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A «Medeia» de Anouilh: vicissitudes de um mito grego Autor(es): Pulquério, Manuel O.

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras URL

persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23913 Accessed : 3-May-2022 11:27:07

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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MÁTHESIS 4 1995 9-16

A «MEDEIA» DE ANOUILH:

VICISSITUDES DE UM MITO GREGO

MANUEL O. PULQUÉRIO

A primeira grande elaboração do mito de Medeia, que chegou ao nosso tempo, é a Medeia de Eurípides. A fascinação do Poeta pelo seu tema vem de muito longe: no início da sua carreira de dramaturgo em 455 a.c.

(Eurípides tinha então entre 25 e 30 anos), vêmo-Io concorrer ao à:yrov trágico com uma tetralogia a que pertenciam As Filhas de Pélias, vítimas famosas dos instintos sanguinários da feiticeira bárbara, que arrastou as princesas ingénuas ao assassinato do próprio pai.

Um modesto 3° prémio foi tudo o que Eurípides conseguiu com esta obra, que se presume ter chocado a sensibilidade dos espectadores do teatro de Dioniso. A história repete-se mais tarde: 24 anos depois, em 431 a.C., o Poeta regressa ao mesmo tema, cujas potencialidades dramáticas ele certamente considerava estarem longe de se esgotar. Não usou, porém, Eurípides da prudência que adoptou no caso do Hipólito, peça que se integra no mesmo ciclo de produção trágica a que pertence a Medeia. Sabe-se do fracasso que atingiu a representação do Hipólito Velado, com o desenho de uma Fedra que o público escandalizado rejeitou. Em428,otemaéretom ado no Hipólito Portador de Coroa e a remodelação que o Poeta lhe impôs, com a radical transformação da figura de Fedra, permitiu-lhe a obtenção do galardão máximo. Não assim no caso de Medeia. Aqui o Poeta deve ter insistido na forma j á anteriormente usada de caracterização da protagonis- ta, contando, eventualmente, com as alterações operadas, por mais de duas décadas, nos esquemas mentais dos espectadores do seu teatro. O 3° prémio, que lhe é de novo atribuído, ao tempo em que a sua fama de tragediógrafo estava perfeitamente consolidada, deve-lhe ter aparecido como um castigo.

Ou então deve-o ter confirmado na ideia de que esta não era uma peça para o seu tempo e que o veredicto da posteridade haveria de lhe fazer justiça.

Peça perturbante, que, vinte séculos depois da sua primeira apresen- tação, continua a dividir as opiniões. Os estudiosos actuais não se entendem na interpretação desta mulher cuja conduta sai fora das linhas que definem

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um quadro humano nonnal. As tentativas feitas no sentido de ignorar a anonnalidade de Medeia, levadas por vezes ao extremo de a caracterizar como modelo de feminilidade, chocam com a evidência de um mal-estar insanável por parte de qualquer espectador que se movimente no espaço dos sentimentos humanos elementares. Não é fácil convencer alguém, coloca- do numa posição despreconceituosa, de que uma mãe, que mata os filhos para se vingar do marido, o faz com a legitimidade que o sofrimento confere a acções humanas extremas. Há um limite que nem o sofrimento mais intolerável pode transpor e esse limite está muito claramente demarcado na relação entre uma mãe e os seus filhos. Não pode haver aqui equívoco ou cálculo racional adulterado pela paixão, porque há sentimentos que se caracterizam por serem incorruptíveis. A menos que ...

A Medeia de Eurípides, depois de assassinar os filhos, instrumentali- zados para levar a morte ao rei Creonte e à princesa, sua filha, é salva da ira dos Coríntios pela intervenção mágica do carro do Sol, que a transporta, muito oportunamente, para longe dos seus inimigos. Esta mulher, que caminha nos ares com a naturalidade de um mortal que assenta os pés em caminhos de pedras e de terra, não é, evidentemente, uma mulher como as outras. Não se trata só do domínio das artes da feitiçaria, que lhe permite lidar criminosamente com ervas e superstições, é a revelação de uma natureza que não se identifica com a humanidade comum. Mulher e oa{j.lOlV,

ser humano e ente sobrenatural, a fusão dá lugar a algo que não pode ajustar- -se a critérios simplesmente humanos ou enquadrar-se um sistema de valo- res concebidos à nossa medida. Se o assassínio dos filhos tem que ver com esta parte misteriosa da personalidade de Medeia, que claramente nos ultrapassa, então há uma possibilidade da compreensão. Quem somos nós, espectadores deste teatro de Dioniso, pennanentemente reconstruído e perpetuamente povoado por estas grandes figuras do mito, para julgar um comportamento que sai dos limites do humano? Sendo o avô de Medeia um deus, ela participa forçosamente da sua natureza. Ora estes deuses, saídos para sempre do panteão homérico, podem ser observados por nós, mas a verdade é que se situam na esfera da sua suprema irresponsabilidade.

Se adoptannos esta postura de capitular perante o inexplicável, pode- remos encontrar alguma lógica no comportamento de Medeia. A sua parte humana de mulher ficará a salvo neste naufrágio de sentimentos e morali- dade, enquanto se transfere para o divino a hipótese de condenação.

Mas ainda nos resta outra solução, que não incrimina os deuses e nos liberta assim da incómoda posição de juízes humanos num processo divino.

Não faz sentido criar um Areópago ao contrário. Nas Euménides de Ésquilo, assistimos à criação de um tribunal em que, por decisão divina, homens julgam outros homens. O fundamento da autoridade torna possível e legítima a sentença, que permite a Orestes regressar descansado à sua

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A «MEDEIA» DE ANOUILH: VICISSITUDES DUM MITO GREGO 11

cidade, depois de aliviado do fardo intolerável do matricídio. Neste tribunal de crítica, em que responde Medeia, se é a parte humana da sua natureza que está em causa, então há que ouvir especialistas sobre desvios e alterações graves da psique, susceptíveis de provocar comportamentos naturalmente classificados de monstruosos. Aqui podemos entender-nos e entender a miséria e a trágica fragilidade de Medeia. Se foi isto que Eurípides quis dizer, lamentamos o 3° prémio que, em tal caso, traduziria a falta de clarivi- dência do público que, em 431, enchia o teatro de Dioniso.

Mas que tem esta Medeia de Eurípides a ver com a Medeia que Anouilh põe em cena no ano de 1946? A utilização do velho mito é, naturalmente, submetida a alterações impostas pelo facto de nos situarmos numa época em que o sangue dos homens já não pode misturar-se com o sangue dos imortais. Esta Medeia do século XX já não é, realmente, neta de Hélios, nem a sua natureza tem pretensão a ser mais do que humana. Tudo se passa neste mundo de homens em que todos nos movemos e o corte com o sobrenatural é absoluto. É verdade que, no diálogo com a Ama, Medeia admite esta genealogia divinà, quando exclama:

"O soleil, si c'est vrai que je viens de toi, pourquoi m'as tu faite amputée? Pourquoi m'as tu faite une fille?"

Mas isto não passa de uma transigência de Anouilh com um dado da tradição, porque, logo a seguir, Medeia se define como exclusivamente mulher:

"Femme! Femme! Chienne! Chair faite d' un peu de boue et d'une côte d' homme!"l

Os deuses voltarão de novo no momento crucial da peça, o momento do infanticídio. E impressiona ver como esta Medeia não resiste à tentação de forjar um álibi. A culpa afinal é dos deuses:

"D'autres plus frêles ou plus médiocres peuvent glisser à travers les mailles du filet jusqu'aux eaux calmes ou à la vase; le fretin, les dieux l' abandonnent. Médée, elle, était un trop beau gibier dans le piege: elle y reste. Ce n' est pas tous les jours qu' ils ont cette aubaine, les dieux, une âme assez forte pour leurs rencontres,leurs sales jeux. lls m' ont tout mis sur le dos et ils me regardent me débattre. Regarde avec eux, Jason,les demiers sursauts de Médée! l' ai l' innocence à égorger encore dans cette petite fille qui aurait tant voulu et dans ces deux petits morceaux tiêdes de moi. Ils attendent ce sang,là-haut, ils n'en peuvent plus de l'attendre!"2

1 As citações do texto de Anouilh são feitas a partir do volume Nouvelles Pieces Noires, Paris, "La Table Ronde", 1967. Os passos transcritos são da p. 363.

2 Op. cit., pp. 396-7.

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Esta tentativa de justificação não tem qualquer sentido numa persona- gem que afirma, com a maior ênfase, agir segundo a sua própria natureza.

O infanticídio é, nas suas palavras, o meio de ser ela própria: "C' est main- tenant, Médée, qu' ii faut être toi-même ... ".3 Medeia festeja as suas núpcias com o mal: "C'est pour cette muit d'amour avec toi que j'ai vécu.". 4 E já não fala da sua genealogia divina, mas do seu parentesco com as forças obs- curas, destruidoras, que habitam a noite, os animais nocturnos devora- dores.5 E é orgulhosamente que proclama: "je prends sur moi, j' assume, je reven-dique. Bêtes, Je suis VOUS!"6

Que relação podem os deuses ter com isto? Os heróis de Anouilh caracterizam-se por uma recusa total de compromissos com os homens e sobretudo com os deuses, a rejeição de todas as normas e valores a que o comum dos homens diz "sim". A humanidade, observa L. Aylen, está divi- dida em dois grupos: os que dizem "sim" e os que dizem "não". O herói de Anouilh diz "não" à vida e "esta palavra toma-se uma marca da sua natu- reza". 7 Cita Aylen um passo esclarecedor, tirado da Eurydice de Anouilh:

"Mon cher, il y a deux races d'êtres. Une race nombreuse, féconde, heureuse, une grosse pâte à pétrir, qui mange son saucisson, fait ses enfants, pousse ses outils, compte ses sous, bon an mal an, malgré les épidémies et les guerres,jusqu'à la limite d'âge; des gens pour vivre, des gens pourtous les jours, des gens qu'on n'imagine pas morts.

Et puis il y ales autres, les nobles, les héros. Ceux qu' on imagine três bien étendus, pâles, un trou rouge dans la tête, une minute triomphants avec une garde d'honneur ou entre deux gendarmes selon: le gratin."8

Julgo que as palavras nem sempre exprimem a verdade das situações.

É demasiado simples reduzir tudo a um "sim" ou a um "não", porque, em última análise, todos dizem "sim". Medeia diz "sim" ao crime, à violência louca, ao horror do infanticídio. Dizer "não" é também uma forma de dizer

"sim". O problema está na selecção dos objectivos, dos valores e ideais por que se vive e se morre.

No diálogo com Jasão, Medeia fala destes dois grupos de pessoas e toma resolutamente partido. Quando Jasão lhe fala do seu projecto de

"parar", de ser "um homem"9, Medeia distingue:

3 p.393.

4 p.393.

5 p.393.

6 p.393.

7 L. Aylen, Greek Tragedy and the Modem World, Londres, 1964, p. 279.

8 Op. cit., p. 28l.

9 p.388.

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A «MEDEIA» DE ANOUILH: VICISSITUDES DUM MITO GREGO 13

"Race d' Abel, race des justes, race des riches, comme vous parlez tranquillement. C'est bon, n'est-ce pas, d'avoir le ciel pour soi et aussi les gendarmes. C'est bon de penser un jour comme son pere et le pêre de son pere, comme tous ceux qui ont eu raison depuis toujours. C'est bon d'être bon, d'être noble, d'être honnête"lO.

Ela não é da raça de Abel. Diferentemente de Eurípides, aqui o in- fanticídio não aparece envolto em .dúvidas, em sinceras ou hipócritas vacilações, tem todo o horror que tem. Sendo igualmente intolerável, é, no entanto, mais franco, mais linear. A imoralidade não se enreda em equívo-

COS, despreza os subterfúgiosl1.

Jasão quer recuar, diz-se transformado, mostra-se arrependido, mas isto é só aparência, porque Jasão não evoluiu, e Medeia tem razão para o desprezar. Medeia recusa o mundo dos outros, um mundo normal de paz, de ordem, informado por valores morais e religiosos. Ela sabe o que recusa.

Jasão, pelo contrário, fala de aceitação das "aparências", do "nada ab- surdo"12, bate-se por coisa nenhuma, sem calor nem convicção. É um ser sem substância, esvaziado de ideais, dominado pelo "útil", como o Jasão euripidiano. Este homem não tem qualquer possibilidade de se opor ao niilismo de Medeia. Se Medeia era capaz de salvação, precisava de alguém diferente, em condições de lhe revelar outras razões de viver. Mas o passado que os une não tem qualquer fermento de renovação. Não se tratajá do amor vivido no espaço e no tempo, quase irreais, da Cólquida, tudo isso passou e foi sepultado no esquecimento. Há muito que a realidade é outra. Medeia sabe-o e a Ama também. Diz a Ama:

"Tu ne l'aimes plus, Médée. Tu ne le désires plus depuis longtemps.

On sait tout, tassés dans cette roulotte. Le premier, il t'a dit qu'il avait trop chaud un soir, qu'il voulait mettre sa paillasse dehors. Tu l'as laissée etje t' ai entendu soupirer d' aise en te détendant, ce soir-Ià, d' avoir le lit pour toi toute seule. On tue pour un homme qui vous prend encore, pas pour un homme qu'on laisse sortir la nuit de son lit."13

A verdade é que Medeia já traíra Jasão com outros homens, do mesmo modo que Jasão já tivera outras mulheres. E esta história sórdida é ainda manchada com um assassínio: ambos matam o primeiro amante de Medeia, o jovem pastor de Naxos.

10 p.389.

11 Diz Aylen: "Medeia é francamente imoral, pode fazer coisas perversas e não sentir remorsos.", op. cit., p. 284.

12 Aylen, p. 390.

13 p. 367.

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Agora com a memória pesada de crimes (tanta coisa aconteceu depois da fuga da Cólquida ... ), apodrecem nesta roulotte miserável, oferecendo aos olhos dos filhos o espectáculo irremediável separação. Não se estranha, por isso, que Jasão tenha querido sair deste círculo infernal. O casamento com a princesa de Corinto apresenta-se como a solução. Só não se entende como Jasão, vegetando em tal miséria, tem acesso ao palácio de Creonte, rei de Corinto. O dramaturgo não se preocupa com o pormenor.

Esta nova fuga de Jasão apresenta-se, no entanto diferente das anteri- ores, não tem destas o carácter episódico ou passageiro que tranquilizava Medeia. O ódio que a domina embriaga-a e confunde-lhe o raciocínio. "Je me retrouve"14 , diz ela, mas não se compreende o sentido deste voltar a ser o que era. Regresso a quê, se foi por amor que matou o irmão, que traiu o pai, que induziu à morte de Pélias? Que Medeia era essa que Jasão encontrou ao chegar à Cólquida? Este motivo do regresso ao passado distante, quase mítico, é obsidiante. Ao anunciar a Jasão a morte dos filhos, Medeia profere palavras realmente incompreensíveis:

"TIs sont morts, Jason! TIs sont morts égorgés tous les deux, et avant que tu aies pu faíre um pas, ce même fer va me frapper. Désormais j'ai recouvré mon sceptre, mon frere, mon pere et la toison du bélier d'or est rendue à la Colchide: j' ai retrouvé ma patrie et la virginité que tu m' avais ravies! Je suis Médée, enfin, pour toujourS!"IS

Não faz sentido! Como pode ela recuperar a inocência, a virgindade, a pureza, voltar a ser a Medeia anterior a J asão, à custa de um crime hediondo? Esta Medeia é radicalmente diferente daquela outra e é pura ilusão querer regressar ao passado, porque não há regresso de um infanticí- dio. A peça termina, assim, com um grave equívoco, que apenas serve para demonstrar a enorme perturbação que afecta o espírito de Medeia. É a ideia louca da renovação ou regeneração por um crime. As complexas moti- vações da Medeia euripidiana dão lugar aqui a uma paixão única de vingança por ódio, sem grandeza, porque a ligação entre Medeia e J asão já nada tem a ver com sentimentos nobres como o amor. O sentimento de honra ultrajada, que, por vezes, transfigura a Medeia euripidiana, está aqui reduzido à simples observância dum código de solidariedade entre cúm- plices, que já não partilham mais do que a cumplicidade. Esta Medeia de Anouilh é, como a de Eurípides, um cérebro doente, despojada, porém, dos sinais de humanidade que, apesar de tudo, ainda resistiam na princesa bárbara, posta em cena pelo tragediógrafo grego.

14 p.362.

15 p.397.

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A «MEDEIA» DE ANOUILH: VICISSITUDES DUM MITO GREGO 15

o

suicídio de Medeia, após o infanticídio, culmina este processo de destruição, iniciado na Cólquida, no passado longínquo em que o amor parecia tudo justificar. Muitas foram as vítimas que ficaram a assinalar este percurso de morte, que tem o seu epílogo no interior duma roulotte, com estacionamento consentido apenas nos arredores de Corinto. E será a Ama, que Medeia tentou em vão arrastar também para a morte, que dirá as palavras decisivas na cena final:

"On n' avait plus le temps de m' écouter moi. J' avais pourtant quelque chose à dire. Aprês la nuit vient le matin et ii y a le café à faire et puis les lits. Et quand on a balayé, on a un petit moment tranquille au soleiI avant d'éplucher les légumes. C'est alors que c'est bon, si on a pu grappiner quelques sous, la petite goutte chaude au creux du ventre. Aprês on mange la soupe et on nettoie les plats. L'aprês-rnidi, c'est le linge ou les cuivres et on bavarde un peu avec les voisines et le souper arrive tout doucement ...

Alors on se couche et on dort."16

Isto significa, diz K. Hamburger, que "perante a eterna vida da natureza e o ritmo tranquilo da vida, a discussão, a paixão, a desgraça e a felicidade da existência humana perdem o sentido."!7

Não creio que seja bem assim. A paixão, a desgraça, a felicidade, as vicissitudes da existência humana têm sentido quando se projectam num quadro de valores que exigem do homem uma definição clara dos seus objectivos de vida. O caso de J asão e de Medeia, por mais subtilezas que se empreguem, não é paradigmático; é abusivo tirar dele ilações que se apliquem à existência humana em geral. Há que o reduzir às suas pro- porções de destino humano muito particular. A partir daqui poderá chegar- -se a uma compreensão do drama.

Também não faz muito sentido, aqui tem razão K. Hamburguer, extrapolar desta problemática específica para questões de ordem geral como os direitos do indivíduo face à comunidade. A relação de Medeia com a comunidade há muito que se rompeu.

Quanto à discussão sobre se a Medeia é ou não um drama de amor ou a tragédia do casamento, é possível pôr a questão em relação ao drama de Eurípides, não em relação ao drama de Anouilh, cuja problemática é mais restrita porque se cinje à relação de um par, unido no pres.ente apenas por laços de participação cúmplice no derrube de barreiras éticas e sociais. Os filhos há muito que deixaram de desempenhar aqui qualquer papel. Medeia, num rasgo de perfeita anormalidade, só vê neles cálculo e perfídia. No que

16 pp. 398-9.

17 Op. cit., p. 168

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toca a Jasão, nem sequer o sofrimento pela morte dos filhos ajuda à sua redenção (como sucede em Eurípides), porque o seu tema agora é outro:

cansado de marginalidade, aspira à tépida emoção dos jogos do poder, praticado sem ilusões. A vingança de Medeia revelou-se afinal gratuita, inútil. Não valeu a pena. Não será já o carro esplendoroso do Sol a trazer, de forma espectacular, a Â.úcrtç ex machina, será, pelo contrário, um carro de chamas a reduzir a cinzas duas vidas frustradas. Em tudo isto, nem um vislumbre de superação, nenhuma hipótese de encontrar uma saída. Em vão uma crítica esforçada faz voltar, repetidamente, a tribunal o processo de Medeia. O público ateniense parece ter proferido uma sentença definitiva.

As chamas e o fumo fecham completamente o horizonte. A Ama far- -nos-á despertar a todos deste pesadelo quando reconduz a acção ao plano da normalidade da vida, em que se fala do café da manhã, do arranjo dos legumes para a refeição, das colheitas que parece que vão ser boas ... E o Guarda observa simplesmente:"Faut pas se plaindre. TI y aura encore du pain pour tout le monde cette année-ci."'8 Assim termina a peça com um regresso às coisas e aos sentimentos elementares. Afinal vivemos num mundo em que é possível preocuparmo-nos, não apenas com coisas tão importantes como o respeito pela vida humana, mas até com coisas tão simples como a normal subsistência de toda a gente.

180p. cit., p 399.

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