Literatura da viola
©Ari Donato Salvador, 2008
A viola de arame, de dez cordas dispostas em cinco ordens, aportou no Bra- sil na metade do século XVI a tiracolo dos colonizadores portugueses e dos padres jesuítas. Os primeiros trouxeram o instrumento para animar folguedos;
os outros, para utilizar no processo de catequização do índio nas terras recém- descobertas.
Desde a colonização, diversas citações na literatura brasileira testemunham ter sido a viola, se não o mais popular, um dos mais importantes instrumentos no acompanhamento da modinha e do lundu nos séculos seguintes.
No romance histórico “As mulheres de mantilha”, ambientado entre 1763 e 1767, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, à época capital do Brasil, o escritor fluminense Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) dá depoimento do uso da viola em alegres reuniões noturnas da sociedade local.
Em um desses agrupamentos, uma moça, ao tomar de uma viola para cantar um lundu, é perguntada por um presente qual a razão de não cantar acompa- nhando-se ao cravo? E o diálogo, em seguida, vem nestes termos:
– O cravo é mais nobre, pertence às xácaras e às baladas; o lundu é mais plebeu e cabe de direito à viola, que é o instrumento do povo.
O lundu é canto de origem africana, que teve grande destaque no Brasil do final do século XVIII ao começo do XIX, enquanto a xácara, canção de versos sentimentais, de origem árabe, tornou-se popular na Península Ibérica por vol- ta do século XVII.
O pesquisador de música e radialista baiano de Juazeiro, Perfilino Eugênio Ferreira Neto, escreveu na apresentação da coletânea “Do lundu ao axé”, 2000, que o poeta soteropolitano Gregório de Mattos Guerra (1633-1696) “fa- zia conquistas amorosas no recôncavo baiano, cantando lundus com versos saídos da imaginação e acompanhando-se numa viola de arame, por ele mes- mo improvisada”.
No conto infantil “A festa no céu”, do folclore brasileiro, é relatada a faça- nha do sapo que voou com o urubu, dentro de uma viola. Ao longo de toda a narrativa, o instrumento é citado quase uma dezena de vezes – algumas ver- sões fazem referência ao violão, mas este instrumento somente passou a ser conhecido do brasileiro por volta de 1830.
O cearense José de Alencar (1829-1877) também escreveu romances histó- ricos inspirando-se no passado do Brasil, e um deles foi “Guerra dos Masca-
tes”, em 1873, onde, em uma das passagens, apresenta o personagem Cosme, vítima do cacoete, com gesto rápido, passar pelos beiços a unha do polegar da mão direita e esfregá-la ao peito, contra a roupa.
Para descrever a luta do infeliz personagem, José de Alencar vale-se da imagem do violeiro, narrando que, mesmo após colocar muitos meios em prá- tica para combater o cacoete, o roedor de unhas “via com desespero o brejeiro do dedo tocando viola no peito da roupeta”. O tocador não tange, com a unha do polegar direito, as cordas da viola, apertada contra o peito?
Duas décadas antes, o fluminense Manuel Antônio de Almeida (1830-1861) escreveu mais do que o cearense e citou a viola em cerca de 15 passagens no romance “Memórias de um sargento de milícias”, divulgado pela primeira vez, de junho de 1852 a julho de 1853, em folhetins, e publicado, em 1863, em edição póstuma.
Bom narrador, o fluminense deixa um pouco de falar das características do sargento Leonardo e se aventura, com sorte, a exaltar a música difundida pela viola. Ao descrever o ambiente de uma festa, ele narra: “(...) A música é dife- rente para cada uma, porém sempre tocada em viola. Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga às vezes de pensamento verdadeira- mente poético”.
Igualmente, em um trecho do romance “A ilustre casa de Ramires”, 1900, o escritor português Eça de Queiroz (1845-1900) cita, com destaque, a viola de arame: “E até Videirinha, que de novo afinava a viola, se preparava para um solto descante ao luar, murmurou respeitosamente por entre abafados arpejos:
– Não vale a pena, Sr. Doutor... Realmente não vale a pena, porque em Polí- tica hoje é branco, amanhã é negro, e depois, zás, tudo é nada!”
Outro fluminense, Raul Pompéia (1863-1895), mesmo que por uma única vez, faz alusão ao som da viola em “Uma tragédia no Amazonas”, 1880. No romance, ao falar da alegria na casa do ex-subdelegado Eustáquio, nos dias do nascimento do seu filho, narra: “(...) Lá dentro, entre suas pobres paredes de barro, mãos de rústico, lassas do ferro agrícola, tiravam das cordas de uma vi- ola acordes cadenciados, de um encanto que só pode avaliar quem já os ouviu, os quais mergulhando na floresta iam suavizar o sono das avezinhas”.
São muitos os romances de autores brasileiros e portugueses onde a viola, como instrumento musical, aparece em meio a personagens, na maioria das vezes com perfil de homem rural, de mãos rústicas e marcadas pelo trabalho duro, mas capazes de tirar belas melodias das cordas de arame. Tão contagian- tes essas melodias que no século XV, em Ponte de Lima (Portugal), procura- dores reclamaram de aspectos que consideraram daninhos ao reino.
Citando documentos datados de 1459, o compositor e pesquisador mineiro Roberto Corrêa diz em seu livro “A arte de pontear a viola”, 2000, que dentre
alguns desses males está registrado que certas pessoas usavam a viola para, tocando e cantando, facilmente roubarem as casas e dormirem com mulheres, filhas e criadas, que “ouvem o tanger a viola, vamlhes desfechar as portas”.
Tal qual exprimem os versos do poeta baiano Castro Alves (1847-1871) no canto “Os três amores”, que está em “Espumas flutuantes”:
Os três amores 1
Minh’alma é como a fronte sonhadora Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes, Sigo na terra de teu passo os lumes. ..
- Tu és Eleonora...
2
Meu coração desmaia pensativo, Cismando em tua rosa predileta.
Sou teu pálido amante vaporoso, Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
- E tu és Julieta...
3
Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas, Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és - Júlia, a Espanhola!. . .
E em “Maria” e “O bandolim da desgraça”, ambos em “Cachoeira de Paulo Afonso”:
MARIA
Onde vais à tardezinha, Mucama tão bonitinha, Morena flor do sertão?
A grama um beijo te furta Por baixo da saia curta,
Que a perna te esconde em vão...
Mimosa flor das escravas!
O bando das rolas bravas Voou com medo de ti!...
Levas hoje algum segredo...
Pois te voltaste com medo Ao grito do bem-te-vi!
Serão amores deveras?
Ah! Quem dessas primaveras Pudesse a flor apanhar!
E contigo, ao tom d’aragem, Sonhar na rede selvagem...
À sombra do azul palmar!
Bem feliz quem na viola Te ouvisse a moda espanhola Da lua ao frouxo clarão...
Com a luz dos astros – por círios, Por leito – um leito de lírios...
E por tenda – a solidão!
O BANDOLIM DA DESGRAÇA Quando de amor a Americana douda A moda tange na febril viola,
E a mão febrenta sobre a corda fina Nervosa, ardente, sacudida rola.
A gusla geme, s’estorcendo em ânsias,
Rompem gemidos do instrumento em pranto...
Choro indizível... comprimir de peitos...
Queixas, soluços... desvairado canto!
E mais dorida a melodia arqueja!
E mais nervosa corre a mão nas cordas!...
Ai! tem piedade das crianças louras Que soluçando no instrumento acordas!...
“Ai! tem piedade dos meus seios trêmulos...”
Diz estalando o bandolim queixoso.
... E a mão palpita-lhe apertando as fibras...
E fere, e fere em dedilhar nervoso!...
Sobre o regaço da mulher trigueira, Doida, cruel, a execução delira!...
Então – co’as unhas cor-de-rosa, a moça, Quebrando as cordas, o instrumento atira!...
...
...
Assim, Desgraça, quando tu, maldita!
As cordas d’alma delirante vibras...
Como os teus dedos espedaçam rijos
Uma por uma do infeliz as fibras!
– Basta – murmura esse instrumento vivo.
– Basta –, murmura o coração rangendo, E tu, no entanto, num rasgar de artérias, Feres lasciva em dedilhar tremendo.
Crença, esperança, mocidade e glória, Aos teus arpejos, – gemebundas morrem!...
Resta uma corda... – a dos amores puros – ...
E mais ardentes os teus dedos correm! ...
E quando farta a cortesã cansada A pobre gusla no tapete atira,
Que resta?... – Uma alma – que não tem mais vida!
Olhos – sem pranto! Desmontada – lira!!!