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GRAFITE COMO ATO DE RESISTÊNCIA À SOCIEDADE DE CONTROLE

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Academic year: 2022

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GRAFITE COMO ATO DE RESISTÊNCIA À SOCIEDADE DE CONTROLE

Aluno: Felipe de Souza Gomes Orientador: Luiz Camillo Osório

Introdução

O grafite é uma arte urbana. Ele vai construindo várias narrativas pela cidade, constituindo novas visualidades, abrindo brechas democráticas, transpondo os limites das galerias e interpelando diretamente o transeunte. Há uma tendência em considerar tudo que é interferência gráfica na cidade como sendo grafite - do stencil, ao mural; do bomb ilegal feito às pressas, até os desenhos pagos e autorizados pelos proprietários dos muros.

Há, entretanto, uma dentre estas formas de grafias urbanas que parece, ao menos à primeira vista, resistir e distanciar-se do grafite: trata-se do pixo (escrito com “x” e chamado assim por seus praticantes).

O pixo interfere clandestinamente na cidade, não pede licença e é uma marca visual daqueles que ficam sempre invisíveis e sem lugar. Seu objetivo não é a decoração, tão pouco sujar a cidade. É um manifesto à impossibilidade de se comunicar cotidianamente criando formas de expressão no limite do grito visual, assumindo-se assim como uma ação transgressora. Neste aspecto podemos pensá-lo a partir da noção de resistência às sociedades de controle, como propõe o filósofo francês Gilles Deleuze. O controle é um desdobramento da sociedade disciplinar, gestado na crise institucional dos meios de confinamento que antes caracterizavam as sociedades disciplinares.

Para pensar o pixo nesta chave da resistência deleuziana, gostaria de trazer à baila duas intervenções urbanas recentes. Refiro-me a Dória e Não fui eu. Por um lado, elas resistem a uma categorização que pretende separar o grafite e o pixo. Por outro, procuram provocar novas formas de interação com a arte urbana. Por se tratar, entretanto, de obras limítrofes entre grafite e pixo e dado o contexto de criminalização de um e legalização e incentivo ao outro, faz-se necessário investigar onde essas formas de arte na cidade se aproximam ou se separam.

Grafite e pixo: diferenças e aproximações.

De certa forma, o contexto inicial de guerra ao grafite no Brasil parece ter

contribuído para a sua legalização posterior. Uma legalização estratégica. Ao menos é o

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que se percebe no decreto publicado no ano de 2014, no qual a prefeitura do Rio de Janeiro tornou legal a atividade do grafite, reconhecendo seu valor para a cidade. Ao mesmo tempo, o decreto acabou por determinar a criminalização do pixo. Isto é, para fins de minimizar a presença do pixo na paisagem urbana, utilizando-se da solidariedade aparente entre pichadores e grafiteiros, determinou-se pela legalização do grafite. Quem determina o que é um e o que é outro? Apesar de não desejar diluir seus limites, para que um seja entendido como arte e outro como crime, o decreto deveria, ao menos para objetivos legais, esclarecer suas fronteiras. A fragilidade da separação entre pixo e grafite fica ainda mais evidente quando analisamos as diversas técnicas presentes no que se tem por grafite.

A maioria dos grafiteiros faz, além dos seus desenhos característicos, assinaturas de seus nomes em letras grandes, conhecido popularmente pelos artistas como bomb. Esta técnica nada mais é que a assinatura do artista, isto é, sua tag em letras cheias e preenchidas. O bomb em si não traz de forma alguma qualquer espécie de transgressão e por isso, uma vez que este é categorizado como grafite, pode ser realizado dentro dos limites legais apresentados. Contudo, a técnica em questão, por caracterizar-se como uma representação da assinatura do grafiteiro em letras cheias, traz consigo uma grande similaridade com a pichação: ao colocar seu nome nas paredes de forma legal, o grafiteiro indiretamente sugere que a diferença crucial onde está fundamentada a criminalização do pixo e legalização do grafite parece residir majoritariamente em sua forma e padronização estética, não em seu objetivo. A diferença na assinatura seja em tag, pixo ou bomb parece estar somente no seu padrão estético, mas o objetivo de ter o nome em uma parede permanece. Paralelamente, o pixo por vezes parece ser mais que apenas espalhar a maior quantidade possível de uma marca pela qual você seja reconhecido na cidade, sendo

Figura 1: Bomb Grato.

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portador de mensagens explicitamente políticas. Como exemplo, o pixo foi amplamente usado na ditadura militar para espalhar palavras de ordem contra o regime.

Da mesma forma, o pixo em São Paulo foi usado como um objeto para contra-atacar a política de “guerra ao grafite” de Dória, desta vez, porém, são os próprios pichadores que mobilizam recados ao governo, isto é, ao contrário dos pichadores da ditadura militar que apenas escreviam seus recados sem levar em conta a altura em que isso é feito ou ainda a própria forma das letras, estes utilizam da estética característica da pichação, submetendo palavras de ordem junto, inclusive, às suas próprias assinaturas.

Como um exemplo disso, tanto Não fui eu quanto Dória transitam entre o grafite e o pixo. O Não fui eu não parece se encaixar em nenhuma das modalidades do grafite, o que o categorizaria como pixo, apesar das letras cursivas e da comunicação ambivalente.

Além da estética própria, o Não fui eu se nega a reproduzir um outro padrão comum ao pixo: a assinatura. Uma vez que a prática do pixo consiste na disseminação de uma assinatura ou marca no maior número de lugares possíveis, ou ainda nos lugares mais altos da cidade, não há, contudo, nesse caso do Não fui eu uma assinatura autoral que se multiplica pela cidade, como é característico do pixo; há, ao contrário, uma declaração de não-autoria por parte do autor.

Da mesma forma, o Dória, apesar de feito por um pichador (Iaco Vianna), a própria obra subverte, tal qual o Não fui eu, o conceito de pixo, visto que a assinatura apresentada pela obra Dória é a assinatura de um terceiro, o então prefeito João Dória. O poder público que atacou frontalmente tanto o grafite como o pixo, foi transformado em pichador. Essas duas intervenções lidam com contextos locais e fazem a cidade refletir e problematizar, anônima e impessoalmente, o momento político em que se vive. Ambas as intervenções, deslocando a autoria, colocam o cidadão que passa como coadjuvante, provocando-o e chamando-o à responsabilidade.

Figura 2: Pichadores misturam palavras de ordem ao pixo.

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A sociedade de controle:

Como apontado por Deleuze, as sociedades de controle exercem sobre o indivíduo um poder rarefeito e sutil, internalizando formas de comportamento e fechando todas as brechas de expressão singular. Michel Foucault, que identificou uma sociedade disciplinar em sua filosofia, descrevia como um poder exercido por instituições, pelo estado. Era um poder ligado ao físico e à arquitetura. Na sociedade de controle o poder se esconde por trás de uma liberdade e parece ser exercido, na maioria das vezes, por instituições privadas e em ambientes virtuais. A crise das instituições que cumpriam a função disciplinar na sociedade apontada por Foucault, denotam um momento de transição e, talvez, de possível extinção dos modelos conhecidos.

Um dos meios de se exercer o controle é a informação. Deleuze esclarece que a informação são palavras de ordem, comunicados que tem como intuito julgar o que deve se ter como crível ou não. Por isso, diz ainda, “as declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados” onde o objetivo não é de nos fazer crer, como pode parecer em um primeiro momento, mas o fazem “para nos comportar como se crêssemos”. Nesse contexto, Deleuze aponta a existência de um terreno fértil para que surjam contra- informações, tomando como exemplo principalmente sua existência em regimes totalitários como o de Hitler na Alemanha nazista. Os judeus que escapavam da Alemanha e contavam ao mundo sobre os campos de concentração praticavam, assim, uma contra- informação.

Deleuze, entretanto, acreditava que a contra-informação por si não era eficaz, ao menos que se tornasse um ato de resistência. Da mesma forma, a arte que para o filósofo francês

“não contém a mínima informação” e ainda, “não tem nada a ver com a

comunicação”, seria um lugar de se constituírem atos de resistência. É nesta chave que vemos as duas intervenções destacadas acima. O Não fui eu, refletindo uma sociedade que prefere transferir ao outro sua própria omissão, ao passo que o Dória questiona diretamente o padrão de beleza imposto pelo então prefeito da cidade de São Paulo.

Dória:

Nos últimos anos o governo de São Paulo vem travando uma guerra contra o

grafite com o projeto “Cidade linda”, popularmente conhecido entre os artistas do grafite

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como “cidade cinza”, visto que o projeto tem como objetivo trocar o colorido dos grafites nos muros de São Paulo pelo cinza.

A guerra ao grafite foi intensificada

durante a gestão do prefeito e atual governador João Dória com dois casos alarmantes: O primeiro foi a pintura em cinza do grande mural colaborativo na Av. 23 de maio enquanto, no mesmo semestre, foram apagados, também, alguns murais do “Beco do batman”, uma rua localizada na Vila Madalena que ficou conhecida como uma galeria de grafite a céu aberto (neste último caso, apesar da coincidência do cinza, o proprietário da casa foi o responsável pela pintura dos muros). Nestes dois casos houveram respostas diretas por parte dos pichadores, o que parece ser um ato recorrente quando se trata de apagamento de grafites reconhecidos na cidade. No beco do batman o muro cinza foi rapidamente preenchido com dizeres como: reservado para pixo.

Logo após à pintura de cinza, o muro da Av. 23 de maio apareceu com um pixo que era uma clara resposta aos apagamentos constantes dos grafites em São Paulo: um pixo em letras cursivas com a assinatura do então prefeito Dória. O pixo simboliza a autoria do prefeito sobre os muros cinzas, põe em suas mãos a lata de tinta. O prefeito que manteve com empenho a luta contra o grafite e a pixação, acordou um dia como tendo pixado por doze vezes o seu nome sobre o muro cinza que ele mesmo proporcionou.

Ademais, há um subtexto que parece revelar algo mais grave no programa cidade linda:

o ato de Dória de apagar os grafites para um projeto que tem como objetivo deixar a cidade de São Paulo mais bonita comunica que o grafite e o pixo não têm lugar na metrópole. As atitudes do prefeito puseram o grafite e o pixo ao lado de questões onde não há controvérsia sobre seus danos à cidade, como o lixo e poluição. Sem contar ainda as questões que são de outra ordem, como a de pessoas em situação de rua e a de ambulantes.

Figura 3: Beco do Batman um dia após ao apagamento dos grafites.

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A atitude revela, portanto, que a prefeitura de São Paulo é partidária à um padrão de beleza e o impõe à cidade de forma autoritária, isto é, comunica esse padrão de beleza de modo performativo, legislando sobre o que os cidadãos deveriam acreditar que é bonito. Esta comunicação do que não cabe na cidade linda de João Dória, se dá por meio de remoções -que se tornam, na maioria dos casos em realocações de pessoas em situação de rua, na perseguição de vendedores ambulantes que na maioria das vezes recorrem ao trabalho informal por consequência do desemprego, mas também por meio de apagamento de obras importantes da cidade de São Paulo. Trata- se, assim, de uma perseguição a grupos vulneráveis dos quais participa o grafite. A obra de Iaco Vianna, desse modo, reverberou uma autoria do acinzentamento da cidade e do projeto de beleza que é imposto diretamente aos mais vulneráveis, tendo como fim denunciar uma ideia de beleza em que não cabem algumas manifestações artísticas fazendo com que o autor desse projeto de cidade se veja por um momento como pichador e termine sendo obrigado a mandar apagar seu próprio nome.

Não fui eu

O grafite que se espalha nos últimos anos pelas ruas do Rio de Janeiro, “Não fui eu” parece ser em um primeiro olhar uma declaração de não-autoria por parte do autor, como se alguém que foi pego cometendo o ato criminoso prontamente se defendesse dizendo que não o fez e se isentando do crime. Além disso, parece dizer bem mais quando pensada feita por um carioca - ou, no caso, feita por ninguém e pertencendo, portanto, a todos os cariocas. Como bem pontuou João Moreira Salles, aparenta ser lido imediatamente como um manifesto de inocência em relação a um delito em geral. O “Não fui eu” nega inclusive que viu tal delito: cena comum de quem convive com o crime organizado na cidade do Rio e aprende desde cedo a andar de cabeça baixa. Contudo, a pichação parece não referir-se a esses delitos já massivamente denunciados ou conhecidos dos quais já estão todos cientes, antes, parece querer comunicar ao cidadão comum sobre

Figura 4: Antigo mural coberto de cinza com as inscrições feitas por Iaco Vianna.

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sua atitude ao se isentar

de qualquer

participação em uma vida em comum na sociedade, isto é, o Não fui eu visa denunciar a ausência do nós enquanto afirma apenas a existência do eu, sendo este inocente.

É impossível também não encarar este Não fui eu, como sendo um manifesto contra o caráter apolítico do brasileiro. Nas manifestações de junho de 2013 que teve seu estopim nos aumentos da passagem de ônibus, houve, de forma generalizada um sentimento de aversão à política que vinha sendo instaurada no país. Manifestantes respondiam aos gritos de “sem partido” à qualquer mínima sinalização de símbolos partidários levantados. A mensagem dos manifestantes era clara: Se tratava, de forma consciente ou não, de um movimento apolítico. Intensificaram-se após estas manifestações e principalmente às eleições de 2014 uma tentativa de atestar a inocência diante do cenário político vigente. Camisas com os escritos “A culpa não é minha, eu votei no Aécio”, traziam esta tentativa de se dizer inocente, estampando os dizeres que exprimia claramente uma ausência de responsabilidade. Desde os eventos apontados até a eleição de 2018 é possível estabelecer paralelos e, apesar de representarem momentos extremamente diferentes na política Brasileira, é possível enxergar um como consequência do outro. Não obstante essas diferenças, esses eventos têm em comum declarações de inocência do “eu”, culpando sempre os “outros”, principalmente em um momento onde se intensifica a polarização.

Frente a essas informações, o “não fui eu” do mesmo modo que representa um pichador negando a autoria com as mãos cheias de tinta, responde à tentativa de se declarar inocente do brasileiro quanto ao cenário político atual (e cada vez mais atual tem se mostrado a pichação). Usando de ironia, ao passo que o caso de Iaco Vianna parece

Figura 5: "Não fui eu" em diversos pontos do Rio de Janeiro.

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direcionar a uma informação hegemônica de beleza imposta pelo estado, o “Não fui eu”

parece confrontar essa informação de uma aparente predisposição do brasileiro ao apolítico, seja por pessimismo ou porque “os outros”, que não sou eu, sempre votam errado. Desse modo, o “Não fui eu” fala aqui ao transeunte para que se construa um senso de responsabilidade coletivo, restaurando o ambiente da política ao povo além dos anos de eleição.

Conclusão:

Estas duas obras mostram o pixo como modo de resistência política. O pixo de Iaco Vianna simboliza a autoria do prefeito sobre os muros cinzas e põe em suas mãos a lata de tinta. Limpeza e pichação misturam-se. O prefeito que se empenhou na luta contra o grafite e o pixo, acordou um dia como pichador, assinando doze vezes o seu nome sobre o muro cinza que ele mesmo criou. Foi ele, fui eu. A outra intervenção analisada, O Não fui eu, refletindo uma sociedade que prefere transferir ao outro sua própria omissão, proferindo um ato de negação ilocucionária no qual o outro, apesar de oblíquo no ato, é o responsável intrínseco da recusa: o outro é sempre culpado. O Brasil são os outros. Não fui eu, foi ele.

O enfrentamento da apatia e da censura, a expressão da (não)autoria, a cobrança de responsabilidades, a invenção e a luta por espaços mais pulsantes de vida em comum são elementos presentes na prática da pichação e do grafite. Ter voz e visibilidade são parte do jogo político democrático. Muitas vezes conquistados através do ruído visual do pixo, outras na vibração de linhas e cores do grafite. Suas fronteiras são móveis e a legislação deve lidar com essa ambivalência se não quiser ser apenas forma de repressão.

Não fui eu, fomos nós.

Referências

1. DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.

2. DELEUZE, G e GUATARRI, F. O que é a Filosofia?. 2ed São Paulo: Editora 34 1993.

3. DELEUZE, Gilles. O que é o ato de criação? Transcrição do vídeo da série de entrevistas de 1988-89 feitas por Claire Parnet.

4. AVRAMIDIS, K e TSILIMPOUNIDI, M. Grafitti and Urban Art: Reading, writing and representing the city. New York: Routledge, 2017.

5. Pichador explica porque decidiu pichar doze vezes ‘dória’ em muro. Veja. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/artista-explica-por-que-decidiu-pichar-doze-vezes- doria/> acessado em: 29 de março de 2019

6. SALLES, J, M. Anotações sobre uma pichação. Revista Piauí. Disponível em:

<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/anotacoes-sobre-uma-pichacao/> acessado em:

29 de março de 2019

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