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RELAÇÕES DE POSSE NA METONÍMIA

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Academic year: 2021

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RELAÇÕES DE POSSE NA METONÍMIA

Mônica Mano Trindade*

1. INTRODUÇÃO

Neste trabalho, cujo objeto de estudo é a metonímia, pretendo analisar alguns casos desse fenômeno, atentando para o fato de que ora é considerado como um fenômeno lingüístico, ora não-lingüístico.

Isso levará à investigação de três fatos: a) a possibilidade de se estabelecerem limites entre o critério lingüístico e o pragmático na denominação de uma metonímia, uma vez que tanto o léxico quanto o contexto podem contribuir na formação de tal processo; b) o levantamento dos critérios e da teoria que possibilitam o tratamento de alguns casos de metonímia como polissemia, o que ocorre em universidade (prédio) e universidade (instituição); c) como esse problema é abordado no Léxico Gerativo.

Para tal, apresento os pressupostos da polissemia lógica, Pustejovsky (1995), com intuito de estabelecer uma relação entre os processos metonímicos e os polissêmicos. Outras abordagens são apresentadas, como a da semântica cognitiva, Croft (2000) e da interface semântico-pragmática, Numberg (1995).

Esse estudo leva à conclusão de que há, na língua, um tipo de ocorrência que não se enquadra nos casos clássicos de metonímia, mas também não é de natureza essencialmente pragmática. Finalizando, proponho a explicação desse tipo de enunciado: “eu estou estacionado” e “eu estou amassado”, pautando-me na estrutura Qualia da Teoria do Léxico Gerativo.

2. POLISSEMIA LÓGICA

Para Pustejovsky (1995), muitas palavras da língua têm mais de um sentido, propriedade esta geralmente denominada de polissemia. No entanto, a natureza dessa duplicidade de sentidos pode ser variada. Desse modo, o autor cita a distinção feita por Weinreich (1964) entre ambigüidade contrastiva e polissemia complementar, como:

(1) Ele está sentado no banco da praça. (2) Ele é cliente deste banco há anos.

(3) O banco não cobra taxa referente a cheque especial. (4) O banco foi construído em 1996.

Comparando (1) e (2), o termo banco refere-se, respectivamente, a assento e instituição financeira, portanto são acionados dois sentidos de base diferentes, fenômeno classificado de ambigüidade contrastiva. Já em (3) e (4), temos a ambigüidade complementar, pois trata-se de dois sentidos para o léxico que, na verdade, são manifestações do mesmo significado básico. Essa diferença entre ambigüidade contrastiva e complementar equivale à diferença tradicionalmente considerada entre homonímia e polissemia.

Interessa-me neste trabalho o segundo tipo de ambigüidade, uma vez que constitui o objeto de estudo de Pustejovsky (1995), que acaba por definir a polissemia lógica como uma

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“ambigüidade complementar sem alteração no item lexical, mas com sentidos superpostos e dependentes.” (p.28). Segundo o autor, podem ser descritas como casos de polissemia lógica as várias alternâncias que sistematicamente ocorrem em nomes, tais como:

ƒ Contáveis / não contáveis:

a) O fazendeiro adquiriu doze carneiros. (animal) b) Ele sempre come carneiro. (carne do animal) ƒ Recipiente / conteúdo:

a) Ele comprou três cervejas. (lata/garrafa) b) Ele tomou cerveja. (líquido)

ƒ Objeto / espaço:(figure/ground reversals) a) A porta está quebrada. (objeto) b) Todos saíram pela porta. (abertura) ƒ Planta / alimento:

a) É um plantador de figos. (plantação) b) Come figos aos domingos. (fruta) ƒ Processo / resultado:

a) O exame será realizado às 8:00. (o ato de examinar) b) Entregue o seu exame ao médico. (o produto concreto) ƒ Lugar / pessoa

a) São Paulo possui muitas avenidas. (território) b) São Paulo votou em Marta Suplicy. (população)

Com certeza, para cada grupo de alternância relacionado, poderíamos acrescentar uma série de outros exemplos encontrados na língua. Por exemplo, a alternância lugar/pessoa, que se refere a uma relação de sentidos entre cidade/população é encontrada em palavras como igreja, universidade, empresa etc.

Tal recorrência justifica o tratamento dado a esse tipo de polissemia como polissemia lógica, pois há “algo” incorporado à natureza lexical desses termos que os torna polissêmicos e esse é um fenômeno produtivo na língua. Logo, cria-se uma tipologia lexical na qual se prevê que podem ocorrer regras sistematizadas que acarretem a polissemia.

3. METONÍMIA X POLISSEMIA

É perceptível a semelhança entre a metonímia e as alternâncias citadas como casos de polissemia lógica. Tomemos como exemplo a relação lugar/pessoa presente em:

(5) São Paulo votou em Marta Suplicy.

Na visão tradicional, o enunciado acima é um exemplo de metonímia, pois o termo São Paulo está sendo usado em substituição ao termo população, uma vez que há uma relação de proximidade entre cidade e seus habitantes. Para Pustejovsky, a possibilidade de ocorrência de um enunciado como (5) se dá pelo fato de, diante de São Paulo ( ou de qualquer outro nome de cidade), podermos acionar esses dois sentidos lugar e população, presentes na estrutura lexical. Portanto, há uma teoria semântica que busca explicar a ocorrência desse fenômeno: teoria do léxico gerativo.

Com o intuito de propor uma teoria que seja capaz de estabelecer regras que expliquem a sistematicidade dos casos de polissemia, Pustejovsky (1995) expõe a teoria do léxico

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gerativo como um modelo vantajoso no que diz respeito ao aspecto criativo e econômico da língua.

Seu primeiro pressuposto diz respeito ao fato de que o que ocorre no âmbito da sentença está regulado pelo léxico e a caracterização dos itens lexicais passa pela existência de quatro níveis distintos para a representação da informação sintático-semântica:

ƒ Estrutura argumental (A) – especifica o número e o tipo de argumentos de um predicado.

ƒ Estrutura eventiva (E) – exprime o tipo de evento associado a uma expressão lexical.

ƒ Estrutura qualia (Q) – indica as principais características semânticas dos itens lexicais (os seus constituintes, função ou origem).

ƒ Estrutura de herança lexical (H) – estabelece a relação entre uma estrutura lexical e as outras estruturas lexicais numa matriz.

Assim, assume-se a posição de que a semântica lexical pode ser definida como uma estrutura constituída por quatro componentes

α = < A, E, Q, I >

e, entre eles, cabe neste momento apresentar a estrutura Qualia.

Trata-se de uma estrutura que representa a formação dos papéis semânticos da estrutura subjacente de um item lexical. Para Pustejovsky, é a estrutura que reúne a informação semântica importante para a representação dos elementos definidores de um objeto semântico, com base em quatro aspectos relacionais, que são os papéis qualia apresentados no quadro a seguir:

Quale Constitutivo Especifica a relação entre o objeto e seus constituintes.

Quale Formal Explicita a distinção do objeto dentro de um domínio mais abrangente.

Quale Télico Indica a finalidade do objeto.

Quale Agentivo Especifica a origem do objeto.

Desse modo, teríamos a seguinte representação do nome cidade nessa estrutura:

Quale Constitutivo: x é constituído por z Quale formal: x é uma divisão administrativa Quale télico: x serve para um conjunto de y morar

X:entidade administrativa Y:pessoas

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Quando, anteriormente, classifiquei o emprego do termo São Paulo (enunciado 05) como um caso de metonímia, uma vez que o nome do lugar se apresenta em substituição às pessoas que o habitam, fiz referência ao fato de lugar e pessoa serem sentidos presentes na estrutura lexical de cidade. Isso se explica com a representação da estrutura Qualia. Na verdade, no enunciado (05), acionamos duas das três facetas de sentido contidas no nome cidade: Y e Z.

4. METONÍMIA E SEMÂNTICA COGNITIVA

Na abordagem da semântica cognitiva, para a qual o significado é uma questão da cognição em geral, e não um fenômeno puramente lingüístico, dois mecanismos são privilegiados: metáfora e metonímia. Segundo Lakoff & Johnson (2002), metáfora e metonímia não são somente um recurso poético ou retórico, nem somente uma questão de linguagem, mas fazem parte da maneira como agimos, pensamos e falamos no dia-a-dia. Todavia, são processos de diferente natureza. Enquanto a metáfora tem a função de compreensão – um modo de conceber uma coisa em termos de outra – , a metonímia tem uma função referencial, pois permite-nos usar uma entidade para representar outra. Os autores não consideram as metonímias como ocorrências casuais ou aleatórias, e sim como conceitos sistemáticos, com exemplos representativos em nossa cultura: Assim, apontam como processos metonímicos as relações:

ƒ Parte pelo todo: “tenho um novo 8 válvulas” ƒ Produtor pelo produto: “ele comprou um Ford” ƒ Objeto pelo usuário: “o saxofone está resfriado hoje”

ƒ Controlador pelo controlado: “Napoleão perdeu em Warteloo”

ƒ Instituição pelos responsáveis: “a Esso aumentou seus preços novamente” ƒ Lugar peal instituição: “a Casa Branca não está se pronunciando”

ƒ Lugar pelo evento: “ não deixemos que a Tailândia se torne um outro Vietnã”

Ainda na perspectiva da semântica cognitiva, Croft (2000) nos apresenta um estudo sobre metáforas e metonímias e retoma o conceito dado por Lakoff & Turner segundo o qual “o mapeamento da metonímia, ao contrário da metáfora, ocorre dentro de um domínio matriz” (p.231). Logo, a noção de domínio tem um papel significativo na interpretação da metonímia. O autor explica isso através de enunciados que não traduzirei, mas farei uso de exemplos correspondentes em nossa língua.

(06) Luís Fernando Veríssimo é brasileiro (07) Luís Fernando Veríssimo é fácil de ler. (08) Folha de São Paulo é um bom jornal.

(09) A Folha de São Paulo comprou o Correio Popular.

Enquanto os termos destacados estão no sentido literal em (06) e (07); em (08) e (09), temos o processo da metonímia. No entanto, argumenta Croft, a obra de Veríssimo, assim como a instituição que produz o jornal são parte do conceito de {Veríssimo} e {Folha} respectivamente. Desse modo, a metonímia se constitui numa troca de domínios, mas dentro de um mesmo domínio matriz, fazendo realçar um domínio que era secundário no sentido literal.

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O autor aponta para o fato de que esse recurso de substituição é uma conseqüência da metonímia e também ocorre em outros casos de ambigüidade lexical, que não são considerados metonímia. Por exemplo:

(10) O livro é pesado

(11) O livro é sobre a história do Iraque.

Na semântica cognitiva, há dois domínios primários para livro: objeto físico e conteúdo semântico. O predicado ser pesado salienta um domínio (objeto físico) e o predicado ser a história do Iraque salienta outro domínio (conteúdo semântico). De um ponto de vista conceitual, os conceitos simbolizados são diferentes em (10) e (11), mas não há referência a duas entidades. Não se trata de um caso de metonímia, mas sim de polissemia, pois os elementos definidos em cada domínio são altamente intrínsecos e não fazem referência a entidades externas.

Portanto, ao comparar metonímia com polissemia, Croft sugere haver um continuum entre ambos os processos, representado no quadro abaixo:

BOOK Objeto físico

Conteúdo

Duas facetas do mesmo referente Polissemia WINDOW Objeto físico

Abertura

Dois sentidos não tão intrínsecos Processo não definido MAGAZINE Revista

Instituição Dois referentes Metonímia

Essa proposta difere da de Pustejovsky (1995), que define os três casos acima como processos de Polissemia Sistemática, pois as duas facetas mencionadas para cada termo (book, window e magazine) estão na estrutura de Qualia desses nomes.

Portanto, a diferença entre as duas abordagens está no fato de que enquanto a semântica cognitiva trata tais alternâncias como um sentido figurativo obtido por uma operação cognitiva, Pustejovsky atribui a explicação para o mesmo fenômeno a uma teoria lexical.

5. O LIMITE ENTRE O LINGÜÍSTICO E O PRAGMÁTICO

Gayral (1998) nos leva a questionar sobre os limites entre o que é significado lexical e o que é conhecimento enciclopédico. Assim, a autora discute se a teoria do léxico gerativo pode ser aplicada aos casos de metonímia e propõe alguns estágios para esse processo da língua.

1) Metonímia clássica: trata da metonímia já institucionalizada como polissemia. É o caso de palavras como cidade e universidade, cujas facetas são instituição, pessoas e prédio.

2) Metonímia “pragmática”: trata-se de uma metonímia só compreendida pelo contexto. É o caso de se referir a um cliente de uma lanchonete pelo prato que ele costuma pedir, como o omelete saiu. Tal enunciado faz parte de um contexto específico e só pode ser interpretado pelas pessoas que dele fazem parte, como os garçons.

3)Princípios estáveis de mudança de sentido: trata-se das alternâncias conteúdo/continente, processo/resultado, objeto/massa.

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Não há dúvida em se afirmar que no primeiro grupo há um processo de lexicalização, enquanto no segundo há um processo de contextualização. O que ainda não se consegue definir é em que processo inserir o terceiro grupo. Desse modo, a autora questiona como definir fronteira entre o que é metonímia e o que são diferentes facetas de um sentido.

Creio que esse último questionamento da autora já tenha sido respondido por Pustejovsky quando este relaciona tais alternâncias – conteúdo/continente, processo/resultado, objeto/massa como casos de polissemia lógica. No entanto, há uma discordância entre alguns autores, ao proporem uma explicação para a alternância objeto/massa (contável/não-contável).

Vejamos agora como são discutidos em Nunberg (1995) os casos de polissemia baseada na alternância contável/não contável, como apontado em Pustejovsky.

(12) Chegaram ao restaurante com a intenção de experimentar coelho.

Para Nunberg, coelho é uma palavra polissêmica, pois possui dois sentidos: 1. animal e 2. carne e todas as ocorrências de transformação de contável para não-contável (massivo) devem ser sistematizadas. Portanto, o autor dá um tratamento unificado a esse tipo de polissemia:

Regra Geral: contável não contável (massivo)

animal substância

carne pele (precisificações)

Já para Kleiber (1999), nem sempre um termo contável permite a transformação em um termo não-contável, o que o faz distinguir dois processos:

(13) Depois do acidente, havia coelho espalhado por toda a estrada. (14) A jaula está fedendo a coelho.

Segundo o autor, em enunciados como (13) e (14), há apenas o sentido original - o contável - para o item coelho (animal) que, em determinados contextos, é usado como não-contável. Já em

(15) Ele comeu coelho no restaurante

o item lexical possui um segundo sentido – o não-contável – (carne). Assim, enquanto em (13) e (14) há o processo de contextualização, trata-se o enunciado (15) de um exemplo de processo de lexicalização. Kleiber só assume a polissemia em casos lexicalizados.

Portanto, há uma diferença entre os autores em relação ao papel da pragmática em seus estudos. Para Nunberg, a transferência de sentido se dá por uma relação de relevância entre as propriedades, assim, ele vê a polissemia contextual e lexical juntas, em oposição a Kleiber, que separa a lexicalização da contextualização. Isso reforça a afirmação de que, em estudos

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sobre polissemia, não é tão definido o limite entre o que é um processo lexicalizado do que é um processo contextualizado.

Nunberg ainda discute o papel do léxico e do contexto em outros casos de polissemia. Para ele, o fato gerador de alguns tipos de polissemia é a transferência de significados (transfers of meaning) que, na verdade, também corresponde ao fenômeno tradicionalmente conhecido como metonímia.

Em enunciados do tipo (16) Eu estou estacionado

a propriedade de estar estacionado (P), que inicialmente é aplicada a carro, transfere-se para uma pessoa. Então, teríamos a passagem de uma propriedade P literal para uma propriedade P’ transferida:

P P’ | |

X Y onde X= carro e Y= pessoa.

Como deve haver relevância nessa relação entre x e y para que tal transferência de predicados ocorra – nesse caso, trata-se de uma relação de propriedade – e como a relevância depende do contexto da enunciação, tal fenômeno estaria no campo da Pragmática. Entretanto, algumas propriedades, por serem muito relevantes, passam a ser lexicalizadas, como é o caso da relação entre coelho – carne de coelho. Assim, Nunberg assume haver dois processos para a transferência de sentido : expressão contextualizada e expressão lexicalizada, sendo esta a mais específica e a que interessa para o estudo de polissemia lógica.

Penso ser relevante propor uma análise um pouco mais extensiva para o primeiro tipo de processo de transferência de sentido que, segundo Nunberg, explica-se por uma relevância pragmática, como ocorre com o enunciado (16).

6. RELAÇÃO DE PROPRIEDADE

Retomando o enunciado (16), já se sabe que há uma transferência de sentido, possibilitada pelo fato de haver uma relação de propriedade entre pessoa e carro, o que deve ser relevante, caso contrário, tal processo não ocorreria. Penso que o que deve ser investigado é se há sistematicidade na ocorrência de enunciados como eu estou estacionado. Além disso, se houver sistematicidade, quais são os critérios que a explicam.

Uma representação possível na estrutura Qualia para o enunciado (16) seria: Estar estacionado Estou estacionado

Formal (x) Formal (y)

Onde:

X = objeto (propriedade) Y = pessoa (proprietário)

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A essa formalização do predicado estar estacionado, aplica-se o processo de transferência P x

P’ y

o que resultaria em “y está estacionado”, equivalente ao enunciado (16)

Segundo Nunberg, a condição para a ocorrência de enunciados como (16) seria haver um processo de transferência de sentido permitido pela relação de posse existente entre x e y. O problema posto aqui é que o autor considera, como já citado, tal relação de posse como pragmática. No entanto, parece haver alguma sistematicidade nesse tipo de relação, que me faz pensar se haveria também uma regra que previsse tal sistematicidade.

O que me leva a tal afirmação é a ocorrência de outros enunciados aos quais a estrutura formal acima poderia ser aplicada, tais como:

(17) Estou amassado (x = roupa e y = pessoa) (18) Estou em reforma (x = casa e y = morador) (19) Estou sem carga/grafite (x = caneta e y = pessoa) (20) Estou com pneus novos (x=carro e y=pessoa) (21) Estou na galeria (x = quadro e y = pintor) (22) Estou em cartaz (x = peça de teatro e y = autor) (23) Estou nas melhores revistas. (x = foto e y = fotógrafo)

Em enunciados como (17), (18), (19) e (20), a propriedade atribuída ao objeto (x) passa a ser atribuída ao proprietário do objeto (y). Faço apenas uma observação sobre a interpretação de (20). Trata-se de um exemplo dado em Lakoff & Johnsosn (p.92) para classificar a metonímia parte pelo todo. Não discordo dessa classificação, apenas chamo a atenção para as duas leituras possíveis ao mesmo enunciado:

(20 a) Estou com pneus novos (estou de carro novo – parte pelo todo)

(20 b) Estou com pneus novos (meu carro está com pneus novos – transferência de propriedade X Y )

Assim, nos exemplos de (17) a (20), como já dito, é a relação de posse que propicia a transferência de propriedade. Cabe aqui ressaltar que até o momento estou me referindo à relação de posse como uma relação entre propriedade e proprietário, exemplificada pelas relações entre os objetos e as pessoas, sendo que as pessoas podem ser de fato donas dos objetos ou os objetos podem estar provisoriamente em poder das pessoas, como um empréstimo.

Entretanto, os enunciados (21), (22) e (23) exemplificam outro tipo de relação de posse. Quando um pintor diz, como em (21), estou na galeria, faz referência a um ou mais quadros, não como um objeto que ele tenha adquirido, mas como um objeto que ele tenha produzido ou criado. Logo, não se trata de uma relação proprietário/propriedade, mas de criador/objeto. Talvez essa seja uma relação de posse mais específica: autoria. E quando se trata de autoria, há a restrição de alguns enunciados. Por exemplo, o fato de eu possuir alguns livros, não me permite dizer estou na estante, enunciado exclusivamente permitido aos autores do livros. Muito ainda há para ser investigado sobre a relação de posse, mas parece-me possível, nos casos metonímicos ou polissêmicos, explicar posse como um elemento da estrutura lexical, inserindo-o na estrutura de Qualia. Desse modo, reformularia a estrutura anteriormente apresentada para:

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ESTAR ESTACIONADO

FORMAL (x) (y)

POSSE Y ∈ X

O objetivo aqui foi o de buscar alguns indícios de regularidades na estrutura de fenômenos lingüísticos que parecem, num primeiro instante, tão dependentes do contexto. Não pretendo com isso afirmar que haverá regras que regulem todo e qualquer exemplo de transferência de sentido, pois, há casos de natureza pragmática, pois, quando buscamos contextos, quase tudo pode ser explicado na língua. Um exemplo seria a mãe, diante de seu filho (bebê) dizer “estou chorão hoje” ou “estou tão bonito”. Pretendo afirmar apenas que é preciso buscar dados da língua e propor uma explicação para as ocorrências que demonstrarem algum tipo de regularidade. Alguns desses dados são apresentados na seção seguinte, agrupados em razão das especificidades que possuem.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizando este artigo, apresento aqui uma proposta de categorização do que observei a partir de um número reduzido de exemplos extraídos de textos falados e escritos. Para cada grupo, segue uma indicação de como é possível buscar explicações para o fato, com base na Estrutura Qualia.

Grupo 1:

P (x) P’ (y) X Y

01. estou estacionado carro pessoa 02. estou amassado roupa pessoa 03. estou em reforma casa Pessoa

Trata-se do processo de transferência, já explicado anteriormente, em que a propriedade atribuída a X (objeto) passa a ser atribuída a Y (pessoa), predominando a seguinte relação de posse: X ∈ Y.

Grupo 2:

P (x) P’ (y) X Y

04. estou sem grafite lapiseira pessoa 05. estou sem crédito celular pessoa 06. estou sem gasolina Carro pessoa 07. estou com pneus novos Carro pessoa 08. estou sem linha telefone pessoa

Nestes exemplos também há uma relação de posse entre X e Y, o que permite a transferência da propriedade de X a Y, no entanto, há uma diferença em relação ao grupo

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anterior, pois a propriedade que é transferida para Y é parte de X. Pode-se pensar aqui em uma explicação baseada na estrutura Qualia, uma vez que os elementos que sofrem o processo de transferência fazem parte do quale constitutivo de X.

Grupo 3:

P (x) P’ (y) X Y

09. estou na galeria quadro Pintor 10. estou em cartaz peça Diretor 11. estou nas melhores revistas fotos Fotógrafo

Nesse caso, o que permite a transferência da propriedade é uma relação de posse muito específica, denominada aqui de autoria, pois somente o autor da obra pode produzir enunciados como os apresentados acima. Trata-se de uma relação entre X e Y explicada também na estrutura Qualia pelo quale agentivo, dado que X é criado por Y.

Grupo 4:

P (x) P’ (y) X Y

12. estou congestionado Via nasal pessoa 13. estou no travesseiro cabeça pessoa 14. estou com a raiz preta cabelo pessoa

Neste grupo, temos os exemplos mais prototípicos da relação de posse, pois o que permite transferir propriedade de X para Y é o fato de X ser parte de Y. Assim, toda característica do corpo (parte) parece ser aplicada ao à pessoa (todo).

Grupo 5:

P (x) P’ (y) X Y

15. estamos sem eletricidade cidade pessoas 16. estamos sem governo cidade pessoas 17estamos sem produtos Microsoft empresa pessoas

Neste grupo temos os exemplos mais recorrentes em um corpus, que é o uso da pessoa nós representando a cidade ou a empresa. Nesse caso, Y ∈ X , pois Y é uma das facetas de X, que é sempre um termo polissêmico, contendo ao menos três sentidos: instituição, espaço físico e pessoas.

Partindo dessa análise prévia, pode-se afirmar que é possível pesquisar ocorrências que se enquadram em cada um desses grupos, bem como analisar a necessidade de se expandir a classificação das diversas relações existentes nos processos metonímicos denominados até o momento como transferência.

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REFERÊNCIAS

CROFT, William (2000). The role of domains in the interpretation of metaphors and metonymies. IN: The lexicon-encyclopedia interface. Bert Peeters, University of Tasmania, Australia.

GAYRAL, Françoise (1998). Créativité du Sens en Contexte et Hypothèse de Compositionalité. IN: Traitament automatique des langues. Vol.39, n1, 67-98

KLEIBER, Georges (1999). Problèmes de sémantique: la polysémie en questions.Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion

NUNBERG, Geofrey (1995). Transfers of Meaning. IN: Journal of semantics, 17, 109-132. PUSTEJOVSKY, James (1995). The Generative Lexicon. Cambridge: MIT Press.

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Referências

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