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PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO DOUTORADO

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Academic year: 2019

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ÉTI CA E USO DE DROGAS

- uma contribuição da ontologia social para o campo

da saúde pública e da redução de danos –

CRI STI NA MARI A BRI TES

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVI ÇO SOCI AL

PONTI FÍ CI A UNI VERSI DADE CATÓLI CA DE SÃO PAULO

DOUTORADO

(2)

ÉTI CA E USO DE DROGAS

- uma contribuição da ontologia social para o campo

da saúde pública e da redução de danos –

CRI STI NA MARI A BRI TES

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVI ÇO SOCI AL

PONTI FÍ CI A UNI VERSI DADE CATÓLI CA DE SÃO PAULO

DOUTORADO

- 2006 -

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FOLHA DE APROVAÇAO DA BANCA EXAMI NADORA

ÉTI CA E USO DE DROGAS

- uma contribuição da ontologia social para o campo da saúde pública e da redução de danos –

CRI STI NA MARI A BRI TES

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVI ÇO SOCI AL PONTI FÍ CIA UNI VERSI DADE CATÓLI CA DE SÃO PAULO

DOUTORADO

- 2006 -

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Agradecimentos

“Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo Quero apenas contar-te a minha ternura Ah se em troca de tanta felicidade que me dás Eu te pudesse repor - Eu soubesse repor – No coração despedaçado As mais puras alegrias de tua infância!” (Manuel Bandeira)1

Tarefa difícil esta de agradecer. Quisera poder repor todo o carinho, e agradecer:

Aos meus pais, sempre. Dona Yêda e Seu Nadyr: é muito bom contar com vocês, reconhecer os amores e os afetos; tão distintos, tão diversos e tão necessários.

Aos meus irmãos, sempre também. Que os ares paulistas, mineiros, cariocas e paranaenses que nos separam, tragam sempre bons ventos! Sei que estavam na torcida, obrigada, Paulo, Fabiana e Sérgio.

Ao meu amor, que tem nome – Eduardo – e sobrenome – de Bártolo, que prefere ser chamado de Edu; pela paciência, compreensão e companheirismo, sem você a vida seria insuportável. Agradeço, também, pela revisão bibliográfica. E pelo amor!

À minha amiga querida e orientadora deste trabalho, Profª Lucia Barroco, pela convivência carinhosa, paciente, ética e sábia. Por ter apostado e confiado em mim em todos esses anos, nos quais compartilhamos trabalho, reflexão, algumas angústias e alegrias. Com carinho, mestra!

À Beatriz Di Giorgi, querida amiga, pela revisão deste trabalho; parcial, é verdade, pelo meu atraso. Longe de mim, comprometer sua reputação. Agradeço, sobretudo, pela amizade.

À Andrea Domanico, pelos dados sobre RD, pela amizade e carinho. Por todos os anos de convivência na redução de danos e na vida. Meu carinho e amizade, sempre.

Aos amigos e amigas, companheiros e companheiras do NEPEDH – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos - PUC/ SP. Como fomos muitos, me arrisco a homenagear todos, me referindo a alguns: Flávia, Laura, Manoel, João, Alberto, Jorge, Jandira, Vanessa, Eliane, Cristina,

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Teresinha, Neide, Ana Lívia, Telma, Tamara, Maurílio, Fernanda, Marli, Damares e Vera.

Às amigas queridas, com quem conto sempre: Nora, Laura, Lourdes, Flávia, Célia, Márcia, Teresinha, Cleisa, Amanda e Marusca.

Às amigas queridas e companheiras da Faculdade de Serviço Social: Professoras Raquel Raichelis, I saura I soldi, Luzia Baierl, Mercedes Cywinski, Marli Pitarello, Rosângela Paz, Graziela Pavez, Yara Vicini, Dilséa Bonetti.

Aos professores de minha banca de qualificação, Profª Drª Raquel Raichelis, Prof° Dr° José Ricardo Ayres e Prof° Dr° José Paulo Netto. Agradeço, especialmente, ao Prof° José Ricardo e àProfª Raquel Raichelis, pelas preciosas considerações e contribuições.

Ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da PUC/ SP, pela bolsa de capacitação docente, concedida no ano de 2005.

Aos professores e professoras da graduação e do pós-graduação, do Curso de Serviço Social da PUC/ SP.

Às professoras do Curso de Serviço Social, do Pólo Universitário de Rio das Ostras, da Universidade Federal Fluminense, pela acolhida e pela solidariedade na reta final deste trabalho.

Aos meus alunos, de ontem e de hoje, pela paciência e entusiasmo com a vida e com a profissão.

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RESUMO

Neste estudo, realizamos uma abordagem ontológica sobre os fundamentos do ser social, na perspectiva de situar o uso de drogas como uma atividade que responde às necessidades postas pela práxis social.

Analisamos as particularidades históricas da sociabilidade burguesa no contexto da reestruturação produtiva, identificando nesse processo as determinações que incidem sobre as mudanças no consumo de drogas, a partir da década de 70 do século passado. Procuramos apreender as mediações de natureza econômica, política e cultural que, no âmbito da ambiência cultural “pós-moderna”, alteram as configurações do espaço público, da práxis interativa e das formas de subjetividade dos indivíduos sociais, e o modo como essas mediações configuram o consumo de drogas e as respostas sociais e de saúde nessa área.

Discutimos o contexto de emergência da abordagem de redução de danos em nosso meio, problematizando seu processo de desenvolvimento a partir de sua vinculação com as contingências postas pela epidemia do HI V/ aids.

Submetemos dois textos, uma crônica que relata a experiência de uso de drogas de um personagem de ficção e um texto pioneiro no debate sobre a redução de danos em nosso meio, a uma análise de perspectiva ontológica, procurando identificar o modo como os fundamentos da práxis social se expressavam nesses relatos.

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ABSTRACT

On this study, we realized an ontological approach about the foundation of the social being, with a prospect to situate drugs addiction as an activity that attend needs placed by social praxis.

We have analyzed historical particularities of bourgeois sociability under a context of productive re-structuration, identifying on such process the determinations that befall over shifts on drugs use, from seventy decade last century. We’ve searched to grasp such mediations of political and cultural economical nature that under the cultural “postmodern” ambience disturb public space configurations, interactive praxis and subjective forms of social individuals, and the way how such mediations shape drugs addition, and social and health answers in such area.

We’ve discussed the emergency context of the damage reduction approach on our middle, raising the problems of the development process from his linkage with the contingencies proceeding from HI V/ aids epidemic.

We submitted two texts, a chronic that report a drugs use experience from a fiction personage and a pioneer text over the debate about damage reduction on our middle, to an analysis of ontological perspective seeking to identify the way how the social praxis foundation expressed themselves through such reports.

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SUMÁRI O

Lista de Siglas

...9

I ntrodução

Por que ontologia do ser social? ………..10

Parte I – Ontologia do ser social, uso de drogas e redução de

danos

Capítulo 1

Sobre o homem I ……….28

Capítulo 2

Sobre o homem I I ………43

Capítulo 3

Sobre o homem I I I ………68

Parte I I – Ontologia, ética e uso de drogas

Capítulo 4

Sobre o homem I V………102

Capítulo 5

Sobre o homem V………..116

Considerações Finais

Sobre o homem VI ……….129

Bibliografia

……….132

Anexos

2

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LI STA DE SI GLAS

AI DS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (do inglês) CN – Coordenação Nacional

CN/ DST/ aids – Coordenação Nacional de DST/ aids DST – Doença sexualmente transmissível

HI V – Vírus da I munodeficiência Humana (do inglês). MS – Ministério da Saúde

OMS – Organização Mundial da Saúde PN – Programa Nacional

PN/ DST/ aids – Programa Nacional de DST/ aids. PRD – Programa de redução de danos

PTS – Programa de troca de seringa RD – Redução de danos

SENAD – Secretaria Nacional Antidrogas SUS – Sistema Único de Saúde

UD – Usuário de droga

(10)

“Não existe nenhum problema humano que não seja, em última análise, originado e, no seu íntimo mais profundo,

determinado pela práxis real da vida da sociedade” (Lukács, 1976-1984a:68)3

I ntrodução

Por que ontologia do ser social?

A resposta mais central e mais direta a essa pergunta é muito simples: para ser coerente. Coerente com as concepções de homem e de sociedade que, nos limites das possibilidades históricas, orientam nossas ações nos campos profissional, cívico e pessoal. A perspectiva ontológica, pautada no pensamento marxiano, tem sido nossa referência de análise da realidade social e profissional no âmbito da docência nas disciplinas de ética e de fundamentação filosófica e teórica que ministramos no curso de graduação em Serviço Social da PUC/ SP nos últimos onze anos e, muito recentemente, na Universidade Federal Fluminense no Pólo Universitário de Rio das Ostras (RJ)4. A ontologia do ser

social é também a perspectiva de análise adotada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos (NEPEDH)5, do Programa de Estudos

Pós-graduados em Serviço Social da PUC/ SP, que integramos desde sua constituição em 1999 até nossa saída da PUC/ SP, em agosto de 2006.

Nossa trajetória profissional na docência do Serviço Social e no campo da saúde junto a usuários de drogas6 tem se pautado na compreensão do caráter

histórico da práxis7 social e da centralidade ontológica do trabalho na

constituição e desenvolvimento do ser tornado homem.

3 Estamos trabalhando com a versão da tradução, não publicada, feita pelo Prof°. Dr. I vo Tonet das seguintes partes da Ontologia do Ser Social de Lukács: O Trabalho, Neopositivismo e Existencialismo e a Reprodução. Por isso, a data se refere a obra original de Lukács e a numeração segue a tradução de I vo Tonet.

4 O Pólo Universitário de Rio das Ostras é conhecido como PURO, por coincidência uma das denominações para os charutos cubanos. Quando tomamos essa decisão radical de sair de São Paulo e da PUC/ SP, desconhecíamos essa atraente possibilidade de interpretar a sigla do Pólo.

5 O NEPEDH é coordenado pela Profa. Dra. Maria Lucia Silva Barroco.

6 O termo droga nesse trabalho se refere as substâncias capazes de alterar as atividades do sistema nervoso central e que são passíveis de abuso, denominadas drogas psicotrópicas. Como algumas dessas drogas são consideradas ilegais, sempre que for necessário usaremos os termos lícito e ilícito para diferenciá-las.

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Ser coerente com a perspectiva ontológica é ser radical e crítico, é buscar no próprio homem as raízes históricas de sua essência, de sua complexidade enquanto ser social e o significado histórico das várias modalidades de práxis que, num processo complexo e multideterminado, conferem objetividade à totalidade social.

Ser coerente com essa perspectiva é também reconhecer a importância da elucidação teórica do real como ferramenta indispensável para orientar a efetivação de ações e estratégias coletivas, mediadas por valores éticos e políticos fundados na perspectiva de ampliação do acesso dos indivíduos sociais à riqueza social, que se vinculem às possibilidades históricas de transformação (em alguns casos de redução) dos processos de desumanização vividos mundialmente.

No entanto, perseguir essa coerência é infinitamente mais difícil do que simplesmente reivindicá-la. Ao contrário da resposta sobre a escolha da ontologia do ser social como perspectiva de abordagem dessa pesquisa a tarefa que nos propusemos está longe de ser simples.

Essa dificuldade se coloca, em primeiro lugar, porque as abordagens de caráter ontológico vêm sendo recusadas no âmbito da produção teórica nos meios científico e acadêmico. Recusadas, especialmente, por tentativas de desqualificação de sua capacidade explicativa sobre a complexidade do presente.

Grande parte dos intelectuais da atualidade parecem ter assumido como insuperável a encruzilhada que a realidade capitalista forjou para o processo de humanização do ser social, tomando-a como inevitável e como limite absoluto às formulações de caráter revolucionário, ou seja, àquelas que apontam para a necessidade de superação dessa sociabilidade como condição para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas essenciais8.

Ser revolucionário é estar fora de moda, é ser out, para usar uma expressão in, do linguajar que domina as formas de comunicação e o universo cultural dos espaços de interação (virtuais ou não) de grande parte dos indivíduos sociais, independente de sua inserção de classe, especialmente pela capacidade de penetração e pelo poder que os meios de comunicação de massa exercem sobre a maioria das pessoas. No caso brasileiro, o exemplo mais cabal dessa situação é o poder de influência e de domínio cultural exercido pela programação cotidiana da Rede Globo de Televisão.

No município de Rio das Ostras, cidade para a qual nos mudamos recentemente, que possui cerca de cinqüenta mil habitantes e que tem apenas

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quatorze anos de emancipação, o poder dessa influência pode ser constatado após algumas pedaladas de bicicleta. A grande maioria da população não tem acesso ao saneamento básico; está submetida a um sistema de transporte vergonhoso - determinado por uma briga política com Macaé, o município vizinho - que impinge longos tempos de espera, preços abusivos, nenhum conforto e pouca segurança. Sofre com os efeitos da profunda desigualdade social que vem se acentuando em escala vertiginosa, já que a aplicação dos

royalties do petróleo recebidos pelos municípios da região não tem servido para reduzir as desigualdades de acesso à riqueza social. Sofre com a especulação imobiliária; com o focalismo, com a baixa cobertura e a falta de qualidade dos serviços prestados na esfera das políticas sociais. Sofre, especialmente, com o clientelismo político que invade de forma assustadora as várias esferas do cotidiano9.

No entanto, essa mesma população pode encontrar sem grande esforço os mesmos modelos de roupas e de acessórios que os protagonistas das novelas usaram nos últimos capítulos e pode se expressar com os mesmos códigos de linguagem e estéticos. Pense-se, por exemplo, na influência do funk,

cuja difusão em massa passa pelo “apelo popular” do Programa Central da Periferia e invade as tardes dos finais de semana através dos programas destinados a preencher o ócio desses dias “sem” trabalho.

Essa digressão é apenas ilustrativa, embora não deixe de ser uma expressão do contexto atual da sociabilidade capitalista, cuja materialidade se manifesta na extrema desigualdade, massificação e alienação, frente ao qual as elaborações teóricas de caráter radical, crítico, dialético, histórico e de totalidade aparecem, às consciências ditas afinadas com a “pós-modernidade”, como um produto de botica de eficácia duvidosa e de validade vencida.

A maioria da produção teórica na contemporaneidade – seus conteúdos, métodos e finalidades – cujos fundamentos podem ser encontrados no complexo processo de desenvolvimento do ser social, é portadora de uma tendência dominante de recusa de abordagens de perspectiva ontológica-materialista.

Enquanto tendência dominante, o desenvolvimento do conhecimento humano nas diversas áreas, e na particularidade de sua aproximação com a realidade do uso de drogas, ao mesmo tempo em que requisita a interdisciplinaridade tem recusado, especialmente, perspectivas de análise fundadas no reconhecimento do caráter ontológico do trabalho – enquanto modelo principal de práxis –, de suas determinações objetivas no processo de

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constituição e desenvolvimento do mundo humano e deste último como totalidade objetiva.

Em consonância com o apelo “pós-moderno” de compreensão do real, a validade do conhecimento tem sido medida por sua aplicabilidade prática, eficácia e utilidade imediatas. A legitimidade do conhecimento na atualidade decorre de sua capacidade de expressar o heterogêneo, o efêmero, a dispersão, a probabilidade, a transitoriedade, a subjetividade e a diferença. As análises que pretendem identificar relações de reciprocidade e determinação entre o universal, o particular e o singular, entre as dimensões material e imaterial da vida social, entre o objetivo e o subjetivo, entre a diversidade e a unidade, entre a economia e as formas de consciência (aqui incluído o conhecimento teórico), entre a ética e a política, ou são consideradas de uma profundidade que o tempo “pós-moderno” não comporta, ou são recusadas como inócuas ou, ainda, como ultrapassadas.

“Um dos traços que melhor caracterizam a ambiência cultural pós-moderna – para além de um surpreendente banalismo nas suas formulações – reside em que, nela, o antiontologismo associa-se a uma concepção clara e grosseiramente idealista do mundo social. A regressão teórica contida nessa recaída idealista aparece especialmente na entificação da razão moderna pelos pós-modernos, entificação que a torna um demiurgo onipotente de fazer inveja ao Espírito hegeliano: a razão é a responsável pelas ‘falácias’ que se revestiram do caráter das ‘promessas’ da Modernidade – o controle otimizado da natureza (que, de fato, se revelaria como destruição e vestíbulo da catástrofe ambiental) e a interação humana emancipada (que, na verdade, se mostraria como opressão e heteronomia). Na imanência da razão moderna, a dimensão instrumental estaria inevitavelmente vocacionada para ‘colonizar’ a dimensão emancipatória [ ...] . Obviamente que esse idealismo não é inocente: ao creditar à razão a realidade histórico-social contemporânea, o que fica na sombra é a ordem do capital, com a dominação de classe da burguesia” (Netto, 2002:97:98).

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Hoje é possível constatar que as abordagens teóricas sobre o uso e a dependência de drogas ampliaram a incorporação de categorias de análise das diversas áreas do conhecimento: sociologia, ciência política, antropologia, história e direito, entre outras; além das áreas nas quais tradicionalmente o uso drogas era objeto de pesquisa, como a psiquiatria e a psicanálise. Somam-se a essas áreas a epidemiologia, a neurociência e a farmacologia, pela importância que assumem no campo do conhecimento em saúde.

Embora não seja nosso objetivo situar historicamente a emergência do uso de drogas como tema de pesquisa nas diferentes áreas do conhecimento, importa situar essa tendência de crescimento do interesse sobre o tema no campo das ciências humanas nas últimas décadas.

“As ciências humanas estavam excluídas desse universo, dominado pela medicina e pela psiquiatria. [ ...] Apesar de seu antigo interesse por experiências rituais com as drogas, somente nas últimas décadas a antropologia social passou a investigar sistematicamente o campo das drogas nas sociedades urbanas. Da mesma forma, são recentes as pesquisas sobre drogas nos campos da sociologia e da ciência política. [ ...] Portanto, foi a magnitude político-social que a questão das drogas assumiu e a urgência de soluções no espaço social que impuseram outras leituras para o campo das drogas. Nesse contexto, as drogas constituíram uma nova problemática de pesquisa, superando em muito seu acanhado espaço teórico anterior, polarizado entre a psiquiatria e a farmacologia. Enfim, o estilo interdisciplinar de pesquisa que acabou por se impor foi uma exigência não apenas de ordem teórica e clínica, mas de ordem política, ética e antropológica” (Birman: 2003: 219-220).

Mesmo no universo da psiquiatria, área médica tradicionalmente próxima dos “problemas” relacionados ao uso de drogas, há descontinuidades e mudanças nas abordagens sobre o tema. Birman (2003), ao discutir a psiquiatria e a psicanálise na atualidade, aponta para duas mudanças significativas, introduzidas especialmente pelas neurociências, uma de caráter quantitativo e outra de caráter qualitativo. A primeira aponta para um crescimento das produções nessa área: “[ ...] o que os periódicos valorizam sempre, de maneira progressiva, são as depressões, as toxicomanias e a dita síndrome do pânico. [ ...] Desde o final dos anos 70 podemos registrar a emergência dessas preocupações teóricas na literatura especializada” (Op. cit. p.178).

(15)

direção centrada em acontecimentos, nos quais se revelam os disfuncionamentos do psiquismo. A idéia de história de uma subjetividade, articulada com o eixo do tempo, tende ao silêncio e ao esquecimento. É sempre a pontualidade da intervenção, centrada no psicofármaco, que está em questão na terapêutica do dispositivo psiquiátrico da atualidade. Jogou com isso, enfim, uma pá de cal na concepção de história como fundamento da subjetividade”

(Op. cit. p.185-186).

Ainda que pese as possíveis diferenças entre as noções de história, de tempo e de subjetividade contida nessa análise e a perspectiva ontológica, interessa-nos marcar a existência nos domínios da própria psicanálise de uma crítica sobre as tendências contemporâneas de abordagens terapêuticas de base estritamente biológica, centradas no “evento”, no “acontecimento”, restringindo a compreensão do indivíduo social (e sua subjetividade) ao funcionamento do psiquismo.

Ocorre que nas últimas décadas, as abordagens sobre o uso de drogas tornaram-se interdisciplinares, acompanhando as tendências mais gerais da produção do conhecimento na contemporaneidade. De um lado, o reconhecimento dos limites objetivos de apreensão dessa realidade - complexa, dinâmica e multideterminada - contribuiu para a articulação das diferentes áreas do conhecimento; o que em alguns casos revela um esforço na elaboração de análises mais amplas e profundas. De outro, esse movimento expressa a fragmentação e a dispersão que está na base da especialização do próprio conhecimento.

Há nesse processo uma contradição engendrada pelas necessidades históricas do modo de (re) produção das sociedades modernas que particularizam as formas de conhecimento: o desenvolvimento das ciências e sua “autonomia” face à filosofia; a complexidade da realidade social que passa a “exigir” conhecimentos especializados - com objetivos cada vez mais voltados para a intervenção humana sobre o mundo - e a incorporação, também crescente, do conhecimento (especialmente de sua dimensão instrumental) no processo produtivo e nos complexos reguladores das relações entre as classes: Estado, Direito e Forças Armadas e nas esferas mais particularizadas dessa regulação, por exemplo, nas políticas sociais.

A especialização do conhecimento atende as necessidades sociais e a complexidade da dinâmica histórico-social, e isso não é um problema a priori. O problema surge na medida em que nesse processo turva-se a consciência de que o conhecimento enquanto complexo mediador, por mais especializado que seja, é portador de uma autonomia sempre relativa face à determinação ontológica da esfera produtiva.

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por sua essência, simples formas de mediação e desde a sua origem tiveram como função regular melhor a reprodução social; pense-se na esfera do direito, no sentido mais amplo do termo. E vimos também que, exatamente para cumprir melhor o seu papel, esta função mediadora deve ser autônoma e ter uma estrutura heterogênea em relação à economia” (Lukács, 1976-1984a:68). Nesse contexto, recorrer a uma abordagem ontológica e histórica para analisar o uso de drogas e as tendências históricas dominantes das respostas sociais e de saúde nesse campo, a partir dos fundamentos ontológicos da práxis social, com destaque sobre a práxis interativa10, pode parecer um “auxílio

luxuoso”, especialmente para uma tese de doutorado em Serviço Social. Profissão que, por sua inserção na divisão social e técnica do trabalho, tem um caráter de intervenção cuja realização se dá historicamente no âmbito das políticas sociais – gestão e prestação de serviços sociais - e que tem na questão social, e no enfrentamento de suas expressões - sua base de legitimidade social.

Exatamente por essa inserção na divisão social e técnica do trabalho e, por intervir nas expressões da questão social, o trabalho do Assistente Social se realiza num campo contraditório mediado pelos antagonismos das classes em relação, o que confere a essa profissão uma determinada forma de participação no processo de reprodução social (I amamoto, 1991). Participação concretizada por um trabalho cujos produtos objetivos atendem a necessidades sociais e assumem uma direção social que se particulariza no âmbito da luta de classes. Por isso, quanto mais consciente, crítica e competente - em seus fundamentos teórico-metodológicos, técnico-operativos e ético-políticos - for a realização desse trabalho tanto mais capaz, potencialmente, será de construir respostas alternativas às limitações objetivas postas pela sociabilidade burguesa à realização dos direitos sociais e de cidadania e à ampliação da liberdade – enquanto valor ético central (Barroco, 2001a).

Na contra-corrente das tendências dominantes, avaliamos ser profundamente pertinente e necessária uma análise de caráter ontológico sobre o uso de drogas e sobre as respostas sociais e de saúde nessa área, na medida em que entre as escolhas11 dos indivíduos sociais frente à diversidade de drogas

disponíveis e as respostas formuladas para o atendimento das expressões fenomênicas desses usos há uma série de complexos mediadores que articulam cada uma dessas esferas à totalidade social. Além disso, do ponto de vista

10Segundo Netto (1994): “[ a práxis] Tomada historicamente em suas formas já desenvolvidas, ela poder ser pensada em modalidades muito diversificadas, com base na distinção lefebvreana entre mimesis e

poiesis (Lefebvre,1965) até as caracterizações mais difundidas de práxis produtiva, científica, estética e política – desta, a forma mais alta seria a revolucionária (Vasquez, 1968). Por mais interessantes que sejam essas categorizações de práxis, o que importa é determinar que ela é o constitutivo do ser social”(1994:37). Nesse estudo, a práxis interativa será tomada como as objetivações que têm por finalidade interferir nas posições teleológicas dos indivíduos sociais; como uma modalidade de práxis cujos produtos interferem nas interações humanas e constituem relações entre as diferentes esferas da totalidade social. A ética e a política são modalidades de práxis interativa.

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ontológico é possível considerar que o uso de drogas e as respostas sociais e de saúde se constituem como complexos mediadores entre os indivíduos e a sociedade. Nesse sentido, uma perspectiva ontológica de análise sobre essa realidade pode contribuir para a apreensão

dos fundamentos de tais

mediações

e, portanto, para a orientação de respostas mais críticas e conscientes frente às contradições e desigualdades engendradas pelo modo de produção capitalista e que colocam limites objetivos para o processo de desenvolvimento do ser social.

Outro aspecto a ser considerado em nossa opção pela abordagem ontológica diz respeito ao fato de que, a nosso ver, há uma tensão entre as abordagens teóricas dominantes sobre o uso de drogas e os direitos de cidadania dos indivíduos sociais que usam drogas, especialmente pelo caráter conservador12 e pela perspectiva de controle sobre o comportamento dos

indivíduos que essas abordagens revelam na objetivação das ações e procedimentos nos campos da prevenção e do tratamento. Essa tensão se expressa, entre outras esferas da vida em sociedade, no campo das políticas sociais públicas, que enquanto complexos mediadores assumem funções particulares no processo de reprodução da totalidade social; campo no qual o trabalho do Assistente Social é requisitado e contribui para a (re) produção de respostas orientadas por abordagens teóricas que em seus fundamentos comportam concepções filosóficas de homem e de sociedade e cujos desdobramentos práticos assumem determinada direção ética e política.

Os usuários de drogas, especialmente das ilícitas, são, quase sempre, invisíveis aos profissionais que atuam no âmbito das políticas sociais públicas, dentre eles o Assistente Social. Sua visibilidade, na maioria das vezes, se dá em decorrência de conflitos gerados na família ou na escola, da violência e criminalidade associadas ao narcotráfico e das rupturas e sofrimentos associados à dependência. A partir dessas situações os usuários de drogas ilícitas passam a ser “alvo” de atenção especializada da saúde ou da justiça. Assim, as determinações mais amplas da totalidade social que incidem sobre o uso de drogas são silenciadas dando lugar a abordagens interdisciplinares que procuram extrair das situações singulares inteligibilidade e soluções centradas no indivíduo ou, no máximo, em seu grupo “básico” de sociabilidade: familiares e amigos.

O indivíduo social e o caráter alternativo de suas escolhas, e dos valores que as orientam, são tomados, na maioria das vezes, de forma atomizada face às bases ontológicas e históricas do processo de autoconstrução do ser social. A sociabilidade, que do ponto de vista ontológico é uma capacidade humana essencial e síntese da práxis histórica dos homens, é apreendida como contexto, como pano de fundo ou ainda como redes de interações13 e de

12 Conservador aqui tem o preciso sentido de identificar determinadas posições com a perspectiva de manutenção do status quo. Ou seja, posições afinadas com valores e princípios que recusam a possibilidade de mudanças e de transformação em nome de interesses dominantes.

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valores que devem ser mobilizadas para orientar as escolhas individuas na direção, quase sempre, da eliminação do uso de drogas.

A individualização das expressões da questão social não expressa nenhuma novidade para a área do Serviço Social, pois desde que conquistou sua maturidade - teórica, ética e política -, a partir da incorporação do referencial teórico-crítico da tradição marxista em seu projeto profissional14 -

essa profissão tem procurado: elucidar o significado histórico e social do trabalho profissional no interior da totalidade social e das determinações postas pelos antagonismos de classe; contribuir para a apreensão dos fundamentos sócio-históricos da questão social (cujas expressões aparecem como demandas particulares nas diferentes organizações prestadoras de serviços sociais) e desvelar a lógica capitalista de exploração, de dominação e de reprodução das desigualdades que incide sobre a fragmentação, o focalismo, a descontinuidade e o financiamento das políticas sociais; características que foram acentuadas pelo neoliberalismo.

No entanto, apesar dos avanços15 que o referencial teórico-crítico de

matriz marxista trouxe para o Serviço Social nas diferentes áreas de atuação profissional, sua produção teórica e sua atuação prática vêm sofrendo os rebatimentos do refluxo das abordagens teóricas de perspectiva histórica, crítica e de totalidade e, em muitos casos, a sedução do “canto” de abordagens “pós-modernas” oriundas especialmente das ciências sociais16.

entanto, para usar essa noção procuramos matizá-la em suas origens históricas e antropológicas, problematizando seus limites em decorrência de seus vínculos com análises funcionalistas e procurando superar essa compreensão aproximando-a de uma perspectiva critica e dialética.

14 No interior da produção acadêmica do Serviço Social, a maturidade profissional – teórica, ética e política – tem sido associada aos desdobramentos de um longo processo de mudanças que teve início em finais dos anos 50 e que se consolidou em meados da década de 80. Processo caudatário dos movimentos de contestação política e cultural, de luta pela democracia e, em alguns casos, de contestação da sociedade capitalista, que ocorreram durante os anos 60 na América Latina e em vários países do mundo. Esse processo de mudanças profissionais, caudatário do movimento social mais amplo, é conhecido no interior da categoria como Movimento de Reconceituação do Serviço Social. Trata-se de um processo heterogêneo a partir do qual se instituiu um pluralismo teórico e ideopolítico na profissão e uma perspectiva de ruptura com o Serviço Social Tradicional (marcado pelo pragmatismo, pela influência européia e norte-americana de perspectiva teórica positivista e funcionalista, pelo conservadorismo, pela falsa noção de neutralidade e pelo humanismo abstrato). Dentre os projetos gestados nesse processo, o projeto de intenção de ruptura (assim cunhado por Netto –1991) ganhou densidade e maturidade teórica e política especialmente a partir das contribuições de I amamoto, em 1982 – fundamentalmente pela incorporação crítica do referencial teórico de Marx, rompendo com o marxismo vulgar que havia sido incorporado anteriormente - e assumiu hegemonia - teórica, ética e política - frente aos outros projetos existentes no interior da profissão. O projeto ético-político profissional hegemônico (o projeto de ruptura) expressa esse amadurecimento. Para análise desse processo, ver, especialmente, Netto (1991).

15 A partir da década de 80 e ao longo da década de 90 são muitos os autores que se vinculam a tradição marxista e que contribuíram para o avanço teórico do Serviço Social, mas pela importância e alcance de suas produções destacamos: I amamoto (1991;1992;2001); Netto (1991;1996a;1996b;2002;2004) e Barroco (2001a); Behring (1998;2003); Raichelis (1988;1998); Mota (1995;1998); Yazbek (1993).

(19)

No caso das abordagens acerca do uso de drogas esse quadro parece-nos ainda mais problemático, uma vez que as respostas para esse fenômeno17

articulam, entre outros elementos, a compreensão da dinâmica psíquica dos indivíduos sociais o que, a nosso ver, favorece de maneira acentuada tendências teóricas que conferem a essa prática uma autonomia face à totalidade social e, na maioria das vezes, recusam as perspectivas que procuram compreender a subjetividade e as interações psíquicas dos sujeitos sociais enquanto complexo singular articulado à objetividade insuperável da produção material e das formas de consciência produzidas pela práxis social.

“[ ...] todas as determinações reais da personalidade surgem das suas relações práticas (depois generalizadas em nível sentimental e teórico) com o ambiente social, com as outras pessoas, com a própria troca orgânica com a natureza, com os complexos nos quais a sociedade global concretamente se articula” (Lukács, 1976-1984c:116).

Outra ordem de problemas que, a nosso ver, merecem uma análise mais cuidadosa com relação às abordagens contemporâneas sobre o uso de drogas diz respeito aos seus conteúdos de valor que, do ponto de vista da abordagem ontológica, são indissociáveis da práxis social. O ser social é um ser que valora, ou seja, um ser que no seu processo de humanização desenvolveu a capacidade de construir e de atribuir valor à realidade natural e social. O valor é um elemento ontológico na esfera do ser que resulta de sua capacidade de consciência, portanto, de autodeterminação.

O valor tem caráter ontológico-social, cujo fundamento é dado pela práxis econômica - tendo em vista sua primazia ontológica na esfera do ser -, por isso, as finalidades que os indivíduos sociais se colocam para a realização da práxis social são orientadas por posições de valor. Na medida em que a totalidade do ser social assume graus cada vez mais elevados de historicidade e de complexidade o valor penetra todas as atividades e esferas da vida em sociedade, assumindo conteúdos particulares no interior dos complexos mediadores da relação entre o indivíduo e a sociedade, como na estética, na ética e na política.

Como a totalidade social sintetiza as múltiplas determinações das esferas que lhe são constitutivas, as posições de valor - que são mediações das esferas que integram a totalidade - são, também, entrecortadas por essas múltiplas determinações. Assim, ainda que pese a autonomia relativa entre essas esferas e destas com a totalidade social, as posições de valor atravessam a práxis social, mesmo quando seus conteúdos têm origem em esferas mais particulares (ética ou política). Por isso, a impossibilidade no âmbito do ser social da neutralidade. E mais, os valores se originam e se concretizam através da práxis

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social, portanto, não nascem da subjetividade individual, são categorias ontológico-sociais.

Nesse sentido, as abordagens sobre o uso de drogas – enquanto práxis teórica - são, como todas as demais modalidades de práxis, saturadas de posições de valor que necessitam ser desveladas. Em primeiro lugar porque na sociedade capitalista os valores podem objetivar interesses de classes. Em segundo lugar porque as abordagens sobre o uso de drogas na atualidade se situam num quadro matizado pelos seguintes elementos: o caráter ilícito de várias drogas consumidas mundialmente não responde a critérios exclusivamente de saúde (até porque, a nosso ver, os danos de saúde associados ao uso de drogas não se resolvem com a ilegalidade); há uma crescente onda de intolerância social em relação ao consumo de determinadas drogas consideradas mais nocivas à saúde (é notório que as campanhas antitabagistas vêm se transformando numa verdadeira “caça às bruxas”); o quadro de instabilidade e de violência social que o narcotráfico representa tem contribuído para a revitalização de respostas conservadoras e autoritárias18 que,

a nosso ver, pode incidir sobre determinadas práticas de saúde na perspectiva de moralização e de controle sobre o comportamento dos segmentos sociais considerados “marginais”, como já ocorreu em outros contextos históricos19.

De modo algum essas indicações genéricas esgotam a complexidade e a diversidade das produções teóricas dos campos aos quais nos referimos, seja nas ciências sociais, no Serviço Social ou em outras áreas que tratam do uso de drogas. Mas, enquanto tendência teórica dominante, é possível tomá-las como referência para afirmar a importância e a contribuição que uma abordagem ontológica do ser social20 pode oferecer para a apreensão teórica do uso de

drogas e das respostas sociais e de saúde nessa área, uma vez que as abordagens dominantes nesse campo, mesmo as de perspectiva mais abrangentes, quase sempre, não têm analisado as mediações que operam na totalidade social e sua articulação com a essência histórica do indivíduo social, ele próprio um ser complexo e social.

Outra dificuldade decorrente de nossa opção pela abordagem ontológica, inspirada especialmente nas elaborações de Lukács (e de seus estudiosos) sobre o vigor e a fecundidade do pensamento de Marx, diz respeito à sua apropriação como referência de análise de fenômenos históricos particulares cuja gênese é dada pela práxis social. Especialmente porque às elaborações

18 Basta lembrar que frente aos episódios recentes de confronto entre grupos ligados ao narcotráfico e a polícia no Rio de Janeiro ou mesmo aos ataques do crime “organizado” em São Paulo não foram poucas as manifestações favoráveis à intervenção do exército. Nessas situações de crise e de insegurança quase sempre, também, reaparecem as manifestações favoráveis à pena de morte e à redução da idade penal. 19 Embora não seja a nossa perspectiva teórica, Foucault (1979; 2001) oferece elementos para essa discussão.

20 A originalidade das análises de Marx sobre o modo de (re) produção capitalista foi reavivada pela, também original, abordagem ontológica de Lukács sobre o ser social. Na área do Serviço Social a influência desse filósofo vem se dando, através da contribuição, especialmente, dos seguintes autores: Heller (1972,1977,1978,1982,1983); Tonet (1984; 2005); Coutinho (1972; 1986; 1994; 1996a; 1996b);

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filosóficas desse pensador - cujo objetivo central é discutir as bases ontológicas de constituição e reprodução do ser social - se impõe um grau de abstração e de generalização capaz de expressar o movimento dialético e histórico de um processo complexo, desvelando as bases ontológicas de seus momentos constitutivos e das determinações fundantes de sua continuidade que se desdobra de maneira sempre diferenciada e inédita, porque histórica.

Com isso, além da própria dificuldade de apreensão dos fundamentos dessa abordagem, a utilização de categorias filosóficas tão complexas para análise de fenômenos particulares oferece o risco de transposições mecânicas ou mesmo idealizadas que, ao contrário da elucidação pretendida, podem falsear a compreensão da realidade objetiva que se impõe como critério de verdade a qualquer modalidade de conhecimento.

Assumindo os riscos que uma análise dessa natureza comporta, pretendemos elaborar uma análise de inspiração ontológica e dialético-materialista (Lukács, 1976-1984) procurando reconstruir teoricamente algumas mediações que, a nosso ver, incidem sobre o uso de drogas e sobre as respostas sociais e de saúde nessa área, na contemporaneidade brasileira.

Assim, para manter a coerência com essa perspectiva ontológica, nos valeremos de seus fundamentos, nos limites de nossa compreensão e de nossa capacidade crítica que a envergadura desse referencial exige, para realizar uma análise teórica sobre o uso de drogas e sobre as respostas sociais e de saúde nesse campo na contemporaneidade. Pretende-se analisar o uso de drogas e as respostas sociais e de saúde à luz de uma abordagem ontológica sobre os fundamentos histórico-sociais da práxis social. Parte-se, portanto, do reconhecimento radical da historicidade e da sociabilidade do mundo humano fundado no ato ontológico-primário que é o trabalho, sem com isso reduzir ou deduzir mecanicamente as demais modalidades de práxis social à sua matriz fundante [ o trabalho] (Tonet, 2005).

Uma abordagem, sobre qualquer esfera da realidade histórica ou atividade que integra o mundo dos homens, que se pretenda ontológica, exige uma apreensão crítica das mediações histórico-sociais que matizam o campo de possibilidades de realização dos atos singulares dos indivíduos sociais e da relação - dialética e insuperável - destes com a totalidade social.

“Fica claro, também, que a realidade social é, na sua integralidade, resultado da atividade social humana. Independentemente do quantum de consciência sobre isso e dos resultados alcançados, o homem se faz integralmente a si mesmo. Pode-se dizer, com os devidos cuidados, que a unidade mínima do processo social são os atos singulares dos indivíduos (ainda assim, sempre atos de caráter social). É a partir deles, individual ou coletivamente realizados, que se objetivam os campos, as forças, as instituições e as tendências histórico-sociais” (Tonet: 2005:116-117).

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articulação com o processo social, como expressão objetiva da síntese operada pela radical integralidade do mundo dos homens.

Pretende-se assentar a apreensão teórica sobre o uso de drogas e sobre as tendências históricas dominantes das respostas sociais e de saúde nesse campo na discussão sobre os fundamentos ontológicos da práxis social, com destaque para a práxis interativa, uma vez que é essa modalidade de práxis que, no âmbito das respostas formuladas para o atendimento de necessidades sociais, tem a finalidade de interferir no comportamento dos indivíduos sociais e nas relações históricas entre os homens. Assim, entendemos que a práxis é o conjunto de objetivações do ser social, sendo a práxis produtiva seu modelo primordial. No âmbito da totalidade social a práxis interativa supõe a práxis produtiva e pode assumir uma autonomia relativa em determinadas esferas e atividades, suas objetivações têm por finalidade interferir nas posições teleológicas dos indivíduos sociais e constituem relações entre as diferentes esferas da totalidade social. A ética e a política, por exemplo, são modalidades de práxis interativa.

“A práxis não tem como objeto somente a matéria; também supõe formas de interação cultural entre os homens. Para transformar a realidade produzindo um mundo histórico-social, os homens interagem entre si e tendem a influir uns sobre os outros, buscando produzir finalidades coletivas. A práxis interativa, por exemplo, emerge como necessidade posta pelo desenvolvimento da sociabilidade; sua especificidade está no fato de objetivar uma transformação da realidade em sua dimensão consciente, valorativa, cognoscitiva, teleológica. Nesse sentido, a vida social se constitui a partir de várias formas de práxis, cuja base ontológica primaria é dada pela práxis produtiva objetivada pelo trabalho” (Barroco: 2001a:30).

Tomando como quadro referencial a discussão sobre os fundamentos ontológicos da práxis interativa, realizaremos uma discussão teórica sobre: a sociabilidade contemporânea e as determinações que incidem sobre o uso de drogas; sobre as tendências históricas dominantes das respostas sociais e de saúde nessa área e sobre a emergência da redução de danos em nosso meio. Com base nessa discussão analisaremos dois textos que, a nosso ver, permitem desvelar alguns fundamentos discutidos teoricamente e, na medida em que são expressões de idéias e de valores, podem ser tomados como mediações que dão inteligibilidade ao significado atribuído tanto ao uso de drogas na atualidade quanto às tendências históricas dominantes das respostas sociais e de saúde nessa área: “...as idéias são sempre mediações – ainda que indiretas – para o conhecimento e a intervenção na realidade” (Tonet:2005:108).

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própria realidade. Vale dizer uma teoria do ser precede uma teoria do conhecer” (Tonet, 2005:111).

Os textos que são objeto de nossas análises foram escolhidos na perspectiva de garantir a apreensão teórica das principais mediações que configuram o campo de possibilidades da práxis social, tanto em relação à complexidade do uso de drogas quanto das respostas formuladas a esse uso na realidade brasileira contemporânea. Trata-se de uma crônica que relata a experiência de uso de drogas de um personagem de ficção e de um texto sobre os princípios da abordagem de redução de danos associados ao uso de drogas.

É nosso objetivo desvelar as mediações sócio-históricas presentes nas expressões fenomênicas do uso de drogas na sociabilidade contemporânea e nas tendências históricas dominantes das respostas sociais e de saúde nessa área. Problematizar em que medida as posições teleológicas dos sujeitos vinculados às abordagens de redução de danos puderam ou não se objetivar frente aos nexos causais postos pela totalidade social. Nessa direção, a abordagem ontológica é fundamental para apreensão dos fundamentos ontológicos da práxis social na perspectiva de superar o imediatismo e a positividade da sociabilidade burguesa que se expressa na efemeridade e na aparência reificada, obscurecendo as determinações essenciais que incidem sobre os fenômenos históricos particulares.

Os textos serão analisados à luz da abordagem ontológica sobre os fundamentos da práxis social e da particularidade das tendências históricas dominantes das respostas sociais e de saúde nessa área na atualidade. Os textos serão tomados como expressões de mediações objetivas que, de forma complexa, contraditória e articulada à totalidade social, incidem sobre as motivações, finalidades e escolhas dos indivíduos sociais que fazem uso de drogas e sobre as respostas sociais e de saúde que tem por finalidade interferir nessa realidade.

Nesse sentido, a coerência - de natureza teórica, ética e política - que pretendemos manter com a abordagem ontológica implica assumir que a centralidade de nossas análises tem a pretensão de reconstruir teoricamente as mediações concretas que determinam as escolhas dos indivíduos sociais diante das drogas e as formulações teóricas e políticas que visam explicar e interferir nessas escolhas.

Na mesma direção, vale observar que nossas análises são saturadas de intencionalidade, ou seja, pretendem legitimar as abordagens teóricas, as atuações profissionais, a práxis política e os valores éticos que se vinculam aos projetos coletivos que têm como horizonte utópico21 o pleno desenvolvimento

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dos indivíduos sociais. Ou seja, com os projetos coletivos comprometidos com a superação da sociabilidade burguesa, apesar dos limites concretos que a práxis social impõe a este projeto, o que não impede sua construção e defesa cotidiana, ainda que seja nos limites da resistência aos domínios do capital. Por isso, pretendemos, também, discutir as potencialidades das abordagens de redução de danos, de objetivação de valores éticos comprometidos com a ampliação da liberdade, da democracia, da autonomia dos indivíduos sociais, da justiça social com eqüidade e com os direitos humanos e de cidadania no campo da saúde pública, com ênfase na prevenção e no tratamento do uso de drogas.

Nesse sentido, é preciso explicitar nossa vinculação com as abordagens de redução de danos, pois, do ponto de vista ontológico, o caráter alternativo da práxis social no âmbito da sociabilidade burguesa é sempre mediado por motivações e valores fundados em interesses e necessidades de classe. Ou seja, no âmbito da práxis, inclusive a teórica, não existe neutralidade. Portanto, a abordagem ontológica que realizamos em nossa pesquisa teórica é matizada pelo acúmulo e pela contribuição que assentam raízes nas abordagens e nas experiências práticas de redução de danos que se desenvolveram em nosso meio a partir do final da década de 80, e com as quais tivemos envolvimento ativo no âmbito teórico, prático e político.

A principal motivação para realização dessa pesquisa está estritamente relacionada com nossa atuação profissional e militante no âmbito da trajetória histórica da redução de danos na realidade brasileira. É nossa intenção contribuir, numa perspectiva ontológica, com o debate sobre o uso de drogas e para a construção de respostas sociais e de saúde nessa área, na perspectiva de fortalecimento das abordagens de redução de danos no campo da prevenção e do tratamento do uso de drogas no âmbito da saúde pública.

As abordagens de redução de danos ganharam visibilidade política através do advento da epidemia do HI V/ aids. A possibilidade histórica de confronto com as abordagens dominantes - em sua maioria matizada por valores conservadores, no campo da psiquiatria e da saúde pública – que orientam as repostas ao uso e a dependência de drogas foi dada pela associação entre uso de drogas injetáveis e transmissão do HI V/ aids.

Após duas décadas de experiências práticas e de formulações teóricas nesse campo as abordagens de redução de danos continuam presas à associação inicialmente estabelecida entre suas estratégias e a prevenção do HI V/ aids. Os ganhos desta associação se traduzem na visibilidade que essa abordagem conquistou durante a década de 90 mas, por outro lado, muitos dos limites de seu desenvolvimento também são, a nosso ver, tributários dessa mesma associação, como pretendemos demonstrar ao longo de nossas análises.

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Será pela mediação da discussão teórica sobre os fundamentos ontológicos da práxis social - com destaque para a práxis interativa -, de sua relação com o uso de drogas e com as respostas sociais e de saúde na contemporaneidade, que pretendemos problematizar as tendências históricas da redução de danos na atualidade - após mais de vinte anos da epidemia do HI V/ aids que se constituiu como uma de suas bases de legitimidade social – e de sua potencialidade para confrontar os valores éticos e a direção política das abordagens dominantes nesse campo.

A apreensão de nosso objeto de estudo será mediada por uma discussão teórica sobre os fundamentos ontológicos do ser social, do caráter constitutivo da práxis sócio-histórica, da ética e da política como modalidades de práxis interativa, da articulação entre a dimensão cotidiana da vida social e da totalidade social e das particularidades da sociabilidade burguesa. Discussão que apresentamos em nosso primeiro capítulo:

Sobre o homem I .

Em nosso segundo capítulo,

Sobre o homem I I

, analisamos as determinações postas pelo modelo de acumulação flexível a partir da década de 60 do século passado ao desenvolvimento do ser social. Procurando destacar as mediações existentes entre a lógica de acumulação do capital no contexto da reestruturação produtiva, a ambiência cultural “pós-moderna” e o consumo de drogas como uma resposta alternativa às necessidades sócio-históricas forjadas pela sociabilidade reificada no contexto da ambiência da “pós-modernidade”.

Em

Sobre o homem I I I

, nosso terceiro capítulo, apresentamos as tendências históricas das respostas sociais e de saúde para o consumo de drogas a partir dos traços que, de forma predominante, marcam as relações entre o Estado e as classes sociais na sociedade brasileira. Posteriormente, situamos a configuração da saúde como direito social e de cidadania enquanto resultante objetiva das circunstâncias históricas desenhadas no contexto de transição democrática da sociedade brasileira e que ganham força na década de 80. Nesse contexto, destacamos as origens do movimento sanitário e sua articulação com o movimento mais amplo de organização da classe trabalhadora, que culminam na proposta de Reforma Sanitária e do Sistema Único de Saúde. Propostas que enfeixam um leque mais amplo de conquistas – fruto da luta política de setores organizados vinculados às necessidades da classe trabalhadora - no campo da cidadania e da Seguridade Social e que são formalizadas na Constituição brasileira de 1988. Nos limites dessas circunstâncias históricas situamos a emergência da epidemia do HI V/ aids, as contingências postas para o campo da saúde pública e as condições de emergência da redução de danos. Apresentamos um quadro geral da redução de danos em nosso meio e, posteriormente, procuramos desvelar as mediações presentes nessas circunstâncias históricas; os vínculos da redução de danos com as contingências postas pelo HI V/ aids e os limites e possibilidades para o campo da redução de danos decorrentes dessa vinculação inicial.

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PARTE I

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“Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. [ ...] Eu não dei por esta mudança, Tão simples, tão certa, tão fácil: - em que espelho ficou perdida a minha face?” (Cecília Meirelles)22

Capítulo 1

Sobre o homem I

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O homem é o ser social24. Fruto de sua auto-atividade, cuja matriz

fundante é o trabalho, o ser social se cria e recria num processo histórico, complexo e dialético, mediado pelas várias modalidades de práxis social. O processo de autoconstrução humana, que tem no trabalho sua determinação ontológica, institui a totalidade social como síntese de múltiplas determinações, geradas pela relação dialética e histórica entre determinismo e liberdade.

“...toda decisão alternativa é o centro de um complexo social que conta com o determinismo e a liberdade entre os seus componentes dinâmicos. A posição de um fim, que dá origem a algo de ontologicamente novo enquanto ser social, é um ato nascente de liberdade, uma vez que os modos e os meios de satisfazer uma necessidade não são mais efeitos de cadeias causais espontaneamente biológicas, mas resultados de ações decididas e executadas conscientemente. Mas, este ato de liberdade é, ao mesmo tempo e em indissolúvel conexão com isto, diretamente determinado pela própria necessidade, através da mediação daquelas relações sociais produzidas pela sua espécie, qualidade etc. Esta mesma dupla presença, a simultaneidade e a interrelação de determinismo e liberdade, também pode ser encontrada na efetivação do fim” (Lukács, 1976-1984a:80).

22Retratos In Di Giorgi, 2002.

23 “Deve-se evitar antes de tudo fixar a ‘sociedade’ como outra abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. A exteriorização da sua vida – ainda que não apareça na forma imediata de uma exteriorização de vida coletiva, cumprida em união e ao mesmo tempo com outros – é, pois, uma exteriorização e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são distintas, por mais que, necessariamente, o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou geral” (Marx, 1974:16).

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A relação dialética entre determinismo25 e liberdade atravessa o campo

de possibilidades históricas de desenvolvimento e reprodução da totalidade do ser social. O reino das necessidades (Marx, 1993) se mantém como dimensão insuperável do processo de humanização do ser social, e seus conteúdos tornam-se, pelo caráter alternativo da práxis social, cada vez mais complexos e sociais. O reino das necessidades é assim entendido como expressão das determinações concretas postas pelas necessidades de reprodução biológica e social que constitui uma unidade insuperável na esfera do ser. O caráter alternativo da práxis social, que resulta da capacidade de agir intencionalmente para realizar finalidades postas historicamente pelo próprio ser social, é expressão da capacidade de liberdade do ser tornado homem. No entanto, o núcleo gerador da capacidade de liberdade não é nem absoluto e nem unilateral, é um campo de possibilidades criadas pelo próprio homem para o atendimento de necessidades sócio-históricas que, embora assumam conteúdos cada vez mais sociais, não rompem com a base primordial de reprodução material.

O mundo humano resulta, assim, em um processo histórico e dialético de construção de respostas, mediadas pela consciência, às necessidades sócio-históricas. As necessidades são o fundamento da práxis, ou seja, as atividades transformadoras e intencionais do homem são respostas concretas para o atendimento de necessidades também históricas. É só na esfera do ser social que a capacidade ontológica de autodeterminação é possível. Trata-se de uma capacidade conquistada pelo homem em seu processo de autoconstrução. Essa capacidade encontra seu fundamento ontológico na troca orgânica com a natureza realizada pelo homem através dos atos de trabalho: atividade prática e criadora, mediada pela consciência, cuja capacidade teleológica de antecipar os resultados de sua ação se realiza através do uso e da criação de instrumentos, da criação de valores e de novas necessidades para o atendimento de suas finalidades.

“Por isso, o desenvolvimento do trabalho contribui para que o caráter de alternativa da práxis humana, do comportamento do homem para com o próprio ambiente e consigo mesmo, se baseie sempre mais em decisões alternativas. A superação da animalidade através do salto da humanização no trabalho e a superação da consciência fenomênica, determinada apenas biologicamente, ganham assim, com o desenvolvimento do trabalho, uma

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tendência a reforçar-se permanentemente, a tornar-se universais” (Lukács, 1976-1984a:39).

O ser social é uma totalidade complexa cuja essência histórica expressa as particularidades do grau de desenvolvimento de suas capacidades essenciais (universalidade, sociabilidade, consciência e liberdade), postas em movimento pela práxis do trabalho e se desdobrando em conteúdos cada vez mais puramente sociais.

“A prioridade de ser da reprodução biológica do homem como ponto de partida de sua atividade econômica, esta como base econômico-genética de suas atividades, enfim, cada vez mais puramente sociais: este é o fundamento ontológico que articula indissoluvelmente o materialismo dialético, a filosofia geral do marxismo, com a sua teoria do desenvolvimento histórico-social, com o materialismo histórico; tal articulação se torna ainda mais sólida e fundamentada se pensamos que também a historicidade, como vimos, é um princípio ontológico basilar da concepção de mundo do marxismo” (Lukács, 1976-1984c:45).

Essa apreensão da irredutível historicidade do ser social e do caráter ontológico do trabalho no seu processo de humanização implica, entre outros elementos, uma recusa radical das seguintes possibilidades de apreensão da realidade objetiva do mundo humano: de uma teleologia na história; da consciência fenomênica (determinada apenas biologicamente), da identidade entre sujeito e objeto e da separação ontológica das seguintes esferas do ser: vida material e espiritual, subjetividade e objetividade, indivíduo e sociedade (LuKács, 1979a;1976-1984a,b).

Os critérios de validação da recusa dessas modalidades de apreensão da realidade objetiva são verificáveis, pela abordagem ontológica, pela explicitação histórica dos conteúdos cada vez mais puramente sociais da práxis. A impossibilidade de conceber uma teleologia na história resulta da apreensão de que o por teleológico é específico do ser social, se origina nos atos do trabalho, e se desdobra nas diversas modalidades de práxis que tem como fundamento o desenvolvimento e a complexidade da totalidade do ser social. Ou seja, não há nada no mundo humano que não seja produto da práxis histórica dos homens vivendo em sociedade. A história é produto objetivo da práxis social e não há em sua constituição ontológica e nos produtos de sua criação nenhum conteúdo metafísico26. A legalidade objetiva da totalidade social27 - suas particularidades e

tendências históricas - não é dada ao ser social, mas resulta do caráter histórico e alternativo da práxis social.

26 Metafísico aqui se refere a qualquer conteúdo que precede a realidade objetiva e/ ou transcende o mundo histórico-social dos homens e de suas relações sociais concretas.

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Mesmo quando tomamos como referência a relação dialética e insuperável entre determinismo e liberdade na esfera do ser, é possível constatar o crescente grau de conteúdos histórico-sociais na esfera das necessidades (determinismo), ainda que se mantenha insuperável a determinação fundamental da reprodução biológica; fato que do ponto de vista da ontologia do ser social não tem nenhuma contradição com a compreensão da história como produto da práxis, já que para essa abordagem é somente sobre a base natural que existe a possibilidade do salto ontológico de constituição do ser social, cuja gênese se encontra na práxis do trabalho.

“A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, que se come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes. A produção não produz, pois unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, não só objetiva, como subjetivamente” (Marx, 1985:110).

Do mesmo modo não há nenhuma contradição no âmago da abordagem ontológica em conceber um papel fundamental para a consciência no âmbito da práxis e, ao mesmo tempo, recusar qualquer caráter fenomênico a essa capacidade e qualquer conteúdo metafísico na sua constituição. A consciência é, ao mesmo tempo, fundamento e produto da práxis social. Opera no ser social como capacidade de acumular conhecimentos, de criar valores, de construir finalidades e de antecipar os resultados de suas ações. Capacidades e conteúdos que só existem e se desenvolvem no âmbito da práxis social. Pense-se, por exemplo, na radical transformação que ocorre na esfera do ser social com o advento histórico do indivíduo no Renascimento. A consciência individual de direitos e liberdades, cuja possibilidade histórica é dada pelo desenvolvimento das forças produtivas e, simultaneamente, se constitui como elemento fundamental para o processo de objetivação da práxis social no sentido de legitimar o modelo de sociedade nascente.

“ Vimos, de um lado, que a nova forma de continuidade não pode surgir no social sem a consciência; somente se elevando à consciência da nova forma este ser pode alcançar o novo ser-para-si. Ao mesmo tempo, porém, vimos que a processualidade do processo e, portanto, a forma adequada da nova continuidade, sofreria uma interpretação deformante se não se entendesse também a consciência como alguma coisa de gradual, processual, de continuativa, mas, ao contrário, se quisesse considerá-la por inteira presente desde o início” (Lukács, 1976-1984c: 62).

É também pela mediação da consciência, cujas formas históricas e conteúdos resultam da práxis social, que se cria a possibilidade ontológica de constituição da capacidade valorativa na esfera do ser social. A capacidade de atribuir valor –e, portanto, de atribuir sentido a realidade natural e social e de por finalidades a si mesmo – faz da práxis social uma atividade consciente e intencional e transforma o homem num ser capaz de existir eticamente e de construir projetos.

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objetos – não são extensões dos sujeitos, ou partes integrantes do ser. As objetivações realizadas pelo sujeito na construção do objeto não se confundem, em identidade, com a continuidade do ser. Os objetos existem fora do sujeito. Por mais que a atividade criadora do sujeito tenha sido empregada na construção do objeto, a existência material desse último é um dado ontológico que não permite identificá-lo com o sujeito. Essa heterogeneidade entre o sujeito e o objeto rompe com qualquer perspectiva de busca de uma teleologia fora da esfera do ser social. Por outro lado, dessa apreensão não resulta nenhuma contradição com o fato de que a existência do objeto possa influir sobre o indivíduo social e sobre as finalidades postas pela consciência para sua práxis. Ou seja, a distinção ontológica entre o sujeito e o objeto não rompe com a perspectiva da existência de uma relação dialética entre eles; rompe apenas com a falsa interpretação de uma identidade entre os mesmos. Da mesma forma que, do ponto de vista ontológico, essa distinção não impede a apreensão crítica sobre as formas reificadas28 que os objetos (mais

precisamente as mercadorias) assumem na sociedade capitalista. Os objetos produzidos pela práxis, embora não se identifiquem com o sujeito, são em sua essência expressão da relação histórica entre os homens. Com o fenômeno histórico da alienação29 - gerado pelo trabalho assalariado na sociedade

capitalista - os objetos produzidos pela práxis, ao mesmo tempo em que obscurecem a relação entre os homens que está na sua base, podem ser considerados, na aparência, como a personificação dos indivíduos sociais (suas necessidades, seus desejos, sua riqueza) pela lógica que preside a necessidade de posse e de consumo nesta sociabilidade.

Por último, a recusa da abordagem ontológica em separar as esferas constitutivas do ser social – material e espiritual, objetivo e subjetivo, indivíduo e sociedade – é resultado da perspectiva de apreensão do ser tornado homem como uma totalidade complexa. Na esfera do ser há uma unidade irredutível entre essas diferentes dimensões.

Embora a base material da vida seja o fundamento de toda práxis social, a totalidade do ser não pode ser reduzida a esta esfera da vida em sociedade, da mesma forma que não se pode deduzir mecanicamente todas as modalidades de práxis - que conferem objetividade à (re) produção espiritual do ser social - de sua base ontológica determinante, a práxis econômica. A totalidade do ser resulta da síntese dialética entre dimensão material e espiritual, subjetividade e objetividade, indivíduo e gênero, enquanto complexos que conferem unidade ao ser. Essa unidade, no entanto, não resulta da identidade entre essas dimensões, mas de um processo sempre inédito, visto

28 “O que especifica historicamente a sociedade burguesa constituída é que ela, sem cortar com as formas alienadas que vêm das sociedades que a precederam (bem como com o essencial do seu fundamento econômico-social real), instaura processos alienantes particulares, aqueles postos pelo fetichismo, e que redundam em formas alienadas específicas, as reificadas” (Netto, 1981:75-76).

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que histórico; feito de momentos de superação e de continuidade, de mudanças e de reprodução, com graus de permanência e de diversidade que se determinam mutuamente em cada uma dessas dimensões e na relação insuperável que existe entre elas. Essas esferas são partes constitutivas da totalidade complexa que é o ser social, por isso, a impossibilidade de separação ontológica entre elas.

“O homem – por mais que seja um indivíduo particular, e justamente é sua particularidade que faz dele um indivíduo e um ser social individual efetivo – é, na mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, o modo de existência subjetivo da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também na efetividade ele existe tanto como intuição e gozo efetivo do modo de existência social, quanto como uma totalidade de exteriorização de vida humana” (Marx,1985:10).

Da unidade irredutível e ontológica das várias esferas que constituem a complexidade do ser social e do caráter sempre alternativo da práxis social resulta uma multiplicidade de mediações que conferem objetividade a totalidade social. Os complexos mediadores que se originam das necessidades postas pela práxis do trabalho, assumem legalidades específicas no processo de reprodução da totalidade do ser social. Ao mesmo tempo em que são expressões do grau de complexidade que o ser social adquire no processo histórico-social de sua autoconstrução.

“A universalidade, a sociabilidade, a consciência e a liberdade são capacidades humano-genéricas, ou seja, sem as quais a práxis não se realiza com suas potencialidades emancipatórias. Inscritas na dinâmica da totalidade social – cada vez mais complexa e rica em determinações – tais capacidades são mediações entre os indivíduos e o gênero humano, perpassando por todas as esferas, podendo se desenvolver mais em umas e menos em outras. Isto sem contar que as diversas esferas sociais também se desenvolvem de forma desigual – nelas mesmas e em relação aos indivíduos, classes e estratos sociais” (Barroco, 2001a:28).

Na esfera do ser social ocorre, assim, um ininterrupto processo de posições teleológicas (finalidades idealmente projetadas no plano da consciência, orientadas por um dado conhecimento da realidade e uma diversidade de valores, para o atendimento de necessidades) que, articuladas em graus e complexidade diversos de mediação com as necessidades criadas pela práxis do trabalho, criam as bases objetivas de desenvolvimento das capacidades humano-genéricas que, por seu turno, oferecem os fundamentos dos complexos sociais necessários à reprodução da totalidade do ser.

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