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DA OBRA DE PROUST EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

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TALITHA FERRAZ DE SOUZA

CRIAÇÃO E SUBLIMAÇÃO:

UMA LEITURA INSPIRADA EM FREUD E RICOEUR DA OBRA DE PROUST EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

DOUTORADO : FILOSOFIA

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TALITHA FERRAZ DE SOUZA

CRIAÇÃO E SUBLIMAÇÃO:

UMA LEITURA INSPIRADA EM FREUD E RICOEUR DA OBRA DE PROUST EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia, sob a orientação da Profª Drª Jeanne-Marie Gagnebin.

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Banca Examinadora

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____________________________________

____________________________________

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RESUMO

Pensada como uma reflexão sobre a criação na arte, especialmente na literatura, a partir do conceito psicanalítico de sublimação, esta tese propõe-se a uma leitura da obra de Proust Em Busca do Tempo Perdido, visando a elucidação deste processo de criação.

O conceito de sublimação, embora passível de múltiplas leituras, permite a compreensão da criação na arte como um processo de “flexibilização” em relação a fixações originárias compulsivas, o que pode ser compreendido na obra proustiana como uma “busca do tempo perdido” que possibilita, através de um “tempo reencontrado”, a escrita literária.

Palavras-chave:

(5)

ABSTRACT

As a reflection on the creation in art, especially in literature, starting from the psychoanalitic concept of sublimation, this thesis presents for consideration the reading of Proust's work: In Search of Lost Time, aiming on the elucidation of this process of creation.

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Aos meus pais,

José Onofre de Souza (in

memoriam),

(7)

Daisy Lagatta de Souza,

por tudo,

(8)

AGRADECIMENTOS

À Comissão de Pesquisa do CEPE da PUCSP, pelo auxílio concedido de março de 2004 a março de 2005.

À Profª Drª Jeanne-Marie Gagnebin, minha orientadora, pelo estímulo a uma orientanda por vezes desanimada, pela sua acolhida pessoal e intelectual, e principalmente pelas suas observações sempre sensíveis e instigantes.

À Profª Drª Glória Carneiro do Amaral e ao Profº Drº Peter Pál Pelbart pela leitura, comentários e sugestões feitos no Exame de Qualificação.

À Sybil Safdié Douek, minha querida amiga, principalmente pela sua presença constante, mas também pela ajuda inestimável no cotejamento do texto original em francês com a tradução, inclusive por seus comentários, que foram apenas parcialmente transcritos neste trabalho.

À Julia de Souza Delibero Angelo, minha filha querida, não só por seu carinho e preocupação (exagerada) sempre presentes, mas também pelos seus argutos comentários (Por exemplo, sobre fazer uma tese ser um processo solitário: “não sei porque você se queixa de solidão: além da Jeanne-Marie, a Gugu lê, a Denize lê, a Ilana lê, a Graciela lê ...”).

A todos os meus amigos, pelo incentivo, mas especialmente aos que, com sua leitura (os que a Julia citou, mas agora dando o nome aos bois) puderam, não só interferir no meu texto, mas principalmente pelo seu encorajamento, me fazer persistir na sua conclusão: Sybil Safdié Douek, mais uma vez (juro que é a última!), Denize Rubano, Ilana Amaral e Graciela Codina.

(9)

Índice

Introdução... 1

Capítulo I A Sublimação... 8

Capítulo II Psicanálise e Literatura ... 27

Capítulo III O Início da Obra - Numa Xícara de Chá... 38

Capítulo IV A História Invisível de Uma Vocação... 47

I – Do Quarto à Biblioteca... 48

II – Ainda na Biblioteca – “Um Romance Familiar” ... 60

III – No Salão (e na cozinha!) – A Natalidade ... 71

Capítulo V “Frente à Obra” - Um Sujeito Modesto... 79

Capítulo VI Criação e Sublimação ... 88

Considerações Finais ... 107

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Introdução

“Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. (...) Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos.”1

Pensada como uma reflexão sobre a criação na arte, nos propusemos nesta tese a empreender uma leitura do texto de Proust, Em Busca do Tempo Perdido, a partir do conceito psicanalítico de sublimação.

Uma primeira questão diz respeito à escolha da obra de Proust como objeto da leitura proposta neste trabalho, leitura esta, enfatizamos, orientada para a questão da criação.

Em Busca2 constitui-se na verdade, como um exemplo privilegiado, para

esta reflexão, por ser o processo de criação exatamente seu tema, como comenta Leda Tenório da Motta:

“Sherazade abrindo nas Mil e uma noites a página do conto em que vira contista, esta (Em Busca do Tempo Perdido) é igualmente a história de um texto.”3

1 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora

Imago, vol. XXI, 1987, p. 98.

2 A partir deste ponto, utilizaremos a abreviatura Em Busca para a obra de Proust.

3 MOTTA, Leda Tenório da. A História de Um Texto. In: Marcel Proust.O Tempo Redescoberto

(11)

O processo de criação tematizado na obra, permite, e este é outro motivo para a escolha, uma aproximação com o conceito de sublimação, já que este pressupõe, como veremos, uma via regressiva, uma “busca do tempo perdido” também, pela importância que o “retorno do recalcado” representa no processo de sublimação.

Em relação ao conceito de sublimação, nos interessa apontar o horizonte no qual se inscreve, na tentativa de justificar nossa escolha.

Como fica claro na obra O Mal-Estar na Civilização, é a questão da busca da felicidade, propósito e intenção da vida, do ponto de vista humano4, a questão de fundo sobre a qual o conceito de sublimação será pensado:

“Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer (...)”5

E apesar de considerar este projeto temerário (“Ficamos inclinados a dizer que a inten(ção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluído no plano da ‘Criação’.”)6, Freud considera que não há como nos afastarmos dele – o

Princípio do Prazer, e mais tarde o Princípio da Realidade, é o que nos move7, segundo a Psicanálise.

4 A questão que Freud levanta, é sobre este propósito, mas referido àquilo que os próprios

homens mostram, por seu comportamento, como sendo sua intenção; e não sobre a questão mais geral “do propósito da vida humana”, do ponto de vista da religião.

5 FREUD, Sigmund. Op. cit., p. 94. 6 Idem, p. 95.

7 O que muitas vezes não é notado, é que o princípio da realidade ainda busca o prazer, ou a

satisfação, segundo Laplanche:

(12)

A citação escolhida como epígrafe desta Introdução, traz a possibilidade da sublimação como uma técnica “para afastar o sofrimento”8 (ao lado de

outras, como a “intoxicação”, “o aniquilamento dos instintos” como na ioga, a loucura individual ou “os delírios de massa” – por exemplo a religião – e a que Freud se refere logo após a sublimação: “a fruição das obras de arte”, obtida através da fantasia)9.

Mas como fica evidente na citação – “o destino pouco pode fazer contra nós” –, a sublimação representa um recurso poderoso, que produz satisfação e alegria genuínas, a partir da criação na arte ou na ciência – os dois exemplos privilegiados por Freud –, e que configuram uma possibilidade não só importante para o indivíduo, mas fundamental para a Cultura.

Dedicamos o 1º capítulo desta tese a uma discussão sobre o conceito de sublimação, na qual foi decisiva a leitura do texto de Joel Birman “Fantasiando Sobre a Sublime Ação”10.

A seguir, abordamos as relações entre literatura e Psicanálise, no capítulo de mesmo nome, introdutório à leitura propriamente dita da obra proustiana, a partir do capítulo “O Início da Obra – Numa Xícara de Chá”.

Este capítulo foi também o primeiro esboçado, inicialmente um pequeno texto apresentado ao final de uma das disciplinas cursadas no Programa de Filosofia para obtenção dos créditos do Doutorado, no qual o que nos moveu

(LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1988, p. 470).

8 Sobre a busca da felicidade, Freud considera que:

“Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses últimos.” (FREUD, Sigmund. Op. cit., p. 94).

9 Idem, p. 96, 97, 98, 99 e 100.

10 BIRMAN, Joel. Fantasiando sobre a Sublime Ação. In: Psicanálise, Arte e Estéticas de

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foi o famoso episódio de Em Busca, no qual Proust nomeia explicitamente o termo “felicidade”, em relação à sensação de saborear a madeleine

mergulhada na taça de chá fumegante (“E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica, mas a evidência de sua felicidade”11).

Nos pareceu vislumbrar, neste momento, uma relação entre arte e felicidade (intitulamos nosso Projeto inicial “A Arte Como Possibilidade de Felicidade”), que continuamos a considerar como existente, mas que não era tão direta como pensamos a partir desta primeira leitura.

O episódio da madeleine em si, concluímos por fim, quase nada nos diz sobre o processo de criação pela arte, e seu narrador também não se contenta com ela, o que indica o famoso parênteses ressaltado por Ricoeur em um texto que comentaremos adiante: “embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz.”12

Esta averiguação, que nos parece constitutiva do processo de criação, não por acaso, só acontece tardiamente em Em Busca, ao seu final, quando os temas da morte e do esquecimento se impõem, e é este enfrentamento que transforma a narração, segundo observação de Jeanne-Marie Gagnebin, em obra de arte:

“Só se tornou uma obra de arte, isto é uma criação que tem a ver com a verdade, porque se confronta com as dificuldades dessas revivências felizes, porque toma a sério a presença da resistência e do esquecimento, em última instância a presença do tempo e da morte. A elaboração estética e reflexiva, descrita nos parágrafos anteriores no seu duplo movimento de concentração e de distração, é imprescindível

11 PROUST, Marcel. Du côte de chez Swann. Volume I de: À la recherche du temps perdu.

Paris: Flammarion, 1987. Tradução de Mário Quintana: No Caminho de Swann. São Paulo, Editora Globo, 2001 (14ª edição), p. 49. (Du côte de chez Swann: “Et je recommence à me demander quel pouvait être cet état inconnu, qui n’apportait aucune preuve logique, mais l’évidence de sa félicité”, op. cit., p. 143).

12 Idem, p. 51. (Du côte de chez Swann: “ (quoique je ne susse pas encore et dusse remettre à

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justamente porque não há reencontro imediato com o passado, mas sim sua lenta procura, cheia de desvios, de meandros, de perdas que as frases proustianas mimetizam, atravessando as numerosas, diversas, irregulares e heterogêneas camadas do lembrar e do esquecer.”13

Ficou evidenciado que a questão da criação nos impunha uma leitura mais abrangente da obra de Proust, para a qual foram fundamentais dois textos de Paul Ricoeur.

O primeiro deles, a que já nos referimos (sem nomeá-lo), “Em Busca do Tempo Perdido – O Tempo Travessado”14 determinou uma mudança na

compreensão da obra, como também já comentamos. Além disto, inspirou um longo capítulo intitulado “A História Invisível de Uma Vocação”, em que tentamos explorar algumas possibilidades de interpretação de certas passagens de Em Busca, que a leitura do texto de Ricoeur nos suscitou.

O segundo texto de Ricoeur que nos influenciou, “A Identidade Narrativa”15, sugere que o processo de busca de um tempo perdido, na obra de Proust, constitui um sujeito narrativo (no capítulo “Frente à Obra – Um Sujeito Modesto”, abordamos algumas questões ligadas a esta noção) que consegue ao final, para usar uma expressão machadiana16: “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. Marcel, o herói de Em Busca, não é nem mesmo velho, mas doente e frágil, convivendo com presságios de morte, o que o coloca numa situação semelhante ao do narrador de Dom Casmurro. Mas se este inicia sua narração por esta motivação (“atar

13 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. O rumor das distâncias atravessadas. Revista do Departamento

de Teoria Literária. nº 22, Campinas: UNICAMP, p. 9.

14 RICOEUR, Paul. A la Recherche du temps perdu: le temps traversé. In: Temps et récit II – La

configuration dans le récit de fiction. Paris: Seuil, 1984. Tradução de Marina Appenzeller: Em busca do tempo perdido: o tempo travessado. In: Tempo e narrativa – Tomo II. Campinas: Papirus, 1995. Não podemos deixar de mencionar a impropriedade da tradução da expressão distance traversée por “distância travessada”, em vez de “distância atravessada” (“travessada” simplesmente não existe em português ou pelo menos não é dicionarizada).

15 RICOEUR, Paul. A Identidade Narrativa. [L’Identité Narrative, In: Revista Esprit nº 7-8

(juillet-août)], tradução de Maria da Glória S. Silveira (manuscrito).

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as duas pontas...”), não temos apenas, ao final de Em Busca, um projeto de uma obra ainda não realizada, mas uma obra acabada sobre o processo de criação, com todas as vicissitudes, confrontos e sofrimentos próprios deste processo, e também de alegria, prazer e consolação que a obra de arte pode proporcionar (não só ao seu autor, mas também, ao “amador”).

Finalmente, para o último capítulo, intitulado “Criação e Sublimação”, o texto de Franklin Leopoldo e Silva, “Bergson, Proust – Tensões do Tempo”17, com o qual nos deparamos ao final da elaboração da tese, foi decisivo, permitindo que, a partir de algumas considerações contidas no texto, esboçássemos algumas formulações conclusivas.

Uma última palavra, que diz respeito ao conceito principal abordado nesta tese, o de sublimação (e que veremos ser bastante controverso).

Num surpreendente comentário, feito num texto de 1910 (em que o conceito não havia ainda “amadurecido”), Freud termina suas Cinco Lições

com uma “admoestação” contra os possíveis excessos da sublimação. Depois de observar que:

“A plasticidade dos componentes sexuais, manifesta na capacidade de sublimarem-se, pode ser uma grande tentação a conquistarmos maiores frutos para a sociedade por intermédio da sublimação contínua e cada vez mais intensa. Mas assim como não contamos transformar em trabalho senão parte do calor empregado em nossas máquinas, de igual modo não devemos esforçar-nos em desviar a totalidade da energia do instinto sexual da sua finalidade própria. Nem o conseguiríamos. E se o cerceamento da sexualidade fôr exagerado, trará consigo todos os danos duma exploração abusiva.”18

Freud conclui:

17 SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson, Proust – Tensões do Tempo. In: Tempo e História. São

Paulo: Companhia das Letras, 1992.

18 FREUD, Sigmund. Cinco Lições de Psicanálise, In: Obras Completas. Rio de Janeiro, Editora

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“Não sei se da parte dos senhores considerarão como presunção minha a admoestação com que concluo. Atrevo-me apenas a representar indiretamente a convicção que tenho, narrando-lhes uma anedota já antiga, cuja moralidade os senhores mesmo apreciarão. A literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos habitantes se contam todas as espertezas possíveis. Dizem que possuíam êles um cavalo com cuja fôrça e trabalho estavam satisfeitíssimos. Uma só coisa lamentavam: consumia aveia demais e esta era cara. Resolveram tirá-lo pouco a pouco dêsse mau costume, diminuindo a ração de alguns grãos diàriamente, até acostumá-lo à abstinência completa. Durante certo tempo tudo correu magnìficamente; o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia seguinte devia finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia amanheceu morto o pérfido animal; e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar por quê.

Nós nos inclinaremos a crer que o cavalo morreu de fome e que sem certa ração de aveia não podemos esperar em geral trabalho de animal algum.”19

Esta tão pouco presunçosa “admoestação” com que Freud conclui seu texto, podemos dizer que se coloca na verdade a favor da vida, e não contra a sublimação.

Com a nossa escolha do conceito, para a compreensão do processo de criação, não pretendemos glorificá-lo: a sublimação não deve (e não pode) sobrepor-se à vida. Questão importante tematizada na obra de Proust, quando o narrador descobre que a vida (“minha vida passada”), é a “matéria da obra literária”20

19 Idem, p. 50-51.

20 PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Volume VIII de À la recherche du temps perdu. Paris:

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Capítulo I

A Sublimação

“A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem contruções auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os derivativos em mente quando terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade científica constitui também um derivativo dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental.”21

Nesta citação de O Mal-Estar, Freud afirma que, a fim de suportar a vida, existem medidas paliativas “que não podemos dispensar”, entre elas “derivativos poderosos que nos fazem extrair luz de nossa desgraça”22 Freud

21 FREUD, Sigmund. Op. cit., p. 93.

22 No texto original não existe esta expressão (“extrair luz”). A frase em questão poderia ser

traduzida (tradução proposta por Rafael Ventura, a quem agradeço) mais própriamente por “distrações poderosas que fazem com que não demos tanto valor a nossa miséria.” O trecho citado como epígrafe em alemão é o que se segue:

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cita Voltaire para ilustrar este ponto, concluindo que a ciência é um derivativo desta espécie.

A seguir, na citação, Freud fala explicitamente da arte, exemplo do que categoriza como “satisfações substitutivas”, que “são ilusões”, mas eficazes psiquicamente, nesta tarefa de suportar a vida, “graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental”.

Comumente, considera-se que nestes exemplos de sublimação – pois, como veremos, é deste processo que se trata –, haveria uma valoração em favor da ciência, exemplo privilegiado em detrimento da arte, ilusão consoladora e valiosa, mas ilusão (e sem dúvida, em vários textos de Freud, pode ser percebida esta apreciação).

No entanto, algo parece não se encaixar nesta categorização. Por que cargas d’água Freud citaria Voltaire, um filósofo, em relação a uma obra literária que costuma ser assimilada a um gênero específico, “o conto filosófico”, e cujo conteúdo nos exorta a “cultivar o próprio jardim”, para afinal ilustrar o que chama de “derivativos poderosos”, cujo maior exemplo seria a ciência?

Ou seja, por que Freud não usa, para ilustrar este ponto, um dos inúmeros exemplos gloriosos da própria ciência de que sua época era pródiga, e ao invés cita uma obra literária de um filósofo?

Uma leitura atenta do texto dissipa estas questões, pois Freud delimita claramente o âmbito do processo de sublimação:

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sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos.”23

Ou seja, a sublimação corresponde à criação, em qualquer âmbito artístico ou científico, e que se diferencia das anteriormente denominadas “satisfações substitutivas”, e que a seguir revelam-se como um processo passivo, de “fruição”:

“Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma intenção de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos internos, o procedimento seguinte apresenta esses aspectos de modo ainda intenso. Nele, a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores.”24

Voltemos à citação de Candide, citação aliás que exorta ao trabalho (“cultivar o próprio jardim” sem dúvida tornou-se posteriormente uma metáfora), já que no contexto do conto, trata-se de cultivar mesmo um jardim.

Sobre a questão do trabalho, diz Freud (numa nota de rodapé):

“Quando numa pessoa não existe uma disposição que prescreva imperativamente a direção que seus interesses na vida tomarão, o trabalho profissional comum, aberto a todos, pode desempenhar o papel a ele atribuído pelo sábio conselho de Voltaire. (...) Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à

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realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas só trabalha sob a pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis.”25

Freud hesita em considerar o trabalho como possibilidade de sublimação, já que em sua época (e também na nossa) o que prevalece é o trabalho alienado26. Mas, se na sublimação “se consegue intensificar

suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual”, por que, afinal, mesmo em relação ao “livremente escolhido”, “não se costuma fazer referência ao prazer que porventura ele proporcione?”.27

Mesmo o trabalho “intelectual” ou “mental”, muitas vezes também acaba, numa cultura que valoriza apenas a produção e a produtividade, por assumir um caráter de alienação: o que poderia, por exemplo, significar a expressão

25 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Op. cit., p. 99.

26 Não que o trabalho alienado tenha sido inventado pela revolução industrial: o trabalhador

que construiu as pirâmides, também não se identificava com aquilo que produzia. Mas costumamos dizer, é “trabalho escravo”. A ironia da expressão “trabalho livre” foi denunciada há muito por Marx.

27 Interrogado se gostava de seu trabalho, um dos personagens de John Updike respondeu:

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publish or perish, que preside o trabalho intelectual nas academias americanas?

Trabalho sem prazer. E prazer (ou “lazer”) como ausência de trabalho. Questão crucial, que, no entanto, escapa ao escopo deste ... trabalho.

No entanto, mesmo não aprofundando esta questão, em relação ao processo de “sublimação”, gostaríamos de salientar que nos interessa não apenas o que pode proporcionar em termos de felicidade pessoal, mas principalmente sua importância para a Cultura:

“Uma das grandes revelações de Freud foi a de que a civilização não se baseia apenas no recalque dos impulsos libidinosos, mas também, e de forma não menos importante, na sua canalização, em volume significativo, para finalidades criadoras – processo a que deu o nome de sublimação. Quando a necessidade de repressão e o mecanismo de repressão se rompem, parece claro que a civilização só pode florescer se os canais de sublimação forem constantemente ampliados e aprofundados, somente se as pessoas puderem encontrar escoadouros sempre novos para as suas energias latentes, e que também constituam fontes autênticas de satisfação.”28

Em relação à importância do processo de sublimação para a Cultura, se é pertinente neste contexto uma questão mais propriamente política, alguns autores têm apontado os perigos do declínio deste processo nas sociedades industriais (e pós-industriais), como podemos depreender deste comentário, que relaciona este declínio com o capitalismo:

“Mas, no capitalismo monopolista, é exatamente o contrário que ocorre: a totalidade do processo vital de sublimação está em perigo de colapso. Como interpretar de outro modo a perda de significação do trabalho, a insipidez estultificante do lazer, a degeneração do que recebe o nome de cultura, o fenecimento da atividade política como luta sobre o caminho a ser percorrido pela sociedade?”29

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Até este momento, falamos do conceito de sublimação como evidente. É chegada a hora de tentarmos estabelecer uma compreensão deste conceito, que possibilite a reflexão sobre o processo de criação na arte, tal como a encontramos em Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.

É um conceito polêmico (a sublimação) sobre o qual é necessário nos posicionarmos; é o que faremos aqui, desde já deixando claro que não se trata da formulação de uma nova leitura deste conceito.

Ao invés, enfocaremos as formulações de alguns autores, que julgamos possibilitar uma compreensão abrangente, e ao mesmo tempo sintética da questão da sublimação.

Iniciaremos com uma crítica bastante contundente (e também, como veremos, exemplar de uma certa leitura do conceito), formulada por Adorno30, que dirige um duro comentário ao conceito de sublimação:

“Os artistas não sublimam. Crer que eles não satisfazem nem reprimem seus desejos, mas transformam-nos em realizações socialmente desejáveis, suas obras, é uma ilusão psicanalítica; aliás, nos dias de hoje, obras de arte legítimas são, sem exceção, socialmente indesejadas. Antes, manifestam os artistas instintos violentos, de tipo neurótico, que eclodem livremente e, ao mesmo tempo, colidem com a realidade. Mesmo o filisteu, que imagina o ator ou o violinista como uma síntese entre um feixe de nervos e um destruidor de corações, está mais certo do que a não menos filistéia economia pulsional, segundo a qual os privilegiados filhos da renúncia se liberam criando sinfonias ou romances.”

Adorno termina estas considerações do seguinte modo, visando diretamente a figura de Freud:

30 ADORNO, Theodor Wiesegrund. Minima Moralia. Verbete 136 (“o exibicionista”). São Paulo:

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“A arte é tão hostil à arte quanto o são os artistas. Na renúncia ao objetivo pulsional a arte continua fiel a este, com uma fidelidade que desmascara o que é socialmente desejado, ingenuamente glorificado por Freud como a sublimação que, provavelmente, não existe.”

Talvez poucos adjetivos pudessem atingir Freud do modo como o fez Adorno, ao supô-lo “ingênuo”, e à psicanálise “criadora de ilusões”, quando aquele tantas vezes assinalou a Psicanálise como um saber que objetiva, nas palavras de Hélio Pellegrino, “curar o ser humano de suas ilusões”31.

Se esta fosse mesmo, a única forma de compreendermos o sentido do conceito de “sublimação”, nada nos restaria a não ser concordar com Adorno, e nos afastarmos de uma formulação tão ingênua, ilusória, e acima de tudo, conformista.

Na verdade, as dificuldades postas para a elaboração do conceito de sublimação, estão dadas desde o seu início, com o próprio Freud insatisfeito com sua formulação, como assinala Laplanche, ademais nos proporcionando um primeiro histórico do conceito:

“A sublimação é certamente uma das cruzes (em todos os sentidos do termo: ao mesmo tempo um ponto de convergência, de cruzamento mas também o que põe na cruz) da psicanálise e uma das cruzes de Freud. (...) o conceito de sublimação apresenta-se desde o início em Freud, desde 1895, com as cartas a Fliess. Mas, do começo ao fim, a sublimação será mais citada do que desenvolvida e analisada: não aparece tanto como um conceito, mas como indicador de um questionamento que era preciso fazer, tarefa a realizar, noção indispensável mas jamais “apreendida” no Begriff *. Dois momentos, entre outros, são testemunho disso: em 1915, Freud começa a elaborar um tratado de metapsicologia que deverá compreender uma dúzia de capítulos, entre os quais um texto, precisamente, sobre a sublimação. Esse texto, como alguns outros, aliás, nunca foi publicado, pois ele o destruiu; restaram apenas, escapando à vindita ou à insatisfação de

31 PELLEGRINO, Hélio. Ainda É A Cabeça Que Liberta O Corpo. [transcrição de conferência

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Freud, aqueles que estão atualmente publicados na coletânea intitulada

Metapsicologia, coletânea truncada pelo próprio Freud. Muito mais tarde, em 1930, em O mal-estar na civilização, é ainda diante da mesma tarefa inacabada que Freud se encontra. A satisfação sublimada, diz ele, possui “uma qualidade particular que um dia chegaremos a caracterizar do ponto de vista metapsicológico”. A compreensão da sublimação é remetida para o futuro, se bem que Freud dê prova de um grande otimismo com o seu “certamente”.”32 [(*) Begriff – conceito, idéia

básica]

Mas o que podemos considerar, mesmo provisoriamente, como sendo “sublimação”? Partiremos de uma definição elaborada por Laplanche e Pontalis:

“Processo postulado por Freud para explicar atividades humanas aparentemente sem relação com a sexualidade mas que encontrariam sua origem na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividade de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão foi sublimada na medida em que ela é desviada para uma nova meta não-sexual e visa a objetos socialmente valorizados.”33

Sobre esta definição de sublimação, Laplanche considera que:

“(...) introduz (num modo dubidativo: “postulado”, “encontrariam” etc.) numerosos elementos. Em primeiro lugar a relação entre sexual e não-sexual, com a questão da passagem de um ao outro; veremos, aliás, que tal relação deve ser apreendida nos dois sentidos – não apenas do sexual para o não-sexual, como aqui, mas também do não-sexual para o sexual – para termos um quadro verdadeiramente abrangente do problema. Mais especificamente, a noção de pulsão ou de energia libidinal, como aquilo que seria precisamente suscetível de transitar das atividades sexuais para as atividades não-sexuais. Por outro lado, enfim, o que também é essencial para Freud, uma referência à

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valorização social: ela está praticamente presente em todas as elaborações freudianas concernentes à sublimação.”34

Nestas considerações, Laplanche retoma os dois problemas propostos por Adorno em relação ao conceito: a questão da sexualidade e a questão do reconhecimento social.

Na tentativa de abordar estas duas questões, consideremos as formulações de Joel Birman, no texto “Fantasiando Sobre a Sublime Ação”35,

que embora apoiando-se em autores importantes que refletiram sobre o conceito de sublimação, constituem uma contribuição própria e instigante para seu esclarecimento. Na introdução deste texto, Birman comenta o propósito da sublimação:

“Estamos aqui diante de uma das caixas-pretas do pensamento freudiano. Por isso mesmo, não pode ser tematizado de maneira formalista e repetitiva, como se fosse algo líquido e certo. Existe um impasse real na idéia do sublimar, na medida em que a noção de dessexualização pulsional é problemática por múltiplas razões.”

A idéia de uma “caixa-preta” (parece que o conceito suscita muitas metáforas: poderíamos colocar esta imagem, ao lado da imagem da “cruz” evocada por Laplanche), é sugestiva no sentido de assinalar a importância do conceito de sublimação para a própria história da Psicanálise (já que “caixa-preta” tem como função registrar uma história) e as dificuldades envolvidas (encontrá-la, abri-la, interpretá-la). Ademais, já assinala a questão da dessexualização pulsional como problemática, tal como para Adorno.

Birman faz uma distinção importante, assinalando duas possíveis leituras do conceito a partir de vários textos de Freud, inicialmente destacando o texto de 190836, (o mais conhecido, e que parece embasar as considerações de Adorno):

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“(...) se pressupõe nesta matriz de pensamento que a sublimação implica uma dessexualização da pulsão. Vale dizer, para que se realize uma efetiva experiência de criação, necessário seria que o sujeito pudesse suspender qualquer veleidade erótica. Dito de outra maneira, o ato criativo pressuporia a suspensão do erótico, de maneira a conduzir a subjetividade para o horizonte da “espiritualização”. (...) Assim, existiria nesta suposição teórica a oposição radical entre criar e erotizar, de forma que para que a primeira experiência acontecesse necessário seria colocar a segunda entre parênteses. Portanto, a criação seria, rigorosamente falando, um ato de espiritualização, na medida em que o corpo erógeno seria colocado provisoriamente de lado e impedido de se manifestar.”37

É importante também mencionar, que esta primeira formulação do conceito, já é marcada pela insatisfação de Freud em relação a ela:

“Porém, desde que a enunciou formalmente o discurso freudiano mostrou-se já francamente insatisfeito com a solução apontada, indicando prontamente desde então os seus impasses e contradições que acabaram por conduzi-lo inequivocamente para uma segunda teoria da sublimação nos anos trinta.”38

Birman destaca o ano de 1915, referente ao qual é importante assinalar uma falta (a de um texto), mas que é também o ano no qual Freud (em outro texto) faz uma alusão ao conceito de sublimação, que é importante ser mencionada:

“O instinto sexual – ou, mais corretamente, os instintos sexuais, pois a investigação analítica nos ensina que o instinto sexual é formado por muitos constituintes ou instintos componentes – apresenta-se provavelmente mais vigorosamente desenvolvido no homem do que na maioria dos animais superiores, sendo sem dúvida mais constante, desde que superou completamente a periodicidade à qual é sujeito nos animais. Esse instinto coloca à disposição da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação.” (FREUD, Sigmund. Moral Sexual “Civilizada” e Doença Nervosa Moderna. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, vol. IX, 1987, p. 193).

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“Nos ensaios metapsicológicos de 1915 o discurso freudiano retoma o conceito de sublimação. Parece que, neste contexto, Freud teria escrito um texto original sobre isso, mas que teria sido perdido entre vários outros, restando apenas o que se referia às neuroses de transferência. Com esta perda a problemática da sublimação aparece apenas como uma alusão, em ‘As pulsões e seus destinos’.”39

Birman continua, ressaltando que nesta alusão, já é possível a indicação de uma outra compreensão para o conceito de sublimação:

“Nesta aparição fugaz, no entanto, a mudança no enunciado do conceito fica evidenciada, indicando uma outra leitura metapsicológica. A passagem em que isso se realizou se destaca precisamente, do ponto de vista metapsicológico, justamente porque naquela se diferenciam agora de forma nítida o recalque e a sublimação, como sendo dois destinos distintos da pulsão. O discurso freudiano indica com isso mais uma vez, se necessário é ainda insistir nisso, como não superpõe mais ambos os conceitos, como fazia no ensaio de 1908.”40

As conseqüências da distinção entre os dois conceitos são importantes:

“Portanto, se o recalque estaria na origem da produção do sintoma que, como formação de compromisso que seria, articularia os diferentes pólos da pulsão e da defesa, a sublimação implicaria na retirada da pulsão dessa situação. Isso porque pressuporia o retorno do recalcado como sua matéria-prima primordial, isto é, a suspensão do recalque estaria aqui em jogo. Vale dizer, estaria sugerido aqui que a sublimação

39 Idem, p. 111. (“As Pulsões e seus destinos” aparece com o título “Os Instintos e suas

Vicissitudes” na tradução da Edição Standard Brasileira. A alusão que Birman comenta é a que se segue:

“Nossa investigação sobre as várias vicissitudes pelas quais passam os instintos no processo de desenvolvimento e no decorrer da vida deve ficar confinada aos instintos sexuais, que nos são mais familiares. A observação nos mostra que um instinto pode passar pelas seguintes vicissitudes:

Reversão a seu oposto.

Retorno em direção ao próprio eu (self) do indivíduo. Repressão.

Sublimação.

Visto que não pretendo tratar aqui da sublimação e que a repressão exige um capítulo especial, resta-nos apenas descrever e examinar os dois primeiros pontos.” (FREUD, Sigmund. Os Instintos e suas Vicissitudes. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, vol. XIV, 1987, p. 147).

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se fundaria na erotização da pulsão, pelo viés precisamente do retorno do recalcado como sua materialidade.”41

O “retorno do recalcado” é um processo que pode ser aproximado das reminiscências descritas em Em Busca (abordaremos esta questão no capítulo VI), ficando desde já assinalada a importância deste retorno para o processo de sublimação.

Birman sugere a seguir, que é apenas com o surgimento do conceito de “pulsão de morte”42 de 1920, que “o conceito de sublimação e a concepção psicanalítica da criação não apenas ficariam mais evidentes, como também não se oporiam mais definitivamente ao erotismo.”43

Isto porque, no embate entre as duas pulsões, é possível, no psiquismo aliado a Eros, não somente a simples oposição à morte, mas também a criação:

“(...) diante da morte como possibilidade e imperativo real da condição humana, o psiquismo se valeria de duas modalidades complementares para a sua evitação e regulação, quais sejam, a erotização e a sublimação. Assim, erotizar seria uma forma verbal intransitiva do psiquismo no qual esse se oporia ao movimento do ser para a morte, pela ligação que seria promovida da força pulsional aos objetos de satisfação propiciados pelo outro. Sublimar, em contrapartida, implicaria a reutilização da força pulsional, agora erotizada, na criação de novos objetos de satisfação possível.”44

Esta formulação é preciosa para os nossos propósitos, tendo em vista a importância do processo de sublimação na “história de uma vocação” que Em

41 Idem, p. 112.

42 “[O conceito de pulsão de morte foi enunciado como forma de uma pulsão sem

representação e que se oporia nos seus detalhes à pulsão de vida, como modalidade ao mesmo tempo ligada e representada da pulsão, e herdeira, no registro metapsicológico, da força pulsional concebida como sendo antônima dos processos representacionais tal como foi enunciada no ensaio sobre “As pulsões e seus destinos”]” (Idem, p. 113-114).

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Busca representa, e que, como veremos, se resolve quando a “noção de tempo” – a possibilidade da morte e do esquecimento –, se impõe.

Enfim, é em 193245 que Freud formula explicitamente uma modificação

no conceito:

“Nas ‘Novas conferências introdutórias à psicanálise’ de 1932, o discurso freudiano afirmou que existiria na sublimação a criação de novos objetos de investimento e de ligação da força pulsional. O que implica dizer que, pela sublimação, existiria a criação de outros objetos para o circuito pulsional e não mais apenas a manutenção do mesmo objeto, como no ensaio de 1908.”46

Nesta nova leitura do processo de sublimação, é ressaltada sua “ruptura” com as fixações eróticas originárias (iniciado embora, como vimos, pelo “retorno do recalcado”):

“A hipótese de trabalho que proponho aqui é que a sublimação seria agora uma “ruptura” com as “fixações” eróticas originárias, pela mediação das quais o psiquismo teria se constituído “contra” o movimento primário para a morte, pela promoção e criação de novas ligações e objetos possíveis de satisfação. Por isso mesmo, a sublimação não seria uma forma de idealização, precisamente porque possibilitava o “triunfo” da vida contra a morte. Contudo, a erotização continuaria a ser a matéria-prima do processo sublimatório, mas uma erotização sem qualquer marca de idealização, presente no objeto de fixação originário.”47

45 Na Conferência em questão, denominada “Ansiedade e Vida Instintual”, Freud afirma que:

“As relações de um instinto com a sua finalidade e com o seu objeto também são passíveis de modificações; ambos podem ser trocados por outros embora sua relação com seu objeto seja, não obstante, a que cede mais facilmente. Um determinado tipo de modificação da finalidade e de mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos valores sociais, é descrito por nós como ‘sublimação’. (FREUD, Sigmund. Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, vol. XXII, p. 121).

Na verdade, a mudança é tão sutil, que possibilitou a seus tradutores ingleses afirmar que: “O conteúdo desse parágrafo é, na sua grande maioria, repetição da primeira parte de ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’.” (Idem, p. 122). Sutil, mas poderíamos dizer com Birman, decisiva, já que se trata da inclusão da possibilidade de novos objetos de investimento.

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Mas, este rompimento se daria com as fixações originárias, e não com Eros, representando então, diferentemente da interpretação de Adorno, uma “renovação do erotismo”:

“A sublimação seria agora, então, uma renovação do erotismo, pela reabertura que possibilita de novos campos de investimento objetal e de outras modalidades possíveis de ligação da força pulsional. A sublimação permitiria, pois, a “flexibilização” do circuito pulsional originário, retificando a “compulsividade” presente nas fixações originárias. Seria isso justamente que estaria presente na possibilidade de criação para a subjetividade, pois mediante aquela o psiquismo poderia se contrapor à “fixação” e à “repetição”. Estas estariam sempre presentes nas formas originárias de gozo, mas a sublimação indicaria “novas” possibilidades de gozar. Pelo movimento sublimatório, de ruptura com as fixações originárias, a “diferença” seria a marca por excelência do psiquismo que retificaria os traços do “mesmo” presentes nas fixações primordiais.”48

Podemos começar a compreender as objeções de Adorno ao conceito de sublimação, a partir de uma observação de Birman, feita anteriormente em seu texto, que aponta um desconhecimento, ou mesmo um recalcamento, em relação a sua segunda formulação (de 1932):

“É bem curioso constatar como o discurso psicanalítico pós-freudiano reteve a primeira formulação de Freud e recalcou a segunda, quando não a ignorou pura e simplesmente. Com a única exceção de poucos intérpretes de Freud, como Jacques Lacan e Jean Laplanche, que assumiram a versão freudiana final, a tradição psicanalítica focou a versão inicial e construiu a matriz de pensamento que sintetizei acima em linhas gerais. Nesta adesão ao enunciado inicial de Freud algo de fundamental se excluiu do discurso freudiano, que implicou uma concepção problemática do que seja a experiência psicanalítica.”49

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Se podemos compreender a primeira questão levantada por Adorno em seu comentário, como compatível com a primeira formulação freudiana sobre o conceito de sublimação, não podemos no entanto negar que esta é a mais conhecida e explícita. Uma outra leitura do conceito – que acreditamos absolutamente legítima –, foi proposta a partir de alusões diretas e indiretas, em textos não dedicados explicitamente à sublimação, já que um suposto texto sobre o tema (de 1915), como já foi comentado, teria se perdido (segundo Birman), ou sido destruído (Laplanche).

Retomemos agora a segunda questão levantada por Adorno, a da “valorização social”, que Laplanche observa estar “praticamente presente em todas as elaborações freudianas concernentes à sublimação”, e que Adorno coloca em termos de “realizações socialmente desejáveis”.

Quando Adorno observa que “nos dias de hoje, obras de arte legítimas são, sem exceção, socialmente indesejadas”, tem em vista a arte moderna (mas também inúmeros outros momentos da história da arte, em que as realizações artísticas não foram “socialmente desejadas”), que ainda escandalizava os salões de arte, na época em que o texto foi escrito (1951).

De fato, em relação à arte, Freud sempre deu mostras de um profundo conservadorismo, e mesmo de uma franca antipatia com relação à arte moderna, como podemos depreender deste comentário de Tânia Rivera, que no entanto aproxima os dois termos – arte moderna e Psicanálise:

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qualificar a “arte” dita moderna. Ao pastor e psicanalista Oskar Pfister ele demonstra uma franca intolerância em relação aos expressionistas e afirma que estas pessoas não têm o direito de ser designadas como artistas.”50

Aliás, o inverso não é verdadeiro, pois os movimentos de arte moderna, freqüentemente fizeram referências à Psicanálise:

“Principalmente a partir da Primeira Guerra Mundial, contudo, movimentos de vanguarda literária e artística farão referências explícitas à psicanálise. Em nome de um novo cânone estético, que se afirma por uma negação virulenta de todos os parâmetros vigentes e pela busca de uma expressão revolucionária que irromperia do inconsciente, alguns artistas se aproximaram das idéias de Freud. Um deles, o poeta francês André Breton, antigo aluno de psiquiatria que lançará em 1924 o primeiro Manifesto do surrealismo, terá um papel decisivo para a influência freudiana no meio artístico. Apenas em 1922 ele poderia ler algum livro do pai da psicanálise, visto que enfim eram publicadas as traduções para o francês da Psicopatologia da vida cotidiana e das

Conferências introdutórias à psicanálise, mas vários anos antes ele já afirmava que as idéias de Freud lhe causavam “emoções intensas”.”51

Mas, mesmo ingênuo como o supõe Adorno (e talvez o seja, em relação à arte moderna), Freud, amante das artes (mas invejoso do artista, como comentaremos no próximo capítulo), com certeza não desconhecia – e mesmo apreciava –, o caráter subversivo que a arte freqüentemente assume na história – e que talvez seja sua uma de suas principais funções.

Este caráter subversivo, no entanto, não é contraditório em relação à busca do que Laplanche denomina “valorização social”, pois a arte busca sempre um reconhecimento, mesmo que este reconhecimento não seja possível de uma forma imediata (e mesmo que muito tempo, até mesmo séculos, afastem a obra de sua compreensão por outrem), mas cuja busca é sempre legítima.

(33)

O que Adorno visa criticar aqui, é uma compreensão da sublimação como um processo capaz de transformar desejos em “realizações socialmente desejáveis”, ou seja, naquilo que o social – nossos pais, as instituições –, desejam. Como “bons meninos” então, devemos abrir mão de nossos desejos – muitas vezes transgressivos –, “sublimá-los”, transformando-os em “boas ações” socialmente aprovadas.

Esta crítica de Adorno, nos parece, é extremamente relevante, no sentido de alertar-nos sobre o perigo que ronda o conceito de sublimação, de transformar-se um apelo ao conformismo.52

A segunda questão levantada por Adorno, como podemos depreender deste comentário de Birman, também se ligaria ao texto de 1908, em que Freud pela primeira vez descreve o processo de sublimação:

“(...) tal suspensão erótica, que materializaria o tal ato de espiritualização, seria um esforço da ordem da “civilização”. Pressupõe-se, pois, que o processo civilizatório se daria na direção da espiritualização e contra a erotização. Com efeito, a dita civilidade espiritualizante seria, enfim, inscrita no registro da “ordem” que se contraporia à “desordem” do sexual.”53

Ou seja, haveria uma ligação íntima entre uma “espiritualização” que o processo de sublimação supostamente permitiria, e a existência de uma “ordem” avessa ao sexual no processo civilizatório.54

52 Seria fácil simplesmente invertermos a crítica de Adorno a Freud, chamando-o ingênuo, e

declararmos que neste ponto Adorno é que o é, ao desconhecer as formulações freudianas posteriores a 1908 sobre o conceito de sublimação, que possibilitam uma outra leitura do conceito. Mas não é isto que importa, e sim o alerta inestimável de Adorno sobre o perigo de uma certa leitura do conceito, que nos incentivou a buscar esta outra leitura.

53 BIRMAN, Joel. Op. cit., p. 99.

54 É no texto “Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna”, de 1908, que Freud

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Mas também em relação a esta segunda questão levantada por Adorno, é possível uma outra leitura, que privilegie o reconhecimento social, não de um ponto de vista exclusivamente narcísico (para o qual a simples adequação ao “socialmente desejado” seria a meta), mas sim do da busca do reconhecimento “pelo outro ou pelos outros”, como sugere Laplanche nestas considerações que faz em forma de questões:

“Essa noção de uma valorização social desemboca num duplo questionamento: primeiro, saber se essa valorização social é capital na própria definição de atividades sublimadas, o que leva principalmente a interrogar sobre o campo da sublimação e seus limites: uma atividade não-valorizada – supondo-se que isso exista –, um hobby, uma idéia fixa, um colecionismo aberrante, será uma sublimação da mesma categoria de uma atividade culturalmente reconhecida? E, se não são sublimações, será necessário um outro conceito para dar conta delas? Por outro lado, supondo que se deva reter essa dimensão de valorização social, como compreendê-la, como compreender que ela seja suscetível de marcar o próprio processo psíquico? O que está em questão será a utilidade para a sociedade, será, de modo mais profundo, o “reconhecimento” pelo outro ou pelos outros, será o valor de comunicação e até mesmo o valor de linguagem?”55

Não pretendemos, é claro, responder neste capítulo a estas questões tão complexas, que nos parecem todavia tão ricas, e que sugerem que até mesmo a comunicação e a linguagem talvez tenham algo a ver com a sublimação.

Mas nos parece importante assinalar como fundamental, na sublimação, a busca de uma “valorização social”, mesmo que neste processo, esteja envolvida uma atividade “desvalorizada” (supondo, como diz argutamente Laplanche, que exista “uma atividade não-valorizada” – por quem?): a própria arte, a ciência, muitas vezes o ensino, não são atividades assim, em determinadas sociedades, ou épocas?

(35)

Neste sentido, a busca da valorização social pode implicar, na melhor das hipóteses, num questionamento dos valores sociais vigentes numa determinada cultura. Busca esta, inegavelmente ligada ao narcisismo, mas que neste caso opõe-se à mera reprodução dos valores estabelecidos. Busca de reconhecimento social, mas não a qualquer preço.

Retornando ao início desta reflexão, podemos concordar com o conselho ao final de Candide, lembrado por Freud, no sentido (agora metafórico) de “cultivarmos nosso próprio jardim”.

(36)

Capítulo II

Psicanálise e Literatura

“Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognósticos, e ainda me causa estranheza que os relatos de caso que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, falte-lhes a marca da seriedade da ciência. Tenho de consolar-me com a reflexão de que a natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, e não qualquer preferência minha.”56

Freud foi um amante das artes, e especialmente da Literatura. Mais do que isto: sua obra está impregnada de referências literárias. Este é um ponto sobre o qual não existe polêmica: biógrafos, críticos, leitores, são unânimes em constatar sua importância para a Psicanálise, e pessoalmente para seu criador. Sua obra, que passa por vários gêneros literários: ensaios (alguns sobre artistas ou obras de arte), autobiografia, esboços, conferências, lições e até mesmo uma obra que ele próprio considerava como “romance histórico”:

Moisés e o Monoteísmo. Além é claro, de seus escritos sobre casos clínicos.

Seriam estes últimos – os casos clínicos – literatura? É exatamente esta a questão que instiga Freud na citação escolhida como epígrafe deste capítulo, que estranha (ao discorrer, em 1895, sobre a paciente Elisabeth Von R.) “que os relatos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, falte-lhes a marca da seriedade da ciência.”

Freud definia-se como um cientista, não um artista, e por isto seu pesar em relação a seus relatos de casos, que parecem contos, afastando-se do que ele considerava “seriedade da Ciência”.

56 FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora

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Em relação às artes (que admirava) e à filosofia (que temia, já que reconhecia seu pendor ao que chamava de “especulação”57), a atitude de

Freud é sempre uma atitude ambígua, ou até mesmo – utilizando um conceito psicanalítico –, uma atitude ambivalente.

Esta ambigüidade, dirigida ao romancista – por vezes mesclando admiração e inveja –, pode ser exemplificada pelo que escreveu a Arthur Schnitzler: “muitas vezes me perguntei com perplexidade, de onde o senhor poderia ter retirado este ou aquele conhecimento secreto, que eu havia adquirido através de laboriosas investigações.”58

Outro exemplo é a famosa frase sobre a feminilidade:

“Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e coerentes.”59

Podemos perceber nesta citação, a admiração de Freud pela poesia, só comparável a sua confiança no desenvolvimento futuro da ciência (neste trecho, seguramente a ciência psicanalítica); e pelos poetas – até mesmo reconhecendo as vantagens do artista, beneficiado com um “saber” que o cientista, “injustamente”60 apenas pode conquistar através de trabalho árduo.

57 (...) quando seu biógrafo Ernest Jones lhe perguntou o quanto lera de filosofia, Freud

respondeu: “Muito pouco. Quando jovem, senti forte atração pela especulação e refreei-a implacavelmente”. (GAY, Peter. Freud –Uma Vida Para o Nosso Tempo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 40). Em outro momento, no entanto, Freud confidencia a Fliess (Idem, Ibidem, p. 122): “Vejo”, escreveu numa carta de reflexões de Ano Novo, em 1º de janeiro de 1896, “que você, através do desvio da medicina, está alcançando seu primeiro ideal, o de entender os seres humanos como fisiólogo, assim como eu alimento em profundo segredo a esperança de atingir meu objetivo original, a filosofia.”

58 Citado a partir de GAY, Peter. Idem, p. 296.

59 FREUD, Sigmund. Feminilidade. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, vol.

XXII, 1987, p. 165.

60 Quando estava namorando Martha, sua futura mulher, Freud era um namorado ciumento, e

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Se é inegável a preocupação de Freud em sempre tentar circunscrever limites entre o método psicanalítico e o processo artístico (ou entre a Psicanálise e a Literatura), no entanto, em sua obra, nunca renunciou ao saber que pudesse estar presente nas artes, sempre demonstrando uma intimidade, em especial com a Literatura, referência constante em sua obra, expressa principalmente pelas inúmeras citações literárias que permeiam seus escritos, mas também na própria construção da teoria psicanalítica: quase não seria necessário lembrar Édipo-Rei na elaboração do conceito de “Complexo de Édipo”.

Inúmeros textos de Freud propõem-se a analisar obras de arte ou artistas: “Leonardo – Uma Lembrança de Infância” (sobre Leonardo da Vinci), “Moisés de Michelângelo”, “Gradiva” (sobre um romance de Jensen, que em sua trama inclui um afresco encontrado em Pompéia) e “O Tema dos Três Escrínios” (ensaio que trata da mitologia e do “Rei Lear” de Shakespeare para discutir um tema comum).

Também em seus textos sobre cultura (“O Futuro de Uma Ilusão” e principalmente “O Mal Estar na Civilização”), através do conceito de “sublimação”, Freud reflete sobre o valor da arte para a cultura. E este valor, para ele, não era nada desprezível.

Estas breves considerações, no entanto, não fazem inteiramente justiça à importância da Arte para Freud: em cada momento de sua vida e de sua obra, o recurso às artes encontra-se de alguma forma presente. Como fonte de inspiração, ou por outro lado, como síntese de alguma idéia proposta. E muitas vezes em sua vida pessoal, como fonte de consolação, que extraía do prazer estético que a obra de arte pode proporcionar.

(39)

considerava-se um cientista), deu-lhe muito prazer, e do qual sempre orgulhou-se.

Enfim, Freud também podia considerar-se um escritor, um artista portanto, e não somente o autor de uma obra que pretendia científica.61

Evidentemente, se os textos de Freud possuem qualidades literárias, isto não significa que não sejam textos científicos. Mas seriam mesmo, estes textos científicos?

É interessante lembrar, e isto é raramente mencionado, que seus textos anteriores à Psicanálise foram reconhecidos e considerados até hoje pela Neurologia: seus artigos sobre a “afasia”, e a denominada “paralisia cerebral infantil” por si já garantiriam a Freud um lugar entre os cientistas.62

Mas, com relação à Psicanálise, poderíamos dizer que os textos de Freud, que a fundamentam, seriam científicos?

Não pretendemos responder a esta difícil questão63, que nos parece extrapolar os objetivos deste trabalho. Hoje, muitos psicanalistas não consideram problema “renunciar” ao estatuto de ciência para a Psicanálise. Como podemos exemplificar por este comentário de Fábio Herrmann:

61 Os próprios termos da escolha do nome de Freud para o prêmio evidenciam também o

reconhecimento do caráter científico da sua obra, o que deve tê-lo agradado bastante: A menção vinha cerimoniosamente assinada pelo prefeito de Frankfurt. “Com o rigoroso método da ciência natural”, iniciava ela, no tom um tanto exagerado desses documentos, “ao mesmo tempo interpretando audaciosamente os símiles cunhados por escritores de ficção, Sigmund Freud abriu caminho até as forças motrizes da alma, e assim criou a possibilidade de se reconhecer o surgimento e a construção das formas culturais e de se curar algumas de suas enfermidades.” (GAY, Peter. Op. cit., p. 517).

62 O neurologista suíço Randolf Brun observou em 1936 que “a monografia de Freud é a

exposição mais cabal e completa que jamais foi escrita sobre as paralisias cerebrais infantis (...) Foi uma realização magnífica e, sozinha, bastaria para garantir ao nome de Freud um lugar proeminente na neurologia clínica.” (GAY, Peter. Idem, p. 95).

63 A Psicanálise tem sido questionada principalmente a partir de uma visão empirista ou

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“Outro impasse é querer disfarçar a psicanálise em ciência. Isso sim, todos sabem que é bobagem, a ciência é que tem que “agüentar" a psicanálise.”64

Esta citação é interessante, pois aponta, através de uma “provocação” (“a ciência é que tem que ‘agüentar’ a psicanálise”), para o desafio que a Psicanálise representou (e ainda representa) para o método científico, especialmente em relação a questões que concernem (ou deveriam concernir) diretamente à Psiquiatria.

Que questões são estas? Significativamente, foram questões colocadas pela clínica, que se convencionou chamar depois de clínica psicanalítica, mas que no início daquilo que chamaríamos de Psicanálise, era uma clínica neurológica. As questões que desafiam ainda hoje a Psiquiatria, foram questões que desafiaram anteriormente o jovem Freud.

Lembremos que é com pesar que Freud admite que falte “a marca da seriedade da ciência” ao escrever seus casos. Nestas considerações, Freud demonstra respeito pelo que chama de “natureza do assunto”, dentro do mais estrito espírito científico. No entanto, o respeito ao objeto de estudo, é para ele, apenas fonte de consolação, já que ao levar em conta sua “natureza” (e não, como salienta qualquer preferência pessoal), perde-se “a marca da seriedade da ciência”, e as histórias clínicas ganham, a seu pesar, um caráter literário.

Neste fragmento (é a continuação da epígrafe), que faz parte dos primeiros escritos psicanalíticos, Freud dá-se conta do paralelismo entre literatura/discurso do paciente:

“A verdade é que o diagnóstico local e as reações elétricas não levam à parte alguma no estudo da histeria, ao passo que uma descrição pormenorizada dos processos mentais, como as que estamos acostumados a encontrar nas obras dos escritores imaginativos, me

64 HERRMANN, Fábio. Problemas na Orientação de Teses de Psicanálise. In: Revista

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permite, com o emprego de algumas fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma espécie de compreensão sobre o curso dessa afecção.”65

Aquilo que é tido como “ficção” (a obra de Shakespeare, Sófocles, Goethe, por exemplo, para citar só alguns autores caros a Freud), passa a ter o mesmo “peso” do discurso do paciente (que parece “ficção”, mas inicialmente tido como “não-ficção”, através da acepção original de “trauma”) na clínica psicanalítica.

Mas mesmo esta nova abordagem dos limites entre os dois termos é colocado à prova num segundo momento, quando Freud renuncia à chamada “teoria da sedução” (e resignifica o conceito de “trauma”66 através da admissão da denominada “fantasia psíquica”67). Os pacientes produzem não apenas

relatos que parecem “contos”, mas também produzem propriamente “ficção”: contam histórias improváveis, absurdas, inventadas, que não se baseiam totalmente ou que distorcem a realidade empírica (que poderíamos assimilar aqui, ao conceito de “não-ficção”). E a Psicanálise, por fim, acaba por acolher esta “ficção” peculiar, produzida não por artistas, mas por pacientes que puderam assim – escapando do juízo de “mentirosos” ou “simuladores” que pesava sobre eles – contar suas histórias e serem “escutados”, ou seja, estas serem reconhecidas como possuindo significado.

Inicialmente proposta em relação à histeria, a idéia da “fantasia” como realidade subjetiva, opondo-se à realidade empírica, passou a ser reconhecida também em relação às outras patologias (e mais tarde também à chamada “normalidade”), constituindo-se como a “pedra fundamental” do método psicanalítico: o ser humano é um ser que fantasia, e a Psicanálise faz deste

65 FREUD, Sigmund. Estudo sobre a Histeria. Op. cit., p. 172. 66 Veremos adiante o significado de “trauma”.

67 “[(...) Freud, que tinha começado por admitir a realidade das cenas infantis patogénicas

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