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A injustiça do especismo

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Academic year: 2021

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Capítulo Um

A injustiça do especismo

©Carla Forte Maiolino Molento

Os seres vivos tendem a buscar soluções para os seus problemas, geralmente priorizados pelo grau de impedimento que significam. Assim, parece natural que a espécie humana tenha passado por um período de antropocentrismo. Em outras palavras, um período no qual o ser humano se imaginava como centro de todo o sistema que sustenta sua vida e durante o qual qualquer estratégia que culminasse numa melhoria de sua qualidade de vida imediata era válida. À medida que o entendimento acerca do mundo evoluiu, cada vez mais evidente ficou a inadequação do antropocentrismo, representada principalmente pelo imediatismo e pela falta de sustentabilidade em longo prazo que esta postura comporta. Se imaginássemos uma analogia entre o desenvolvimento da ética nas sociedades e o desenvolvimento de um ser humano, o antropocentrismo seria equivalente àquele período da infância humana durante o qual a criança imagina ser o centro do universo, tudo o mais existindo para ela desfrutar. Se pudéssemos nos libertar desta visão antropocêntrica do mundo, o que mudaria? Toda a relação do ser humano com o meio ambiente e, especialmente, com os outros seres vivos. Quem se beneficiaria? Provavelmente todos os seres vivos, incluindo o ser humano, por viver num ambiente mais justo e com menos violência, crueldade e sofrimento.

O antropocentrismo é ainda bastante comum entre as sociedades ocidentais; porém, não mais onipresente. Alguns filósofos contemporâneos concentraram-se na análise das bases de se considerar os membros da espécie humana como portadores de privilégios especiais. Neste contexto, surge o termo

“especismo”. Afinal, o que é especismo? Trata-se de uma idéia que pode ser defendida? Se especismo não pode ser defendido, isto significa que seres humanos e animais têm a mesma relevância moral?

O objetivo deste texto é apresentar uma discussão sobre especismo, contextualizando o conceito em relação à atitude dos seres humanos para com os animais.

O que é especismo?

Especismo é um conceito segundo o qual é justificável dar preferência a indivíduos simplesmente com base no fato de que eles sejam membros da espécie Homo sapiens. O termo foi cunhado por Richard Ryder, em um panfleto sobre experimentos científicos envolvendo animais, há cerca de 40 anos, e desde então vem sendo amplamente citado na literatura. Por se tratar de palavra

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recente, aparece atualmente apenas em alguns dicionários estrangeiros, especialmente aqueles de língua inglesa. A maioria dos dicionários virtuais também contempla o termo. Uma busca na internet traz vários resultados, seja em inglês (speciesism) ou em português, lembrando ainda que alguns autores brasileiros traduzem o termo como especicismo.

As objeções ao especismo

A idéia de que a espécie à qual um indivíduo pertence constitui em si uma razão para se tratar alguns seres como moralmente mais importantes que outros é freqüentemente demonstrada, mas raramente defendida. Apesar de alguns autores defenderem o especismo, o número de publicações que fazem objeções ao mesmo é substancialmente maior. Em 1986, Cohen foi um dos pioneiros a se declarar abertamente especista e fazer uma defesa quase dogmática do especismo, com o objetivo de justificar o uso de animais para a ciência. Vale lembrar que o uso de animais para o avanço no conhecimento não depende necessariamente de uma atitude especista; na verdade o especismo está mais ligado ao abuso.

Na grande maioria dos textos que delatam o especismo, encontra-se a afirmação de que as objeções fundamentais ao racismo e ao sexismo se aplicam igualmente ao especismo. Se a posse de um grau de inteligência mais alto não é motivo para um ser humano utilizar outro ser humano em benefício próprio, como pode permitir que humanos explorem os animais com vantagens unilaterais? Não teríamos responsabilidades e deveres maiores para com seres vivos com capacidade de sentir e menor poder de decisão, como animais e crianças?

Ao se adotar o especismo, freqüentemente ocorre uma redução na nossa preocupação em assegurar uma qualidade de vida mínima para os membros de outras espécies. Então, em nome dos interesses da espécie humana, colocamos animais de produção, durante toda a sua vida, em espaços tão reduzidos que eles nem mesmo se podem espreguiçar; capturamos os cães que estão nas ruas e os exterminamos sob o falso pretexto de que assim controlamos zoonoses;

operamos, injetamos, cateterizamos e experimentamos todos os tipos de procedimentos laboratoriais em animais, muitas vezes sem uma reflexão mais aprofundada; prendemos perpetuamente animais como tigres, leões e elefantes em sistemas de privação extrema, às vezes combinados a punições utilizadas para treinamento por razões frívolas. Entretanto, existe uma evidência crescente de que todas as classes de animais vertebrados compartilham com o ser humano as substâncias bioquímicas associadas com a transmissão da dor, várias espécies compartilham aspectos de vida social, compartilham sentimentos como alegria, tristeza, tédio, ansiedade. Assim, com a ciência apontando para as similaridades fisiológicas e anatômicas entre seres humanos e animais vertebrados, a responsabilidade que temos de aliviar o sofrimento de ambos, ser humano e animal, torna-se óbvia. Ambos são seres sencientes.

Segundo Peter Singer, o único argumento apresentado que parece defender o especismo é a afirmação de que, da mesma forma como os pais têm uma obrigação especial de cuidar de seus próprios filhos, priorizando-os em

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relação aos filhos dos outros, nós temos uma obrigação especial para com os membros de nossa própria espécie, priorizando-os em relação aos membros de outras espécies. A esta defesa, Singer responde com o seguinte raciocínio: “Se o argumento funciona para o círculo mais estreito da família e para a esfera mais ampla da espécie, o mesmo argumento também deveria funcionar para o caso intermediário: raça. Entretanto, um argumento que apóie um tratamento especial aos membros de nossa própria raça em relação aos membros de outras raças motivaria uma reação hostil pela maioria das pessoas, que não são racistas.”

Ao argumento apresentado para a defesa do especismo e criticado por Singer, pode-se ainda acrescentar e esclarecer a responsabilidade que emana do fato de termos a guarda de um ser vivo. Pertencer a uma mesma família envolve situações de guarda. Temos deveres para com uma criança que está sob nossa guarda, por exemplo um filho, que obviamente altera para mais o grau de responsabilidade em relação a esta criança se comparado aos deveres que temos para com todas as outras crianças, as quais não se encontram sob a nossa guarda. Interessante observar que, pela mesma lógica, temos uma relação de responsabilidade aumentada para com animais que estão sob nossa guarda ou intervenção, mostrando uma outra face da fraqueza do argumento apresentado no sentido de defender o especismo. Adicionalmente, esta intervenção que aumenta nossos deveres para com os animais pode ser direta ou indireta. Como exemplos de animais diretamente sob nossa guarda podem ser citados o nosso cão de estimação ou as poedeiras no caso de um avicultor. Muitos são os exemplos de intervenções indiretas que fazemos na vida dos animais, como o desmatamento que destrói o seu habitat natural ou o consumo de produtos de origem animal, que endossa o sistema de produção em questão.

Ainda está por ser declarada uma defesa filosófica do conceito de especismo que faça frente às objeções existentes. Como aconteceu com vários paradigmas na história, o primeiro passo para mudança é o questionamento. Foi assim com o sistema solar, com o planeta Terra plano ou redondo, com a teoria da geração espontânea: mesmo argumentos aparentemente óbvios devem resistir a um questionamento aprofundado, pois talvez não sejam a melhor representação da realidade.

Isto é antropomorfismo!

Experimente falar sobre a necessidade de atenção ao bem-estar dos animais e dificilmente você escapará da seguinte afirmação: isto é antropomorfismo! Assim, vale a pena pensar sobre um assunto tão freqüente.

Antropomorfismo significa atribuir características humanas a entidades não humanas. Uma conversa entre o Mickey e o Pateta representa um típico exemplo de antropomorfismo: dois animais conversando em linguagem exclusivamente humana (à exceção talvez de alguns primatas não-humanos arduamente treinados). Parafraseando Tom Regan, se dissermos que uma árvore ou uma lula estão vivas, estamos também atribuindo uma característica humana a estes seres.

Entretanto, não seríamos acusados de praticar antropomorfismo, pois a vida é reconhecidamente uma característica de todos os seres vivos. Desta forma, para

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entender antropomorfismo parece essencial que façamos uma distinção entre as características que são exclusivamente humanas e aquelas que compartilhamos com outros seres. Toda vez que a característica não seja comprovadamente única ao ser humano, não se pode aceitar a acusação de antropomorfismo. Então, quais são as características exclusivamente humanas? Respostas não especistas dependem de uma observação científica dos animais, observação esta que vem se mostrando reveladora. A distribuição de características como senciência, consciência, vida familiar e social, entre outras, é ampla no reino animal, especialmente entre os vertebrados. Assim, não se pode acusar alguém de antropomorfismo por afirmar que um elefante de circo está triste porque seus laços sociais foram rompidos. Aceitar a manutenção de elefantes enclausurados em condições de total isolamento de seu ambiente social constitui uma atitude baseada em especismo. Por que não aceitamos essas condições para a nossa própria espécie, mas pagamos para ver em outra? O especismo é comumente defendido por uma interpretação errônea e exacerbada do que constitui antropomorfismo.

Uma tendência lógica

Ao se traçar a história dos avanços éticos nas sociedades ocidentais, alguns autores acreditam que o abandono do especismo seja, por questões de lógica, o próximo passo. Na esfera crescente de libertação (Figura 1), após o desafio intelectual imposto ao colonialismo, ao racismo e ao sexismo, pela lógica de alguns autores o próximo passo no sentido de expansão nos limites de inclusão moral seria o abandono do especismo.

Figura 1. Representação esquemática dos limites de inclusão ética.

EU Minha família

Meus

compatriotas

Todos os humanos

Todos os animais

Todos os seres vivos

O mundo?

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Então seres humanos e animais são iguais?

Ao rejeitar o especismo, não se pretende propor um conceito simplista de que os animais e o ser humano sejam iguais. A rejeição do especismo não significa que os animais tenham os mesmos direitos que os seres humanos. A proposta é que todos os seres vivos tenham seus interesses respeitados. Pode-se compreender a idéia pensando sobre os interesses existentes em cada espécie.

Vejamos: liberdade para votar, liberdade de expressão e liberdade de culto religioso constituem exemplos de interesses exclusivamente humanos. Por outro lado, existem interesses reais para todos os animais: ter acesso a alimentos, estar livre de dor, estar confortável, estar livre de calor ou frio e realizar suas atividades de alta motivação, como se limpar, se espreguiçar e se locomover, para citar alguns interesses de todos os animais vertebrados. A rejeição do especismo significa a adoção de uma igual consideração de interesses: o interesse que um animal de qualquer espécie tem em não passar fome é igual ao interesse que o ser humano tem em não passar fome. A igual consideração de interesses estende-se por todos os interesses apresentados pelas diferentes espécies de seres vivos.

A inspiração

Charles Darwin (1809 a 1882), no livro The Descent of Man:

“Não existe nenhuma diferença fundamental entre o ser humano e os animais superiores em termos de faculdades mentais. A diferença entre a mente de um ser humano e de um animal superior é certamente em grau e não em tipo”.

Pitágoras (c.580 a c.500 antes de Cristo):

“Humanos e animais são feitos da mesma matéria, a respiração que nos dá vida também dá vida aos animais”. Pitágoras e seus seguidores opunham-se à crueldade e ao sacrifício de animais, comuns à época.

Em resumo

Especismo pode ser entendido como um preconceito ou uma atitude tendenciosa em favor dos interesses dos membros da sua própria espécie e contra os interesses dos membros de outras espécies. As sociedades humanas têm adotado posturas especistas na ausência de uma reflexão aprofundada sobre o assunto. Vários filósofos discutem o conceito atualmente, produzindo objeções importantes a esta atitude humana. Parece existir oportunidade para uma mudança de paradigma que revolucionaria a forma como interagimos com os animais. A rejeição do especismo significa a adoção de uma igual consideração dos interesses de cada indivíduo, independentemente da espécie à qual este indivíduo pertença. Os desafios de tal mudança seriam grandes: repensar como

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mantemos nossos animais de estimação, como nos relacionamos com animais para lazer, como produzimos alimentos e conhecimento utilizando animais.

A libertação dos escravos um dia foi percebida como um risco de desestruturação da sociedade, a mulher profissional como incompatível com uma família saudável, o sistema solar como uma afronta à importância da Terra. A história desses momentos de reorganização da sociedade ocidental mostra a capacidade humana de criar novos equilíbrios na busca de uma melhoria em nossas ações. O reconhecimento da necessidade de mudança é o primeiro e mais difícil passo a ser dado.

Leitura adicional

Prada, I. A Alma dos Animais

Este livro aborda a questão da dificuldade de se encontrar uma diferença fundamental entre o cérebro de seres humanos e animais, nas palavras da autora o “rubicão cerebral”, que pudesse sugerir uma mente (ou alma) presente exclusivamente na espécie humana. Leitura simples e agradável, indicada para iniciantes no tema, o texto beneficia-se da ampla experiência em ensino de Irvênia Prada, por muitos anos docente de Anatomia Veterinária da USP.

Singer, P. In Defense of Animals – The Second Wave. Blackwell Publishing Ltd, 2006.

Trata-se da mais recente publicação do filósofo Peter Singer, autor de “Writings on an Ethical Life”, “Pratical Ethics” (publicado também em português) e “Rethinking Life and Death”, entre muitos outros. Atualmente é professor de Bioética no Centro Para Valores Humanos da Universidade de Princeton. Desde a sua publicação original, em 1975, o livro “Animal Liberation” (publicado também em português) vem inspirando um movimento mundial com o objetivo de transformar a maneira como tratamos os animais; trata-se de leitura essencial, seja qual for a opinião do leitor com relação à interação entre seres humanos e animais.

LaFollette, H.; Shanks, N. The Origin of Speciesism. Philosophy, 71:41-6, 1996.

Os autores, ligados à East Tennessee University, produziram artigo de revisão interessante para quem desejar um aprofundamento sobre o tema, com a argumentação centrada no problema do uso de animais para a ciência. O artigo traz uma boa lista de referências bibliográficas, sendo que o texto integral encontra-se disponível na internet.

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