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Etnocenologia de um capoeira justiceiro

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BA

E TN O C E N O LO G IA

D E U M C A P O E IR A JU S TIC E IR O

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

J o s é C e r a r d o V a s c o n c e l o s

Professor Associado I, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Ceará. Bacharel em Filosofia Política, Especialista em Filosofia Política, Mestre e Doutor em Sociologia e Pós-Doutor em Ar-tes Cênicas. Coordena o Núcleo de Pesquisa de Filosofia e Sociologia da Educação-FILOS, do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, da Universidade Federal do Ceará e edita a Coleção Diálogos Intempestivos. E-mail: gerardo.vasconcelose'bol.corn.br

R esu m o

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o

o b j e t i v o d e s s e e s t u d o éu m a b r e v e e x p o s i ç ã o d o c o n c e i t o d e e t n o c e n o l o g i a e s u a u t i l i z a ç ã o n a p e s q u i s a h i s t ó r i c a . A p e s q u i s a em q u e s t ã o a b o r d a o s i n d í c i o s d a v i d a d e u m c a p o e i r i s t a j u s t i c e i r o q u e v i v e u n o i n í c i o d o s é c u l o X X . M a n o e l

H e n r i q u e P e r e i r a o u B e s o u r o é o c a p o e i r i s t a em q u e s t ã o .

Palavras-Chave: Etnocenologia; Capoeira: Besouro.

Abstract

T h e o b j e c t i v e o f t h i s s t u d y i s a b r i e f e x p o s i t i o n o f t h e e t n o c e n o l o g i a c o n c e p t

a n d i t s u s e i n t h e h i s t o r i c a l r e s e a r c h . T h e r e s e a r c h a p p r o a c h e s t h e i n d i c a t i o n s

o f ah i r e d k i l l e r c a p o e i r i s t a l i f e t h a t l i v e d a t t h e b e g i n n i n g o f c e n t u r y x x . M a n o e l

H e n r i q u e P e r e i r a o r B e s o u r o i s l h e c a p o e i r i s t a i n q u e s t i o n

Key-Word: Etnocenologia; Capoeira; Besouro.

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E tn o c e n o lo g io

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

de UmC a p o e ir a Justiceiro

aCIi-PERIODICOS

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A

etnocenologia

é

uma disciplina que se inicia no momento atual e se organiza a partir de uma articulação entre pesquisadores de várias instituições acadêmicas. A criação do Centro Internacional de Etnoceno-logia, em Paris, aproxima a referida disciplina da etnologia clássica e das variantes das etnociências e da etnometodologia. Segundo Bião:

Também neste contexto teórico-histórico, vale considerar a contri-buição de pesquisadores norte-americanos, como Garfinkel, que

propõe já nos fins de 1950 a etnometodologia como perspectiva

metodológica e não como uma disciplina. De fato, o que as etno-ciências podem ter como perspectiva comum é a busca de compre-ensão dos discursos dos diversos agrupamentos sociais sobre sua prática coletiva, inclusive e, talvez, principalmente, suas práticas corporais. (1999, p. 16-17).

Temos, portanto, a possibilidade de utilizar a etnocenologia para elaborar, a partir de vários discursos, aquilo que a humanidade inventa para celebrar a vida e seus rituais, amores e festas, seus símbolos e sole-nidades. Éa ânsia de imiscuir o corpo no rito espetacular de um aconte-cimento social. De acordo com Pradier,

137

Por "espetacular" deve-se entender uma forma de ser, de se com-portar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma forma disti nta das ações banais do cotidiano. (1999, p. 24).

A capoeira

é

um espetáculo. Em alguns casos, constitui personagens. Éa arte do fingimento. O disfarce teatralizado do jogo que dança uma luta de guerra. É um dispositivo que trafega pelos caminhos de reelaboração. Uma trapaça montada no cenário da roda que gira o mundo entoado pelas cantigas de saudade, pelo choro do berimbau e/ou pela potência compassada do pandeiro e do atabaque. Cantar com seus símbolos, nomes e acontecimentos

é

parte de um segredo que pulsa a tensão de um tempo marcado pela diversidade de caminhos. Os nomes, símbolos e rituais

(3)

José Gerardo Vasconcelos

revivem na memória e nos feitos hercúleos de seus partícipes. Entretanto, alguns indivíduos marcam o seu momento histórico com tanta potência que a força de suas ações, dificilmente, poderia ser esquecida; pois, se o esquecimento nos protege das dores, não impedirá que os homens sintam saudade ou rememorem os seus mitos, símbolos e imagens. De acordo com ELlADE, "o símbolo, o mito, a imagem pertencem

à

substância da vida espiritual, que podemos camuflá-Ias, mutilá-Ias, degradá-Ias, mas que jamais poderemos extirpá-Ias." (1991, p. 7).

Em alguns casos, esses indivíduos transmudam-se em divindades, mitos ou heróis. São olimpianos que viveram um ritual de passagem e, ao mesmo tempo, estendem a própria morte ao constante reinício, re-colocando em novo lugar o dilema da transitoriedade humana. Já que trafegam no interstício da vida e da morte, ganham uma condução divina no esplendor das luzes celestiais movidas pelas fendas da história.

Na realidade, eles não morreram. São cantados, relatados, narrados, descritos pela literatura ou arquivados em documentos que, no presente, devem simplesmente ser encontrados. Alguns homens deixam pistas de

sua passagem pela história. Deixam marcas, indícios ou pegadas, parawvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

138

que o historiador tenha um mínimo de entretenimento.

Para falar desses senhores do tempo, os procedimentos clássicos da historiografia nem sempre foram tão "eficientes". O pesquisador garimpa os sinais e marcas documentais. Pela ausência do documento, poderá recontar o tempo de outra forma sem os sinais de "certeza" ou "verdade". Entretanto, essa ausência pode ser fartamente preenchida pelos narradores e testemunhas do tempo. A lembrança - nesse caso - passa a ser outra aLI mais uma ferramenta que o pesquisador poderia utilizar para enxergar com os olhos da narração uma página a mais da história.

Contudo, é de bom alvitre lembrar que o mesmo "cuidado" que se deve ter com o documento para que ele não se rasgue ou para que os pon-tos encoberpon-tos pela ação do tempo sejam revividos, deve-se ter também com as derrapagens mnemônicas produzidas pelo discurso dos narradores. Esses relatos são fundamentais para acordar a lembrança dos homens. É que a lembrança está ligada em muitos pontos de esquecimento. Podem ser puxados, picotados, desviados, inventados, recontados, protegidos ou simplesmente negados para proteger os narradores do presente.

Temos ainda a possibilidade de reencontrar pistas ou vidas a partir

da literatura, reinventando a cena cotidiana com a força da oral idade.ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

(4)

Etnocenoloqto de Um Capoeira Justiceiro

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

sobrevivência dos grandes mitos durante o século XIX. Veríamos como, humildes, enfraquecidos, condenados a mudar incessantemente de em-blema, eles resistiram a essa hibernação, graças sobretudo

à

literatura." A possibilidade de preservar os mitos e símbolos - quase esquecidos pelo tempo ou pela história oficial- implica, dentre outras coisas, o poder que a literatura tem de trapacear com a língua; a trapaça salutar proposta por Barthes também denominada literatura.

Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua. Essatrapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a lín-gua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu o chamo, quanto a mim: literatura. (1978, p. 16).

Besouro está presente na literatura de Amado (1973, p. 123-128) que lhe dedica um capítulo de

PONMLKJIHGFEDCBA

M a r M o rto . Na literatura de Cordel de Antônio Vieira, temos a narração poética que mistura ficção e realidade baseada na tradição oral e na cadência de musical idade que se expressa pela riqueza da rima e da sextilha. A poesia de Vieira (2001 :08) "relata"

um possível encontro de Besouro com o valentão Doze Homens. Após

1 Y

provocação feita com um copo de cachaça, o desafiante lança ao outro

a possibilidade de duelar - O s u je ito d is s e : - c a b ra , /E u v o u lh e d iz e r o

m e u n o m e /P ra v o c ê s e b o rra r to d o /S e a rre p e n d e r d e s e r h o m e m /M a l-c ria ç ã o d e s s e je ito /n o m e u fa c ã o d á

é

fo m e /s a ib a q u e m e s tá fa la n d o /É s e u p a trã o , D o z e H o m e n s .

A resposta é rápida - Besouro não levava desaforo para casa. Estava acostumado aos desafios. Isso era feito constantemente na região. Ele, que nunca temera a polícia, que desafiava os proprietários dos enge-nhos, que montava animal brabo, que conhecia os segredos dos orixás e tinha o corpo fechado, não poderia temer o desafio. Investe contra o seu parceiro e aguarda o início da peleja: A q u e la a p re s e n ta ç ã o /F o i a g o ta q u e fa lta v a /P ra B e s o u ro s e irrita r/S a ir e v ir p a ra a c a lç a d a / A rre ta r-s e d e u m a V e z / E d iz e r: - e u lh e e n c a ro ./V e n h a c á p a ra c o n h e c e r, /B e s o u ro d e S a n to A m a ro .

(5)

José Gerardo Vasconcelos

Essa trapaça é a história de Besouro. No cemitério não há atestado

de óbito. No fórum da cidade não há registro de nascimento. Na igreja não há certidão de batismo ou casamento.

BA

M a n o e l H e n riq u e P e re ira ,

vulgo Besouro, Besouro Preto, Besouro Mangangá ou Besouro Cordão

de Ouro. Difícil esquecê-Io. Pela força das narrativas, Besouro continua

sendo cantado nas rodas de capoeira em todo o país e no mundo.wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAÉ pre-servado na memória coletiva dos capoeiristas. Suas histórias continuam

sendo contadas e cantadas. Como esquecê-Io?

De conformidade com os estudos de NIETZSCHE (1983a, p. 58), nasZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

C o n s i d e r a ç õ e s e x t e m p o r â n e a s , "é possível viver quase sem lembranças, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível,

sem esquecimento, simplesmente viver." Ora, o esquecimento de que

fala Nietzsche é um antídoto contra a dor. A lembrança é, nesse caso,

dolorosa. Na C e n e a l o g i a d a m o r a l , Nietzsche (1983b, p. 304) afirmaria: "Nunca nada se passou sem sangue, martírio, sacrifício, quando o homem achou necessário se fazer uma memória. / I Nesse caso, o que poderia ser

lembrado e o que deveria ser esquecido?

140

Esquecer as nossas dores cotidianas; a violência da história; o pranto, o medo e o terror; esquecer o abismo que separa a humanidade.

Entre-tanto, não poderemos esquecer os nossos símbolos e as nossas alegrias.

Não poderemos esquecer jamais que o homem é potência lançada ao

mundo. Não poderemos esquecer, enfim, os nossos sonhos do passado

festejados no presente.

O trabalho aqui apresentado é uma pequena parte dos estudos

desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

Uni-versidade Federal da Bahia - UFBA (2002), como requisito do Estágio de

Pós-Doutorado. O objetivo - nesse texto - é apresentar os caminhos que foram traçados para capturar, a partir de indícios encontrados, a história

de B e s o u r o C o r d ã o d e O u r o .

Iniciei a pesquisa duvidando da existência de Besouro. Em várias

rodas de capoeira, já havia escutado músicas sobre Besouro, o Besouro

Mangangá. O que eu sabia era que a cidade de Santo Amaro era próxima

de Salvador e que fora uma escola de grandes capoeiristas e faquistas. Sa-bia que era também o berço de grandes manifestações culturais formadas a partir do contato do negro, índio e branco - samba, maculelê, reizado e, evidentemente, a capoeira.

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Hnocenoloqio de Um Capoeiro Jusíireiro

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Ao chegar em Santo Amaro da Purificação, na Região do Recôncavo

Baiano, procurei entrar em contato com capoeiristas ou com moradores

antigos da cidade. Eu duvidava da existência de Besouro Cordão de Ouro,

mas vislumbrava a possibilidade de coletar muitas histórias ou feitos

me-moráveis do capoeirista que viveu no início do século XX e morreu muito

jovem. De acordo com rlocumentos encontrados no desenvolvimento

da pesquisa, Besouro nasceu em 1895. Essa data tem como referência o

processo movido contra Besouro que resultou na sua expulsão do exército

em 1918. O referido documento (PEREIRA, 1918) atesta que Besouro tinha

23 anos

à

época. O ano da morte, que também representa uma grande

disputa de informações, ocorre em 1924, de acordo com documento

encontrado no Arquivo Municipal de Santo Amaro. Esse documento é um

outro processo movido por Caetano José Diogo, após o desfecho de uma

luta entre as partes, e da qual resultou na amputação do dedo mínimo de

Caetano. O referido processo fora arquivado em 1925, em decorrência do

falecimento do réu Manoel Henrique Pereira. Nesse documento (PEREIRA,

1920-1927), encontramos uma declaração da Santa Casa de Misericórdia

com os seguintes dados:BA

141

Certifico que, por determinação do chefe do

PONMLKJIHGFEDCBA

s e rv iç o clínico deste

hospital da Santa Caza de Misericórdia, re v e n d o os liv ro s de

en-trada e sahidas de doentes, às folhas

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

4 2 v do livro n° 3, linhas 16,

leito 418, consta o seguinte lançamento: Manoel Henrique, mulato escuro, solteiro, 24 anos, natural da cidade de Urupy, residente na Usina de Maracangalha, profissão Vaqueiro, entrada no dia 8 de julho de 1924, às 10 e meia hora do dia do falecimento às 7 horas da noite, de um ferimento perfuro-inciso do abdomem. (PEREIRA, 1920-1927, p. 21).

Isso significa dizer que Manoel Henrique, vulgarmente conhecido

por Besouro, como se refere o promotor ao réu, faleceu em 1924.

To-davia, o mesmo documento afirma que Manoel tinha apenas 24 anos.

É provável que a Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro não tenha

obtido informações mais precisas sobre o ano de nascimento de Besouro

e lançou de forma mais ou menos aleatória a idade do paciente. Dessa

forma, prefiro crer que o documento encontrado na Baixa de Quintas,

analisado por PIRES (2001, p. 219-234), sobre a expulsão do exército

seja mais preciso. Manoel Henrique Pereira nasce em Urupy em 1895 e

morre na Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro, no dia 8 de julho

(7)

José Gera rdo Vasconcelos

de 1924, às 7 horas da noite. De acordo com certidão de óbito de seu

irmão Caetano Cícero Pereira, Besouro

é

filho de João Martins Pereira e Maria AUT A Pereira. O nome da mãe apresenta uma pequena variação da sonoridade que se expressa pela tradição oral. De acordo com o ca-poeirista já falecido Cobrinha Verde, aluno e primo carnal de Manoel Henrique, a sua tia - mãe de Besouro - chamava-se Maria HAIFA Pereira. Durante muito tempo, os biógrafos de Besouro propuseram essa filiação;

na realidade, o nome Auta se expressa pela tradição oral como Haifa.wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Éevidente que ao chegar em Santo Amaro, eu não tinha ainda essas informações. Na realidade o que eu sabia de Besouro era quase nada. Só algumas músicas cantadas em rodas de capoeiras. Foi então que recebi a indicação - a partir de um contato aleatório com um jovem de uma lanchonete - de três personagens da cidade que poderiam relatar algo sobre Besouro. As indicações foram: Mestre Macaco, do Grupo ACARBO, Dona Canô - que não entrevistei - e dona Zilda Pain. Esta última

é

uma referência na cidade e por ela tem respeito os moradores e justamente a

consideram a historiadora da Cidade de Santo Amaro. Não tive dúvidas no momento em que optei por iniciar o trabalho de coleta com a

histo-142

riadora Zilda Pain.

Ao chegar ao endereço que me fora indicado por transeuntes da Cidade, deparei-me com uma modesta casa e logo fui atendido por uma senhora que aparentava mais de 70 anos. Referida senhora trazia uma grande força no olhar e uma' altivez que por si só imprimia respeito. Apresentei-me como pesquisador da UFC que realizava estudos em conjunto com a Escola de Teatro da UFBA sobre a capoeira baiana, ou mais especificamente sobre Besouro Cordão de Ouro. Perguntei se

po-deria conversar sobre o assunto. Fui convidado a entrar na residência. O ambiente parecia um arquivo. Relíquias eram distribuídas pela casa. Parecia que os acontecimentos do lugar eram filtrados pela memória da professora. Ela, que trazia o peso da vida, guardava nos seus arquivos muitos anos de pesquisa sobre a vida da Cidade, sua história, seus bens simbólicos e culturais. A marca do tempo era visível e os santos se

mis-turavam na parede azul com os sinais da vida herdados pelo tempo ou pela memória cultuada e festejada.

A nossa conversa inicial foi extremamente prazerosa. Parecia que o

(8)

Etno(enologio de Um Copoeiro Justiceiro

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

polícia, dos coronéis e dos senhores de engenho; um negro que morreu

jovem pela força da traição, perfurado com uma faca de ticun - a árvore

de mistérios. Fi lho querido de Ogum - conforme relatado por Sodré (1988, p. 23) - não poderia morrer de ferro.

Combinamos gravar uma entrevista. Fui rapidamente em busca

de equipamentos: um gravador e uma máquina fotográfica. Não havia

ainda conversado com o Mestre Macaco que, posteriormente, me relatou

várias histórias sobre Besouro. Quando retornei

à

casa de Dona Zilda,

não tinha conhecimento sequer do nome de Besouro - Manoel Henrique

Pereira. A minha dúvida quanto à existência de Besouro foi se

dissipan-do. Tentaria, no dia seguinte, vasculhar alguns lugares que pudessem

me apresentar alguma pista, algum detalhe mais concreto da passagem

desse indivíduo pela cidade de Santo Amaro. Procuraria o cemitério da

Cidade. O cemitério tem uma longa subida que corta a entrada antes de

chegar ao espaço reservado aos túmulos. No seu interior localiza-se um

sepulcro com muitas placas e registros antigos. O primeiro problema.

Dificilmente um trabalhador negro, filho de escravos, poderia adquirir um

registro desse tipo. É mais provável que os ossos tenham sido lançados

em valas coletivas depois de um certo tempo. Enfim, nenhum registro.

143

Os registros no livro do cemitério só existem a partir da década de 1960.

Não encontraria também registros na Santa Casa de Misericórdia, me mo

sabendo que Besouro havia morrido na referida instituição que, no gênero, é a segunda mais antiga do País.

A entrevista com dona Zilda poderia então apresentar algumas pistas

que pudessem iluminar o caminho da pesquisa. Iniciei a entrevista no

mesmo dia

à

noite para retornar no dia seguinte com um presente para

a professora.

dispunha de um cordel sobre Besouro que dona Zilda

ainda não conhecia. Vale ressaltar que o cordel foi produzido a partir dos

relatos coletados pelo autor e, pela linguagem poética, expressava a sua

versão sobre a luta de Besouro com o valentão Doze Homens.

Quando retomei

à

casa de Dona Zilda - no dia seguinte - ela já me

esperava com um de seus livros -

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

R e l i c á r i o P o p u l a r - sobre a cultura de

Santo Amaro. Uma parte do livro era dedicada à capoeira e, nessa parte, a

historiadora fazia uma pequena biografia de Manoel Henrique Pereira.

Nasceu em Santo Amara, filho de João Matos Pereira e Maria José. O mais ladino e malicioso capoeirista da Bahia. Mestre de capoeira

no exército, de onde se desligou depois da guerra. ão conhecia

(9)

José Gerordo Voscon(elos

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o medo, vencia a polícia dando pernadas e rabos de arraia, com

seus famosos saltos acrabáticos. Foi fria e covardemente golpeado em Mardcangalha no lugar de nome Quimbeca. Veio para Santo

Amaro em canoa, ficando no porto em frente à loja nova, até ljue

foi transportado para Santa Casa de Misericórdia, onde faleceu aos 32 anos de idade. (PAIN, 1999, p. 32).

o

relato era quase perfeito. A idade estava mais ou menos precisa. Em sua maior parte, os livros de capoeira afirmam que Besouro morreu com 27 anos. Na realidade, entre 27 e 32 anos. Os documentos atestam 29. Até o ano da morte, a tradição oral é muito rigorosa. JOÃO PEQUENO (2000, p. 20) afirma no seu livro: "Besouro morreu com vinte e tantos anos

ou trinta. To ouvindo falar que ele morreu em 1924.

PONMLKJIHGFEDCBA

N

É

que lembrança

puxa lembrança e um grande acontecimento na vida de uma comunidade passa a ser contado como se fosse vivido. É o que Pollak (1992, p. 201) chamou de "memória quase herdada."

Iniciamos nosso encontro. Ela começava a falar de maneira com-passada. As frases eram construídas com elegância e apresentava um

144

excelente domínio da língua culta. Perguntei se poderia gravar. Ela res-pondeu que não tinha medo daquela coisa. A nossa conversa começou a fluir e os relatos sobre

Besouro

começaram a aparecer na bela cadência das palavras da professora-pesquisadora. Eu permanecia embevecido pela poética e musical idade que se expressava na voz de dona Zilda.

Fiquei mais impressionado quando descobri que a professora pes-quisava a vida e a história da Cidade há .53 anos. Esse fora também o tempo dedicado ao magistério. A sua formação causou-me um misto de espanto e admiração. Ela concluiu o antigo quarto ano primário. lecionou, dirigiu escola, incluiu elementos da cultura negra no currículo escolar. Na realidade, abriu o caminho para a coleta de dados que realizei na região. Esses dados possibilitaram outros caminhos na pesquisa. O contato com pesquisadores como Frederico Abreu, do Instituto Mauá e a busca de arquivos e produção literária mostraram o caminho descompassado dos vários discursos sobre Manoel Henrique Pereira, vulgo Besouro, cantado pela voz de Elis Regina na música de Baden Powell- que esteve na região na década deZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA1 % 0 -e Paulo César Pinheiro: "Adeus Bahia zum zum zum cordão de ouro/ eu vou partir porque mataram meu besouro."

(10)

Etnocenologia de Um Capoeira Justiceiro

BA

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Etnocenologia de Um Capoeira Justiceiro

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Enviado poro publkcçõo em 04. 11. 2006

Aceito poro publicaçõo em 10. 05. 2007

Referências

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