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As reflexões apresentadas neste artigo se baseiam nos resultados de uma investigação. Francisco Edviges Albuquerque

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A SituAção SociolingüíSticA doS ApinAYÉ de mAriAZinhA

Francisco Edviges Albuquerque

RESUMO

Este artigo trata da situação sociolingüística dos Apinayé de Mariazinha, língua pertencente ao Tronco Macro-Jê e a família lingüística Jê, falada por aproximadamente 207 pessoas, localizada no norte do Tocantins. Tem por objetivo descrever e analisar a atitude desses indígenas com relação à sua língua materna e à portuguesa, bem como descrever os usos e funções de acordo com os do- mínios sociais.

PALAVRAS CHAVE: Sociolingüística; Contato de Língua; Língua Apinayé.

A

s reflexões apresentadas neste artigo se baseiam nos resultados de uma in- vestigação sociolingüística desenvolvida por Albuquerque(1999;2007)1 sobre a atitude e o conhecimento dos Apinayé com relação a duas línguas em contato – Apinayé e Português – e sobre a facilidade lingüística, usos e funções das línguas de acordo com os domínios sociais, evidenciando quando, como, onde e por que esses falantes usam a língua materna ou a portuguesa nos diferentes domínios sociais, da comunidade indígena de Mariazinha, onde se concentra o maior número de não-índios casados com indígenas.

1 ALBUQUERQUE, Francisco Edviges. Contato dos Apinayé de Riachinho e Bonito com o por- tuguês: aspectos da situação sociolingüística. Goiânia, 1999, 132 p. Dissertação (Mestrado em Letras e Lingüística) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1999.

ALBUQUERQUE, Francisco Edviges. Contribuição da fonologia ao processo de educação in- dígena Apinayé. Niterói, 2007, 255 f. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.

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Mesmo diante da situação de conflito lingüístico-intercultural em que se encontram essas duas comunidades, os Apinayé tentam resistir lingüística e culturalmente, conservando sua interação verbal cotidiana, bem como as ati- vidades culturais tradicionais como: festas, rituais, moradia, cantiga de pátio, cantiga de rua e corrida da tora. Em geral, nessas comunidades, constatamos também grande atitude afetiva dos indígenas com a língua materna. De acor- do com Hamel (1988, p. 19)2, são observadas duas tendências que interferem no conflito lingüístico: por um lado a crescente extensão da língua majoritária e o desaparecimento da língua minoritária como tendência principal, e por ou- tro, certos elementos de resistência lingüística e cultural da comunidade como tendência subordinada. Esta tendência se expressa na resistência do sistema tradicional de comunicação e organização interna dos povos indígenas em con- servar a interação verbal cotidiana e as atividades culturais da comunidade.

O trabalho que aqui apresentamos é também o resultado de nossa expe- riência como pesquisador entre os Apinayé, durante um período de 12 anos de convivência, troca de experiências e aprendizado com esse povo.

Sociedade apinayé: contatos

Os primeiros contatos dos Apinayé com a sociedade majoritária acon- teceram no final do século XVIII, quando o rio Tocantins começou a ser na- vegado em todo seu percurso pelos bandeirantes paulistas que capturavam escravos nesse rio.

Segundo Nimuendaju (1983, p.1)3, os Apinayé foram encontrados pela sociedade dita “civilizada”, primeiro pelos jesuítas e mais tarde pelos bandei- rantes e pelos escravos fugitivos das minas de Goiás, os quais se estabeleceram nas margens do Araguaia e Tocantins.

Havia grande interesse em escravizar os indígenas para auxiliarem os via- jantes na passagem das cachoeiras do rio Tocantins, uma vez que só eles co- nheciam o rio e constituíam a única mão-de-obra da região. O final do século

2 HAMEL, R. E. La política del lenguaje y el conflicto interétnico: problemas de investiga- ción sociolingüística. In: ORLANDI, Eni Pulcinelli (Org.). Política lingüística na América Latina. Campinas: Pontes, 1988.

3 NIMUENDAJU, Curt. Os Apinayé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, 1983.

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XVIII, para Nimuendaju (1983, p. 04), marca a fase de contato permanente entre os Apinayé e agentes da sociedade nacional. Portanto, o ano de 1797 é a data da fundação do Posto Militar de São João das Duas Barras (hoje São João do Araguaia) e provavelmente quando pressões sobre o território indígena fizeram com que os Apinayé reagissem violentamente à expansão da sociedade regional. Foi quando tiveram suas plantações destruídas e, após o seu revide, tiveram suas aldeias bombardeadas com peças de artilharia.

Apesar da guerra e da varíola, naquela época, os Apinayé constituíam uma das tribos mais numerosas da região, distribuídos em quatro aldeias, somando um total de 4.200 indígenas.

De modo geral, como vem acontecendo, ao longo dos anos, com as comunidades indígenas no Brasil, os Apinayé também enfrentaram vários tipos de problemas, como a invasão de suas terras, seja por fazendeiros, posseiros ou pelos meeiros (aqueles que usam as terras indígenas para plantar de metade). Segundo a Administração Regional da FUNAI de Ara- guaína, atualmente, a alternativa encontrada pelos Apinayé tem sido a de se aliarem à FUNAI, criando os postos de vigilância do Pontal e Veredão, como estratégia nas divisas da reserva, para evitar novas invasões por parte dos fazendeiros da região.

A história do contato dos Apinayé com a sociedade envolvente é marca- da também por várias agências, Summer Institute of Linguistics, Missões No- vas Tribos do Brasil, CIMI (Conselho Indigenista Missionário), Vale do Rio Doce, Fundação Nacional de Saúde, SPI/FUNAI, Secretaria de Educação do Estado do Tocantins.

Segundo Da Matta (1976, p. 203)4, essas agências são capazes de exercer, nessas comunidades, coerção de modo direto no processo político das aldeias, cada qual com sua imagem do índio, imagem determinada socialmente pelos seus interesses sociais e políticos.

Finalizando esta seção, podemos concluir que, de acordo com as infor- mações obtidas in loco, estas agências estão interferindo direta e indiretamente no processo cultural, religioso e político da sociedade Apinayé. Para Da Mat- ta (1976, p. 228), todas as vezes que mudava a chefia das aldeias Apinayé,

4 DA MATTA, Roberto. Um mundo dividido: a estrutura social dos índios Apinayé. Petrópo- lis: Vozes, 1976.

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um grupo indígena procurava um representante do governo ou um agente da FUNAI para legitimar o novo chefe da comunidade.

A seguir, apresentamos os dados sobre os grupos sociais Apinayé, grupo familiar e as metades Kooti e Koore, assim designadas por eles.

grupos sociais apinayé

Os Apinayé contrastam a forma de suas aldeias com a das cidades do interior que, para eles, têm seu efeito urbano baseado em linhas de casas que crescem paralelamente a uma estrada ou a um rio, como é, sem dúvida, o caso de Tocantinópolis e dos povoados próximos às aldeias. Para Da Matta (1976, p. 67), “os Apinayé comentam que, enquanto as aldeias dos índios têm problemas para aumentar ou diminuir, as cidades dos não-indígenas crescem facilmente, pois trata-se apenas de colocar no final das linhas mais uma casa. Suas possibilidades de extensão são, portanto, infinitas aos olhos dos Apinayé. A forma urbana brasileira é considerada aberta, em oposição ao padrão Api- nayé que é considerado fechado.”

Segundo Da Matta (1976, p. 68), “falar em sociedade Apinayé, implica para esses indígenas tornar a aldeia como ponto de referência e, posterior- mente, fazer oposições entre grupos sociais e categorias utilizando um eixo diametral ou eixo concêntrico”. Para o autor, a ordem social é, pois, obtida pelas oposições e o dinamismo do sistema é dado pela passagem de uma a outra dimensão antitética.

Desse modo, falar sobre grupo social Apinayé é de certa forma, estabele- cer essas divisões e revelar o significado das passagens de um a outro domínio do sistema. Assim, Segundo Da Matta (1976, p.68), “um desses domínios é o da periferia da aldeia, apresentado pelas casas e grupos domésticos. O outro é o da praça, centro ou pátio central, representado pelos dois pares de metades cerimoniais, Kooti e Koore.”

grupo familiar apinayé

Para os Apinayé os dois grupos melhor definidos na vida cotidiana são a família nuclear (composta por maridos, mulher e filhos) e a família extensa uxorilocal (composta por um casal, os maridos e os filhos de suas filhas). Não

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há casas sem que haja pelo menos uma família nuclear, embora haja casas sem famílias extensas. Como conseqüência disto, segundo Da Matta (1976, p. 68), homens e mulheres solteiros não têm o direito de construir casas para si pró- prios, bem como não existe nenhuma residência erigida no centro da aldeia, destinada a servir de residência permanente para homens e rapazes solteiros. Os rapazes a serem iniciados apenas residem na mata, por algum tempo com sua classe de idade durante certo período, na época das iniciações.

Como nas demais aldeias Apinayé, em Mariazinha existem mais casas ocupadas por famílias extensas do que por famílias nucleares. Para Da Matta (1976, p. 68), a base da composição da família extensa é a residência uxorilo- cal para os homens, que assim deixam seus lugares em seus grupos natais para os maridos de suas irmãs. Deste modo, enquanto a família nuclear é um grupo onde pai, mãe e filhos se ligam uns aos outros de modo simétrico e comple- mentar, na família extensa o lado feminino é básico, pois é em volta dos laços mãe-filha que o grupo é formado.

Os Apinayé não possuem nenhum conceito específico para os dois gru- pos mencionados acima. Eles não falam em famílias extensas como grupos de parentesco em potencial, nem falam em famílias nucleares como unidades relevantes desses grupos. Cada casa “ikré” ou “nhõr-kwán” (morada, residên- cia) possui uma família nuclear ou extensa, sendo segundo Da Matta (1976, p. 74), concebida teórica ou formalmente como uma unidade social, política e potencialmente independente.

Por conseguinte, a casa, como a aldeia, fica motivada em termos de um lado cotidiano e privado, que é o lado de trás, e de um lado cerimonial e pú- blico, dos caminhos (ngó prú) que levam ao pátio. Portanto, os Apinayé, de modo coerente com essas divisões, chamam a parte da casa que sai para o pátio de “ikré kapême” (frente da casa) e “ikré katúd-lé” (parte dos fundos).

Deste modo, de acordo com Da Matta (1976, p. 75), nos rituais, é a par- te da frente da casa que é tomada como referência. Já a parte de trás é utilizada para as trocas diárias de comida e é lá que os Apinayé realizam seus trabalhos, como por exemplo, pilar arroz, descascar mandioca e extrair óleo do coco ba- baçu. A parte da frente da casa pertence à aldeia e está ligada diretamente ao pátio central. Para o autor (p. 76), desta forma, enquanto a parte dos fundos da casa está situada numa área marginal, nas fronteiras da sociedade Apinayé, a parte da frente está totalmente imersa no sistema social.

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O sistema social Apinayé é divido em dois campos complementares: o campo das relações domésticas, relacionadas em termos de substâncias co- muns que unem os seus familiares e o campo das relações sociais ou cerimo- niais, relacionadas em termos de obrigações rituais e políticas. Segundo Da Matta (1976, p. 95), esses dois campos se cortam na vida cotidiana, mas a sua concepção como sendo domínios divididos e separados é fundamental para uma interpretação do mundo social Apinayé.

Os apinayé e suas metades kooti e koore

Todos os índios Apinayé de ambos os sexos pertencem a uma dessas metades que lhes são transmitidas com os nomes. Muitas vezes, em virtude do recebimento de dois grupos de nomes, um índio pode pertencer às duas metades ao mesmo tempo. Para Da Matta (1976, p. 100), isso não acarreta nenhum problema de divisão de lealdade ou personalidade. Pelo contrário, eles tomam essa possibilidade de escolha como uma vantagem e desde que o indígena duplamente filiado escolha o seu grupo durante um ato cerimonial, ele tem todas as prerrogativas do grupo escolhido. Como esses grupos só en- tram em plena atividade durante as festas, a dupla escolha não constitui um problema e a definição da filiação fica relegada a uma decisão contextual.

De acordo com Nimuendaju (1983, p. 18), esses grupos são chamados de metades, porque esta é a ideologia utilizada pelos índios para conceituar essas divisões. Os Apinayé, como todos os outros Jê, concebem o universo como uma totalidade fechada, onde todos os seus elementos são ordenados dois a dois, uns em oposição aos outros.

De fato, para os Apinayé, o Sol e a Lua são as duas entidades masculinas que criaram o universo e a humanidade, quando resolveram descer para a terra que estava imersa no caos. Entretanto, os Apinayé sempre se referem ao Sol como o principal elemento. Foi ele quem teve a iniciativa de vir para a terra e é ele quem, geralmente, tem a primazia nas ações do mito que relata a criação do universo segundo esses indígenas.

Segundo Da Matta (1976, p. 102), quando se toma o mesmo mito de um ponto de vista mais geral, verifica-se que é inconcebível a existência do Sol sem a existência da Lua, do mesmo modo que na sociedade Apinayé é impossível se ter a metade Kooti (associado ao Sol e por ele criada) sem se ter o

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grupo Koore (associado à lua e por ela criada). Para o autor, quando se obser- vam os modos de interação dessas entidades, nota-se que elas tendem a uma hierarquização, com a preeminência do Sol e, conseqüentemente, do grupo Kooti, que tem as prioridades nos rituais. Mesmo assim ainda há complemen- tariedade, pois a metade Kolti se caracteriza como o grupo líder e a Koore como o grupo complementar dos seguidores.

Pelo que podemos observar, essas metades remetem ao universo Apinayé uma série de oposições cosmológicas e hierarquizadas dessas metades: dia/noi- te; homem/mulher; fogo/água; animais domésticos/animais selvagens; seca/ chuva; certo/errado.

Para Da Matta (1976, p. 104), a divisão Kooti e Koore, como conseqü- ência, realinha relações sociais em termos de princípios que atravessam toda a sociedade Apinayé e, assim, levam a orientação dos seus membros para as dimensões mais universais e coletivas do sistema. Segundo este autor, os Api- nayé ritualizam as relações categóricas de sua sociedade em pares opostos. Isto ocorre com o sistema de metades, quando a divisão em Kooti e Koore orienta as ações sociais da comunidade para categorias mais radicais e universais, como a oposição entre sexo, idade e status marital.

Muitas vezes, as metades Kooti e Koore aparecem como times destinados a trazer toras para a aldeia, num jogo que é característico de todos os Jê do Brasil Central. Segundo afirma Nimuendaju (1983, p. 106):

as turmas competidoras são formadas pelos homens e moças das duas metades kooti e koore. A corrida é feita pela mesma maneira que entre os Timbira Orientais e Xerente, do lugar da confecção das toras para a praça da aldeia, mas os Apinayé não usam, como os Xerente, uma para dois carregadores simultane- amente. Uma particularidade de certas corridas Apinayé é não depositarem o par de toras no chão quando se preparam para o início da corrida, mas sim sobre dois pares de forquilhas. Outra ocasião, porém, em que essa divisão em metades Kooti e Koore é fundamental, é, segundo Da Matta (1976, p. 105), durante as duas fases dos ritos de iniciação dos jovens Apinayé. Pois aqui não só tem a formação de times de corridas, como também o uso de uma série de dimensões que distinguem

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os dois grupos entre si, marcando as diferenças próprias de cada unidade. Logo que os jovens iniciados são separados de suas casas maternas, na primeira fase das iniciações, essa divisão começa a ser imediatamente focalizada.

Em síntese, o sistema Apinayé é dividido em dois campos complementa- res: o campo das relações domésticas que unem os membros da comunidade; e o campo das relações sociais ou cerimoniais, voltadas para as obrigações políti- cas e rituais. Para Da Matta (1976, p. 95), esses dois campos se cortam na vida cotidiana, mas a sua concepção como sendo domínios divididos e separados é fundamental para uma interpretação do mundo social dos Apinayé.

Nosso objetivo empreendido até aqui foi o de descrever a sociedade Api- nayé de modo geral. A seguir focalizaremos a aldeia de Mariazinha, objeto específico deste trabalho.

Situação lingüística da aldeia mariazinha

Nesta seção, faremos uma breve descrição da situação lingüística da al- deia Mariazinha, uma das mais populosas aldeias Apinayé. Nesta aldeia tam- bém fica uma sede do Posto Indígena (PIN), do qual mais cinco (05) aldeias fazem parte.

Aldeia mariazinha

Localizada na TO-126, que liga Maurilândia a Tocantinópolis, nas pro- ximidades do rio Tocantins, possui uma população aproximadamente de 207 índios, sendo 68 famílias formadas por pai e mãe Apinayé. Nessas famílias, todos falam apenas a língua materna nas interações do dia-a-dia. Esta conti- nua sendo a língua mais usada para comunicação nesse domínio e, em geral, é a primeira língua adquirida pelas crianças. Nesta aldeia há quatro famílias formadas por pai Apinayé e mãe Krikati. Como os Krikati entendem e falam a língua Apinayé e vice-versa, tanto os pais como as mães usam ambas as lín- guas na interação com seus pares. Os filhos adquirem tanto o Apinayé como o Krikati. As outras famílias são constituídas de pais não-indígenas e de mães Apinayé. Os filhos dessas famílias adquirem, simultaneamente, o Apinayé e o português nas interações com seus pais. Isso, de certa forma, está contribuindo para o enfraquecimento da língua materna, no domínio familiar e, conse-

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qüentemente, favorecendo o uso da língua portuguesa oral no domínio social, que antes era de exclusividade da língua Apinayé.

Por permitir o casamento de índios com não-índios, e devido a sua pro- ximidade das cidades de Tocantinópolis e Maurilândia, esta aldeia vem, ao longo dos anos de contato com a sociedade majoritária, perdendo seus aspec- tos socioculturais e lingüísticos, pois não pratica mais a corrida da tora, da flecha, as festas da batata, do milho, dentre outras. Apenas pratica o corte do cabelo, a festa do “paparuto” (bolo de massa de mandioca com carne verme- lha) e a nomeação das crianças, que é de responsabilidade das madrinhas.

Nesta seção, focalizamos os principais aspectos da situação lingüística da aldeia Mariazinha, com o objetivo de apontar semelhanças e diferenças exis- tentes no uso da língua materna pelos Apinayé nessas comunidades. Conforme pudemos constatar durante nosso trabalho, ao longo de 12 anos de pesquisa nessa comunidade, um fator que diferencia a aldeia de Mariazinha das demais aldeias Apinayé é a realidade sociocultural e lingüística de cada uma delas. Por essas razões e também por ser uma das aldeias Apinayé mais populosas, nossa análise e reflexões baseiam-se em informações e dados oriundos dessa aldeia. Situação escolar de mariazinha

A situação escolar de Mariazinha, em termos estruturais, difere bastante das demais aldeias. A escola em Mariazinha atende a 208 alunos, da 1ª série ao primeiro ano do Ensino Médio. Possui um corpo docente composto por 9 professores, sendo 4 índios e 5 não-índios. Conta ainda com 1 (um) coorde- nador pedagógico, 1 (um) coordenador financeiro, 1 (um) secretário, 1 (um) auxiliar de serviços gerais, 1 (uma) merendeira (índia).

Segundo Albuquerque2 esta escola possui uma arquitetura antiga, apenas com duas salas de aulas, sem ventilação adequada. Possui turmas numa casa indígena e no redondo – local das reuniões da comunidade.

Esta escola atende ainda aos alunos de 5ª série do Fundamental ao primeiro ano do Ensino Médio das aldeias Mariazinha, Riachinho, Brejão, Bonito, Botica e Girassol.

Os professores Apinayé usam a sua língua para se comunicarem com os alunos durante as atividades de leitura e escrita em sala de aula. Tanto as ativida- des de escrita em língua portuguesa quanto as atividades extra-classe relaciona-

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das à cultura indígena são também explicadas para os alunos em Apinayé. Já os professores não-índios estão atuando a partir da 4ª série; ainda as- sim, os professores Apinayé dão aulas de língua materna cinco vezes por sema- na, para explicar os conteúdos aos alunos, por causa da barreira lingüística.

Assim, de acordo com a Matriz Curricular (9394/96)5, todas as discipli- nas ministradas em sala de aula estão voltadas para os aspectos sociohistóricos e culturais da língua indígena, segundo o próprio ementário da referida matriz curricular. A exceção é apenas para língua estrangeira moderna que será oferta- da de acordo com o profissional habilitado (Inglês, Espanhol ou Francês).

Porém, verificamos ao longo de nosso estudo, que a escola Apinayé não tem respeitado a diversidade de ritmos, de processos de idade e de inserção do aluno em sala de aula. De acordo com o RCNEI (p. 78)6, a categoria “aluno”, na verdade, muitas vezes é usada para homogeneizar e anular a rica diversidade presente em qualquer sala de aula. O regime seriado, que procura agrupar os alunos pelo conteúdo da série, tendo sua aprendizagem limitada ao tempo do ano letivo, de março a dezembro, também acaba por negar essa diversidade. Na lógica, uma criança de seis anos, um jovem de 15 ou um adulto de 40 que não sabem ler estão todos na 1ª série, ou seja, começando seu processo de aprendizagem.

Segundo o RCNEI (p. 42), para que a educação indígena seja realmente específica e diferenciada, é necessário que os profissionais que atuam nas esco- las pertençam às sociedades envolvidas no processo escolar. É preciso, portan- to, instituir e regulamentar, no âmbito das Secretarias de Educação, a carreira do magistério indígena, que deverá garantir aos professores indígenas, além das condições adequadas de trabalho, remuneração compatível com as fun- ções exercidas e isonomia salarial com os demais professores da rede pública.

Partindo desses pressupostos, os Apinayé vêm lutando para que a educa- ção escolar, em suas aldeias, seja realmente diferenciada. Dentre as propostas apresentadas, por eles, está a proposta do calendário diferenciado, que já foi levado para apreciação junto ao Conselho de Educação Indígena do Estado do Tocantins e da Associação dos professores Indígenas do Tocantins.

5 SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO E CULTURA DO TOCANTINS. Ma- triz Curricular, Lei n 9394/96, da Gerência de Educação Indígena. SEDUC. Palmas-TO

6 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. Brasília: MEC,1998.

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Segundo Albuquerque (2007, p. 57), nesta escola havia pouco material escrito em língua Apinayé: cartilhas de alfabetização, livros de lendas e bíblias, produzidos por membros do Summer Institute of linguistics. Estas cartilhas fo- ram elaboradas há mais de 30 anos e não foram produzidas pelos próprios professores índios.

A educação escolar bilíngüe entre os apinayé de mariazinha

Conforme já relatamos, a educação escolar indígena nas comunidades indígenas brasileiras teve seu início em 1956, quando o Summer Institute of linguistics (SIL) inicia seu programa de estudo aqui no Brasil, em convênio com o Museu Nacional (1959), posteriormente com a Universidade de Bra- sília (1963) e com a FUNAI (1967). Segundo Leitão (1997, p. 59)7, esse Instituto desde então realiza trabalhos de análise e comparação das línguas indígenas brasileiras. Os estudos do SIL objetivavam criar para estas línguas um sistema de escrita e traduzir para elas materiais escritos de “educação moral e cívica e de caráter religioso”. Pretendia ainda, desenvolver “programas de educação e assistência social”, a fim de proporcionar aos indígenas melhores condições de vida.

De acordo com Cunha (1990, p. 87)8, a partir da década de 1970, o governo brasileiro, preocupado em estabelecer uma prática escolar indígena dentro das diretrizes das instituições internacionais, buscando melhorar sua imagem mediante a opinião pública mundial, incluiu a prática escolar indí- gena e o uso das línguas maternas no seu projeto de integração. A partir desta década, então, a FUNAI adota oficialmente a metodologia do ensino bilíngüe, além de iniciar uma reavaliação dos programas de educação escolar indígena anteriormente existentes.

7 LEITÃO, Rosani Moreira. Educação e tradição: o significado da educação escolar para o povo Karajá de Santa Isabel do Morro, Ilha do Bananal - TO. Goiânia, 1997. 297 p. Disser- tação (Mestrado em Educação Escolar Brasileira) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 1997.

8 CUNHA, Luiz Otávio Pinheiro da. A política indigenista no Brasil: as escolas mantidas pela FUNAI. Brasília, 1990. 129 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Brasília, Brasília, 1990.

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Leitão (1997, p. 59) afirma que, até aquele momento, a educação escolar indígena brasileira baseava-se nas tentativas de alfabetização das crianças indí- genas na língua portuguesa.

Cunha (1990, p. 95) informa que os técnicos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na década de 1970, chegaram a discutir a questão de escola indígena, no que se refere à sua necessidade de adequação às particularidades de cada grupo. Segundo o autor, a inviabilidade da implantação do ensino bilíngüe nas escolas indígenas era justificada pelos técnicos do SPI, com base na dificuldade de oferecimento de um tratamento lingüístico diferenciado a todos os grupos indígenas brasileiros, visto que seria necessário um grande número de especialistas que pudessem elaborar gramáticas nas línguas indí- genas, bem como de professores preparados para trabalharem com material didático bilíngüe.

A mencionada dificuldade para aplicação de uma política escolar indíge- na que atendesse às prerrogativas de uma educação que realmente contemplas- se todos os povos indígenas de nosso país levaram a FUNAI a firmar convênio com o SIL, visto que esta entidade dispunha de pessoal capacitado para rea- lizar trabalhos lingüísticos e para formar professores monitores, para atuarem nas áreas indígenas, de acordo com os desejos e necessidades apresentadas pelas autoridades de cada país onde viesse atuar.

Surge daí a figura do monitor bilíngüe, alfabetizado em português e na língua materna e preparado pelos lingüistas do SIL, para atuar nas séries iniciais nas quais ensinavam leitura e escrita na língua indígena, daí surge também o “escritor bilíngüe” responsável pela produção de textos em língua materna.

De acordo com o Relatório da FUNAI, os primeiros povos indígenas a serem favorecidos pelo projeto oficial de educação escolar indígena bilíngüe foram os Kaingang (Rio Grande do Sul); os Guajarara (Maranhão); os Karajá (Goiás e Mato Grosso) e os Xavante (Goiás e Mato Grosso), em 1972.

A educação escolar indígena entre os Apinayé foi introduzida na década de 1960, nas aldeias de São José e Mariazinha, por Patrícia Ham, membro do SIL, no então Estado de Goiás. Naquela época, as políticas educacionais, voltadas para os Apinayé, não eram diferentes daquelas oferecidas aos demais grupos indígenas brasileiros, que eram compatíveis às práticas pedagógicas desenvolvidas pelas escolas das comunidades rurais brasileiras.

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Após alguns anos da implantação da educação indígena nas escolas das comunidades Apinayé, segundo os relatórios da FUNAI, os primeiros mate- riais escritos nessa língua foram elaborados pelo SIL em 1962. De acordo com o referido relatório, à proporção que os estudos avançavam, novas carti- lhas e novas versões das cartilhas, já existentes, eram elaboradas. Esta data mar- ca a primeira edição da “Cartilha de História Apinayé”. Além deste volume, foram publicados outros cinco: Livro de lendas 1, Livro de lendas 2, Leitura Suplementar das Cartilhas e Introdução à Leitura e Livro de caligrafia. Após essas publicações, vieram outras cinco cartilhas de alfabetização, intituladas PUMEÞ KAGÁ PUMU, além dos Livro de Canções Novas na Língua Apinayé (livro de cunho religioso) e Aspectos da Língua Apinayé.

Muitos monitores Apinayé foram alfabetizados pelos lingüistas do SIL, para produzirem novos materiais escritos, que foram publicados posterior- mente. Esses livros foram utilizados nas escolas Apinayé pelos professores da FUNAI e pelos missionários que atuaram como professores nessas escolas até o ano de 2001, continuando a ser usados por muitos professores, especialmen- te, por aqueles ligados às religiões evangélicas.

Segundo Albuquerque (1999), a situação escolar Apinayé, ao longo dos anos de contato com a sociedade majoritária, vinha acontecendo de modo contrário aos anseios e interesses da comunidade. Esses indígenas têm vivi- do um processo de perda étnica, com seus valores culturais subjugados pela sociedade majoritária. Fatos como esses são apontados por Braggio (1989, p. 155)9, apoiada em Coelho dos Santos (1975, p. 43)10, quando aponta problemas com a educação escolar indígena (com algumas exceções) até por volta do fim dos anos 80.

Um dos mais contundentes problemas com relação à educação indígena é o de que o processo educacional utilizado nas comunidades indígenas é um dos principais vínculos de dominação da sociedade majoritária, já que está sujeita a um sistema educacional concebido e inspirado por aquela sociedade, portanto, carregado de seus valores ideológicos.

9 BRAGGIO, Silvia Lucia Bigonjal. Alfabetização como um processo social: análise de como ela ocorre entre os Kaingang de Guarapuava, Paraná. In: Trabalhos em lingüística aplicada. Campinas: UNICAMP, v.3, n. 14, 1989.

10 COELHO DOS SANTOS, S. Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1975.

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Desta forma, a escola ao invés de promover a autonomia desejada, vinha gerando conflito, fazendo com que muitas crianças desistissem da escola. Isto contribuía de modo significativo para que algumas séries deixassem de existir.

Albuquerque (1999), afirma que no ano de 1999, apenas a aldeia São José possuía a 4ª série. No seu total, esses povos eram atendidos por 7 escolas. A população atendida era de 350 alunos. Havia um total de 21 professores, sendo 12 índios e 9 não-índios.

No entanto, com a implementação de uma política pedagógica ado- tada pelo Estado do Tocantins, com o princípio básico da conquista da autonomia socioeconômica e cultural dos povos indígenas, e com a im- plantação do Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Indígena Apinayé, este quadro tem mudado muito nos últimos anos, uma vez que o número de escolas tem aumentado e o número de evasão e reprovação vem dimi- nuindo significativamente.

Atualmente, todos os estudantes Apinayé têm o privilégio de estudar em escolas de suas próprias aldeias, uma vez que possuem duas escolas com Ensi- no Fundamental e Médio, funcionando nas aldeias de São José e de Mariazi- nha. Das 15 aldeias Apinayé, 13 possuem escolas bilíngües, embora ainda não estejam funcionando regularmente. A aldeia Mariazinha é uma das que mais possui material escrito em Apinayé e uma das que possui educação bilíngüe há mais tempo.

A partir de 2001, com a implantação das ações do Projeto de Apoio Pedagógico e Educação Indígena Apinayé, os próprios professores Apinayé de Mariazinha passaram a elaborar o material didático em sua língua e em português.

O Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Apinayé vêm promoven- do nas escolas Apinayé, no sentido de garantir aos professores, aos próprios alunos e membros da comunidade, ações que envolvem os conhecimentos sócio-históricos e culturais dessas comunidades. Em tais ocasiões, os Apinayé discutem temas referentes à língua, à cultura e à história do seu povo. Isto acontece, especialmente, durante as atividades de elaboração do material didá- tico a ser utilizado na escola, como, por exemplo, na elaboração das cartilhas pedagógicas de alfabetização, narrativas, músicas e da cartilha sobre a medi- cina tradicional Apinayé, além dos livros de Matemática, Ciências, História e Geografia desses povos.

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As ações do Projeto vêm acontecendo duas vezes por ano nas aldeias Mariazinha e São José, uma vez que as escolas dessas aldeias possuem uma estrutura física mais adequada para atender a todos os professores índios e não-índios envolvidos no Projeto.

As ações do Projeto de Formação de professores Indígenas do Tocantins, com o suporte do Projeto de Apoio Pedagógico, frente ao número crescente das aldeias e à criação de novas escolas, vêm contribuindo para minimizar os problemas relativos à educação escolar Apinayé.

Aquisição de línguas pela criança apinayé

De acordo com nossa pesquisa, as crianças Apinayé de Mariazinha ad- quirem a sua língua materna de acordo com o padrão lingüístico da língua de seu povo. Portanto, quando elas estão adquirindo a língua materna, são sempre orientadas por seus familiares, especialmente, pelo grupo materno, mãe, avó e tias.

De modo geral, todas as crianças Apinayé de Mariazinha entendem e fa- lam a sua língua materna, embora haja crianças bilíngües, (filhas de casamen- tos mistos entre índios e não-índios). Nesta aldeia, tanto os homens quanto as mulheres indígenas, independente do gênero e de faixa etária, entendem e falam a língua indígena, uma vez que é a primeira língua adquirida e a mais usada nos domínios sociais dentro da aldeia, em suas interlocuções.

Portanto, podemos afirmar que a língua indígena nessa aldeia continua sendo a mais falada pelas crianças. Isto certamente se dá em função da organi- zação social Apinayé e da situação lingüística das mulheres, especialmente, do grupo materno, que cuida das crianças. Essa língua não só é a mais falada, como é a mais usada pelos indígenas nas relações intragrupos. Porém, como existem, nesta aldeia, vários casamentos mistos, os filhos desses casais estão adquirindo sucessivamente o português e o Apinayé. Isto, gradativamente, vem contribuin- do também para o enfraquecimento da língua indígena, uma vez que o portu- guês está ocupando as funções que antes eram exercidas pelo Apinayé.

Nessa aldeia, tanto as mulheres como as crianças interagem também com os não-índios, através da língua indígena. Confirmamos, pois, que a maioria delas fala um pouco a língua portuguesa, mas a entendem. Isto ge- ralmente ocorre nas interações entre os missionários e com os funcionários

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da FUNAI mais conhecidos (Chefe de Posto, motorista, funcionários da FUNASA e professores da SEDUC). Isto tem mostrado uma atitude positi- va dos Apinayé, na tentativa da manutenção da língua e da cultura indígena na aldeia. Já a língua portuguesa é usada em situação específica nas relações intergrupos, em que os não-indígenas não dominam, nem falam um pouco a língua desse povo.

Já no contexto doméstico e na vizinhança, a língua mais usada para falar com as crianças continua sendo a língua indígena, embora haja um percen- tual menor para ambas as línguas (Apinayé e Português). Isto significa que algumas mães estão usando também o português para falar em casa com seus filhos. Neste contexto, a língua Apinayé também continua sendo a mais usada pelos adultos nas suas interações, embora também tenhamos constatado um percentual menor para ambas as línguas, para falar com os adultos. Este fator, também, tem contribuído, embora em pequena escala, para o português des- locar o Apinayé desse domínio.

Aquisição da língua portuguesa

A aquisição da língua portuguesa pelas crianças da aldeia Mariazinha se dá de modo assistemático, através de contatos diretos (professores não-índios), freqüentes (chefe de posto, missionários e funcionários da FUNASA) ou es- porádicos (pesquisadores), com falantes dessa língua dentro e fora da aldeia. Um dos fatores que tem contribuído gradativamente para o uso do português nessa aldeia é o sistema de radiofonia, televisão, DVs, sons mecânicos, celula- res e telefones públicos, bem como a escola.

Portanto, o contato dos Apinayé de Mariazinha com a língua portuguesa acontece de forma desigual nos falantes, dependendo de vários fatores, tais como: a) os de ordem histórica com a presença de várias agências dentro dessa aldeia, como (FUNAI, FUNASA, CIMI, CTI, as Missões religiosas, a proxi- midade das cidades circunvizinhas, dentre outras); b) os de ordem sociocul- tural, como gênero e faixa etária, bem como a posição que a pessoa exerce na aldeia (cacique, vice-cacique, professor, vereador e trabalho); c) os de ordem econômica, com compra e venda de mercadorias e artesanatos.

Podemos constatar que a língua portuguesa não é um fato generalizado nesta aldeia, visto que no plano individual, existem pessoas que entendem e

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falam o português e outras que não conseguem manter uma conversação nessa língua, como é o caso da grande maioria das crianças menores de sete anos e de algumas mulheres mais velhas.

Usos e funções das línguas apinayé e portuguesa

Os índios de Mariazinha preferem utilizar a língua materna, nos diversos domínios sociais, a utilizarem a língua portuguesa. A justificativa apresentada diz respeito à função da língua na sociedade desse povo, visto que apontam como “a melhor para se falar”, “melhor para entender”, melhor para discutir e emitir opinião” e “melhor para pensar”. É a língua utilizada para as interações intragrupo e divulgação de sua cultura, de sua educação e das normas da so- ciedade Apinayé, rituais e crenças religiosas, isto é, aspectos, que fazem parte dos elementos essenciais para a formação da sociedade Apinayé.

Os Apinayé, ao contrário de muitas sociedades minoritárias, vêm tentan- do, ao longo do contato com a sociedade majoritária, manter sua identidade étnica e cultural, mesmo diante dessa situação de dominação econômica e política da sociedade envolvente, que, de certa forma, vem impondo práticas sociais dentro da aldeia. Portanto, nem mesmo o contato direto com a socie- dade não-indígena e nem a presença de agências dentro da aldeia inibiram lingüisticamente os Apinayé, visto que a língua materna predomina em todos os domínios sociais dentro da aldeia e em todas as relações intragrupo (na fa- mília, com os velhos e com as crianças). Para esses indígenas, a língua materna continua sendo usada nas manifestações religiosas, nos rituais, nas situações de fala e nas relações sociais da aldeia, de modo geral.

De acordo com Albuquerque (1999), na escola, os Apinayé de Mariazi- nha, os índios de ambos os gêneros, preferem utilizar ambas as línguas, tanto na modalidade oral quanto na escrita, visto que eles estão conscientes da im- portância dessas línguas para a sua sobrevivência, uma vez que a língua indí- gena na escola representa o fortalecimento da cultura Apinayé.

De acordo com análise de nossos dados, ambas as línguas aparecem sem- pre com maior preferência pelos Apinayé de Mariazinha, parte dos homens prefere a língua portuguesa para ser ensinada na escola, porém, a maioria deles prefere ambas as línguas. Entre as mulheres, poucas delas preferem a língua indígena na escola. Já a maioria tem preferência por ambas as línguas.

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De acordo com os dados coletados, podemos constatar que, embora os Apinayé mantenham sua língua em todos os domínios sociais na comunidade, português e ambas as línguas aparecem em alta escala, em todas os domínios. Isto tem contribuído para uma situação de conflito lingüístico em que, gra- dativamente, o português está ocupando as posições que seriam do domínio Apinayé: a de primeira língua adquirida quando criança e o das relações so- ciais, vizinhança, contexto doméstico, religião, trabalho, escola, troca de bens, preferência lingüística, língua mais bonita, mais importante, intra e intergru- pos e receptividade lingüística. Portanto, os nossos dados comprovam que a comunidade de Mariazinha apresenta uma situação de diglossia, nos termos de Meliá (1979)11, conflitante.

Mesmo diante dos resultados apurados, que confirmam uma situação de conflito diglóssico com tendência ao deslocamento da língua materna, em Ma- riazinha, os Apinayé estão conscientes da importância de se apropriar da língua portuguesa e de usá-la, não apenas como instrumento de defesa e de interação com a sociedade majoritária, mas como via de acesso a outros saberes.

Durante nosso trabalho, pudemos perceber que os Apinayé, ao longo dos anos de contato com a sociedade majoritária, embora venham tentando manter viva sua língua, cultura e identidade étnica, estão em permanente con- flito com a situação econômica e política da sociedade envolvente. Na comu- nidade de Mariazinha, a primeira língua adquirida continua sendo a indígena. Essa língua ainda é predominante em quase todos os domínios sociais dentro da aldeia, embora haja um percentual menor para ambas as línguas. Isto sig- nifica que a língua portuguesa, nos últimos anos vem ocupando espaço que antes era da língua indígena, como na educação escolar, no trabalho, na troca de bens e em casa (no caso dos casamentos mistos). Paulatinamente, a língua portuguesa vem ocupando as funções e domínios sociais que, outrora, eram exercidos somente pela língua indígena.

De acordo com Braggio (1989), nas sociedades indígenas, as crianças bi- língües têm que adquirir não somente uma, mas duas línguas. A forma como isso ocorre pode ser diferenciada e isso pode levar à manutenção ou perda da língua indígena.

11 MELIÁ, B. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979.

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Entretanto, acreditamos que o modelo de educação escolar pluralista/ intercultural possa contribuir significativamente para o ensino das línguas Apinayé e português, no sentido de desfazer os mitos relacionados ao bilin- güismo, de mostrar que falar diferente ou falar duas línguas não é uma falha, e de que posturas mais justas sejam adotadas em relação ao ensino nas co- munidades indígenas, sejam elas bilíngües ou não. Portanto, acreditamos na valorização das duas línguas pela autodeterminação dos povos Apinayé, den- tro dos princípios de pluralidade cultural. Desta forma, a escola deixa de ser instrumento de negação e exclusão, para ser instrumento positivo e de apoio às sociedades indígenas, buscando melhor garantir os objetivos reais de exis- tência para os Apinayé, reintegrando as ações do ensino às da aprendizagem, evitando suas descontinuidades e rupturas, evitando, sobretudo, as evasões e os fracassos escolares.

Um outro fator importante a ser considerado é que a criança Apinayé convive com outras crianças, na comunidade, de mesma faixa etária. Portanto, a escola não tem respeitado essa diversidade de ritmo, de processo de ida- de e de inserção no mundo do trabalho. Conforme o RCNEI, “a categoria

“aluno”, na verdade, muitas vezes é usada para homogeneizar e anular a rica diversidade presente em qualquer sala de aula.” Desta forma, quando não se considera somente o conteúdo escolar, mas a idade e o conhecimento prévio dos alunos, já não é mais possível entendê-los em um mesmo momento de sua formação. Para o RCNEI, “um adulto de 40 anos que não saiba ler, traz uma série de conhecimentos, de experiências, de saber cultural, diferentes de uma criança de oito anos. Assim, embora os dois não saibam ler, a escola não pode considerá-los como integrantes de um mesmo ciclo de formação”. Acredita- mos, pois, que esse fator associado a outros já mencionados em nosso trabalho são os responsáveis pelo fracasso escolar Apinayé, evasão, bem como pelo alto índice de reprovação.

Em resumo, queremos ressaltar que, de certa forma, a escola Apinayé de Mariazinha após a implantação do Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Indígena, vem rompendo com a visão homogeneizante e uniformizadora do sistema seriado, procurando contemplar o que é característico de cada idade de formação. Portanto, alfabetizar um adulto não é o mesmo que alfabetizar um jovem ou uma criança, visto que em todo processo de aprendizagem, os alunos colocam em jogo seus interesses, suas emoções, suas necessidades, bem

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como sua forma de ver o mundo. Esses processos variam significativamente de uma idade para outra.

Finalizando, acreditamos que este estudo, embora limitado, possa con- tribuir para ampliar a compreensão dos processos de aquisição das línguas Apinayé e português pelas crianças da comunidade de Mariazinha e, sobre- tudo, contribuir para os estudos lingüísticos sobre as comunidades indígenas bilíngües ou multilíngües. Pode, ainda, fornecer subsídios para os professores dessa comunidade que vêm, ao longo dos anos, se dedicando às ações de me- lhoria da educação escolar Apinayé, aos interesses e necessidades dos povos indígenas, que é a revitalização de suas línguas e culturas.

ABSTRACT

This article takes into consideration the sociolinguistic situation of the Apinayé of Mariazinha, the language belonging to the Trunk Macro-Jê and the Jê linguistic family. It is spoken by approximately 207 people loca- ted in the north of Tocantins. It has the objective to describe and analyze the attitude of these indigenous, in relation to their mother tongue and the Portuguese language, as well as describing the uses and functions according to the social domains.

KEYWORDS: Contact with the language; Sociolin- guistic; Apinayé language.

Recebido em 10/02/2008 Aprovado em 05/06/2008

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