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ÉVA BÁNKI A FOLIE D AMOUR E A CELESTINA

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ÉVA BÁNKI

A FOLIE D’AMOUR E A CELESTINA

A Celestina que foi editada pela primeira vez em 1499 e depois em 1502, é um dos maiores tesouros da poesia amorosa na Europa. Eu acho que dos géneros literários, topoi e motivos «citados» na Celestina só vale a pensa preocuparmo-nos com aqueles que que nos mostram algo dos métodos composicionais e da relação do autor da Celestina com as tradições litarárias.

As inúmeras reminiscências literárias, os géneros literários «invocados» na Celestina, tal como a cantiga de amigo, a novela sentimental, a alba e outros, e também os topoi (como o jardim, a loucura amorosa, ou seja, a folie d'amour e os oxymoroi caracteristicamente petrarquistas), têm uma função especial. Os mesmos topoi aparecem em diferentes contextos e em diferentes situações dramáticas a assim se contestam mutuamente. Como se a mesma tradição literária tivesse dentro de uma obra várias interpretações. Assim é a alba da cena XIV, o diálogo entre Calixto e Melibea começado por «Ya quiere amanecer…», cujo contraponto encontramos na cena VIII, no episódio de despedida amorosa de Parmeno e Areusa. As expressões preferidas de Calixto, os oxymoroi petrarquistas recebem uma luz especial pelo facto de ser a própria alcoviteira a recitá-las a Melibea (Es un fuego escondido, una agradable llaga, un sabroso veneno, una dulce amargura), ainda por cima de uma maneira muito mais concisa, compacta, expressiva, se quisermos, de uma maneira mais poética do que o faz Calixto.

Mas entre estas repetições «contraditórias» a mais característica nem sequer se refere a uma outra obra, a uma tradição literária, mas à própria Celestina. Como se o autor, quando chega ao monólogo de Melibea, recomeçasse a leitura da sua obra desde o princípio –nós, os leitores ouvimos a mesma história, só que agora da boca de Melibea (Oye, padre mío, mis últimas palabras…). Mas o autor, com este método especial de contrapuncção torna a própria ironia às avessas!

Com a utilização dos elementos da novela sentimental, das palavras-chave da tradição poética de origem provençal (cortesia, virtus, juventud, bondad, etc.) a heroína interpreta em voz patética e assim sendo, practicamente chega a legalizar a história já conhecida que é contada por Melibea –para evidenciar o propósito de mostrar o contraste, narra em ordem cronológica:

Muchos días son pasados, padre mío, que penaba por amor de un caballero que se llamaba Calixto, el cual tú bien conociste. Coniciste asimismo sus padres y claro linaje: sus virtudes y bondad a todos eran manifestas. (…) Si él mucho me amaba, no vivía enganado. Concertó el triste concierto de la dulce desdichada ejecución de su voluntad. Vencida de su amor, dile entrada en tu casa.1

1 Fernando de Rojas, La Celestina. Prólogo y Presentación de Francesc-Lluís Cardona, Barcelona, 1992., pp. 252-253.

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Nesta altura já não existe nenhum eco irónico, Celestina e os criados estão mortos.

Melibea narra a história no «alto» –a torre não só simboliza a queda moral, mas também a ênfase. O topos amoroso que serve como ponto de partida e que na lírica amorosa europeia já se pode considerar arquetipal (dama – cavaleiro – açor – jardim) tem assim duas «soluções»: uma é a explicação irónica-moralista e a outra, uma patética que foi característica nas novelas sentimentais.

A diferença de tom entre o princípio e o fim da obra, o carácter sublinhadamente referencial da parte final, pôe em questão a opinião que afirma que a Celestina tem que ser lida como um apólogo didáctico2. Sendo que a mesma história tem duas leituras/soluções, não podemos admitir a possibilidade de a obra ser apológica e também se torna inviável uma definição exacta de uma escala de valores em relação a ela. Neste sentido, a Celestina não está sem par na literatura espanhola do séc. XVI:

também é imposível definir qual o bom e qual o mau amor no Libro del buen amor, exactamente por causa das contradições deliberadamente colocadas pelo autor na sua obra.)

Na parte final Melibea invoca a mesma história que já foi ouvida, mas a concepção amorosa demonstrada pelo total e pela parte final da Celestina (o monólogo de Melibea e o de Pleberio) são completamente diferentes entre si e isso também é detectável ao nível linguístico. Uma das diferenças mais importantes é que os motivos nas partes restantes da obra considerados como característicos per definitionem em relação ao amor, tal como a loucura, ou, pedindo emprestado a terminologia francesa, a folie d'amour, faltam por completo nesta parte final.

É esta diferença terminológica tão importante que nos chamou a atenção para a história da folie d'amour.

A «loucura amorosa» considerada fundamental na literatura amorosa ocidental é practicamente incompatível com a concepção amorosa provençal que definiu a terminologia da lírica amorosa europeia. Segundo a doctrina provençal do fin'amors, o ben sen, a mesura, a razon faz parte dos valores cortesãos, e o bom senso e a mesura não só são consequências, mas sim condições do amor cortês3. Esta doctrina de alicerces platónicas exclui o «amor omnipotente», ou seja, não admite que o amor pode não ser bom e pode causar a perdição. Mas exclui também a identificação do amor e da doença, na Península Ibérica tão popular concepção do «amor mortal», todo o culto do sofrimento, loucura e êxtase amorosos (tal como locura, follatura).

Na obra do primeiro grande moralista da poesia trovadoresca, Marcabru, a follatura, tal como todos os géneros da «desmesura» são consequências do falss'amor, do amor falso4.

Os trovadores tinham aversão à folie d'amour não só por causa das raízes platónicas da lírica provençal, mas também por causa da concepção temporal e de valores litúrgica que caracteriza a líríca trovadoresca prematura. Para os primeiros trovadores a primavera, o «tempo cortesão» não é só a época do amor, mas também a

2 M. Bataillon, “La Celestina“ selon de Fernando de Rojas, Paris 1961.

3 R. Rohr, Zur Skala der ritterlichen Tugenden in der altprovenzalischen und französischen höfischen Dichtung, in Zeitschrift für romanische Philologie (78) 1962. pp.292-326.

4 R. Rohr, Zur Skala, p. 310., R. Harvey, Marcabru et la “fals amor“, in Revue des Langues Romanes (160) 1996, pp. 49-80.

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época da inovação da natureza ligada ao gaudium pascoril, ao gáudio pascoal. O fin'amors, o amor cortês de cordo com as regras provençais é fundamentado numa perfeição interior que se realiza dentro dos limites duma certa ordem universal que nega todo o tipo de destruição e fundamentalismo5.

No entanto não podemos afirmar que a folie d'amour seria completamente desconhecida na lírica trovadoresca provençal. Os prosélitos de Marcabru, os poetas de sirventés travavam uma luta sem tréguas contra esta concepção porque, mesmo se veladamente, practicamente em todos os grandes trovadores se encontram motivos ligeiramente ligados à ideia da follatura, à da folie d'amour. O motivo da identificação do amor com a doença, motivo esse herdado de Ovídio, já se pode encontrar nas obras dos primeiros trovadores.

No entanto, as entradas primaveris (Natureingang) dos primeiros trovadores que sugerem uma harmonia universal, rapidamente se tornam contraditórias, sentimentalmente tensas: no caso de Bernart de Ventadorn por exemplo o eu poético sente a primavera no coração, anda descalço na geada e vê flores amarelas, verdes e vermelhas na neve (Tant ai mo cor de ploya). Num dos poemas de Raimbaut d'Aurenga aparece a «flors enversa» que floresce na primavera mas as suas pétalas são feitas de gelo (Ar resplan la flors enversa).

Estes motivos que sugerem uma indisposição sentimental e a natureza contraditória do amor, são completados já nas obras dos primeiros trovadores provençais com o sentimento de «estranheza». O eu poético só se sente em casa na

«terra do amor», noutros sítios está exilado, só, não encontra tranquilidade. Estes sentimentos de estranheza, a loucura amorosa, a follatura são provocados quase sempre por um amor não correspondido. Guiraut de Bornelh na tornada de Un sonet fatz malvatz e bo culpa pelas inúmeras loucuras (tolices) cometidas por ele a crueldade da sua dona:

E cut chauzi damen parlar E dic so que.m fai agachar Ela.m pot en mo sen tornar si.m denhava tener en char.6

O eu poético afirma que o bom senso só voltará quando o seu amor for finalmente correspondido pela Dona. Não acontece sem razão que Peire Vidal e Marcabru afirmam que a follatura tem a ver com os aspectos sensuais do amor.

5 P. Bec, Nouvelle Anthologie de la Lyrique Occitane du Moyen Age, Avignon 1970, C.

Camproux, Le Joi d’Amor des Troubadours (Jeu et Joie d’Amour), Monpellier 1965, G.

Cropp, La vocabulaire courtoise des Troubadors de l’Époque Classique, Genéve 1975, P.

Imbs, De la fin’amor, in Cahiers de Civilization Médiévale (12) 1969, pp. 265-285. M.

Lazar, Amour courtois et “Fin Amor“dans la Littérature du XIIe siecle, Paris 1964. L.

Paterson, Troubadours and Eloquence, Oxford 1975.

6 in, A. Kolsen, Sämtliche Lieder des Troubadors: Guiraut de Bornelh, Halle 1910 (Slatkine Reprints, Genčve 1976) I. p. 334.

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Na lírica provençal também existia uma tradição de poesia nonsense cuja origem segundo os analistas de hoje –na minha opinião, com toda a razão– estaria ligada ao aparecimento do trobar clus, da «poesia fechada/oculta». Os poemas mais estranhos ligados à ideia da loucura encontram-se neste género. Na célebre cantiga sobre o nada de Guilhem de Peitieus, no Farai un vers de dreit nien a loucura está ligada à impossibilidade de entender a existência ou seja, na sua natureza sem objectivo: o eu poético afirma que se a dona desconhecida mandasse a «chave», talvez ele podia encontrar a resposta para todas as perguntas. Aqui, os temas ligados à loucura e ao amor não têm muito em comum, no caso de Guilhem de Peitieus a follatura, a loucura não é provocada pelo amor. (Não é por acaso que naquela cantiga de Afonso o Sábio que foi construída a partir dos motivos deste poema de Guilhem, na cantiga galego- portuguesa de género indefinido Nom mo posso pagar tanto o amor cortês nem sequer aparece nas formas de um semi-sorriso de permissão, ou de uma remissão irónica.) Embora, segundo Leslie Topsfield, esta atitude de se fazer palhaço, de se fingir louco é característico em toda a poesia de de Guilhem de Peitieus7, mas a ligação entre loucura e questôes ideológicas é única não só na obra de Guilhem, mas também em toda a lírica trovadoresca.

Podemos afirmar portanto que a folie d'amour pode aparecer em duas formas na lírica trovadoresca: ou está ligada ao premente desejo amoroso (o que é muito raro), ou ao facto de o conhecimento das questôes existenciais ser impossível. Somente os sirventés, os poemas moralistas nos quais a concepção amorosa dos trovadores é criticada, remetem abertamente à follatura –nos cansos de fin'amors as remissões são veladas, são ligadas ao cenário natural ou ao trobar clus, à maneira de falar deliberadamente obscura. As remissôes veladas à loucura dos poemas amorosos só se tornam claras pelas interpretaçôes das épocas posteriores.

Tudo isso é confirmado pelas «vidas», biografias fantasiosas dos trovadores, os razós, os cansos, suas explicações que podem ser considerados como interpretações 150–200 anos posteriores dos poemas trovadorescos8. Os dois trovadores que nas suas obras demostram com mais frequência a follatura Guilhem de Peitieus e Peire Vidal –um poeta da época final. Aas «vidas» caracterizam os dois naturalmente como grandes amantes de mulheres: Guilhem aparece como um mulherengo, trichador de dompnas, de Peire no entanto a vida fala doutra maneira: como se tivesse sido um homem que cortejava todas as damas nobres e acreditava firmemente que é amado por todas elas com amor. O pesudónimo ou seja, senhal de uma das damas de Peire Vidal era Loba –e uma das razos cria a partir deste facto uma história inteira, segundo a qual o próprio Peire na sua loucura amorosa teria envergado peles e usado garras de lobo e vagueado pelas montanhas.9

O que é interessante que nem na biografia histórica de Peire se encontra qualquer referênciaa este facto imaginário, nem nos cansos há vestígios de um episódio assim, o que significa que o autor da razo –como o fez o autor da célebre biografia de Jaufre

7 L. Topsfield, The Burlesque Poetry of Guilhem IX of Aquitania, in Neophilologische Mitteilungen (59) 1968, pp. 280-302.

8 J. Boutiere- A.H.Schutz, Biographies des Troubadours. Textes provencaux des XIIIe et XIVe siecles, Paris 1964.

9 Szigeti Cs., A hímfarkas bőre, Pécs 1993, pp. 205-207.

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Rudel– inventa uma história completa a partir dos motivos principais dos cansos.

Embora tenhamos que ter em conta que as pretensôes do público em relação à narratividade depois de 150 anos da época dos trovadores tanbém podem ter sido mudados, é um facto que após gerações dos trovadores os autores das vidas também podiam falar mais abertamente, podiam esclarecer as ligações veladas dos poemas do que o pudessem ter feito os próprios trovadores ou seus contemporáneos. Sendo assim, a manifestação mais expressiva de folie d'amour não são os cansos, mas as biografias ou comentários posteriores ligados aos cansos.

Porque a loucura amorosa depois dos trovadores provençais já não é tabu, mas sim uma característica distintiva do amor cortês. Embora seja mais frequente nas obras dos Minnesänger do que nas dos trouvères franceses antigos, a primeira manifestação épica da folie d'amour aparece primeiro na literatura francesa do Norte, no Yvain de Chrétien de Troyes. No entanto, não lhe encontramos nem vestígios nas cantigas de amigo de origem popular e esse facto é um bom argumento contra aqueles que no caso de folie d'amour remetem à origem popular, o seu papel no entanto é muito importante na cantiga de amor nascida de acordo com os padrões provençais.

Na poesia de Fernam Gonçalves de Seabra, Dom Dinis e Nuno Cerzeo, o desejo de fugir, o sentimento de dependência e de desespero são permanentes e a felicidade e a infelicidade já não se enquadram na ordem cósmica manifesta na mudança das estações. Enquanto o trovador provençal provava o seu amor com a ajuda de razon, ben sen e mesura, para o trovador galego-português será exactamente o perder o sen o sinal definitivo do «amor verdadeiro»10. Na poesia galego-portuguesa só se encontra muito raramente o tipo de loucura ligada a questões ideológicas, mas mais tarde também isso aparece nas obras líricas dos grandes poetas da Península Ibérica (ex.: Ausias March).

Segundo o prólogo do autor da Celestina –não esqueçamos no entanto que o tom deste prólogo contradiz completamente ao do desfecho final da obra– a Celestina foi escrita contra os «loucos enamorados»: La comedia o tragicomedia de Calixto e Melibea, compuesta en reprensión de los locos enamorados, que vencidos en su desordenado apetito, a sus amigos llaman y dicen su dios11. Embora o autor esteja a levar ad absurdum não os exageros da poesia provençal, mas sim os de dolce stil nuovo e do petrarquismo, a sua argumentação em certos pontos também pode ser considerada como a dos poetas provençais de sirventés.

Já segundo o prólogo do autor, a folie d'amour é inseparável do desejo carnal, ou seja, do desordenado apetito. O desejo desmesurado e o exílio interior, aperplexidade e o sentimento de desequilíbrio, a follatura são profundamente interligados já na lírica provençal trovadoresca (o enamorado sente-se exilado, estranho, no inverno vê a primavera) mas enlouquecer também não pode qualquer um, isso é só característico no fin'amors, no amor cortês. Na Celestina no entanto não são só Calixto e Melibea, que falam a língua da poesia cortesã e que vivem e agem pelos clichés das novelas sentimentais que pertencem ao grupo dos «locos enamorados», mas também os seus criados. Parmeno por exemplo fala assim depois da noite passada com Areusa: No

10 Bánki É., Mikor énekelnek a portugálok? Az új idő, a tavasz jelentése a provanszál és galego-portugál költészetben, in Miscellanea Rosae, Budapest 1995, pp. 75-92.

11 La Celestina, Cardona, p. 49.

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será que nos acostumbrado pero como ahora no anda en seso, no me maravillo que haja pervertido su costumbre. E assim se dirige a Semprónio: ¿Luego locura es amar y yo soy sin sesos? Pues si la locura fuese dolores, en cada casa habría voces12.

A loucura amorosa que alcança sempre todos e em todos os lugares, afasta as pessoas da realidade a qual estavam acostumadas e «transforma os costumes».

Melibea perde a sua virgindade, Calixto perde-se nas garras de uma alcoviteira, mas por causa da folie d'amour não se abalam somente as vidas privadas, mas também os costumes sociais. Calixto por exemplo depois da noite de amor abandona o seu dever de ter que defender os seus criados, no plano moral deixa de ser um amo verdadeiro, Parmeno no entanto, depois de ter saboreado os prazeres do amor, passa-se para o

«lado bom», ou seja, atraiçoa o seu próprio amo.

A folie d'amour não atrapalha só as relações sociais, entre senhores e criados, mas também causa um sentimento de angústia e incerteza permanentes. A alcoviteira, Celestina, não pertence nem ao grupo dos amos, nem ao dos criados, e assim sendo, é a personagem mais independente e, em todos os sentidos, também a figura mais livra de toda a obra, mas pensemos nos seus monólogos, na sua angústia nos momentos quando está sozinha, quando parte à casa de Melibea para cumprir a sua missão, ou no seu monólogo nocturno quando, tremendo duma possível queda por causa dos buracos na estrada, vai sozinha para casa pela noite.

Porque este sentimento de insegurança ligado à folie d'amour define por completo as relações temporais e de espaço da obra (a torre, o escadote, a queda e o tombo). A folie d'amour que através da filha, até atinge Pleberio, é de uma maneira completa uma coisa sem lugar todos temem, tudo cambalea, tudo é inseguro. O mesmo pode ser dito sobre o tempo. É verdade que as perguntas sobre o tempo, a hora etc. a par e passo (que horas são?, é manhã ou já noite?) têm uma função dramática especial, mas o grande número e o carácter peculiar destas perguntas dá que pensar.

Por causa do desejo premente até o tempo se torna incerto, o enamorado perde a sua relação com a realidade. Na «loucura de amor» Calixto está acordado à noite e dorme durante o dia. Existe um género lírico no qual as perguntas sobre o tempo (amanhecer ou crepúsculo?, cedo ou tarde?) pertencem às regras indispensáveis do género, e esse, a alba, aparece na Celestina duas vezes. Vamos analisar isto mais profundamente porque achamos muito característico para a Celestina que o autor transforma com ironia os topoi líricos e que lhes dá uma função nova.

Depois da noite de amor passada com Areusa, Parmeno exclama assim:

«¿Amanece o qué es esto, que tanta claridad está, en esta camara?» –«Que amanece? Duerme señor, que aún ahora nos acostamos…»13– responde Areusa e tudo isso se enquadra muito bem nas regras genéricas da alba. No entanto, o diálogo acerca do tempo recebe um complemento muito característico que só se encontra na Celestina. Parmeno tem que temer não por causa dos perseguidores ou dos ciumentos (gilos provençal), mas da possibilidade de, por causa do tempo deslocado, pela primeira vez na vida faltar ao seu dever social, ou seja, de chegar a tempo ao acto de despertar do seu amo.

12 La Celestina, Cardona, p.150.

13 La Celestina, Cardona, p.149.

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A ironia da Celestina é incrivelmente diversificada. Os criados não só escutam, mas também comentam as locuções estilísticas e o poema de Calixto («Oh, hideputa, el trovador!») mas, como enamorados, também fazem parte do mundo textual literário citado na Celestina. A alba de Calixto e Melibea tem o seu contraponto na cena de despedida matinal (ou melhor, meridional) de Parmeno e Areusa, o que também é uma classificação clara. Novamente é o desdobramento da tradição literária invocada que desvenda as contradições da folie d'amour e ao mesmo tempo do amor cortês.

O diálogo de Areusa e Paremenio também é uma alba, ou melhor: o deturpar dos motivos e ideais principais da alba por uma alba formalmente perfeita: não é manhã mas meio-dia, a «Dona» queixa-se das suas dores de ventre incessantes («Pues así gocé de mi alma, no se me ha quitado el mal de la madre…»14), mas o «Cavaleiro»

que se despede, interrompe-a rapidamente e de uma maneira grosseira. O motivo- chave da Celestina e das albas provençais (onde se trata sempre de amores extra- conjugais) é o segredo –isso mesmo aparece também de um modo muito estranho no monólogo de Parmeno. Ele queixa-se assim: «Oh, alto Dios! A quién contaría yo este gozo? A quién descubriría tan gran secreto? A quién daré parte de mi gloria?15» Só depois disso é que segue uma alba «mais verdadeira» mas com esta contrapunção o autor não só desvenda o género literário tradicional, mas também a ideologia amorosa atrás do mesmo.

Em tudo isso os criados têm um papel claro e nada simples. É um facto interessante e pela literatura sobre o tema não devidamente levado em consideração que enquanto o mundo dos criados na obra é invulgarmente bem desenhado, enquanto ficamos a saber tudo sobre os protegidos de Celestina, sobre as relações interpessoais dos criados, Calixto e Melibea vivem sem quaisquer ligações com os seus iguais, numa solidão gloriosa e augusta, (numa dependência? completa): Calixto não tem nem parentes, nem amigos, nada sabemos sobre o seu passado.

Na literatura anteriora à Celestina só conhecemos poucos sinais da crítica do amor cortês através da perspectiva dos criados. Na lírica provençal trovadoresca aparecem ao lado dos enamorados os ciumentos (gilos) e os aduladores (lauzengiers), mas estes pertencem naturalmente à mesma classe social. O vilan e o cortes, embora tenham algumas referências sociológicas, são apenas marcas comportamentais abstractas na poesia dos trovadores. Num dos géneros da pastorela –ao qual pertence também a primeira peça desse género, o L'autrier jost una sebissa de Marcabru, do grande poeta de sirventés, encontramos um cavalier e uma vilana retratados como personalidades. Aqui é a vilana (uma pastora esperta) que representa as ideais mais desejáveis de fin'amors por Marcabru: o amor verdadeiro –diz a pastora ao cavaleiro luxurioso– não pode ser sensual, nem louco, não pode atrapalhar a ordem social consideradda de origem divina (cortez cortez' aventura/ e.l vilas ab la vilana). Não é por acaso que os analistas de hoje (N. Pasero) consideram esta pastorela um sirventés moral escrito contra os primeiros trovadores.16

14 La Celestina, Cardona, p. 149.

15 La Celestina, Cardona, p. 150.

16 N. Pasero, Pastora contra cavaliere, Marcabruno contra Guglielmo IX d’Aquitania, in Cultura Neolatina (43) 1983, pp. 9-25.

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A pastora instrói o cavaleiro mas não pode compartilhar com ele o destino. A amos e criados, a vilan e cortez aplicam-se leis (e amores) diferentes. Na Celestina porém os criados têm a mesma sorte que os seus amos, como é a mesma folie d'amour que causa a perdição de Parmeno, de Semprónio e de Calixto.

Mas, apesar das muitas semelhanças (sensualidade, queda, tempo deslocado, papel social tornando-se inseguro) poderemos dizer que a vida amorosa dos criados e dos amos, como por exemplo, a «loucura amorosa» de Parmeno e Calixto são iguais? As acusações dos poetas de sirventés provençais ligadas à folie d'amour sobre heresia só aparece no caso dos amos, no caso de Calixto e Melibea. (Este argumento contra a folie d'amour não desaparece com os trovadores provençais –não nos esqueçamos do facto de Dante ter colocado os dois trovadores provençais, Arnaut Daniel e Guiraut de Bornelh no Purgatório por causa da sensualidade e impiedade ligada à «bela loucura».)

Calixto chama a Melibea a par e passo donna angelica, o autor só exagera um pouco as expressões normalmente usadas no dolce stil nuovo («Eso no, que, es herejía obvidar aquella por quien la vida me aplace17»), mas mesmo isso já é suficiente para o autor cujo objectivo é demonstrar como esses conteúdos são incompatíveis com o cristianismo. Não é por acaso que os criados algumas vezes chamam heresia a exclamações exageradas de Calixto: Desvariar, Calixto, desvairar!

Por fe tengo, hermano, que no es cristiano. «Lo que la vieja traidora con sus pestíferos hechizos ha rodeado y hecho dice que los santos de Dios se lo han concedido e impetrado18.» A blasfemia às vezes já chega a ser quase cómica –quando por exemplo Calixto fala do laço de Melibea como de um santo cordon.

Só Calixto transgride esta fronteira, os criados –mesmo até na sua loucura amorosa– permanecem sempre muito mais sóbrios. Mas –essa é uma diferença importante– a apoteose ligada ao amor, a qual é revelada pelo monólogo de Melibea, a chamada recoração ou evocação do passado, só compete aos dois protagonistas.

A este monólogo –onde já nem podemos falar verdadeiramente em folie d'amour–

só o escuta Pleberio, o pai de Melibea. Mas como fala Melibea sobre o amor? De sensualidade aberta, de erotismo, de exageros próximos a heresia e acabados no cómico, de confusão de papeis sociais já nem vestígios há neste monólogo de Melibea. Parece que tal como no lirismo trovadoresco, só a relação entre várias classes sociais, o conflito entre diferentes pontos de vista pode desvendar a verdadeira natureza de amor, e mostrar o amor como «loucura amorosa».

17 La Celestina, Cardona, p. 132.

18 La Celestina, Cardona, p. 193.

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