Tribunal da Relação de Lisboa Processo nº 278/2005-6
Relator: OLINDO GERALDES Sessão: 03 Fevereiro 2005 Número: RL
Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: APELAÇÃO Decisão: CONFIRMADA
CHEQUE
Sumário
Rescisão da convenção de cheque
1 - A entrega de cheque, através de endosso por procuração, corresponde a um mandato para obter a sua cobrança.
2 - É ilícita a rescisão da convenção de cheque e a sua comunicação ao Banco de Portugal, baseada na emissão de cheque, para depósito numa conta do emitente, aberta noutra instituição de crédito, que, apresentado a pagamento, é devolvido, por falta de provisão.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
(A) instaurou, em 4 de Abril de 2002, na 4.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra Caixa Económica Montepio Geral, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe a quantia € 19 952,11, acrescida dos juros desde a citação.
Para tanto, alegou, em síntese, que a R. comunicou ao Banco de Portugal, indevidamente, a aplicação, a si e sua mulher, da medida de inibição do uso do cheque, causando-lhe prejuízos morais e materiais, nomeadamente por ter ficado impossibilitado de cumprir um contrato-promessa de compra e venda de um prédio rústico, com o que perdeu o sinal oferecido, no valor de 3 000 000$00.
Contestou a R., negando qualquer responsabilidade civil e concluindo pela sua
absolvição do pedido.
Procedeu-se a julgamento, com gravação, respondendo-se à base instrutória, nos termos do despacho de fls. 89/90, de que reclamou, sem êxito, o A.
Foi, depois, proferida a sentença, que absolveu a R. do pedido.
Não se conformando, o A. apelou da mesma e, tendo alegado, formulou, em resumo, as seguintes conclusões:
a) Houve erro na apreciação da matéria de facto, nomeadamente quanto ao quesito 4.º, que, face à prova testemunhal produzida, deve ser dado como provado.
b) Há contradição entre as respostas dos quesitos 4.º e 5.º.
c) A comunicação ao Banco de Portugal, para efeitos de inibição da utilização do cheque, violou o Aviso do Banco de Portugal n.º 1741/C-98.
Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da sentença recorrida, com a consequente responsabilidade civil da R.
Contra-alegou a R., no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Nesta apelação, está em causa a responsabilidade civil de uma entidade
bancária, decorrente da comunicação ao Banco de Portugal, da inibição do uso do cheque.
II. FUNDAMENTOS
2.1. Foram dados como provados, designadamente os seguintes factos:
1. Em 22 de Dezembro de 1994, o A. procedeu à abertura da conta de depósito à ordem, n.º 216.10.003830-8, na Agência da R. da Rua Augusta, em Lisboa.
2. Em 24 de Novembro de 2000, o Autor sacou, sobre a referida, conta o cheque n.º 25391230, no valor de 200 000$00, para depósito numa outra conta, de que é titular, no Banco Espírito Santo (BES).
3. Naquela data e na da apresentação a pagamento na compensação, o A.
apenas tinha depositado, na conta referida, a quantia de 189 575$00.
4. O cheque mencionado foi devolvido por falta de provisão.
5. Em 7 de Fevereiro de 2001, a Ré enviou ao Autor a carta, constante de fls.
12, comunicando-lhe a rescisão da convenção do cheque.
6. Seguidamente, a R. comunicou ao Banco de Portugal a aplicação da medida
de inibição do uso de cheque por parte do A.
7. A R. emitiu e enviou ao A. a declaração de fls. 52, de 16 de Fevereiro de 2001, donde consta: “informamos que em 13 de Fevereiro de 2001 seguiu para os serviços centrais desta Instituição o pedido de remoção da rescisão de uso de cheque referente à conta à ordem n.º 3830-8, em nome de (A) (…), que após recepção, procedem à comunicação ao Banco de Portugal”.
8. O Autor celebrou com (S) o contrato reproduzido a fls. 14, denominado “ contrato promessa de compra e venda”.
9. Para proceder ao reforço do sinal, o A. dirigiu-se ao BES a fim de obter um empréstimo.
10. Esse empréstimo foi recusado com base na existência do incidente de crédito (devolução do cheque) – (resposta ao quesito 3.º).
11. O referido (S) enviou ao A. a carta de fls. 15, de 27 de Março de 2001, da qual consta, designadamente, “dado que até hoje apesar dos sucessivos apelos telefónicos, ainda não recebi o reforço do sinal referente ao contrato promessa (…), venho pela presente rescindir o mesmo (…), revertendo a meu favor nos termos da lei o sinal oportunamente recebido” (resposta ao quesito 5.º).
(...)
2.3. Delimitada a matéria de facto provada, importa passar à consideração da responsabilidade civil atribuída à apelada.
Como já se aludiu, o apelante veio exigir a responsabilidade civil da apelada por ter comunicado ao Banco de Portugal uma rescisão ilícita da convenção de cheque, alegando ter sofridos danos não patrimoniais e patrimoniais.
Na sentença recorrida, porém, entendeu-se que não se verificavam os pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente os respeitantes à ilicitude e ao dano.
O cheque, como título de crédito que consubstancia uma ordem de pagamento imediato, pressupõe, para alcançar eficazmente a sua utilidade, confiança no meio de pagamento inerente, daí resultando a sua inegável importância no comércio jurídico, designadamente no âmbito das relações económicas.
Assim, a confiança no cheque constitui um valor que a ordem jurídica deve procurar tutelar.
É dentro desse contexto que se insere, designadamente, o dever das
instituições de crédito de rescindir qualquer convenção que atribua o direito de emissão de cheques por quem, pela respectiva utilização indevida, revele pôr em causa o espírito de confiança que deve presidir à sua circulação (art.º 1.º do DL n.º 454/91, de 28 de Dezembro, alterado pelo DL n.º 316/97, de 19 de Novembro).
A rescisão da convenção de cheque é obrigatória ser comunicada ao Banco de
Portugal, passando a entidade objecto da mesma a ser incluída numa listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco e que o Banco de Portugal
divulgará a todas as instituições de crédito – art.º s 2.º, al. a), e 3.º, n.º 1, do DL n.º 454/91.
Explicitando o espírito do regime jurídico do uso do cheque, o Banco de
Portugal instruiu ainda as instituições de crédito de que “o sacador que emita cheque a favor de si próprio não põe em causa o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque, excepto se este tiver sido endossado”
[n.º 16 do Aviso n.º 1741-C/98 (2.ª série), publicado no Diário da República, n.º 29/98, 2.º Suplemento, II Série, de 4 de Fevereiro de 1998].
Na verdade, nesta situação, não havendo circulação do cheque, não é posta em causa a sua confiança como meio de pagamento, sendo injustificável a rescisão da convenção de cheque, com as consequências legais inerentes.
Reportando-nos à situação concreta dos autos, verifica-se que o apelante emitiu sobre a apelada um cheque, no valor de 200 000$00, para depósito numa sua conta, aberta noutra instituição de crédito (BES), o qual,
apresentado a pagamento na compensação, veio devolvido, por falta de provisão.
Neste contexto, não tendo entrado o referido cheque em circulação, não foi posta em causa o espírito de confiança que deve presidir à sua circulação, não se justificando, nessa medida, a rescisão da convenção de cheque celebrada entre a apelada e o apelante.
Alega, no entanto, a apelada que o mesmo lhe foi endossado.
Mas sem razão, porquanto não foi efectuado o endosso do mencionado
cheque, com sentido translativo. Com efeito, o apelante, como beneficiário do cheque, não transferiu, nomeadamente para o BES, os direitos
consubstanciados no respectivo título de crédito. O BES, ao receber o cheque, para depósito em conta do apelante, não adquiriu quaisquer direitos sobre o mesmo, constituindo-se apenas como mandatário, para obter a sua cobrança no respectivo serviço de compensação.
Poderá admitir-se, por isso, um endosso por procuração (art.º 23.º da Lei Uniforme relativa ao Cheque), na medida em que a entrega do respectivo cheque ao BES significou um mandato para obter a sua cobrança.
Todavia, nestas circunstâncias, não se operando uma transferência da
titularidade dos direitos, que, assim, não chegaram a circular, naturalmente, não foi posto em causa o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque, injustificando-se o tratamento idêntico nas modalidades de
endosso referidas.
Por isso, a excepção quanto ao endosso, consignada no n.º 16 do Aviso do
Banco de Portugal, não abrange a modalidade do endosso por procuração.
Nestas condições, a rescisão da convenção de cheque e a sua comunicação ao Banco de Portugal representou, por parte da apelada, a prática de um acto ilícito, presumindo-se a culpa, nos termos do art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil.
Não obstante o preenchimento do requisito da ilicitude, nem assim é possível exigir a responsabilidade civil da apelada, na medida em que não se
comprovou a existência de dano na esfera jurídica do apelante.
Efectivamente, sem dano não pode existir responsabilidade civil. Ora, apesar do alegado, o apelante não logrou realizar a respectiva prova, designadamente dos danos de natureza patrimonial.
Com efeito, o facto descrito em 11., resultante da resposta restritiva ao
quesito 5.º, não consubstancia qualquer dano. A circunstância do promitente vendedor ter enviado ao apelante, como promitente comprador, a carta de 27 de Março de 2001, informando-o da resolução do contrato promessa e da perda do sinal recebido não equivale, sem mais, neste caso, à prova do dano, nomeadamente da perda do sinal.
A redacção do quesito 5.º correspondeu aos seguintes termos: “O promitente vendedor resolveu o contrato e fez seu o sinal recebido?”.
A resposta quedou-se, simplesmente, por “provado apenas que com a data de 27/03/2001 o promitente vendedor remeteu ao autor a carta que constitui fls.
15 dos autos”.
Esta materialidade apenas demonstra que o promitente vendedor emitiu e remeteu ao apelante a declaração constante de fls. 15.
Perante a resposta restritiva dada ao respectivo quesito, não é possível
entendê-la como prova da resolução do contrato promessa e da perda do sinal (3 000 000$00).
Assim, a materialidade da declaração referida não está provada.
Por outro lado, no tocante ao dano de natureza não patrimonial, nem sequer foram alegados os factos susceptíveis de o consubstanciar.
Ora, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, competia ao apelante o ónus da alegação e demonstração dos factos correspondentes ao direito invocado.
Não conseguindo o apelante cumprir tal ónus, como se demonstrou, não pode exigir a responsabilidade civil à apelada.
Nesta conformidade, não relevando a essência das conclusões do recurso, não está este em condições de obter provimento, sendo caso para confirmar a sentença recorrida, ainda que por fundamentação não inteiramente
coincidente.
2.4. O recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo
pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.
III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
2) Condenar o recorrente no pagamento das custas.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2005 (Olindo dos Santos Geraldes) (Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)