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Os conselhos de contribuintes e as leis inconstitucionais: um estudo no contexto do processo administrativo fiscal

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

ALINE SOLANO SOUZA CASALI BAHIA

OS CONSELHOS DE CONTRIBUINTES E AS LEIS

INCONSTITUCIONAIS:

UM ESTUDO NO CONTEXTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL

Salvador

2013

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OS CONSELHOS DE CONTRIBUINTES E AS LEIS

INCONSTITUCIONAIS:

UM ESTUDO NO CONTEXTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, sob orientação do Prof. Dr. Celso Castro, na área de concentração de Direito Público, Linha 1.1 (Constituição, Estado de Direito e Direitos Fundamentais), Grupo 4 (Nova Teoria do Direito Administrativo), como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Salvador

2013

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OS CONSELHOS DE CONTRIBUINTES E AS LEIS

INCONSTITUCIONAIS:

UM ESTUDO NO CONTEXTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, sob orientação do Prof. Dr. Celso Castro, na área de concentração de Direito Público, Linha 1.1 (Constituição, Estado de Direito e Direitos Fundamentais), Grupo 4 (Nova Teoria do Direito Administrativo), como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre e aprovada pela seguinte banca examinadora:

_____________________________________________ Prof. Celso Luiz Braga de Castro (Orientador)

Doutor em Direito – Universidade Federal de Pernambuco Universidade Federal da Bahia

_____________________________________________ Prof. Dirley da Cunha Junior

Doutor em Direito – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade Federal da Bahia

_____________________________________________ Prof. Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti

Doutor em Direito – Universidade de Lisboa Universidade Federal de Pernambuco

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Agradeço a todos aqueles que direta ou indiretamente concorreram para a elaboração deste trabalho, especialmente aos professores Celso Luiz Braga de Castro, Dirley da Cunha Júnior e Manoel Jorge e Silva Neto, com quem tanto aprendi, aos colegas da Procuradoria Bárbara Camardeli Loi, Elder dos Santos Verçosa e Rui Moraes Cruz, pelo incentivo, a meu marido Saulo e a meus pais Leda e José Antônio, pelo apoio incondicional, a Miriam e Carolina Ouimet, pelo auxílio e a Saulo Solano, pela inspiração.

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O presente estudo aborda o controle de legalidade e de constitucionalidade no âmbito do processo administrativo fiscal. Discute-se a possibilidade de apreciação, pela autoridade julgadora em processo administrativo fiscal, do argumento da inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo que determina a exigência do tributo. O trabalho sistematiza os diversos argumentos utilizados pela doutrina contra ou favor desta possibilidade, além de argumentos intermediários, e examina como a questão é tratada na legislação sobre o processo administrativo fiscal nas esferas federal e estadual. São destacadas as vedações legais destinadas ao julgador administrativo no tocante ao afastamento da aplicação de lei, ainda que reputada inconstitucional. Também é analisada a jurisprudência a respeito do problema da reserva de jurisdição. Por fim, é analisada a possibilidade de iniciativa da administração tributária para o ajuizamento de ação contra ato próprio, sob a alegação de ilegalidade ou de inconstitucionalidade da decisão administrativa, inclusive de conselhos de contribuintes, servindo-se dos conceitos de “administração judicante” e de “administração ativa”.

Descritores: Processo Administrativo Fiscal. Controle de constitucionalidade pela Administração. Conselho de Contribuintes.

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The present study addresses the control of legality and constitutionality under the tax administrative procedure. The text deals with the possibility of assessment by the judging authority on tax administrative proceedings, of the argument of kunconstitutionality of law or byelaws which determines the need for taxation. The study also includes a systematic analysis of the diverse doctrinal arguments for and against this possibility, and also analyses the intermediary arguments, and how the issue is performed by the federal and state legislation of tax administrative proceedings. It shows the legal reserves for the administrative judge when judg ing the unconstitutional law. The issue about the reservation of jurisdiction is also criticized. Finally, this study analyzes the possibility of an initiative of the Tax Administrative office of reviewing its own acts, on the grounds of illegality or unconstitutionality of the administrative decision, included when performed by the Taxpayers Board, by the consideration of the concepts of “judging administration” and “active administration”.

Keywords: Tax Administrative Procedure. Control of constitutionality by the Administration. Taxpayers Board.

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1 INTRODUÇÃO 08

2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE 12

2.1 NEOCONSTITUCIONALISMO E SEUS MARCOS HISTÓRICO, TEÓRICO

E FILOSÓFICO 12

2.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE 14

3 O CONTROLE ADMINISTRATIVO DE CONSTITUCIONALIDADE

NA DOUTRINA 21

3.1 ARGUMENTOS DESFAVORÁVEIS 24

3.1.1 Princípio da separação de Poderes 24

3.1.2 Princípio da segurança jurídica 32

3.1.3 Princípio da legalidade formal 35

3.1.4 Princípio da hierarquia 36

3.1.5 Falta de interesse de agir em razão da (im)possibilidade de revisão

dos atos administrativos pela própria Administração 38

3.1.6 Princípio da presunção de constitucionalidade das leis em vigor 43

3.1.7 Reserva de plenário 45

3.1.8 Falta de competência para declarar a inconstitucionalidade de lei 47

3.2 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS 48

3.2.1 Estado de direito constitucional 48

3.2.2 Garantia de ampla defesa 52

3.2.3 Jurisdição administrativa 59

3.2.4 Princípio da eficiência 65

3.2.5 Princípio da moralidade administrativa 67

3.2.6 A supremacia da Constituição 69

(8)

3.3.2 Prévia atuação do Poder Judiciário 83

3.3.3 Limitação aos órgãos julgadores 86

3.3.4 Limitação aos órgãos julgadores de segundo grau 91

3.3.5 Prévia atuação do Poder Executivo 93

3.3.6 Requalificação dos órgãos de controle 94

3.3.7 Limitações em razão da boa fé, do direito adquirido

ou do ato jurídico perfeito 94

3.3.8 Evidência da inconstitucionalidade 95

4 O CONTROLE ADMINISTRATIVO DE CONSTITUCIONALIDADE

NO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL 100

4.1 SITUAÇÃO NA LEGISLAÇÃO 100

4.2 SITUAÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA 105

4.3 O INTERESSE DE AGIR E A LEGITIMIDADE DA ADMINISTRAÇÃO

NA INICIATIVA CONTRA ATO PRÓPRIO 109

5 CONCLUSÕES 144

REFERÊNCIAS 149

(9)

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visou lançar ideias sobre três problemas principais:

a) pode a Administração Pública anular ato administrativo que concede benefício fiscal, oferta consulta fiscal favorável ao contribuinte ou renúncia a crédito fiscal sob a alegação de inconstitucionalidade ou de ilegalidade?

b) pode a Administração Pública realizar controle de constitucionalidade de atos administrativos, como em julgamentos de Conselhos de Contribuintes?

c) pode órgão diverso dentro do Poder Executivo (Procuradoria Estadual ou Auditoria Fiscal) questionar perante o Poder Judiciário ou no âmbito da própria Administração decisão desfavorável ao Fisco adotada pelo Conselho de Contribuintes ou pelo Secretário da Fazenda?

Tencionou-se, pois, demonstrar que a Administração Pública pode, sob certas hipóteses e preservando situações ou efeitos de situações jurídicas constituídas de boa fé, anular ato administrativo inconstitucional ou ilegal que concede benefício fiscal, oferta consulta fiscal favorável ao contribuinte ou renúncia a crédito fiscal; bem ainda demonstrar que a Procuradoria Estadual ou a Auditoria Fiscal podem, sob certas circunstâncias, questionar perante o Poder Judiciário ou no âmbito da própria Administração decisão desfavorável ao Fisco adotada pelo Conselho de Contribuintes ou pelo Secretário da Fazenda, ou ainda por outros órgãos do próprio Executivo; além de demonstrar que a Administração Pública pode, sob certas circunstâncias, deixar de aplicar lei inconstitucional ou ato administrativo ilegal, uma vez que a Administração Pública deve ter compromisso firmado com a Constituição Federal, de modo que os atos que dela decorrem devem espelhar as escolhas do constituinte.

De acordo com a perspectiva kelseniana, as normas jurídicas que regem as relações de uma sociedade podem ser visualizadas em formato piramidal, onde a Constituição é a norma fundamental do sistema jurídico, ocupando o ápice da pirâmide normativa, da qual todas as demais normas extraem o seu fundamento de validade1.

Em que pese a compreensão sumulada de que “a Administração pode anular seus

próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial” (STF, Súmula 473), não é matéria pacífica no direito administrativo a possibilidade

(10)

de anulação de ato administrativo inconstitucional ou ilegal, de acordo com a chamada autotutela da Administração ou o controle administrativo interno.

Não obstante a existência do Princípio da Supremacia da Constituição sobre todas as demais normas do ordenamento jurídico, parte da doutrina brasileira e diversos exemplos da própria legislação do processo administrativo fiscal entendem descabida a anulação de atos pela própria Administração, ainda que inconstitucionais e ilegais, sob o entendimento de que tal iniciativa somente poderia caber ao Poder Judiciário, ou exclusivamente à cúpula do Poder Executivo, sob pena de subversão aos princípios da ordem, da separação de poderes, da segurança jurídica, da legalidade ou da hierarquia.

Somente para introduzir opiniões que serão revistas no corpo do trabalho, VITTORIO CASSONE e MARIA CASSONE entendem que, por ser a atividade desenvolvida no processo administrativo fiscal de índole infralegal, ter-se-ia a impossibilidade de qualquer exercício do controle de constitucionalidade2. No mesmo sentido JUVENAL TERCEIRO (com amparo em ZENO VELOSO), para quem descaberia a apreciação interna de constitucionalidade ante o risco à democracia com a hipertrofia do órgão encarregado de aplicar as leis de ofício, além de se desconhecer a presunção de constitucionalidade das leis3. Os procuradores fazendários paulistas ANA MARIA MOLITERNO e CLAYTON EDUARDO PRADO advogam a possibilidade de controle interno de constitucionalidade e de legalidade apenas pelo chefe do Poder Executivo e nunca por tribunal administrativo, sob pena de se deixar absolutamente desamparado o interesse público, pois o Estado, por qualquer de seus órgãos, estaria impedido de buscar guarida judicial, a fim de desconstituir decisão definitiva na esfera administrativa, em razão da força vinculante de observância obrigatória pela Administração4.

Todavia, mesmo diante dos termos da legislação, a doutrina e a jurisprudência vem admitindo a possibilidade de órgãos do Poder Executivo deixarem de aplicar uma lei que entendam ser inconstitucional. Por apenas 35 votos contra 30 votos o Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (decisão SF 2713/95-TIT-SP) entendeu não ser vedada àquela corte o exame de constitucionalidade do ato normativo estadual.

2 CASSONE, Vittorio; CASSONE, Maria Eugenia Teixeira. Processo Tributário: teoria e prática.

5.ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 61-2.

3 VIEIRA TERCEIRO, Juvenal. O conselho de contribuintes e as argüições de inconstitucionalidade

de lei. Jus Navigandi. Teresina, ano 8, n. 61. Disponível em:

<http://jus.com.br/revista/texto/3666>. Acesso em: 19 jul. 2013.

4 MOLITERNO, Ana Maria; PRADO, Clayton Eduardo. Impossibilidade de declaração de

inconstitucionalidade no âmbito do processo administrativo tributário. Tese. In: CONGRESSO

NACIONAL DE PROCURADORES DE ESTADO, 28., Gramado, 2002. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/teses/Ana%20e%20Clayton.htm.>. Acesso em: 02 nov. 2011.

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Por seu turno, LUIS BARROSO pensa que o estado de direito exige a atuação corretiva da própria Administração contra a inconstitucionalidade ou a ilegalidade5. Ou, como leciona FREDERICO MARQUES, a lei inconstitucional é inconstitucional para todos os poderes, e não apenas para o Poder Judiciário6.

BOTALLO7 e MARTINEZ8 também encampam esta opinião. Para este último, quando nomeado para exercer o cargo de julgador, o servidor deixa de se subordinar funcionalmente ao seu superior, devendo obediência apenas à Lei, conforme ele a conceber.

O tema possui relevância atual e enorme repercussão na área jurídica, e a apreciação de problemas jurídicos sob a ótica constitucional (filtragem constitucional) é algo indissociavelmente ligado à atual ou nova teoria do direito administrativo, linha escolhida para esta pesquisa.

A abordagem tomou em conta que o tema vem sendo objeto de tratamento na doutrina brasileira já de algum tempo. Mesmo na esfera do processo administrativo fiscal a problemática não é desconhecida. Realizou-se, assim, uma revisão abrangente da doutrina existente, com a percepção e exposição dos argumentos favoráveis e contrários ao controle de constitucionalidade e de legalidade no processo administrativo fiscal, o que permitiu um posicionamento crítico quanto à questão, teorizando-se sobre as condições e circunstâncias em que deve ocorrer dito controle.

A metodologia utilizada, assim, tomou do plano empírico a atividade dos conselhos de contribuintes e o alcance de suas decisões, e do marco analítico-teórico a doutrina que se formou em torno deste mesmo alcance. Não se pautou, todavia, por demonstrações quantitativas, mas sim visou cuidar, no plano qualitativo-descritivo, de estabelecer bases para uma dogmática do problema, na via indutiva advindo da experiência concreta dos órgãos julgadores integrantes da Administração, mais especificamente a fiscal.

De modo mais minudente, cumpre apresentar o percurso adotado para o trabalho. No capítulo 2, após a introdução, fez-se considerações iniciais sobre o princípio da legalidade, não ignorando a necessidade de abordar, em item próprio, o neoconstitucionalismo e seus marcos histórico, teórico e filosófico. O capítulo 3 visou tratar acerca do controle administrativo de constitucionalidade na doutrina, analisando-se, um a um, os argumentos

5 BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Rio de

Janeiro: Renovar, 1996. p. 388.

6 Citado no voto do Ministro Moreira Alves na Rep. 980-SP (RTJ 96/507).

7 BOTALLO, Eduardo Domingos. Procedimento Administrativo Tributário. São Paulo: RT, 1997. 8 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Procedimento Fiscal Previdenciário. São Paulo: Dialética, 1998.

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desfavoráveis a este controle, no item 3.1 (Princípio da separação de poderes, Princípio da segurança jurídica, Princípio da legalidade formal, Princípio da hierarquia, Falta de interesse de agir em razão da (im)possibilidade de revisão dos atos administrativos pela própria administração, Princípio da presunção de constitucionalidade das leis em vigor, Reserva de Plenário, e Falta de competência para declarar a inconstitucionalidade de lei), os argumentos favoráveis a este mesmo controle, no item 3.2 (Estado de Direito Constitucional, Garantia de ampla defesa, Jurisdição administrativa, Princípio da eficiência, Princípio da moralidade administrativa, Supremacia da Constituição, e Direito de petição), sem esquecer, no item 3.3, dos argumentos ou teses intermediárias (Limitação à cúpula administrativa, Prévia atuação do Poder Judiciário, Limitação aos órgãos julgadores, Limitação aos órgãos julgadores de segundo grau, Prévia atuação do Poder Executivo, Requalificação dos órgãos de controle, Limitações em razão da boa fé, do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito, e Evidência da inconstitucionalidade). O capítulo 4, então, sucedendo à análise do controle administrativo de constitucionalidade na doutrina, ocupou-se da questão da análise deste controle no processo administrativo fiscal, com itens específicos para a situação na Legislação e para a situação na Jurisprudência. Um item específico (item 4.3) foi ainda aberto para a grave questão relacionada ao interesse de agir e a legitimidade da Administração na iniciativa contra ato próprio. Por fim, foram apresentadas as Conclusões e indicadas as Referências para este trabalho.

(13)

2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

2.1 NEOCONSTITUCIONALISMO E SEUS MARCOS HISTÓRICO, TEÓRICO E FILOSÓFICO

Cumpre inicialmente caracterizar o estado atual da doutrina constitucional, diante da mudança paradigmática ocorrida em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, no tocante à dogmática.

Historicamente, todos os ordenamentos constitucionais passaram, após a segunda guerra mundial, expirada em 1945, a incorporar de modo cada vez mais explícito direitos prestacionais sociais, de segunda e de terceira gerações. As constituições clássicas, preordenadas à organização do Estado e dos poderes e à definição dos limites negativos da atuação destes Poderes em relação aos indivíduos, passaram a contar com a previsão, grandemente ainda programática, dos chamados direitos sociais e econômicos. Regimes ditatoriais conviveram com estas constituições já apinhadas de regras programáticas, com baixa ou nenhuma efetividade, todavia.

Paulatinamente, passa a ocorrer a derrota ou superação dos governos autoritários e a ascensão progressiva de governos democráticos. A programaticidade e a eficácia formal de direitos veio a ser questionada pela população, que passou a reclamar uma participação ativa na condução dos assuntos inerentes à vida em sociedade. A prática constitucional sem dúvida viria a ser alterada.

A mudança verificada traz um novo marco ao direito constitucional, de via filosófica. O positivismo vem a ser substituído pelo pós-positivismo, quando a crença no respeito cego às normas de nível legal encontrou uma reação na incorporação da ética e da moral como novos guias de ação.

Finalmente, no plano teórico, passou-se a falar em uma nova hermenêutica constitucional, com novos paradigmas, concatenados na ideia do reconhecimento da força normativa da Constituição, da expansão da jurisdição constitucional e do desenvolvimento de uma nova dogmática para a hermenêutica constitucional9.

Todos estes aspectos interessam ao presente trabalho. A idéia do reconhecimento da força normativa da Constituição toca na questão do controle de legalidade ganhar

9 Sobre estes novos marcos teóricos, veja-se BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e

Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista PGE, Porto Alegre, v. 28, n. 60, p. 27-65, jul.-dez. 2004.

(14)

amplitude, levando a Administração a atuar não apenas segundo os estritos contornos da

legalidade estrita, mas sim de acordo com o arco da legalidade ampla, já que a Constituição efetivamente passou a assumir o papel hierárquico devido, como filtro de todos os subsistemas legais. A efetividade real das normas constitucionais tornou a Constituição a verdadeira lente diante da qual todo o sistema ou ordenamento jurídico deveria ser visto e compreendido. Os princípios constitucionais, antes pomposos reposteiros de programaticidade, passaram a ser vistos então como orientadores reais de toda a interpretação.

Uma nova teoria dos princípios surge, neste novo momento. Discute-se a ligação existente entre princípios e valores (sendo os princípios a dimensão deontológica dos valores), a distinção entre princípios e regras (sendo os primeiros mandados de otimização e as segundas normas imediatamente prescritivas de condutas) e as regras específicas para a solução de conflitos entre princípios (no caso, com o emprego da proporcionalidade), além de suas restrições. E, principalmente, concebe-se o valor hierárquico primordial e fundante dos princípios, em relação à ordem jurídica total, sendo as regras uma expressão da ponderação ou sopesamento entre princípios opostos10.

Operou-se, pois, “O processo extenso e profundo de constitucionalização do

direito”, nos dizeres de BARROSO11, onde ocorre um “[…] efeito expansivo das normas

constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico”12.

BARROSO ainda é expresso ao dizer que a constitucionalização do direito, no tocante à Administração Pública, limita-lhe a discricionariedade, impõe-lhe deveres de atuação e ainda fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente da interposição do legislador ordinário13.

CUNHA JUNIOR, por seu turno, definiu o neoconstitucionalismo como:

Um novo pensamento constitucional voltado a reconhecer a supremacia material e axiológica da Constituição, cujo conteúdo, dotado de força normativa e expansiva, passou a condicionar a validade e a compreensão de todo o Direito e a estabelecer deveres de atuação para os órgãos de direção política14.

10 Vide, a propósito, ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros,

2008.

11 Ibidem, p. 38. 12 Ibidem, p. 39. 13 Ibidem. Loc. cit.

14 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 7.ed. Salvador: Juspodivm, 2013.

(15)

CUNHA JUNIOR aponta - tal como BARROSO - para a transformação do conceito de legalidade, que passa inexoravelmente a abranger a obediência sistêmica à Constituição. É disto do que se falará no item seguinte.

2.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Na época do chamado Estado absoluto radical, o detentor do Poder (príncipe) não estava sujeito à observância de normas ou de seus limites. Após, com o surgimento do Estado de Direito, a Administração Pública passou a atuar conforme os preceitos previstos em normas jurídicas.

No Estado de Direito clássico, assim, não apenas os indivíduos estavam obrigados a cumprir os ditames das Leis, mas também a Administração Pública passou a ter seus atos vinculados a dispositivos legais.

O Princípio da legalidade constituiu, portanto, um dos traços característicos do Estado de Direito clássico, de maneira que era necessária a existência de lei para que o Estado pudesse interferir na esfera individual e para que houvesse o controle da Administração pelo Poder Judiciário.

Em observância ao princípio da legalidade, o Estado passou historicamente a agir somente e na medida em que determinada lei o autorizasse, no sentido de que tudo que não estivesse juridicamente facultado estaria juridicamente proibido. Ao revés, para o cidadão o princípio da legalidade tem outro significado (tudo o que não está juridicamente proibido está juridicamente facultado), somente podendo ser coibido da prática de determinado ato quando a lei o proíba.

A relação de legalidade, pois, era uma relação de conformidade no sentido formal e material. No sentido formal, o ato deveria ocorrer em conformidade com o sistema processual ou a forma fixada em lei. Já no sentido material, o conteúdo do ato deveria seguir o conteúdo previsto em lei.

A visão tradicional da legalidade administrativa pressupõe a existência de uma regulamentação modelo como condição necessária para cada ato, traduzindo-se, assim, na concepção de que “Administrar é aplicar a lei de ofício”15, ou, segundo MEIRELLES:

15 FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário.7.ed.

(16)

A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei.

Na Administração Pública não há liberdade, nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.

É fato que o Princípio da legalidade representou um grande avanço como limite à atuação da administração, auxiliando o controle dos Atos Administrativos e dos gastos públicos. A lei passou a disciplinar e limitar os atos do administrador público, o que traduziu a concepção de que os bens públicos não se confundiam mais com os bens pessoais do administrador.

Todavia, com a constitucionalização do Direito Administrativo, está sendo reinterpretada a ideia clássica defendida por diversos administrativistas, tais como BANDEIRA DE MELLO, de que “O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a

Administração nada pode fazer senão o que a lei determina”16.

Dentre os paradigmas clássicos do direito administrativo brasileiro que se encontram atualmente em crise está o princípio da legalidade administrativa como vinculação positiva à lei, consistente na ideia de completa submissão do agir administrativo à Lei17.

Defende-se, atualmente, que a atividade administrativa está vinculada à Constituição ou à juridicidade, e não apenas à lei positiva em sentido estrito.

Como adverte BINENBOJM, “A superação do paradigma da legalidade

administrativa só pode dar-se com a substituição da lei pela Constituição como cerne de vinculação administrativa à juridicidade”18.

Resta entao ultrapassada a ideia de que seria indispensável a existência da lei em sentido estrito para reger a relação entre Constituição e Administração Pública, tornando-se a Constituição o fundamento imediato do ato administrativo.

Ou como diz CANOTILHO: “A reserva vertical da lei foi substituída por uma

reserva vertical da Constituição”19.

A propósito, vale à pena realizar uma pequena digressão histórica.

16 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 15.ed. São Paulo:

Malheiros, 2003. p. 95.

17 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria de Direito Administrativo: Direitos Fundamentais,

Democracia e Constitucionalização. 2.ed. Revista e Atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 23.

18 Ibidem. p. 36.

19 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,

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Na época do Império no Brasil, os atos Administrativos não sofriam pleno controle pelo Poder Judiciário, considerando-se que, nesta fase, a própria Administração, através do Poder Moderador (Constituição Imperial de 1824), realizava o controle de seus atos através de uma espécie de contencioso administrativo, com função jurisdicional. Saliente-se que nem todos os atos administrativos eram submetidos ao controle do Poder Moderador. Este atuava como Conselho de Estado, sobretudo resolvendo conflitos oriundos das relações entre contribuintes e a Administração Fazendária20. Os demais atos administrativos que não estivessem relacionados com o fisco submetiam-se ao controle do Tribunal Comum.

O Poder Moderador foi extinto na primeira Constituição Republicana de 1891 e a partir de então se passou a adotar o modelo de jurisdição una, praticamente inalterado até a Constituição atual.

Hoje, os princípios da Administração Pública elencados na Constituição Federal de 1988 viabilizam um maior controle pelo Poder Judiciário sobre os atos administrativos, inclusive sobre os atos considerados discricionários.

Bem a propósito é a assertiva de FARIA:

A idéia de juridicidade administrativa, elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa, destarte a englobar o campo da legalidade administrativa, como um de seus princípios internos, mas não mais altaneiro e soberano como outrora. Isso significa que a legalidade administrativa continua a realizar-se, via de regra, (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se.21

Em sentido amplo, a legalidade compreende a constitucionalidade (compatibilidade vertical de norma jurídica infraconstitucional ou de ato do Poder Público ou do particular em relação à Constituição) e a legalidade em sentido estrito (compatibilidade de ato do Poder Público ou do particular em relação à norma jurídica infraconstitucional).

A exemplo, tem-se que o sistema tributário possui seu contorno maior expresso na Constituição, tanto em seu capítulo próprio (arts. 145 a 156) quanto em dispositivos esparsos (arts. 7º, III, 195, 212, § 5º, 239 §§ 1º e 4º, 240 etc.).

De acordo com MELO:

20 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do Mérito do Ato Administrativo pelo Poder Judiciário. Belo

Horizonte: Fórum, 2011. p. 212-3.

(18)

Depreende-se que o Direito Tributário possui uma efetiva dignidade constitucional devido ao significativo, peculiar e minucioso tratamento que lhe foi conferido pelo constituinte, o que tem o condão de revelar sua considerável importância no ordenamento jurídico, pela circunstância especial de, por um lado, representar fonte de receita para o Poder Público e, de outro, acarretar ingerência no patrimônio dos particulares.22

Para este autor, ainda, a apontada dignidade constitucional passa a gerar diversos efeitos, já que:

A Constituição contém conceitos e diretrizes básicas que devem ser rigorosamente obedecidas por todos seus destinatários e perseguidas até suas últimas conseqüências, sendo inadmissível ao intérprete e aplicador do Direito tomar como ponto de partida norma inconstitucional (a lei, ou o regulamento), uma vez que esta deve sempre estar fundamentada em norma de escalão superior (como se categoriza a Constituição).

Assim, as entidades governamentais não podem instituir ou exigir tributos movidos por meros interesses pessoais, discricionários e arbitrários, segundo procedimento que lhes parecer mais conveniente e oportuno, uma vez que devem estrita obediência aos superiores postulados da Constituição Federal.23

A legislação, assim, e se trata de uma evidência, deve se submeter à Constituição pela força da hierarquia deste último diploma. A ação legislativa fiscal do Poder Público, ao instituir e exigir tributos, também deve o respeito a esta hierarquia.

Ou seja, a Administração Tributária deve obediência à Constituição, sobretudo, além do respeito às leis infraconstitucionais, este último que se relaciona à legalidade em

sentido estrito. E considerando apenas a legalidade em sentido amplo (conformidade à Constituição e às normas infraconstitucionais) é que vale o brocardo de que esta obediência se dá de um modo diverso daquele vivenciado pelos particulares em geral, ou, como leciona SILVA NETO, “[…] com efeito, enquanto os indivíduos podem praticar toda e qualquer

conduta não proibida por lei, o administrador só pode praticar os atos expressamente permitidos pela norma”24.

O princípio amplo da legalidade impõe, assim, a observância, na ação administrativa, do agir estritamente em consonância à previsão constitucional e legal, sob pena de nulidade do ato praticado.

22 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 9.ed. São Paulo: Dialética, 2010. p.

10-1.

23 Ibidem. Loc. cit. 24 Ibidem. p. 233.

(19)

Deve-se evitar, inclusive, a falta de densidade das leis infraconstitucionais, o que provoca o indevido preenchimento conteudístico por normas regulamentadoras que por falta de fundamento passam a ser inconstitucionais25.

O princípio amplo da legalidade constitui uma das garantias do Estado de Direito, diz MELO, para quem:

[…] desempenhando uma função de proteção dos direitos dos cidadãos, insculpido como autêntico dogma jurídico pela circunstância especial de a Constituição haver estabelecido, como direito e garantia individual, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Somente com a expedição de normas editadas pelos representantes do próprio povo (Poder Legislativo) é que tem nascimento, modificação ou extinção de direitos e obrigações, competindo à Administração Pública expressa obediência ao princípio da legalidade (art. 37 da Constituição Federal).26

O agir administrativo deve observar a reserva formal da lei (constitucional ou infraconstitucional), formal (mediante a determinação do órgão titular competente para sua expedição) e material (ordem abstrata, geral e impessoal).

O princípio da legalidade em sentido amplo imuniza os administrados contra as próprias leis e coarta a discricionariedade do legislador, segundo FIGUEIREDO27.

Ou, como leciona DOLÁCIO DE OLIVEIRA:

[…] implica o princípio da tipicidade, que tem como caracteres a observância de números clausus (vedando a utilização de analogia e a criação de novas situações tributáveis), taxatividade (enumeração exaustiva dos elementos necessários à tributação), exclusivismo (elementos suficientes) e determinação (conteúdo da decisão rigorosamente prevista em lei). 28

Enfim, o princípio da legalidade continua a corresponder à conquista do Estado de Direito, livrando os indivíduos de arbitrariedades. Por isso, “Ninguém será obrigado a fazer

25 Sobre a densificação normativa como garantia, vide: CAVALCANTI, Francisco Q. B.;

BRANDÃO, Cláudio Roberto Cintra Bezerra; ADEODATO, João Maurício Leitão. A Reserva de Densificação Normativa da Lei para Preservação do Princípio da Legalidade. In: CAVALCANTI, Francisco Q. B.; BRANDÃO, Cláudio Roberto Cintra Bezerra; ADEODATO, João Maurício Leitão. (Org.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à Teoria do Direito. Vol. 1. 1.ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 2009, p. 221-234.

26 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 9.ed. São Paulo: Dialética, 2010. p.

19-20.

27 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Princípios de proteção ao contribuinte: princípio da segurança jurídica. Revista de Direito Tributário, v. 13, n. 47. p. 56-61. jan.-mar. 1989.

28 OLIVEIRA, Dolácio de. A Tipicidade no Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1980.

(20)

ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei ”; mas lei, repita-se, em sentido amplo, de modo que o princípio da legalidade não seja compreendido de modo acanhado ou de maneira pobre.

E assim o seria ainda se o administrador, para prover ou para praticar determinado ato administrativo tivesse sempre que encontrar arrimo expresso em norma específica que dispusesse exatamente para o caso concreto.

E do mesmo modo, assim como o princípio da legalidade é bem mais amplo do que a mera sujeição do administrador à lei infraconstitucional (pois aquele, necessariamente, deve estar submetido também ao ordenamento jurídico como um todo, notadamente às normas e princípios constitucionais), também há de se procurar solver a hipótese de a norma ser omissa ou, eventualmente, faltante.

Sobre o assunto, já prelecionou MELO:

A tipicidade cerrada funda-se na premissa de que o legislador contempla todos os elementos da hipótese de incidência tributária relativos à obrigação principal (credor, devedor, materialidade, base de cálculo, alíquota, momento e local da ocorrência do denominado fato gerador), e aos deveres instrumentais (notas e livros fiscais, informações). Significa a completude do sistema jurídico, prestigiando-se os princípios da segurança e da certeza do direito.

Na tipicidade aberta o legislador não esgota a previsão de todos os aspectos da tributação, utilizando conceitos vagos, e imprecisos, a serem completados por demais normas (leis e decretos). É o caso da legislação do ISS (LC 116/03) ao se referir a serviços “congêneres”, “auxiliares”, e “semelhantes”, conferindo margem de discricionariedade ao destinatário da norma face à ausência de determinação e exaustividade dos preceitos. Esta situação implica insegurança, incompatível nos lindes tributários, na medida em que haja intromissão no patrimônio das pessoas privadas. Entretanto, a Constituição Federal contém aparente exceção ao princípio da legalidade, ao facultar ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos de importação sobre produtos estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; produtos industrializados; e operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (art. 150, §1º).29

Tem-se, assim, que há espaços para o agir administrativo não completamente afetados a uma previsão legal, já que o princípio da legalidade está atrelado ao devido processo legal, em sua faceta substancial, e não formal.

GIANNINI, ao abordar o princípio da legalidade, diz que a concepção doutrinária do século passado era muito rigorosa. Nos provimentos administrativos as normas deveriam

29 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 9.ed. São Paulo: Dialética, 2010. p.

(21)

regular cada um de seus elementos. Porém, “Hoje o princípio de legalidade atenuou-se,

requerendo-se que a norma discipline os tratamentos evidentes do provimento, admitindo-se que possa fazê-lo ainda que de modo implícito”30.

Chega-se, então, ao conceito de legalidade como não restrita à lei infraconstitucional e nem à tipicidade fechada. Fala-se, pois, da legalidade ampla.

30 GIANNINI, Massimo Severo. Instituzioni di Diritto Administrativo. Milano: Giuffre Editores,

1981. p. 262 citado por FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 42-3.

(22)

3 O CONTROLE ADMINISTRATIVO DE CONSTITUCIONALIDADE NA DOUTRINA

Sabe-se que o controle de constitucionalidade, no Brasil, possui inúmeras

espécies, dependendo do órgão que o promove, do momento de sua realização ou do tipo de controle, dentre outras classificações.

Assim, tem-se inicialmente que o controle da constitucionalidade pode ser político ou judicial. No primeiro caso, o controle é feito por órgão não integrante do Poder Judiciário, de natureza política. Ou, como diz CUNHA JUNIOR:

Nesse modelo, o controle da constitucionalidade das leis é exercitado por um órgão político, estranho à estrutura do Poder Judiciário ou cuja atuação não tem natureza jurisdicional. Cuida-se do modelo francês de fiscalização da constitucionalidade. Historicamente, a França sempre adotou uma rígida separação dos poderes, razão por que não podia o Poder Judiciário interferir nas atividades do Executivo e Legislativo. Em que pese Sieyès ter sugerido na Constituição do ano VIII a criação de um “jury constitutionnaire”, a concepção rousseuaniano-jacobina da lei como instrumento da “vontade geral” manteve-se sempre fiel ao dogma da soberania da lei que só as próprias assembléias legislativas poderiam politicamente controlar (o Senado, na Constituição do ano VIII e na Constituição de 1852 e, de certo modo, o Comitê Constitucional da Constituição de 1946). Assim, desde o abade Sieyès, o sistema de controle de constitucionalidade, quando previsto, era atribuído a órgãos de natureza política. Atualmente, prevê a vigente Constituição da França, de 05 de outubro de 1958, um órgão político – o Conseil Constitutionnel – como o competente para exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis naquele país. Convém advertir, contudo, que a fiscalização desempenhada por esse órgão político tem natureza essencialmente preventiva. Após a promulgação do ato normativo, não há mais espaço para o controle de constitucionalidade no Direito francês.31 (grifo do autor)

E continua o mesmo autor:

O fundamento principal da afetação do controle de constitucionalidade das leis a um órgão não pertencente ao Poder Judiciário prende-se ao argumento de que a Constituição deve ser interpretada por órgãos com sensibilidade política, porquanto, mais do que uma simples lei, a Constituição é um projeto dinâmico de vida, que não pode ser reduzida a uma mera apreciação hierárquica. Ademais, considera-se que o controle judicial daria aos juízes o poder de recusar as deliberações majoritárias do Legislativo e do Executivo, contrariando o dogma da separação de poderes. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no entanto, garante que a experiência tem dado provas inequívocas de que esse controle político é ineficaz, conquanto os órgãos políticos, onde previstos, têm apreciado a constitucionalidade das

(23)

leis antes pelo critério da conveniência do que pelo critério de sua conformidade com a Constituição. Esses órgãos, assim, “vêm a ser redundantes pois se tornam outro Legislativo, ou outro órgão governamental”.32

O controle de constitucionalidade judicial (ou jurisdicional) é desempenhado por órgãos integrantes da estrutura do Poder Judiciário (ainda que não exclusivo, caso do Brasil e dos EUA).

O controle de constitucionalidade, político ou judicial, é uma garantia, como já se disse acima, do princípio da legalidade em sentido amplo.

Quanto ao momento de sua realização, o controle de constitucionalidade pode ser

preventivo ou repressivo. O primeiro caso é eminentemente associado ao controle político, e se dá por meio dos pareceres, nos projetos de lei, das Comissões de Constituição e Justiça das Casas Legislativas, e por meio do veto jurídico constitucional por reconhecida inconstitucionalidade. Todavia, o controle político pode ainda vir a ser repressivo, bastando lembrar a hipótese da sustação dos atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa (CF/88, art. 49, V) e no caso de rejeição de medidas provisórias (CF/88, art. 62, §5º). O controle judicial, por sua vez, é eminentemente repressivo.

O controle de constitucionalidade pode ainda ser concentrado e dirigido contra lei em tese, a exemplo da competência atribuída aos tribunais constitucionais, ou difuso, se permitido a qualquer órgão do Poder Judiciário diante de um caso concreto que lhe for submetido, por exemplo.

O controle de constitucionalidade ocorre por vezes em casos de

inconstitucionalidade chapada, que nada mais é do que uma superlativa e evidente ofensa à Constituição seja quanto ao conteúdo, seja quanto ao modo de produção legislativa33.

Sobre os efeitos do controle de constitucionalidade, tem-se que no Brasil se segue, em princípio, a teoria da nulidade absoluta dos atos inconstitucionais. Todavia, a modulação de efeitos, usualmente praticada pelo Poder Judiciário, visa eliminar a insegurança jurídica ou proteger interesses que a declaração de nulidade ab initio poderia injustamente ocasionar. Ou, como diz SILVA NETO:

32 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Podivm, 2008. p. 293-4. 33 Vide ADIn-MC 1.802/DF.

(24)

Se, nesse passo, a declaração judicial da inconstitucionalidade é retroeficaz e fulmina a lei ou o ato normativo viciado desde o momento em que ingressou no sistema, seria estranho obrigar o Chefe do Poder Executivo à espera da conclusão judicial, pois isso poderia resultar inominável agravo ao patrimônio público.

Todavia, guiado por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (art. 2734 da Lei n. 9.868/99).

Há hipóteses, portanto, nas quais a declaração de

inconstitucionalidade produzirá tão só os efeitos ex nunc ou pro futuro. 35

Sobre o controle de legalidade (stricto sensu), este significa o exame da compatibilidade do ato infralegal à legislação infraconstitucional, o que corresponde à afirmação da validade da própria norma jurídica inferior à Constituição.

Este controle nunca foi negado pela jurisprudência e pela doutrina à Administração, que o compartilha com o Poder Judiciário. Afinal de contas, e como já se disse acima, a Administração está jungida à lei, somente realizando o que a mesma lhe permitir.

Na França, como se sabe, há contrapesos jurisdicionais à ação administrativa, sendo o controle jurisdicional exercido através da jurisdição administrativa e da jurisdição judicial (Poder Judiciário). Há matérias reservadas por tradição à autoridade judiciária: a proteção da propriedade privada e da liberdade individual. E o controle de legalidade, bastante amplo, alcança não apenas a legalidade externa (incompetência, vício de procedimento e vício de forma) como a legalidade interna (desvio de poder, irregularidades relacionadas ao conteúdo do ato e irregularidades relacionadas aos motivos do ato)36. Naquele país, cabe apontar que o controle de legalidade feito pela Administração alcança, quanto ao conteúdo do ato, qualquer contradição ao ordenamento jurídico geral, inclusive alcançando a violação à Constituição. Ou, como diz PIERRE-LAURENT FRIER,

34 Lei no 9.868, de 10 de novembro de 1999: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou

ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

35 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p.

289.

(25)

[…] é pois essencialmente desrespeito à hierarquia das normas que é sancionado, seja de normas exteriores à Administração – Constituição, tratados, leis etc. – seja de regulamentos administrativos, ou de um princípio geral de direito como o de irretroatividade dos atos administrativos37.

Contudo, ocorre também na França a problemática presente no Brasil, quando o controle da legalidade ampla é realizado não pelos órgãos administrativos jurisdicionais, mas apenas pela Administração em geral. Neste caso, como informa KALINE FERREIRA, que comparou os sistemas francês e brasileiro em sua tese de doutorado, fala-se naquele país em um procedimento administrativo não contencioso quando o caso não está sendo submetido a um juiz administrativo38.

FRANCISCO CAVALCANTI explica a situação na França como de dualidade de jurisdição (ao lado da Alemanha e diferentemente do modelo britânico, onde há unicidade)39, sendo a existência da jurisdição administrativa consequência “[…] do pressuposto aceito de

que julgar a administração é também administrar”40.

O problema maior, de fato, envolve o controle de constitucionalidade pela própria Administração, consistente na recusa à aplicação da lei ou ato normativo que viole a Constituição. O exame da constitucionalidade possui, assim, diversos argumentos favoráveis e desfavoráveis ao seu reconhecimento. Comecemos pelos últimos.

3.1 ARGUMENTOS DESFAVORÁVEIS

3.1.1 Princípio da separação de Poderes

Um dos primeiros argumentos que se levanta contra a possibilidade da Administração controlar a constitucionalidade de normas infraconstitucionais corresponde à ideia ou princípio da separação de Poderes. De acordo com este argumento, estaria reservada ao Poder Judiciário qualquer competência para afastar a aplicação de norma inconstitucional.

37 No original: “C´est donc essentiellement le non-respect de la hiérarchie des normes qui est sanctionné, qu´il s´agisse de normes extérieures à l´administration – constitution, traités, lois, etc – des règlements administratifs eux-mêmes, ou d´um príncipe general du droit tel que celui de non-rétroactivité des actes administratifs”. (FRIER, Pierre-Laurent. Précis de Droit Administratif. Paris: Montchrestien, 2004. p. 457).

38 FERREIRA, Kaline Santos. Le Contentieux Administratif en Dehors du Juge: étude comparée des

droits français et brésilien. 2013. 379f. Tese (Doutorado em Direito) - École Doctorale de Droit (E.D. 41), Université Montesquieu - Bordeaux 4, Bordeaux, France.

39 CAVALCANTI, F. Q. B. Da necessidade de aperfeiçoamento do controle judicial sobre a atuação

dos Tribunais de Contas visando a assegurar a efetividade do sistema. Revista do Tribunal de

Contas da União, v. 1, p. 10, 2007.

(26)

Defendem este argumento diversos juristas pátrios, e a fundamentação que lhe emprestam dificilmente vai além da compreensão de que o Poder Judiciário ganhou, no esquema constitucional brasileiro, uma competência não estendida aos demais Poderes, na prática da aplicação das normas. Pode-se nominar este argumento, ainda, como princípio da

reserva ao Poder Judiciário ou princípio da reserva jurisdicional do controle de

constitucionalidade.

Ou seja, tornou-se comum o entendimento de que a consideração sobre a inconstitucionalidade de lei seria tarefa restrita ao Poder Judiciário.

Adepto desta ideia, o Ministro CARLOS MEDEIROS, em voto vencido proferido no MS 15886-DF, justificava-se dizendo que “No poder de interpretar a Constituição, não se

deve entender necessariamente ou implicitamente, o de repudiar lei por inconstitucionalidade”41.

No voto proferido no MS 16003-DF, o Ministro OSCAR SARAIVA consignou que:

Não existe, na realidade, a opção para o Presidente da República entre cumprir a lei e cumprir a Constituição. A lei já foi elaborada, já passou através de todos os processos constitucionais de sua elaboração, de sorte que ela, em si, obriga sem necessidade de opção e interpretação, que é reservada ao Poder Judiciário, e que deste é prerrogativa exclusiva pela maioria dos membros do Tribunal, segundo o art. 200 da Constituição, tal como vigente.42

Segundo ALFREDO BUZAID, no nosso país é do Judiciário a competência privativa para decretar a inconstitucionalidade das leis:

O poder de decretar a inconstitucionalidade das leis, no Brasil, compete, privativamente ao Judiciário. Não o pode exercer o Legislativo, porque lhe é vedado ser juiz em causa própria; aliás, a sua função consiste em elaborar ou revogar leis, não em apreciar a sua validade. Também não o pode exercer o Executivo, pois isso o tornaria superior ao Congresso.43

CAMANHO DE ASSIS consigna, por sua vez que:

[…] editada a lei - exaurida a possibilidade do controle preventivo – a aferição da constitucionalidade passa a ser privativa do Poder Judiciário,

41 Julgamento em 26.5.66. In Revista Trimestral de Jurisprudência, 41, p .680. 42 Revista de Direito Público, 5, p. 242.

43 Citado pelo Ministro MOREIRA ALVES, em voto proferido na Rep. 980-SP, julgada em 21.11.79

(27)

único a quem o Poder Constituinte conferiu instrumentos para proceder com semelhante análise.44

Mesmo RUY BARBOSA, diferentemente do pensamento revelado em outras ocasiões, e com forte acento populista, declarou, dentre os 18 (dezoito) compromissos de sua campanha civilista de 1910, o seguinte:

[…] o que eu não farei, [...] Não recusarei execução de lei alguma, a pretexto de inconstitucionalidade, visto como a respeito das leis, o conhecimento desse vício é da competência exclusiva Judicial. Toda Lei, pelo mero fato de ser lei, enquanto não havida por nulos em sentença irrevogável, obriga inelutavelmente o Poder Executivo.45

JOÃO MANGABEIRA, num parecer sobre a revogabilidade dos atos administrativos, dizia que “Não deve o Poder Executivo deixar de cumprir uma lei somente

porque a considera inconstitucional, pois é da competência exclusiva do Judiciário declarar essa inconstitucionalidade”46.

É esta também a opinião de LÚCIO BITTENCOURT, para quem “Uma vez

promulgada a lei a todos obriga, inclusive o Executivo; a lei, enquanto não declarada pelos Tribunais incompatível com a constituição é lei – não se presume – é para todos os efeitos”47.

Em segunda instância, e em alguns casos, a tese foi vencedora, como no MS 1238, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “Ao poder público não é lícito

negar aplicação a uma lei, a pretexto de sua inconstitucionalidade, pois o conhecimento desse vício é da competência exclusiva do Poder Judiciário”48.

Assim, o exercício da jurisdição administrativa envolvendo estes aspectos representaria grave violação à separação de Poderes, como definida por MONTESQUIEU. Ou, como diz CLENÍCIO DA SILVA DUARTE:

44 ASSIS, Alexandre Camanho. Inconstitucionalidade de Lei – Poder Executivo e Repúdio de Lei sob

a alegação de inconstitucionalidade. Revista de Direito Público, 91, p. 119.

45 BARBOSA, Rui. Excursão Eleitoral. Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXXVII. Rio de

Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa/MEC. p. 103 citado por MARINHO, Josaphat. Estudos

Constitucionais: da Constituição de 1946 à de 1988. Salvador: Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1989. p. 99.

46 MANGABEIRA, João. A Revogabilidade dos Atos Administrativos. Jornal A Tarde, 14 set. 1955

citado por MARINHO, Josaphat. Estudos Constitucionais: da Constituição de 1946 à de 1988. Salvador: Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1989. p. 99.

47 BITTENCOURT, Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. In: DIAS, José

de Aguiar. Rio de Janeiro: Forense, 1968 citado por MONTEIRO, Ruy Carlos de Barros. O argumento de inconstitucionalidade e o repúdio à lei pelo Poder Executivo. Revista Forense, v. 79, n. 284, out.-dez. 1983, p. 102.

(28)

O Poder Executivo, sendo, por definição, a quem incumbe precipuamente a execução das leis, não pode, sob alegação de inconstitucionalidade, negar-lhes cumprimento. Seria desenganada usurpação de competência, quando esta se situa na esfera privativa do Poder Judiciário.49

A participação do Poder Executivo no controle de constitucionalidade das leis limitar-se-ia, pois, à capacidade de veto e de propor ações judiciais reclamando a declaração de inconstitucionalidade de lei (inclusive em controle concentrado) e, com menor resultado prático, de representar ao Poder Legislativo solicitando a revogação da norma indesejada. A Constituição não teria assegurado à Administração, assim, qualquer outra possibilidade de realizar dito controle50.

O veto, inserido no sistema de freios e de contrapesos envolvendo os Poderes da República, seria o único modo de controle pelo Poder Executivo ocorrer de forma preventiva. Após o mesmo, tenha ou não sido rejeitado, nenhuma possibilidade de irresignação restaria ao Executivo. É a opinião de CAMANHO DE ASSIS:

[…] saindo (a lei), contudo, dos bastidores da confecção, e entrando em vigor, já não haverá modo de aqueles poderes reputarem-na inconstitucional – a vontade de sepultá-la, a partir de então, só se poderá efetuar por animo dos fenômenos da revogação e suas variantes, sem que a alegação de inconstitucionalidade apresente-se como hábil a retirar, da norma sua validade.51

E se nada pode o Executivo contra um veto rejeitado pelo Congresso, será evidente, seguindo o raciocínio, que não poderá recusar aplicação por inconstitucionalidade à lei à qual chegou a apor sua sanção, tácita ou expressa. É esta a opinião compartilhada pelos Ministros GONÇALVES DE OLIVEIRA (no julgamento do MS 16003-DF)52, PRADO

49 DUARTE, Clenício da Silva. Inconstitucionalidade de lei – Representação do Procurador Geral da

República. Revista de Direito Público, 2, p. 154.

50 “A negativa de validade da lei ao argumento de inconstitucional não é, de início, faculdade que conste na lista de possibilidades do executivo. Dependente de estrita previsão legal que embase

seus atos, este Poder não encontra respaldo para tanto no ordenamento jurídico positivo”.

(ASSIS, Alexandre Camanho de. Inconstitucionalidade de Lei: Poder Executivo e Repúdio de Lei sob a alegação de inconstitucionalidade. Revista de Direito Público, 91, p. 119).

51 ASSIS, Alexandre Camanho de. Op. cit. Loc. cit.

52 Revista de Direito Público, 5, p. 247. No MS 15886-DF, externou este Ministro a mesma opinião:

“Portanto, em princípio, a regra é que, sancionando o Presidente da República a lei, ele supre

quaisquer deficiências no trânsito, nas normas legislativas. Teve o momento que a Constituição lhe consagrou para dizer se a proposição era constitucional ou inconstitucional. Se nesse momento não usou do seu poder, parece claro que se dá o consenso pelo Executivo de que a norma seja

(29)

KELLY53 e OSCAR SARAIVA (em votos proferidos no julgamento do MS 16003-DF). Para este último, após sanção ou veto,

[…] cessa a função do Poder Executivo, notadamente quando sanciona a lei, porque a lei sancionada pelo poder executivo participa, no seu todo, da aprovação desse poder. Não seria, portanto, possível, embora o Poder executivo mude de pessoas, que se dissesse que o mesmo poder que sanciona a lei venha a dizer depois, que esta lei é inconstitucional.54

Lembram os adeptos do argumento a modalidade de controle corretivo exercida pela Administração através de ações judiciais, notadamente, tratando-se de lei em tese, da ação direta de inconstitucionalidade. Não faltou quem achasse que somente a inexistência da previsão dessa via, para o Presidente da República, garantiria o direito de recusar aplicar lei que reputasse inconstitucional. Ou seja, a partir do momento em que o chefe do Executivo passou a contar com o referido instrumento, nenhuma razão haveria para que descumprisse, segundo sua vontade, comandos legais de qualquer espécie. Formou-se, então, uma corrente intermediária, a partir da dissensão vivida pelos adeptos da teoria da legalidade ampla. O caudal formado pelos que não admitiam a recusa à aplicação de lei inconstitucional, com isto, aumentou55.

Uma última alternativa para o Executivo, por fim, sancionada por equívoco uma lei ou rejeitado o veto aposto (ou ainda, sem resultado, intentada ou não ação judicial), seria propor ao Legislativo a revogação da lei tida por inconstitucional. Esta ideia é defendida,

53 Revista de Direito Público, 5, p .243. 54 Ibidem. p. 241.

55 Vide o Ministro Prado Kelly, que passou a ter essa opinião após o advento da EC 16 à CF de 1946,

que permitiu a representação ao Procurador Geral da República contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa federal ou estadual. Diz ele: “Já agora, a questão perdeu interesse,

porque o executivo dispõe de meios aptos para fazer valer, se procedente o seu ponto de vista, a autoridade da Constituição sobre a lei impugnada e, ao mesmo tempo, ressalvar a sua

responsabilidade, não precisando mais optar entre uma ou outra norma.” (in Revista de Direito

Público, 5, p. 242). No mesmo julgamento, o argumento foi partilhado pelos Ministros Oscar Saraiva: “Portanto, o silogismo se põe muito claro: se a forma constitucional de o Presidente

impugnar a constitucionalidade de lei é a representação, segue-se que não há outra; e a via de fato

da recusa não será tolerável” (p.244) e Gonçalves Oliveira (p. 247). Também mudou de opinião,

após o surgimento da EC 16, o Ministro Victor Nunes, como revelado em voto no MS 158886-DF: “Realmente, a ampla representação de inconstitucionalidade, que o nosso direito constitucional

agora abriga, põe a questão sob uma nova luz, que me leva a não insistir nos votos proferidos anteriormente. A interpretação advogada pelos impetrantes tem uma sólida contextura lógica e contribui, notavelmente, para o aperfeiçoamento do nosso regime de poderes limitados e divididos,

sob a vigilância do Judiciário, que é o fiel da Constituição.” (Revista Trimestral de

(30)

ainda que através de argumentos um tanto quanto pragmáticos, pelo Ministro CARLOS MEDEIROS, no voto que proferiu no MS 15886-DF:

[…] o remédio para situações anômalas ou prejudiciais ao interesse está na promoção do Legislativo, mediante mensagem do executivo, solicitando a revogação do texto malsinado e demonstrando as razões do repúdio. E isto não oferece mais perplexidade ou risco de delongas ante o processo legislativo vigente, de prazos fixos e fatais, tanto para a votação de Emendas Constitucionais, como de textos de leis ordinárias.56

A falta de autorização constitucional explícita para a realização do controle de constitucionalidade corretivo (sem apelo ao Judiciário) seria reforçada, ainda, com a circunstância de que o Poder Executivo não disporia da inafastável imparcialidade exigida para a tarefa. Para CAMANHO DE ASSIS,

Uma valoração imparcial da constitucionalidade, ou não, da lei só pode ser feito idoneamente pelo Judiciário, que a par de constitucionalmente aparelhado para tanto (e esse o argumento mor em seu favor), não se encontra em antagonismo freqüente com os indivíduos – como ocorre com o Executivo – mas procura, antes, dirimir tais conflitos.57

Tem-se, de acordo com o argumento, que somente o apego à estrita legalidade garantiria por parte dos agentes administrativos a submissão aos comandos oriundos do Legislativo. Haveria, pois, uma presunção de constitucionalidade que somente poderia ser desfeita pelo Poder Judiciário. Caso pudessem se furtar do cumprimento de uma disposição legal sempre que a entendessem inconstitucional, ter-se-ia a anulação da capacidade legislativa de traduzir a vontade popular e de deter a soberania do Estado quanto à edição de normas prescritivas de condutas. Assim, o princípio da separação de Poderes seria violado. Na expressão do Ministro VILAS BOAS:

O símbolo da ordem jurídica é a lei e não apenas a Constituição. É em nome da lei que mantemos a ordem jurídica da República, é em nome da lei que se faz o casamento, que se constitui a família. É muito sério aceitar que uma autoridade se avoque o direito de descumprir uma lei. É perigosíssimo para o nosso regime.58

56 Revista Trimestral de Jurisprudência, 41, p. 680.

57 ASSIS, Alexandre Camanho de. Inconstitucionalidade de lei: Poder Executivo e repúdio de lei sob

a alegação de inconstitucionalidade. RDP, 91, p. 120.

(31)

A este argumento é constantemente acrescido que o Poder Legislativo, graças à especialização que detém, seria muito melhor capacitado para aquilatar a constitucionalidade de qualquer dispositivo legal. É como diz o Ministro GONÇALVES DE OLIVEIRA em voto proferido no julgamento do MS 16003-DF:

O projeto de lei não é transformado em lei sem maiores estudos. Há nos corpos legislativos da Câmara e do Senado, Comissões de Justiça, compostas de jurisconsultos. Se o projeto vetado obtém 2/359 dos votos favoráveis no Congresso, então a lei tem uma presunção de constitucionalidade, que não pode ser afastada pelo Presidente da República, que nem sempre é um jurisconsulto, nem sempre é técnico jurídico e não pode examinar as filigranas da interpretação. Não pode deixar esta questão para ser submetida ao órgão consultivo da administração porque haveria, então restrição à grandeza da elaboração da norma legislativa.60

Haveria, ainda, o compromisso assumido pelo Presidente da República, no ato de sua posse, de manter e defender a Constituição da República e de observar as suas leis. Não poderia, assim, olvidar desse compromisso assumido, quanto às últimas (as leis), sendo o sistema engendrado, assim, para deixar a aferição de incompatibilidade vertical das mesmas a cargo unicamente do Poder Judiciário.

Cabe aqui antecipar uma crítica geral ao argumento. O fato de o Poder Judiciário possuir competência para “expulsar” a lei do ordenamento, com a declaração de inconstitucionalidade, não impossibilita que os tribunais administrativos efetuem a interpretação das normas, e quando houver um conflito entre lei ou ato normativo e Constituição apliquem esta ao invés da lei. Apesar de a função judicante não ser a função típica do Poder Executivo e sim do Poder Judiciário, ela não é privativa deste, já que os tribunais administrativos exercem a função judicante ao buscar solucionar os conflitos surgidos no âmbito da administração e devem interpretar o direito, devendo considerar como norma superior a Constituição.

FERNANDES reconhece que apesar de ter a CF/88 organizado o Estado, dentro da lição deixada por Montesquieu, estabelecendo a tripartição dos Poderes, as funções típicas desempenhadas por cada um dos Poderes não são exclusivas, mas preponderantes61.

59 O julgador referia-se à Constituição de 1946. A Constituição Federal de 1988 estabelece, para a

rejeição do veto, o quorum de maioria absoluta de Deputados e Senadores (art. 66, §4º ).

60 Revista de Direito Público, 5, p. 247-8.

61 FERNANDES, Edison Carlos. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da

Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. 2.ed. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 494-6.

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