht)» (Kant, 1998: 73), Kant acrescenta que «aquele elemento subjectivo numa representação que não pode de modo nenhum ser uma parte do conhecimento é o prazer ou desprazer, ligados àquela representação ([d]asjenige Subjektive an einer Vorstellung, was gar kein Erkenntnisstück werden kann, ist die mit ihr verbundene Lust oder Unlust)» (Kant, 1998: 74). O fundamento de determinação do juízo estético – por conseguinte do juízo de gosto – tem de ser, então, o prazer ou desprazer que se liga à representação do objecto percepcionado.12

O juízo de gosto não é, porém, a única espécie de juízo estético. Também o juízo acerca do agradável (das Angenehme) é um juízo estético.13 Nem no juízo de gosto, nem no juízo acerca do agradável, o

fundamento de determinação é a sensação enquanto sensação objectiva (objektive Empfindung). Também no caso do juízo acerca do agradável o fundamento de determinação é o sentimento de prazer ou desprazer que se

12 Esta posição é afirmada desde logo na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade

do Juízo. Aí, assinala Kant que «há somente uma única assim chamada sensação

(Empfindung) que jamais pode tornar-se conceito de um objecto, e esta é o sentimento de prazer e desprazer» (Kant, 1995: 60). O sentimento de prazer é, como continua o nosso autor, uma sensação «meramente subjetiva (bloß subjektiv), enquanto toda demais sensação pode ser usada para conhecimento» (Kant, 1995: 60-61). O juízo estético é «aquele cujo fundamento-de-determinação está em uma sensação que esteja imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e desprazer (dasjenige, dessen

Bestimmungsgrund in einer Empfindung liegt, die mit dem Gefühle der Lust und Unlust unmittelbar verbunden ist)» (Kant, 1995: 61).

13 Para uma discussão detalhada acerca das afinidades e diferenças entre o agradável e o objecto do juízo de gosto sugere-se a leitura do texto de David Berger, Kant’s

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liga à representação do objecto percepcionado.14 Sob este ponto de vista,

há uma comunidade de ambas as espécies de juízo quanto ao respectivo

14 A este propósito é de fazer duas notas. Em primeiro lugar, importa notar que é preciso evitar aquilo que, no §3, Kant assinala como sendo «uma confusão bem usual (…) relativamente ao duplo significado que a palavra sensação (Empfindung) pode ter» (Kant, 1998: 92), a saber, a confusão entre «a representação de uma coisa (pelos sentidos, como uma receptividade pertencente à faculdade do conhecimento)», em que «a representação é referida ao objecto (auf das Objekt)», podendo servir para o conhecimento, caso, por exemplo, da «cor verde dos prados», que, portanto, «pertence à sensação objectiva (objektive Empfindung), como percepção de um objecto dos sentidos», e, por outro lado, algo «totalmente diverso», em que «a representação é referida (…) meramente ao sujeito (auf das Subjekt), e não serve para nenhum conhecimento, tão pouco para aquele pelo qual o próprio sujeito se conhece» (Kant, 1998: 93). Assim, ainda no mesmo parágrafo, Kant chama «aquilo que sempre tem que permanecer simplesmente subjectivo, e que absolutamente não pode constituir nenhuma representação de um objecto (das, was jederzeit bloß subjektiv bleiben muss

und schlechterdings keine Vorstellung eines Gegenstandes ausmachen kann), pelo

nome aliás usual de sentimento (Gefühl)» (Kant, 1998: 93). Trata-se daquilo no qual, como afirma o nosso autor, logo no §1 da Crítica da Faculdade do Juízo, «o sujeito se sente a si próprio do modo como ele é afectado pela sensação» (Kant, 1998: 90). Em segundo lugar é importante notar que a confusão supracitada não equivale a uma eventual confusão entre o agradável (das Angenehme) e o belo (das Schöne). A distinção entre sensação (Empfindung) (sensação objectiva (objektive Empfindung)) e sentimento (Gefühl) (sensação subjectiva (subjektive Empfindung)), e a associação, errada, do juízo estético acerca do agradável com a primeira, poderia levar a que se recusasse o facto de qualquer das duas espécies de juízo ser uma subespécie dos juízos estéticos – e, assim, a distinguir uma da outra erradamente. Tal como o juízo de gosto, também o juízo através do qual se decide se algo é agradável é, como vemos no §8, um juízo estético «sobre um objecto simplesmente com respeito à relação da sua representação com o sentimento de prazer e desprazer (über einen Gegenstand bloß

in Ansehung des Verhältnisses seiner Vorstellung zum Gefühl der Lust und Unlust

(Kant, 1998: 102). É certo que, no §3, depois de referir que «[a]gradável é o que apraz

aos sentidos na sensação» (Kant, 1998: 92), Kant acrescenta que «[n]a definição

acima, entendemos (…) pela palavra sensação uma representação objectiva dos sentidos» (Kant, 1998: 93). No entanto, com isso prevê-se apenas que a representação da coisa pelos sentidos, a percepção do objecto dos sentidos, a sensação objectiva, a sensação sensorial, provoque uma outra sensação, subjectiva, o sentimento, que é um prazer do sujeito e que, por o ser, leva a que ele considere agradável o objecto. Por essa razão, pode Kant afirmar, como efectivamente afirma, no mesmo parágrafo, que o agrado da cor verde dos prados «pertence à sensação subjectiva (zur subjektiven

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fundamento de determinação: quer a agradabilidade, quer a beleza, se fundamentam no sentimento de prazer do sujeito por ocasião da representação do objecto.15

1.2. Juízo estético dos sentidos

Se aquilo que é comum ao juízo acerca do agradável e ao juízo acerca do belo (o juízo de gosto) é o facto de ambos serem juízos estéticos, então, dizer que o segundo é um juízo estético – e, nesse seguimento, simplesmente caracterizar esta espécie de juízo, o juízo estético – não se afigura suficiente para dar conta daquilo que torna único o juízo de gosto. Revela-se indispensável enunciar as diferenças entre os dois tipos de juízos estéticos.16

Gefühl) pelo qual o objecto é considerado como objecto do comprazimento (o qual

não é nenhum conhecimento do mesmo)» (Kant, 1998: 93-94).

15 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant salvaguarda que «[p]ela denominação de um juízo estético sobre um objeto, está indicado desde logo (…) que uma representação dada é referida, por certo, a um objeto, mas, no juízo, não é entendida a determinação do objeto, mas sim a do sujeito e de seu sentimento» (Kant, 1995: 59). Quer no juízo de gosto, quer no juízo acerca do agradável, é entendida não a determinação do objecto, mas, sim, a do sujeito e do seu sentimento. 16 Só enunciando as diferenças entre o juízo acerca do agradável e o juízo de gosto pode Kant impedir a redução da beleza e do objecto belo, respectivamente, à agradabilidade e ao objecto agradável. É essa redução que ele considera ser efectuada por Burke e pelos empiristas. No entender de Kant, a exposição dos juízos estéticos elaborada por Burke e por «muitos homens perspicazes» é «fisiológica» (Kant, 1998: 176-177). Trata-se de uma exposição do belo «meramente empírica» (Kant, 1998: 177) e que envolve apenas o «reconhecimento de leis empíricas das mudanças do ânimo» (Kant, 1998: 178). No contexto daquilo a que Kant chama o «empirismo da crítica do gosto», o gosto «sempre julga segundo fundamentos de determinação empíricos, que são dados a posteriori pelos sentidos» (Kant, 1998: 254-255). Ora, Kant pretende mostrar que o gosto julga «a partir de um fundamento a priori» (Kant, 1998: 255), sendo que, para tal, ele considera necessário elaborar uma «exposição transcendental dos juízos estéticos» (Kant, 1998: 176). A propósito da emergência dessa necessidade, de resto, podemos afirmar que ela evidencia um distanciamento do nosso autor em relação à posição por si mesmo defendida na Crítica da Razão Pura e por ocasião da qual ele censura o uso que Baumgarten faz do termo estética. De acordo com o que está escrito na primeira Crítica, as «regras ou critérios» do julgamento do belo «são apenas empíricos quanto às suas fontes principais e nunca podem servir para

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Não obstante ser um juízo estético, o juízo acerca do agradável faz parte daquela espécie de juízo que Kant designa por juízo estético dos sentidos (ästhetisches Sinnesurteil) (cf. Kant, 1995: 60, 61, 63 e 66 e Kant, 1998: 244). Um juízo dessa espécie, embora não seja um juízo de conhecimento (Erkenntnisurteil), igualmente não é um juízo reflexivo (Reflexionsurteil) (cf. Kant, 1995: 66). Apesar de num juízo estético dos sentidos também haver referência da representação ao sentimento de prazer e desprazer, essa referência não é feita mediante a faculdade do juízo e o seu princípio.17 O juízo estético dos sentidos

apenas se ocupa «com a proporção das representações ao sentido interno (mit dem Verhältnis der Vorstellungen zum innern Sinne), na medida em que este é sentimento» (Kant, 1995: 63), nada mais

leis determinadas a priori, pelas quais se devesse guiar o gosto dos juízos» (Kant, 2001: 62), sendo essa a razão para que deva reservar-se para a doutrina da estética transcendental o termo mencionado ou simplesmente prescindir dele. No entanto, se, como Kant pretende, a terceira Crítica mostrar que o juízo de gosto – subespécie do juízo estético – se fundamenta num princípio a priori, então o uso do termo estética deixará de limitar-se à doutrina da estética transcendental. São alterações como esta que servem de ocasião para Maria Filomena Molder chamar a atenção para o «modo admirável como Kant desenvolve novas interpretações e implicações no que respeita a conceitos que forjaram o nó central da primeira Crítica e se constituíram imediatamente como autêntica herança, por exemplo, o conceito de estética enquanto estética transcendental» (Molder, 2007: 377). Como continua a intérprete, «[é] de lembrar, aliás, que em toda a Crítica da Faculdade de Julgar o termo “estética”, e não é de mais sublinhá-lo, determinado como transcendental (a expressão é “a estética transcendental da faculdade de julgar”) seja utilizado uma única vez, na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, e que estético apareça sempre como qualificação» (Molder, 2007: 377-378). O fim da redução do termo estética à doutrina da estética transcendental não significa, porém, que Kant passe a estar de acordo com Baumgarten, para quem a beleza é «a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal» (Baumgarten, 1988: 11). No entender de Kant, a beleza não é uma perfeição – o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento. Assim, como, na Primeira Introdução, ele explicitamente reitera: «não pode haver uma estética do sentimento como ciência» (Kant, 1995: 58).

17 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que «um juízo-de-sentidos estético (…) refere uma representação dada (mas não por intermédio do Juízo e de seu princípio (nicht vermittelst der Urteilskraft und ihrem Prinzip)) ao sentimento de prazer» (Kant, 1995: 61).

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contendo «do que a proporção da representação ao sentimento (sem mediação de um princípio-de-conhecimento) (das Verhältnis der Vorstellung zum Gefühl (ohne Vermittelung eines Erkenntnisprinzips))» (Kant, 1995: 66). Não é pressuposta, nesta espécie de juízo, qualquer «comparação da representação com as faculdades-de-conhecimento que atuam unificadas no Juízo» (Kant, 1995: 61). O que há num juízo estético dos sentidos – por conseguinte, num juízo acerca do agradável – é uma vinculação imediata da sensação produzida pela intuição empírica do objecto com o sentimento de prazer e desprazer.18 Não obstante ser um juízo estético,

o juízo acerca do agradável é, então, um juízo estético material (materiales ästhetisches Urteil), um juízo empírico (empirisches Urteil), um juízo dos sentidos (Sinnenurteil).19

18 Continuando a recorrer à Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, devemos salientar que, no caso do juízo estético dos sentidos, «o predicado exprime a referência de uma representação imediatamente ao sentimento de prazer, e não à faculdade-de-conhecimento (nicht aufs Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1995: 60). Esta espécie de juízo estético «absolutamente não se refere à faculdade-de-conhecimento (sich gar nicht aufs Erkenntnisvermögen bezieht), mas imediatamente, através do sentido, ao sentimento de prazer» (Kant, 1995: 61). No juízo estético dos sentidos, a «sensação que [está] imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e desprazer» é «aquela sensação que é imediatamente produzida pela intuição empírica do objecto (welche von der empirischen Anschauung des Gegenstandes unmittelbar

hervorgebracht wird)» (Kant, 1995: 61), sendo esta a razão pela qual um tal juízo

pertence «ao campo meramente empírico (bloß empirisches Fach)» (Kant, 1995: 66). Mas a singularidade do juízo estético dos sentidos não é assinalada apenas na Primeira Introdução; ela é sublinhada ao longo de toda a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” – vejam-se, por exemplo, o §4, no qual Kant afirma que o agradável «assenta inteiramente na sensação (beruht ganz auf der Empfindung)» (Kant, 1998: 94), o §8, onde o nosso autor denomina o gosto do juízo estético sobre o agradável «gosto dos sentidos (Sinnen-Geschmack)» (Kant, 1998: 102), a investigação que ocupa o §9, na qual Kant caracteriza o prazer do agradável como «simples agrado na sensação sensorial (bloße Annehmlichkeit in der Sinnenempfindung)» (Kant, 1998: 105), ou, finalmente, o §39, onde o nosso autor lhe chama «prazer do gozo (Lust des Genusses)» (Kant, 1998: 193).

19 Kant indica-o no início do §14: «Juízos estéticos podem, assim como os teóricos (lógicos), ser divididos em empíricos e puros (empirische und reine). Os primeiros são os que afirmam agrado ou desagrado (Annehmlichkeit oder Unannehmlichkeit),

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No caso de aquilo a considerar como fundamento determinante do juízo estético ser o que meramente atrai, então esse juízo estético será não um juízo de gosto, mas um juízo estético acerca do agradável.20

Assentando inteiramente na sensação, o agradável carrega um desejo (Begierde) relativamente ao objecto. O sujeito não se limita a sentir prazer; o objecto deleita-o (vergnügt ihn). Através das impressões dos sentidos passa a haver um interesse (Interesse) no objecto, um comprazimento na sua existência (ein Wohlgefallen an dem Dasein), um prazer na sua existência (eine Lust an der Existenz).21 O agradável

os segundos os que afirmam beleza de um objecto ou do modo de representação do mesmo (Schönheit von einem Gegenstande, oder von der Vorstellungsart desselben); aqueles são juízos dos sentidos (juízos estéticos materiais) (Sinnenurteile (materiale

ästhetische Urteile)), estes (como formais (als formale)) unicamente autênticos juízos

de gosto (allein eigentliche Geschmacksurteile)» (Kant, 1998: 113). Nesta passagem, além de descrever o juízo acerca do agradável, Kant isola o juízo através do qual se declara belo um objecto (o juízo estético puro, o juízo estético formal) como único tipo de juízo de gosto autêntico.

20 São várias as passagens em que Kant salienta os efeitos sofridos pelo juízo estético no caso de se fundar esse juízo naquilo que meramente atrai. Citemos algumas dessas passagens: «um juízo de gosto é puro somente na medida em que nenhum comprazimento meramente empírico (kein bloß empirisches Wohlgefallen) é misturado (beigemischt wird) ao fundamento de determinação do mesmo. Isto porém ocorre todas as vezes em que atractivo (Reiz) ou comoção (Rührung) tem uma participação (einen Anteil haben) no juízo pelo qual algo deve ser declarado belo» (Kant, 1998: 113-114); «eles [isto é, os atractivos] prejudicam efectivamente (tun

wirklich dem Geschmacksurteile Abbruch) o juízo de gosto, se chamam a atenção

sobre si como fundamentos do julgamento da beleza» (Kant, 1998: 115); «se o próprio ornamento (Zierrat) não consiste na forma bela, e se ele é como a moldura dourada, adequado simplesmente para recomendar, pelo seu atractivo (durch seinen Reiz), o quadro ao aplauso (Beifall), então chama-se adorno (Schmuck) e rompe com a autêntica beleza (tut der echten Schönheit Abbruch)» (Kant, 1998: 116).

21 Citemos a definição que, no §2, Kant dá de interesse: «Chama-se interesse ao comprazimento que ligamos à representação da existência de um objecto (Interesse

wird das Wohlgefallen gennant, was wir mit der Vorstellung der Existenz eines Gegenstandes verbinden)» (Kant, 1998: 91). Ter um interesse em algo significa obter

prazer a partir da existência dessa coisa. Quando há interesse, há uma referência à faculdade da apetição (eine Beziehung auf das Begehrungsvermögen): quer-se (que exista) o objecto a partir (da existência) do qual se obtém prazer. Ora, o título do §3 assinala precisamente que «[o] comprazimento no agradável é ligado a interesse

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gera inclinação.22 Pois bem, se aquele que ajuíza está sujeito à

inclinação, se ele sofre a influência de um interesse empírico, nesse caso, o seu juízo não será um juízo livre – como Kant afirma, no §5, os objectos da inclinação (die Gegenstände der Neigung)

não nos deixam nenhuma liberdade (lassen uns keine Freiheit) para fazer de qualquer coisa um objecto de prazer para nós mesmos. Todo o interesse pressupõe necessidade ou a produz (setzt Bedürfnis voraus, oder bringt eines hervor); e, enquanto fundamento determinante da aprovação, ele já não deixa o juízo sobre o objecto ser livre (lässt es das Urteil über den Gegenstand nicht mehr frei sein) (Kant, 1998: 97-98).

Envolvendo um comprazimento na existência do objecto, envolvendo um interesse empírico na coisa, o juízo acerca do agradável torna o sujeito passivo e, assim, compromete a sua liberdade e imparcialidade.

1.3. Princípio da faculdade do juízo

Diferentemente do juízo acerca do agradável, o juízo de gosto é um juízo estético reflexivo (ein ästhetisches Reflexionsurteil).23 Um juízo reflexivo

é um juízo no qual se ajuíza segundo o princípio da faculdade do juízo, isto é, segundo o princípio da faculdade do juízo enquanto faculdade de conhecimento superior (Prinzip der Urteilskraft, als obern Erkenntnisvermögens). Embora o princípio em causa seja, como veremos,

([d]as Wohlgefallen am Angenehmen ist mit Interesse verbunden)» (Kant, 1998: 92); e dois parágrafos a seguir, no §5, Kant justifica a sua afirmação ao referir que no caso do agradável, assim, de resto, como no caso do bom (das Gute), «[n]ão simplesmente o objecto apraz, mas também a sua existência ([n]icht bloß der Gegenstand, sondern

auch die Existenz desselben gefällt)» (Kant, 1998: 96-97).

22 Kant chama a atenção para o facto de que «do agradável não se diz apenas: ele apraz (es gefällt), mas: ele deleita (es vergnügt). Não é uma simples aprovação (ein bloßer

Beifall) que lhe dedico, mas através dele é gerada inclinação (Neigung)» (Kant, 1998:

94). Há, como o nosso autor refere, desta feita no §5, «um comprazimento patologicamente condicionado (por estímulos) (ein pathologisch-bedingtes (durch

Anreize, stimulos) Wohlgefallen)» (Kant, 1998: 96).

23 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que «os juízos-de-reflexão estéticos (die ästhetischen Reflexionsurteile)» futuramente serão desmembrados «sob o nome de juízos de gosto (Geschmacksurteile)» (Kant, 1995: 77).

Referências

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